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TEOFANIAS I 2

colecção

TEOFANIAS

em colaboração com

Faculdade de Teologia - Universidade Católica Portuguesa


Instituto Superior de Teologia - Évora
Fundação Eugénio de Almeida
John Henry Newman

Ensaio a favor de

UMA GRAMÁTICA
DO ASSENTIMENTO

tradução e apresentação de
A r t u r Mor ã o

ASSÍRIO & ALVIM


www.assirio.pt

TITULO ORIGINAL: AN ESSAY IN AID OF A GRAMMAR OF ASSENT

© ASSIRIO & ALVIM


RUA PASSOS MANUEL, 67-B,-1150-258 LISBOA (2005)

EDIÇÃO 0058, NOVEMBRO 2005


ISBN 972-37-1066-8
]OHN HENRY NEWMAN (1801-1890)

DA RAZÃO IMPLÍCITA
À RAZÃO EXPLÍCITA
Um dos rasgos que mais impressionam e cativam em J. H . New­
man é a luminosidade interior. E justamente numa personalidade
pluriforme, rica de dons e de capacidades que, como poucos, ele
soube harmonizar em si. Noutros, semelhante profusão de quali­
dades humanas seria porventura uma fonte de contradições, de
rupturas, de desequilíbrios e de dispersão; em Newman, graças à
sua imensa sensibilidade moral, à sua profundeza religiosa, à sua
extraordinária clarividência intelectual, à sua acutilante e quase
genial percepção das moções discordantes do coração dos homens,
ao seu poder excepcional de expressão literária, à sua vibração poé­
tica e à sua subtil ironia, esta opulência de dotes, pastoreados por
uma incessante e incansável demanda espiritual desde a juventude,
gera uma impressão de subterrânea unidade de vida e de pensa­
mento que, contra todos os obstáculos exteriores e interiores, cons­
trói uma existência exemplar de total veracidade e coerência.
A sua longa existência, que ocupa, por assim dizer, todo o
século XIX e se situa na época mais gloriosa da história da Ingla­
terra, tempo da consolidação da pax britannica mundial, da revo­
lução industrial e do reinado da Rainha Vitória, quase se parte em
duas metades simétricas; anglicano na primeira, católico na segun­
da desde 1845, foi em ambas igualmente criativo, porventura mais
copioso na primeira do que na segunda, mas sempre empenhado
na busca de uma congruência plena com as exigências da sua cons­
ciência e com a autenticidade da fé cristã. Como ele próprio afir-

I n t r o dução •
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mou: para se «permanecer o mesmo», é necessário mudar; «viver é
mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes»I. Assim se com­
preende a sua evolução pessoal desde o evangelismo calvinista, pas­
sando pelo anglicanismo oficial com a sua intensa desconfiança e
hostilidade frente ao romanismo, até entrar no seio da Igreja Cató­
lica e acabar, por nomeação de Leão XIII, como seu cardeal. A
unidade da sua peregrinação espiritual dimana justamente das suas
intuições religiosas, do aprofundamento a que, de modo indefectí­
vel, ele as sujeitou, mais do que dos seus trabalhos ou das suas
obras, que fizeram dele uma glória das duas Igrejas, um herói do
pensamento cristão e um dos grandes mestres da língua inglesa na
prosa, na oratória e sobretudo na controvérsia.
Newman foi, antes de mais, um despertador e um mediador.

1. Despertador, primeiro, como anglicano; profundamente


radicado nas tradições da teologia e da cultura inglesas (dificilmente
se encontra nos seus escritos uma ressonância do pensamento filosó­
fico da Europa continental da altura, por exemplo de Kant, Hegel,
A. Comte, etc.) opôs-se vivamente ao «liberalismo»2 como a «reli­
gião do dia» e, de certo modo, como o ponto de confluência de cor­
rentes que já vinham dos começos da modernidade: o deísmo e a
Ilustração (Herbert von Cherbury), o empirismo e o cepticismo
ingleses Q. Locke e D. Hume), o racionalismo e o moralismo Qohn

I Cit. in ADRIAN HASTINGS, «Newman, John Henry», ADRIAN HASTINGs/Ar.1sTAIR MAsoN &
HuGH PYPER (Dir.), The Oxford Companion to Christian Thought, Oxford Univ. Press 2000, p. 473.
2 Na designação do nosso teólogo, é a atitude filosófica e religiosa que recusa todo o sistema

doutrinal e rejeita a pureza da fé enquanto elo de união da comunidade cristã; que, portanto, arvora
o princípio antidogmático e vê na religião apenas uma questão de sentimento. Defende, ademais, o
subjectivismo da verdade, enjeita a Revelação ou selecciona desta, arbitrariamente e numa postura
céptica, alguns elementos enquanto despreza os restantes, de acordo com uma visão naturalista e
abstracta da razão humana.

IO • I n t r o dução
Toland e Anthony Collins) e ainda o esteticismo romântico de Shaf­
tesbury na determinação da religião como questão do sentimento.
Reagiu sobretudo contra a Igreja oficial instalada e aburguesada,
que ele tentou levar à reforma interior, à redescoberta das suas origens
e à fidelidade à tradição apostólica. Foi precisamente na demanda da
apostolicidade eclesial, e não obstante os seus fortes preconceitos pes­
soais anti-romanos, hauridos do meio ambiente e da sua formação
religiosa, que Newman, paradoxalmente, se foi encaminhando pou­
co a pouco para a Igreja Católica. Esse intenso trabalho de investiga­
ção teológica, de reflexão espiritual, ecoa na redacção e na difusão
dos Tracts for the Times (entre 1833-41) e sobretudo nos notáveis
sermões pronunciados na igreja de Sr. Mary de Oxford (Plain and
parochial Sermom; University Sermons) pelos quais se impôs ao mun­
do inglês e se tornou numa referência nacional.
Nessa demanda criou, juntamente com John Keble, Richard
Hurrell Fraude e outros, o Movimento de Oxford entre 1833 e
1845. Visava este a independência da Igreja como comunidade,
como corpo de Cristo, que não deriva a sua autoridade do Estado
e do Parlamento, mas dos Apóstolos, dos quais ela recebeu o trípli­
ce ministério (bispo, sacerdote e diácono) , assegurado pela suces­
são apostólica do episcopado. O Movimento de Oxford professava,
pois, princípios claros: o princípio dogmático, ou seja, a sujeição a
uma fé com conteúdos, com verdades e ensinamentos concretos -
contra o liberalismo religioso; o princípio sacramental, ou seja, a
existência de uma Igreja visível com sacramentos e ritos, «que são
os canais da graça invisível»; e, por fim, o princípio do ministério
episcopal como inerente à estrutura essencial da Igreja.
Neste rrajecto, Newman, que não fora marcado pela Escolásti­
ca e pela sua teologia abstracta, familiarizou-se com os Padres da
Igreja, sobretudo com os Orientais e, entre estes, com o grande e

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indomável S. Atanásiô e, no seu íntimo, estava convencido de que
a Igreja da época patrística «representa o tempo "clássico" da Igreja
e, por conseguinte, o critério e a orientação, a norma e o juízo para
a Igreja de todos os tempos»I.
Cada vez mais atento, no decurso desta procura, à dimensão
encarnacional do cristianismo, descobriu o sentido histórico do
desenvolvimento interno do dogma; e a Igreja surgiu cada vez
mais, aos seus olhos, como um organismo vivo que mantém a sua
identidade justamente no meio do crescimento e da mudança. No
famoso escrito, The Essay on the Development of Christian Doctrine
(1845) , publicado nas vésperas da sua conversão ao catolicismo,
reconhece que a história e a evolução histórica, no seu desdobra­
mento, pertencem à essência da revelação que culmina em Jesus
Cristo; e também que na Encarnação reside o princípio do cristia­
nismo como facto e como ideia. Esta ideia, no decurso do tempo,
desdobra-se e patenteia-se numa multiplicidade de ideias e de aspec­
tos de ideias que estão entre si conexos e se harmonizam uns com
os outros; determina em si e de modo imutável como ele é o próprio
facto objectivo que assim se representa, se desentranha e se mani­
festa na riqueza ilimitada do seu conteúdo.
A consequência foi a mitigação do princípio unilateral, insulado
e extremo do sola scriptura protestante e do conceito classicista, mui­
to acalentado e profundamente arreigado, segundo o qual a Igreja
dos primeiros séculos era o modelo normativo da figura histórica da
Igreja em geral. Pelo contrário, «O critério genuíno da verdade e da
continuidade da fé e da doutrina cristãs não é uma pura verdade
artificialmente destilada ou preparada, mas a história concreta da

I HEINRICH FR!ES, •John Henry Newman», in HEINRICH FR!Es/GEORG l<RETSCHMAR (Dir.),

Klassiker der Theologie IL Vón Richard Simon bis Dietrich Bonhoejfer, Munique, Verlag C. H. Beck
1983, p. 153.

12 • I n t r o dução
Igreja no seu todo e a evolução nela tornada facto como desdo­
bramento da origem na multiplicidade das suas dimensões e pers­
pectivas: como introdução à verdade plena e total» l . Não se trata,
decerto, de negar à origem um significado normativo e crítico da
tradição; como princípio aberto, e não como fronteira delimitativa,
ela precisa do tempo e da história para desenrolar, numa matura­
ção e efectuação progressivas, a sua realidade, anunciada de uma
vez por todas. Segundo a imagem de Newman, que reconheceu na
Igreja de Roma os critérios de um desenvolvimento legítimo, o rio
não sobe mais do que a fonte. Mas o que a fonte em si tem só no
rio se pode conhecer.
Despertador foi também já no seio do catolicismo, em circuns­
tâncias particularmente difíceis, porque o universo católico contem­
porâneo, apostado então na defensiva perante o mundo moderno,
arrimado ao pensamento escolástico de pendor anistórico na teolo­
gia e nos fundamentos filosóficos, pouco fundado na Escritura e
esquecido da patrística, nunca acolheu com plena confiança o novel
convertido, antes suspeitou e espreitou sempre nele o perigo da here­
sia e o teve não só por «liberal», mas ainda por um homem extrema­
mente perigoso. Na realidade, porém, o que caracterizou Newman,
neste período complicado, e por vezes doloroso, da sua vida, foi a
coragem de se abrir ao mundo, ao mundo do espírito, da cultura e
da ciência, de intentar uma aproximação da fé e do saber, da religião
e da razão, da Igreja e da civilização - só que a sua premonição não
foi ouvida e o desfecho foi, algumas décadas depois, a crise do
modernismo e, no plano espiritual, a rendição das Igrejas ao nacio­
nalismo, na altura da primeira guerra mundial.

1 Ibidem, p. 1 58.

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2. Mas Newman foi igualmente um grande mediador e recon­
ciliador.

a) Primeiro, no âmbito da teologia. Num tempo de estranha­


mento e de hostilidade recíproca das Igrejas, viveu e ensaiou de
modo concreto, na sua pessoa, na sua luta interior, no seu percurso
espiritual e nas suas obras, entre desconfianças e ataques exteriores,
mas também no conluio com profundas amizades, o caminho de
um ecumenismo verdadeiro, que atendia mais à substância comum
da fé do que às diferenças nas opiniões teológicas e procurava elimi­
nar as discriminações nascidas de tradições eclesiais particulares,
quase sempre coladas a factores impositivos de ordem nacional ou
política, portanto, longe da inspiração evangélica. De facto, devido à
acção e à influência de Newman, o catolicismo, minoria desprezada
e desconsiderada na Inglaterra coeva, acabou por ganhar maior
visibilidade e consideração e por ver atenuados os mecanismos de
injustiça social que há muito o oprimiam.
Numa época de afirmação exasperada da autoridade eclesiástica,
tempo do Syl/,abus e da refrega entre o liberalismo e o ultramontanis­
mo, afirmou e sublinhou mais do que ninguém o significado, a
importância e o alcance do consensus ou sensusfidelium para a mútua
conspiração que, ao sabor do Espírito Santo, conjunge no impulso
de aprofundamento da fé a comunidade dos fiéis e o magistério
eclesiástico. No escrito, On Consulting the Faithfull in Matters of
Doctrine, § 2, publicado em The Ramblerem Julho de 1859, diz:

«. . . a tradição dos Apóstolos, confiada a toda a Igreja nas suas


diversas componentes e funções per modum unius, manifesta-se de
várias maneiras em tempos diferentes: umas vezes pela boca do
episcopado, outras pelos doutores, outras pelo povo, outras ainda

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pelas liturgias, ritos, cerimónias e costumes, pelos acontecimentos,
disputas e movimentos, e por todos os outros fenómenos abrangidos
sob o nome de história. Segue-se que nenhum destes canais da tradi­
ção pode ser tratado sem respeito; garantindo-se ao mesmo tempo
que o dom de discernir, discriminar, definir, promulgar e impor
qualquer parte dessa tradição reside apenas na Ecclesia docens.»

Como homem espiritual, que dentro da comunidade eclesial


se sabe e apreende numa relação imediata com Deus («Eu e o meu
Criador») , realçou o valor insubstituível da consciência individual,
perante a qual a obediência a instâncias externas nunca pode ser
um valor absoluto e incondicional. Em A Letter Adressed to the Duke
ofNorfolk, 5, expressa-se do seguinte modo:

«A regra e a medida do dever não é a utilidade, nem a justeza,


nem a felicidade do maior número, nem a conveniência do Estado,
nem a acomodação, a ordem e o pulchrum. A consciência não é um
egoísmo de vistas largas, mas um mensageiro d'Aquele que, na natu­
reza e na graça, nos fala atrás de um véu, nos ensina e governa pelos
seus representantes. A consciência é o original Vigário de Cristo, um
profeta nas suas informações, um monarca na sua atitude decretória,
um sacerdote nas suas bênçãos e anátemas e, ainda que o sacerdócio
eterno através da Igreja deixasse de existir, nela o princípio sacerdotal
persistiria e disporia de um poder soberano.»

Imbuído do pensamento patrístico, não separou a Criação e a


Redenção, o natural e o sobrenatural, realçou o laço entre a tradi­
ção e a mudança à luz de uma «economia da verdade», e soube
harmonizar a visão ontológica e cósmica dos Padres gregos, o seu
optimismo espiritual, com a interioridade agostiniana, a ilumina-

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ção intelectual com o amor, a luta do conhecimento com o senti­
mento intenso da responsabilidade pessoal.

b) Newman foi também mediador no campo filosófico.


Em pleno século da burguesia, das revoluções sociais e da radi­
calização do ateísmo militante, com o seu intuito de total imanen­
tização do mundo, da história e da cultura, na sua polémica com
as correntes do positivismo, do cepticismo empirista da tradição
inglesa e do materialismo, enveredou, antes de M. Blondel, mas de
um modo paralelo, por um caminho da intra-transcendência e
ensaiou um verdadeiro «método da imanência» na sua doutrina da
consciência. Diga-se, de passagem, que nos dois pensadores (aliás,
com afinidades entre si!) ressoa intensamente a temática agostinia­
na da domiciliação da verdade no homem interior, da iudex ratio,
do mestre íntimo. Para Newman, a consciência, no seu testemu­
nho implícito, na sua capacidade de discernimento espiritual, é
simultaneamente sentido moral, sentimento intelectual, sentido de
admiração, de aprovação ou censura, sempre emocional. É, pois, o
princípio criativo da religião. Devido ao torvelinho do eros intelec­
tual e da inquietude ética, à busca de uma inatingível harmonia
entre a certitude (certeza subjectiva) e a certainty (certeza objectiva) ,
ela abre necessariamente para o fundo teologal da nossa mente. É
conselheiro pessoal, peremptório, indiscutível, esquivo a respostas,
ameaçador, definitivo ! ; mas, com a vida, pode perder-se o seu sen­
tido, a sua percepção, a convicção secreta nela ínsita de que, embo­
ra estando em nós e sendo fonte das nossas acções responsáveis,
não somos verdadeiramente senhores de nós próprios.

1 A n Essay in Aid ofA Grammar ofAssent, Notre Dame/Londres, University o f Notre Dame
Press, 1979, 1992, p. 110.

I 6 • I n t r o dução
Contra o cientismo, que no século XIX avançava rompante e se
firmava num racionalismo metodológico de cariz monista, asseverou
Newman que «O homem não é um animal raciocinante, mas um
animal que vê, sente, contempla e actua»I. Pela desconsideração do
jogo das faculdades, acentuando antes o seu conflito, pela ignorância
da imbricação essencial do intelecto e da imaginação, o cientismo
mostra que vive da generalidade espectral e não da atenção ao parti­
cular, consagra a divisão e o desmembramento da «alma», nada sabe
da relacionalidade essencial de todas as coisas2, desconhece outras
«gramáticas» (por exemplo, a do assentimento) além da lógica.
No século que viu nascer os «mestres da suspeita» (K. M�, F.
Nietzsche e S. Freud) , Newman aderiu a um realismo ontológico
sereno e crítico, mas, no fundo, inalcançável. Perante o mistério de
Deus, e não só, como ele reconhece, lidamos com as sombras gera­
das pelo nosso intelecto, com os seus inúmeros aspectos parciais3.
De uma maneira muito sua, no pólo oposto à consideração mar­
xiana da consciência como mera ressonância social, à denúncia
nietzscheana mediante a pesquisa «genealógica» ou ao negativismo
freudiano perante o Eu individual, foi atento, mas com um intuito
construtivo, ao que chamou de «alucinações», «extravagâncias», «de­
sordens funcionais» e «aberrações» do intelecto, «fenómenos meteo­
rológicos da mente humana»4, causados pela interferência turbulenta
e obstrutiva de desejos, hábitos, fantasmas, preconceitos, crenças,
opiniões na obtenção do conhecimento e no acesso à verdade sobre
as coisas e sobre si mesmo.

1 Op. cit., p. 90.

2 Op. cit., p. 44.


3 Op. cit., p. 1 1 6.
4 Op. cit., p. 1 68.

l n r r o dução • 17
e) Poderia, pois, dizer-se que o pensamento de Newman ocupa
um lugar interessante entre o pensamento pré-moderno e o marco
pós-moderno.
Por um lado, no seu filosofar sem terminologia técnica e de
tom essencialmente interrogativo, conversante e familiar, aliou em si
o jeito experiencial e concreto do espírito inglês a um aristotelismo
moderado, sobretudo no papel ou no relevo concedido à phronesis,
que ele relaciona com o juízo supralógico, o judicium prudentis viri,
o «sentido ilativo», baseado numa percepção holística das circuns­
tâncias, do caso, e jorrando ao mesmo tempo da razão, do coração
e de outras inspirações, que o sujeito implicado ignora e jamais
pode trazer à luz da introspecção controlada. Tal não ficou sem
consequências.
Primeiro, o nosso teólogo cedo captou a unilateralidade do
Iluminismo e o seu coração frio, a sua concepção abstracta e uni­
forme de pensamento, a sua convicção rasa de que os poderes do
intelecto, a agudeza, a sagacidade, a subtileza e a profundidade são
os únicos guias para a verdade. Não admira, pois, que a Era das
Luzes se tornasse cega para os processos implícitos da mente racio­
cinante, que é em si arquitectónica, e não simplesmente analítica.
Diz Newman:

«Ü pensamento é demasiado vivo e múltiplo, as suas fontes


são demasiado remotas e ocultas, a sua senda demasiado pessoal,
delicada e tortuosa, o seu tema demasiado díspar e intrincado, para
aceitar os empecilhos de qualquer linguagem, seja qual for a sua
subtileza ou o seu limite»I.

1 Op. cit., p. 227.

18 • I n t r o dução
Existe, portanto, uma distinção entre as formas «pessoal» e
«científica» da busca da verdade. A ciência é decerto uma institui­
ção de produção do conhecimento e da sua ratificação social, por­
tanto conhecimento público, mas in statu nascendi jorra do diálogo
difícil e trabalhoso, sujeito a mal-entendidos, entre a criatividade
individual e a dureza das coisas que se ocultam e resistem à nossa
invasão cognitiva; implica, por isso, o elemento ou o momento
pessoal, que não é feito só de invenção clara, mas de turbulências
várias.
Em segundo lugar, como hermeneuta sagaz e intuitivo, New­
man teve uma noção admirável da «pluralidade» intrínseca qu� nos
é peculiar. A tal se deve a sua apreensão do que se poderia designar
de «meteorologia da mente», já acima referida, a saber, o nexo ou,
melhor, o novelo de emoções, imaginação, motivos e assentimen­
to, de preconceitos, preferências e pressupostos, de gostos, hábitos e
opiniões, cujo conjunto e variedade, no seu papel de quase primeiros
princípios, constituem, de acordo com a metáfora newmaniana, o
«mobiliário da mente» l . Mas essa aparente «heterogeneidade», que é
apenas funcional e operacional, supõe a unidade ôntica da nossa
capacidade noética.
No primeiro dos Sermons for Vtzrious Occasions (S. 1. lntellect,
the Instrument of Religious Trainin� diz o grande polemista que a
natureza ou condição da mente humana se pode encarar de dois
pontos de vista principais, intelectual e moral.

«Como intelectual, ela apreende a verdade; como moral,


apreende o dever. A perfeição do intelecto chama-se habilidade e
talento; a perfeição da nossa natureza moral é a virtude. E é aqui

1 Op. cit., p. 1 41.

I n t r o d ução • 19
uma grande infelicidade nossa, e também a nossa provação, que,
tal como as coisas estão no mundo, as duas se encontrem separadas
e sejam entre si independentes; que onde existe o poder do intelec­
to não seja necessária a virtude; e que onde estão a rectidão, a bon­
dade e a grandeza moral não seja necessário o talento. Mas não foi
assim no início; não é que a nossa natureza seja essencialmente
diferente do que era, quando inicialmente foi criada; mas o Cria­
dor, após a sua criação, elevou-a acima de si mesma por uma graça
sobrenatural, que coadunava todas as suas faculdades e as fazia
conspirar num só todo e agir, em comum, para um único fim; pelo
que, se a raça tivesse persistido nesse estado abençoado de privilé­
gio, nunca teria surgido a distância, a rivalidade, a hostilidade
entre as diversas faculdades. As coisas são agora diferentes; tanto
pior para nós; - foi-se a graça; a alma não consegue manter-se
unida; desfaz-se em fragmentos; os seus elementos lutam uns com
os outros. E assim como, quando um reino esteve, durante muito
tempo, num estado de tumulto, de sedição ou rebelião, certas par­
tes se separam do todo e do governo central e se estabelecem por .si
mesmas, assim também acontece com a alma do homem. Assim se
passa, repito, com a alma, já há muito; por isso, surgiram nela
vários reinos pequenos, entre si independentes e em guerra recí­
proca, tais e tantos que reduzem a soberania original a um espaço
territorial e a uma influência não mais considerável do que aquela
que eles próprios têm. E todos esses pequenos domínios, como os
poderei designar, na alma são, naturalmente, no seu isolamento,
incompletos e deficientes, fortes em certos pontos, fracos noutros,
porque nenhum deles é o todo, suficiente por si mesmo, mas ape­
nas uma parte do todo, o qual, pelo contrário, é feito de todas as
faculdades da alma.»

20 • I n t r o dução
Sugere-se aqui, pois, que a mente humana, embora una e de
suma elasticidade, é feita para a verdade; mas reparte-se pelos domí­
nios da paixão ou do apetite, do intelecto, da consciência moral, que
estão em conflito mútuo no interior de cada um, e com as suas
concreções no mundo externo da cultura. Este, no seu tecido com­
plexo, ateador de incerteza e de confusão, força-nos a uma escolha
incessante e sem delongas, muitas vezes sem sabermos como, pois
«pensar, falar e agir é já escolher».
Tem a nossa mente numerosas repartições, múltiplos departa­
mentos e províncias do conhecimento que não se regem por crité­
rios idênticos, antes todos respiram e actuam sob a reverberação de
um mesmo horizonte de verdade e de sentido, que se aborda sob o
prisma e os critérios de cada domínio. Aparenta-os, no entanto, o
conjunto dos elementos seguintes: são património do mesmo
sujeito; intentam uma ordem das coisas que não é acessível só atra­
vés dos esquemas lógicos, mas exige ainda o intercâmbio livre e
espontâneo do intelecto e da imaginação, o papel das crenças, das
concepções existentes, das qualidades pessoais. Tais domínios che­
gam, quando muito, apenas à probabilidade. No mundo da vida,
de facto, é contraído o âmbito da certeza, vasto o campo da opi­
nião, diminuto o catálogo das certezas genuínas. Por isso, a proba­
bilidade é o guia da vida!; mas, nos meandros da existência, 'as
formas de probabilidade fundam-se em certezas2.
Primeiro, porque, se «a vida é para a acção», «nenhum de nós
pode pensar ou agir sem a aceitação de verdades, não intuitivas, não
demonstradas, todavia soberanas3». Eis um Newman quase antifun­
dacionalista, mas que não renuncia à consistência, à densidade e à

1 Op. cit., pp. 1 92-3.

2 Op. cit., p. 1 94.


3 Op. cit., p. 1 50.

I n t r o dução • 21
captação veritativas da realidade, pois existe a verdade, que se pode
alcançar. Mas a percepção dos seus primeiros princípios, que nos é
natural, está debilitada, obstruída, pervertida pelas seduções dos sen­
tidos e pela supremacia do Si mesmo e é, por outro lado, estimulada
pelas aspirações ao sobrenatural; pelo que, no fim, se moldam assim
dois tipos de mente, dois padrões e sistemas de pensamento - o
departamento do saber natural, fundado na probabilidade, e o depar­
tamento do espiritual, que, tendo por eixo a consciência, não pode
assentar na mera probabilidadel . Em ambos, no entanto, ressoa e
repercute uma certeza indefectível em verdades primárias, que admite
múltiplas variações de opinião na sua aplicação e disposição2.
Além disso, a correlação entre certeza e prova implícita é uma
lei das nossas mentes3. «Quando a lógica falha, os homens tornam­
-se pessoais; é o seu modo de apelar para os seus elementos primá­
rios do pensamento, para o seu sentido ilativo, contra os princípios e
juízos de outrem»4.
Depois, «nenhuma verdade, por simples que seja, pode ser
apreendida num só acto»5. Apela forçosamente para a heterogenei­
dade que nos constitui, intima a constelação das nossas variegadas
forças cognitivas, incrusta-se no elemento caótico do nosso viver,
supõe uma confiança básica nos nossos sentidos, nas nossas capaci­
dades de memória, de raciocínio e nas palavras de outrem, a qual,
mesmo se repetidamente afectada pela experiência do erro, persiste
como condição indispensável da vida prática e da existência no
mundo. Por isso, dos erros e da não infalibilidade do nosso intelec­
to não se pode deduzir o cepticismo integral nem um puro espe-
1 Op. cit., p. 1 92.
2 Op. cit., p. 1 94
3 Op. cit., p. 239.
4 Op. cit., p. 288.
s Op. cit., p. 1 30.

22 • I n t r o dução
lhismo epistemológico a que corresponde apenas um mundo de
aparências, sem bastidores ontológicos. A certeza dos nossos erros
não impede a verdade de novas proposições que tentamos alcançar.
Na aquisição desta nova verdade, além da invenção pessoal, da
informação sensorial ou do fornecimento de dados, do jogo infe­
rencial dos nexos lógicos, das notícias com que os outros, através
das instituições sociais, nos circundam, tem lugar especial a relação
hermenêutica entre o todo e as partes, a lei da forma ou da totali­
dade, que vigora concretamente na percepção sensível, mas vale
para todos os campos da nossa investigação, estabelecendo uma
vibração impalpável, mas fecunda, entre o explícito e o implícito:
«Um objecto dos sentidos apresenta-se à nossa visão como um
todo, e não nos seus pormenores isolados» ! . Neste processo, não
de todo controlável, imiscui-se ainda o sentido da historicidade,
do desenvolvimento das ideias, do desdobre ou desenodar de uma
realidade (por exemplo um conteúdo da Revelação) , do exercício
racional no interior de tradições.
Compreende-se assim a importância e o relevo dados por
Newman à experiência da vida humana, ao senso comum prático.
Tal como os praticantes da «filosofia da vida» (F. Nietzsche, M.
Scheler, H. Bergson, J. Ortega y Gasset e outros) , acentuou no
homem mais a acção do que razão, porque ele é, acima de tudo,
vida, e esta é, como antes se lembrou, essencialmente acção. Captou
com finura a nossa imersão nas coisas, as inumeráveis implicações
das palavras, a profundeza e a respiração das associações da poesia
das palavras e da sua história, em contraste com o espectro lógico
que a ciência requer. O universal cenário vivo das coisas não é,
pois, tanto um mundo lógico quanto poético.

1 Op. cit., p. 239.

Intro dução • 23
Por isso, «a argumentação verbal não é o princípio da crença
interior» ! nas questões mais importantes que nos atormentam; a
mente humana, algo vagabunda, que caminha de coisas para coi­
sas, de totalidades para totalidades2, também não é como a imagi­
namos, mas como paulatinamente a vamos descobrindo; assenta
sobretudo num processo inconsciente e tácito que, nos seus juízos,
germina e irradia a partir de pressupostos explícitos ou implícitos3,
sem nenhuma medida comum entre si.
Ninguém expressa melhor este vagabundear noético do que
Newman:

«A mente vagueia de um lado para outro, estende-se e avança


com uma presteza que se tornou proverbial, com uma subtileza e
uma versatilidade que desconcerta o exame. Salta de ponto para
ponto, apossa-se de um por uma indicação qualquer; ganha outro
por probabilidade; em seguida, valendo-se de uma associação;
depois, recorrendo a uma lei recebida; a seguir, deitando a mão a
um testemunho; por fim, entregando-se a alguma impressão popu­
lar ou a um instinto interior, ou a alguma memória obscura; e,
assim, progride de uma maneira não dissimilar à de um alpinista
numa falésia alcantilada que, graças ao olho rápido, à mão pronta
e ao pé firme, sobe, como, nem ele próprio sabe, pelos dons pes­
soais e pela prática, mais do que segundo uma regra, não deixando
atrás de si nenhum vestígio e incapaz de ensinar outrem. Não é
dizer demasiado que a marcha pela qual os grandes génios escalam
a montanha da verdade é tão insegura e precária para os homens
em geral como a subida de um montanhista habilidoso num des­
penhadeiro real. É um caminho que só eles podem tomar; e a sua
1 Op. cit., p. 151.

2 Op. cit., p. 260.


3 Op. cit., p. 285.

24 • I n r r o dução
justificação reside apenas no seu êxito. E tal é sobretudo o modo
como todos os homens, dotados ou não dotados, comummente
raciocinam - não de acordo com uma regra, mas por uma faculda­
de interior. O raciocínio, portanto, ou o exercício da razão é uma
energia espontânea viva dentro de nós, não uma arte» 1,

Trata-se, como se vê, de uma conquista verdadeiramente «polé­


mica» (em sentido etimológico) da verdade numa guerra sempre
incerta, da certeza como drama; vale para o nosso assédio ao enig­
ma do mundo e à profundeza das coisas; vigora também no âmbito
da fé religiosa, que é somente um caso particular da postura «fidu­
cial» inerente aos nossos empenhamentos cognitivos, que vivem e se
alimentam das assunções previamente norteadoras da pesquisa.
Domina, superintende e imbui todo este processo o juízo supraló­
gico2, faculdade essencialmente arquitectónica e presente em todos
os assuntos concretos3 como suplemento da lógica; tem, como
hoje se diria, uma aura «holística», enquadradora, sintética, com­
positiva, que permite ligar per modum unius aquilo que um olhar
analítico vê apenas como separado.
Ramo seu é o «sentido ilativo» (na denominação newmaniana).
Tem muito de dom pessoal, assegura o trânsito da inferência condicio­
nal para o assentimento incondicional, possui um certo matiz de adi­
vinhação e de pressentimento, emerge por vislumbre e fulguração da
acumulação de probabilidades convergentes4, gera o assentimento,
como acto indivisível, na sua integridade, com as suas concomitantes e
circunstâncias, e também no seu contraste com a ilação lógica.

I Apologia pro vita sua; cit. in Garry WILLS, Papal Sin. Structures ofDeceit, Nova Iorque/ Lon-

dres, Doubleday 2000, p. 265.


2 Op. cit. pp. 251 ss.
3 Op. cit. p. 269.
4 Op. cit. pp. 261 ss.

lnu-odução • 25
«Ü assentimento, puro e simples, é a ·causa motriz de grandes
feitos; é uma confiança, que brota mais dos instintos do que dos
argumentos, alicerçada numa viva apreensão, animada por uma
lógica transcendente, mais concentrada na vontade e na acção, pela
simples razão de que não foi sujeita a qualquer desenvolvimento
intelectual.»1

O discernimento e a compreensão atenta desta «lógica trans­


cendente», conatural ao acto de pensar, sobretudo na indagação do
seu horizonte postremo, impedirão que, como por vezes aconte­
ceu, tenham lugar «Usurpações da razão», por exemplo, da religião
no campo das ciências ou destas últimas no recinto da moral e da
fé. Mas tais áreas da experiência e da acção humanas nunca se
podem confundir, a não ser em virtude do desconhecimento da
natureza genuína do intelecto ou por força de uma filosofia ingé­
nua, para não dizer mal intencionada.
Como lembra Newman - e trata-se de uma convicção do
senso comum - o principal meio cognitivo que temos à disposi­
ção é a nossa mente, além da voz da humanidade e do curso do
mundo; por ela testamos, interpretamos e corrigimos o que nos é
proposto para a crença. Esta, se pretende ser iluminada, nunca se
recusará a sopesar os conteúdos, os motivos, os argumentos; a
explorar, a discriminar e a explicitar as virtualidades contidas nos
seus dados ou, segundo o giro linguístico de Newman, nas «Evi­
dências da Fé» (na acepção mitigada de indícios, sinais, traços, sin­
tomas e insinuações, e não no sentido cartesiano de luz invencível
de um conteúdo mental, que elimina toda a dúvida) .

1 Op. cit., p. 1 77.

26 • I n t r o dução
Vale, de facto, para toda a actividade cognitiva (e prática) o
mote seguinte: «Sem pressupostos, ninguém consegue provar nada
acerca de nadal .» Eis porque o cristão, ao dar as razões da esperan­
ça que o habita, estabelecerá um vínculo entre a mensagem sobre­
natural, dom da graça e da economia divina, que ele acolhe, e o
seu fundo antropológico. A crença nas verdades reveladas depende
da crença nas naturais, pois a crença é um estado da mente e a cren­
ça gera a crença2. A aceitação do cristianismo supõe o estar imbuído
das opiniões e dos sentimentos religiosos da Religião Natural; em
ambos, os estados da mente implicados e os hábitos de pensamento
são os mesmos3.
É indispensável esse trabalho de inclusão e de entrançamento
dos elementos envolvidos no acto de crer, de tradução da razão
implícita em razão explícita, porque a Religião Natural, intimamen­
te relacionada com a consciência - o mestre interior que ilumina a
nossa percepção do bem e do mal e suscita em nós sobretudo o sen­
timento da culpa e da expiação e nos mostra Deus como Juiz4 -,
tem em si aspectos opressivos e, de certo modo, anela por uma reve­
lação, cuja noção é congénita à mente humana5, abre-se secretamen­
te à sua realização cabal e ao seu suplemento, a saber, a Religião
Revelada6. O fundamento da sua certeza em nós só pode derivar
da interposição de um Poder, maior do que o ensinamento e o
argumento humanos, para tornar verdadeiras as nossas crenças e
uma só as nossas mentes7, pois existe também uma só verdade,

1 Op. cit., p. 319.


2 Op. cit., p. 321.
3 Op. cit., pp. 321, 323.
4 Op. cit., pp. 304-6, 311, 324.
5 Op. cit., p. 315.
6 Op. cit., p. 303.
7 Op. cit., p. 293.

I n t r o dução • 27
embora difundida no número ilimitado dos seus raios. E tudo o
que nos é pedido é uma «ridente cooperação com uma Providência
que tudo governa» l .

* * *

Esta exposição de algumas linhas do pensamento de J.H. New­


man não chega decerto para salientar o que de explosivo existe na
Gramdtica do Assentimento, e que à Academia, com seus tribalis­
mos filosóficos, com seus modismos e suas sujeições epocais, pas­
sou quase despercebido: a subtileza e o potencial hermenêuticos; a
recusa de todo o naturalismo metafísico que tenta degradar a origi­
nalidade ontológica e espiritual da consciência; o sentido da histo­
ricidade que penetra todo o conhecimento humano tanto nas
ciências como na própria inteligência da fé (cristã) ; a pulsação do
sentido ou do significado inscrito na linguagem enquanto tal; o
laço entre a compreensão individual e a sua imersão nas tradições;
o vínculo indissolúvel entre a razão e o elemento «fiducial»; a «dan­
ça» dinâmica (pericorese) de intelectualidade, vontade e emoção
no centro do trabalho noético; o conluio misterioso entre intelecto
e imaginação que, no plano da criatividade, enreda todas as nossas
actividades cogitativas, todas as nossas práticas teóricas e outras, na
inquieta demanda de decifração do arcano do mundo e da ordem
das coisas, em face da qual, devido à índole arquitectónica da
mente, a divisão dos nossos saberes é somente «administrativa».

ARTUR MORÃO

1 Op. cit., p. 275.

28 • Introdução
Non in dialectica complacuit Deo
Salvum facere populum suum.
[Não aprouve a Deus
Salvar o seu povo com a dialéctica.]

SANTO AMBRÓSIO
Para EDWARD BELLASJS, advogado

Em lembrança de uma longa, inalterdvel e luminosa amizade,


em agradecimento pelas incessantes gentilezas a mim patenteadas, por
uma infatigdvel solicitude a meu favor, por uma confiança que jamais
esmoreceu, por uma ajuda expedita e eficaz e pelo apoio em tempos de
especial provação, do seu afeiçoado

JH.N
21 de Fevereiro de 1870
PARTE 1

ASSENTIMENTO E APREENSÃO
CAPÍTULO 1

MODOS DE ESTABELECER
E DE APREENDER PROPOSIÇÕES

1. Mo dos d e estabelece r p ro p osições

I. As proposições (compostas de um sujeito e de um predicado


unidos pela cópula) podem tomar uma forma categórica, condi­
cional ou interrogativa.
(1) Interrogativa, quando levantam uma Questão (por exem­
plo, «beneficiará o comércio livre as classes mais pobres?») e impli­
cam a possibilidade de uma resolução sua, afirmativa ou negativa.
(2) Condicional, quando expressam uma Conclusão (por
exemplo, «logo, o comércio livre beneficia as classes mais pobres»)
e de imediato implicam outras proposições e a sua dependência de
outras proposições.
(3) Categórica, quando simplesmente fazem uma Asserção
(por exemplo, «O comércio livre é benéfico») , e implicam a ausência
de qualquer condição ou reserva de qualquer espécie, sem olhar
para diante ou para trás, como assentando em si mesmas e sendo
intrinsecamente completas.
Estes três modos, entre si distintos, de configurar uma propo­
sição sucedem-se um ao outro numa sequência natural. Uma pro­
posição, que começa por ser uma Questão, pode tornar-se uma
Conclusão e, em seguida, converter-se numa Asserção; mas, claro
está, deixou de ser uma questão, porque se tornou doravante uma
conclusão e se libertou da sua forma argumentativa - isto é, dei­
xou de ser uma conclusão - tornou-se, pois, daí em diante uma

Uma G r a máci c a do Assenti m e nto •


35
asserção. Uma questão ainda não chegou ao ponto de ser uma con­
clusão, embora seja o preliminar necessário de uma conclusão; e
uma asserção já é mais do que uma simples conclusão, embora seja
o resultado natural de uma conclusão. A sua correlação é a medida
da sua recíproca distinção.
Provavelmente, ninguém negará que uma questão se distingue
de uma conclusão e de uma asserção; e uma asserção revelar-se-á
igualmente distinta de uma conclusão. Pois, se basearmos a nossa
afirmação em argumentos, isso mostra que não asserimos; e, quan­
do asserimos, não argumentamos. Uma asserção é tão distinta de
uma conclusão quanto uma palavra de ordem é diferente de uma
persuasão ou recomendação. Ordem e asserção, enquanto tais, e
nos seus diversos modos, dispensam, rejeitam, ignoram anteceden­
tes de qualquer tipo, embora os antecedentes possam ter sido uma
condição sine qua non da sua produção. Ambas trazem consigo a
pretensão de serem actos pessoais.
Ao insistir na distinção intrínseca dos três modos de estabelecer
uma proposição, não estou a defender que elas não possam coexistir
no tocante a um só e mesmo objecto. Pois daquilo que já inferimos
podemos, se quisermos, fazer uma questão; e do que estamos a afir­
mar podemos, naturalmente, tirar uma conclusão. Podemos a um
homem fazer uma afirmação, tirar para outro uma conclusão e inter­
rogar um terceiro; porém, quando asserimos, não concluímos, e
quando asserimos ou concluímos, não questionamos.

2.O acto interno de anuir a proposições é, quase sempre, análogo


ao acto externo de as enunciar; assim como há três modos de as
enunciar, assim também, numa correspondência recíproca, há três
modos de a elas anuir. Estes três actos mentais são a Dúvida, a

36 • J o h n H e n ry N e w m a n
Inferência e o Assentimento. Uma pergunta é a expressão de uma
dúvida; uma conclusão é a expressão de um acto de inferência; e
uma asserção é a expressão de um acto de assentimento. Duvidar,
por exemplo, é não vislumbrar um modo próprio de afirmar que o
livre comércio é, ou não, um benefício; inferir é afirmar com
razões suficientes que o livre comércio pode, deve ou deveria ser
um benefício; dar o assentimento à proposição é afirmar que o
livre comércio é um benefício.
Além disso, as proposições, embora sejam o material destas
três enunciações, são também os objectos dos três actos mentais
correspondentes; e assim como sem uma proposição não pode
haver uma questão, uma conclusão ou uma asserção, assim tam­
bém sem uma proposição nada há a cujo respeito duvidar, nada
para inferir, nada a que assentir. Os actos mentais de qualquer tipo
pressupõem os objectos.
E visto que estas três enunciações são entre si distintas, tam­
bém os três actos mentais, Dúvida, Inferência e Assentimento, são,
relativamente a uma e mesma proposição, entre si distintos; ade­
mais, porque é que as suas diversas enunciações têm de ser distin­
tas? É, sem dúvida, mais do que patente que, na medida em que
inferimos, não duvidamos; que, ao assentirmos, não inferimos e,
ao duvidarmos, não podemos assentir.
E, de facto, estes três modos de suscitar proposições - duvidar
delas, inferi-las e a elas assentir - são tão distintos na sua acção que,
ao serem diversamente inseridos nos hábitos intelectuais de um indi­
víduo, se tornam nos princípios e nas notas de três distintos estados
ou características da mente. Por exemplo, no caso da Religião Reve­
lada, conforme nesta predomina um deles, alguém é a seu respeito
um céptico; ou um filósofo, ao pensar que ela é mais ou menos pro­
vável, considerada como uma conclusão da razão; ou tem nela uma

U m a G r a m át i c a do A s s e nti m e nto •
37
fé inquebrantável e é então reconhecido como um crente. Se sim­
plesmente não acreditar, ou discordar, então faz um acto de assen­
timento à contraditória da tese, a saber, à proposição de que não
há Revelação.
Muitas mentes há, decerto, que se não encontram sob a influên­
cia predominante de qualquer dos três. Depara-se, assim, com ho­
mens de mente irreflexiva, agitada, inconstante, ou que têm mentes
acutilantes, que não sabem em que acreditar ou não acreditar, e
que ora são cépticos, inquiridores ou crentes; que duvidam, assen­
tem e inferem e de novo duvidam, segundo as circunstâncias do
momento. Mais ainda, em todas as mentes existe uma certa coexis­
tência destes distintos actos; isto é, de dois deles, pois podemos ao
mesmo tempo inferir e assentir, embora não possamos simultanea­
mente assentir ou inferir e também duvidar. Na verdade, em muitos
casos, inferimos verdades, ou verdades aparentes, antes de, enquanto
e após a elas assentirmos.
Por último, é inegável que estes três actos são todos naturais à
mente; quero dizer, ao levá-los a cabo, não violamos as leis da nos­
sa natureza, como se eles fossem em si mesmos uma extravagância
ou fraqueza, antes agimos de harmonia com ela, segundo a sua
legítima constituição. Sem dúvida, é possível, é comum, no caso
particular, errar no exercício da Dúvida, da Inferência e do Assen­
timento; isto é, podemos fazer um juízo acerca de proposições em
que temos os meios de chegar a uma conclusão definida; ou pode­
mos assentir a proposições que devemos aceitar só sob a influência
das suas premissas, ou então ficar em suspenso a seu respeito; mas
esses erros do indivíduo pertencem ao indivíduo, não à sua nature­
za, e não podem lesar o seu direito natural, em circunstâncias ade­
quadas, de duvidar, inferir ou assentir. Mas só realizamos a nossa
natureza na dúvida, na inferência e no assentimento; e o nosso

38 • J o h n H e n ry Newman
dever não é abster-nos do exercício de qualquer função da nossa
natureza, mas fazer o que em si é genuinamente correcto.

3 . Neste ensaio, abordo em geral as proposições só na sua relação


com uma matéria concreta, e ocupo-me sobretudo do Assentimen­
to; da Inferência, na sua relação com o Assentimento e só enquan­
to ela não é demonstração; mas dificilmente da Dúvida. Deixo de
lado a Dúvida, com uma advertência. Falei dela, aqui, apenas
como suspensão do espírito, no sentido da expressão em que «não
ter dúvidas» acerca de uma tese equivale a um dos dois restantes
actos, inferi-la ou a ela assentir. Todavia, a palavra toma-se, muitas
vezes, no sentido de indicar o reconhecimento deliberado de uma
tese como incerta; a Dúvida, nessa acepção, nada mais é do que
um assentimento, a saber, o assentimento a uma proposição que
diverge da tese, como já adverti no caso da Descrença.
Restringindo-me ao tema do Assentimento e da Inferência,
distingo entre eles dois pontos de contraste.
Já indiquei o primeiro. O Assentimento é incondicional; além
disso, não é realmente substituído pela asserção. A Inferência é
condicional, porque uma conclusão implica ao menos o pressupos­
to das premissas e, mais ainda, porque numa matéria concreta, em
que estou empenhado, é impossível a demonstração.
O segundo concerne à apreensão necessária para estabelecer
uma proposição. Não podemos assentir a uma proposição sem
dela termos alguma apreensão inteligente, ao passo que não preci­
samos de entendê-la para a inferir. Não podemos dar o nosso
assentimento à proposição de que «X é Z», enquanto não nos for
dito algo acerca de um dos termos; mas podemos inferir «Se x é y, e
y é z, então x é z», saibamos, ou não, o sentido de x e z.

U m a G r a m át i c a do Asse nci m e nto • 39


Estes pontos de contraste e os seus. resultados hão-de apresen­
tar-se-nos na devida altura: aqui, por agora, deixando de lado a
consideração dos modos de estabelecer proposições, avanço para
inquirir aquilo que, ao apreendê-las, se deve entender.

2. Mo dos d e ap r e e n d e r p r o p osi ções

Por apreensão de proposições entendo a nossa imposição de um


sentido aos termos de que elas são compostas. Ora os termos de
uma proposição, o sujeito e o predicado, estão em substituição de
quê? Umas vezes, estão em lugar de certas ideias que existem nas
nossas mentes, e de nada fora delas; outras, em lugar de coisas sim­
plesmente a nós externas, que nos são facultadas através das expe­
riências e das informações que delas temos. Todas as coisas no
mundo exterior são unidades e indivíduos, e nada mais; contudo,
a mente não só contempla essas realidades únicas, como existem,
mas tem o dom, mediante um acto de criação, de trazer à sua pre­
sença abstracções e generalizações que não têm existência ou con­
trapartida fora dela.
Ora há proposições em que um ou ambos os termos são
nomes comuns, como estando em lugar do que é abstracto, geral e
não existente, por exemplo, «0 homem é um animal, alguns homens
são eruditos, um Apóstolo é uma criação do Cristianismo, uma linha
é longa sem interrupção, errar é humano e perdoar, divino. »
Designarei estas proposições como nocionais; e nocional s e dirá
também a apreensão com que as inferimos ou a elas assentimos.
E há outras proposições que são compostas de nomes singula­
res, e cujos termos estão em lugar de coisas que nos são externas,

40 • J o h n H e n ry N e w m a n
unidades e indivíduos, como «Filipe foi o pai de Alexandre», «a terra
gira à volta do sol», «OS Apóstolos pregaram primeiro aos Judeus»;
chamarei reais a estas proposições, e real à sua apreensão.
Há, pois, dois tipos de apreensão ou interpretação a que as
proposições se podem sujeitar, nocional e real.
Observo, em seguida, que a mesma proposição pode admitir
ao mesmo tempo ambas as interpretações, tendo um sentido
nocional enquanto usada por um homem, e outro real enquanto
empregue por outro. Assim, um jovem estudante pode perfeita­
mente apreender, e construir com o espírito, as palavras do poeta,
Dum Capitolium scandet cum tacita Virgine Pontifexl ; já viu colinas
inclinadas, lances de degraus e procissões; sabe o que é o silêncio
imposto; conhece também tudo acerca do Pontifex Maximus e das
virgens Vestais; tem uma noção abstracta de cada termo da descri­
ção, todavia, sem as palavras que lhe apresentam a imagem viva
por elas ateada na mente de um contemporâneo do poeta, que
assistiu ao facto descrito, ou de um historiador moderno que se
informou devidamente acerca dos fenómenos religiosos e, pela
meditação, imaginou o cerimonial romano da época de Augusto.
Mais uma vez, Dulce et decorum est pro patria morz2 é um simples
lugar comum, uma expressão concisa de abstracções na mente do
próprio poeta, se Filipos se limitar a ser o indício do seu patriotis­
mo, ao passo que seria o registo de experiências, um dogma sobe­
rano, uma grande aspiração, inflamando a imaginação e invadindo
o coração de um Wallace ou de um Tell.
Como a profusão de nomes comuns foi originalmente singu­
lar, não causa surpresa que muitos deles devam, por isso, persistir

I «Descia o sacerdote o Capitólio, estando a virgem silenciosa».


2 «É doce e nobre morrer pela pátria».

Uma G r a m á t i c a d o Assenti m e nto • 41


ainda na apreensão dos indivíduos particulares. Na proposição «O
açúcar é doce», o predicado é um nome comum enquanto usado
por aqueles que, nos seus pensamentos, compararam o açúcar com
o mel ou a glicerina; mas pode ser a única coisa marcadamente
doce na experiência de uma criança, e pode ser por esta usado
como um nome singular. Na primeira vez que ela prova o açúcar,
se a sua ama disser «O açúcar é doce» num sentido nocional, que­
rendo indicar por açúcar um torrão de açúcar, em pó, castanho e
cristalizado, e por doce, um sabor ou odor específico que se encon­
tra em muitos géneros de alimento e em muitas flores, a criança
pode responder num sentido real, e com uma proposição indivi­
dual «O açúcar é doce», significando «este açúcar esta coisa doce».
Em terceiro lugar, na mesma mente e de modo simultâneo, a
mesma proposição pode significar conjuntamente o que é nocional
e o que é real. Quando um professor de mecânica ou de química
mostra à sua turma, por meio de uma experiência, algum facto
físico, ele e os seus ouvintes imediatamente o enunciam como uma
coisa individual perante os seus olhos, e também como generaliza­
da pelas suas mentes numa lei da natureza. Quando Virgílio diz,
Varium et mutabile semper foeminal , põe diante dos seus leitores o
que ele entende ser uma verdade geral e, ao mesmo tempo, aplica­
-a individualmente ao exemplo de Dido. Expressa simultaneamen­
te uma noção e um facto.
Destes dois modos de apreender proposições, o nocional e o
real, este último é o mais forte; entendo por mais forte o mais vivo
e intenso. Importa, por isso, elucidar a verdadeira razão por que ele
tem a ver com o que é ou real ou tido por real; pois as ideias inte­
lectuais não podem competir em eficácia com a experiência de fac-

l «Volúvel e mutável é sempre a mulher».

42 • J o h n H e n ry N e w m a n
tos concretos. Diversos provérbios e máximas me autorizam a falar
assim, como «Üs factos são coisas duras», Experientia docetl , «Ver é
crer»; e o contraste popular entre teoria e prática, razão e vista, filo­
sofia e fé. Não é que a apreensão real, enquanto tal, leve à acção,
mais do que a nocional; mas excita e estimula os afectos e as pai­
xões, aduzindo-lhes factos como causas motrizes. Suscita, pois, indi­
rectamente o que a apreensão de princípios amplos, de leis gerais
ou de obrigações morais, jamais poderia levar a efeito.

Regressando aos dois modos de estabelecer proposições, condi­


cionais e incondicionais, que foi o tema da primeira secção, isto é,
inferências e assentimentos, advirto que as inferências, que são actos
condicionais, têm uma afinidade especial com a apreensão nocional,
e os assentimentos, que são incondicionais, com a real. Esta distin­
ção surgir-nos-á também no decurso dos capítulos seguintes.
E enunciei agora os temas principais que me proponho tratar,
a saber, as distinções no uso de proposições que tenho estado a
fazer, e as questões que tais distinções implicam.

I «A experiência ensina».

U m a G ra m á c i c a do A s s e n t i m e n t o • 43
C APÍT U LO 2

Ü ASSENTIM ENTO CONSIDERADO


COMO APRE ENSIVO

Afirmei já, a propósito de um acto de Assentimento, primeiro, que


ele é em si mesmo a aceitação absoluta de uma proposição sem qual­
quer condição; em seguida, que, para se levar a cabo, pressupõe a
condição, não só de alguma inferência prévia a favor da proposição,
mas sobretudo de uma apreensão concomitante dos seus termos.
Abordarei agora o último dos dois temas; isto é, do Assentimento
considerado como apreensivo, deixando a discussão do Assentimento
como incondicional para um lugar ulterior neste ensaio.
Por apreensão de uma proposição entendo, como já referi, a
interpretação dada aos termos de que ela é composta. Quando infe­
rimos, consideramos uma proposição em relação a outras proposi­
ções; quando a ela assentimos, consideramo-la por si mesma e no
seu sentido intrínseco. Este sentido deve, em certa medida, ser de
nós conhecido; ademais, se não asserirmos a proposição, de nenhum
modo a ela assentimos. Descrevi o assentimento como uma asserção
mental; na sua genuína natureza, pois, ele incumbe à mente, e não
aos lábios. Podemos asserir, sem assentir; o assentimento é mais do
que a asserção, justamente porque é acompanhado por alguma
apreensão do conteúdo afirmado. Isto é claro; e a única questão con­
siste em saber que medida de apreensão é suficiente.
E a resposta a esta questão é igualmente clara: - o predicado
da proposição é que deve ser apreendido. Numa proposição, um
termo é predicado de outro; o sujeito é referido ao predicado, e o
predicado fornece-nos uma informação acerca do sujeito; portan-

U m a G ra m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 45
to, apreender a proposição é ter esta informação e assentir a ela é
acatá-la como verdadeira. Por conseguinte, apreendo uma proposi­
ção, quando apreendo o seu predicado. O próprio sujeito não pre­
cisa de ser apreendido per se, em vista de um assentimento
genuíno: pois ele é a coisa genuína que o predicado tem de eluci­
dar e, por conseguinte, pelo seu lugar formal na proposição, na
medida em que é o sujeito, é algo desconhecido, algo que o predi­
cado torna conhecido; mas o predicado não o pode dar a conhecer,
a não ser que ele próprio seja conhecido. Tomemos a questão «Que
é o comércio?» - há aqui uma declaração distinta da ignorância
acerca do «comércio»; e seja a resposta: «Ü comércio é a troca de
bens»; - o comércio, portanto, não precisa de ser conhecido,
como condição de assentimento à proposição, excepto na medida
em que a explicação do que é dado na resposta, «a troca de bens»,
o torna conhecido; e isto deve ser apreendido a fim de o tornar
conhecido. O verdadeiro fito da proposição é dizer-nos algo a pro­
pósito do sujeito; mas não há razão alguma por que é que o nosso
conhecimento do sujeito, seja ele qual for, deveria ir além do que o
predicado dele nos diz. Para lá disto, o sujeito não precisa de ser
apreendido: mas nesta medida deve sê-lo; e nesta medida não será
apreendido, a não ser que apreendamos o predicado.
Se uma criança pergunta «Que é a alfafa?», e lhe é respondido,
<<A Alfafa é medicago sativa, da classe Diadelphia e da ordem Decan­
dria»; e, em seguida, ela afirma obedientemente «A alfafa é medi­
cago sativa, etc.», não realiza nenhum acto de assentimento à
proposição que enuncia, mas fala como um papagaio. Se, porém,
se disser, «A alfafa é alimento para o gado», e se mostram vacas a
pastar num prado, então, embora ela nunca tenha visto a alfafa e
nada saiba a seu respeito, para lá do que aprendeu com o predica­
do, é capaz de levar a cabo um assentimento tão genuíno à propo-

46 • John H e n r y N e w m a n
sição «A alfafa é alimento para o gado», na base da expressão do
seu informador, como se alguma vez soubesse mais acerca da alfa­
fa. E visto que chegou aqui, pode ir mais além. Ela sabe agora bas­
tante acerca da alfafa para ser capaz de apreender proposições que
têm a alfafa como seu predicado, se lhe forem propostas para
assentimento, como «Este campo está semeado de alfafa» ou «Ü
cravo-da-índia não é alfafa».
Há, todavia, um modo de a criança conseguir dar um assenti­
mento indirecto mesmo a uma proposição em que não entendeu
nem o sujeito nem o predicado. Não pode, neste caso, assentir à
própria proposição, mas pode anuir à sua verdade. Não pode fazer
mais do que afirmar que «A alfafa é medicago sativa», mas pode
anuir à proposição, «É verdade que a alfafa é medicago sativa>>.
Existe aqui um predicado que ela suficientemente apreende, pois o
que é inapreensível na proposição está confinado ao sujeito. Assim,
a mãe da criança poderia ensiná-la a repetir uma passagem de Sha­
kespeare, e quando ela perguntasse qual o significado de uma linha
particular como «A qualidade do perdão não é forçada» ou «A pró­
pria virtude se muda em vício, ao ser mal aplicada», a mãe poderia
respon.der-lhe que ela era ainda demasiado jovem para a com­
preender, mas que tinha um bonito significado, como ela, um dia,
viria a saber: e a criança, fiando-se na sua palavra, poderia dar o
seu assentimento a semelhante proposição - não ao verso que
decorou, e que ultrapassaria as suas capacidades, mas ao seu ser
verdadeira, bela e boa.
Naturalmente, estou falar do próprio assentimento e das suas
condições intrínsecas, não do seu fundamento ou motivo. Se existe
para a criança uma obrigação de confiar na sua mãe, ou se há casos
em que tal confiança é impossível, são questões irrelevantes, e cha­
mo a atenção para elas a fim de as pôr de lado. Estou a examinar o

U rn a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 47
próprio acto de assentimento, não os seus preliminares; e especifi­
quei três direcções que, entre outras, o assentimento pode tomar, a
saber, assentir de imediato a uma proposição, assentir à sua verda­
de e assentir ao mesmo tempo à sua verdade e ao fundamento de
ela ser verdadeira- «A alfafa é alimento para o gado», «É verdade

que a alfafa é medicago sativa» e «A expressão da minha mãe de que


a alfafa é medicago sativa e alimento para o gado é a verdade». Ora
bem, em cada uma destas há uma só e mesma adesão absoluta da
mente à proposição, por parte da criança; ela dá o assentimento à
proposição apreensível, à verdade da inapreensível e à veracidade
da sua mãe na sua afirmação da inapreensível. Refiro a mesma
decisão absoluta, porque, se ela não tivesse assentido sem qualquer
reserva à proposição de que a alfafa era alimento para o gado, ou à
exactidão do nome botânico e da sua descrição, não estaria a dar
um assentimento sem reserva à palavra da sua mãe: todavia, embo­
ra estes assentimentos sejam todos sem reserva, diferem ainda, sem
dúvida, na força; e este é o ponto seguinte para o qual desejo chamar
a atenção. É claro que, embora a criança dê o assentimento à veraci­
dade da sua mãe, sem porventura ser consciente do seu próprio acto,
este seu particular assentimento tem em si uma força e uma vida que
os outros assentimentos não possuem, porquanto ela apreende a
proposição, que é o seu sujeito, com maior persistência e energia do
que a que cabe à sua apreensão das outras. A veracidade, a autorida­
de da mãe não é para a criança uma verdade abstracta ou um artigo
de conhecimento geral, mas está associada à imagem e ao amor da
sua pessoa, que é parte dela própria e a intima directamente a anuir,
sem mais, em geral aos ensinamentos maternos.
Por conseguinte, em virtude desta circunstância da sua apreen­
são, ela não hesitaria em dizer, se os seus anos tal consentissem,
que daria a vida em defesa da veracidade da sua mãe. Por outro lado,

48 • J o h n H e n ry N e w m a n
não faria semelhante declaração no caso das proposições «A alfafa é
alimento para o gado», ou «É verdade que a alfafa é medicago satíva»;
e, no entanto, também é claro que se ela desse na verdade o assenti­
mento a estas proposições, preferiria antes morrer também por elas
do que negá-las, se a tal ponto se chegasse, a não ser que optasse por
dizer uma falsidade. Que ela houvesse de morrer por todas as três
proposições, mais do que negá-las, mostra o carácter completo e
absoluto do assentimento na sua genuína natureza; que ela não exi­
giria espontaneamente uma provação tão severa no caso de dois dos
três particulares actos de assentimento ilustra em que sentido um
assentimento pode ser mais forte do que outro.
É evidente então que, na anuência a proposições, uma apreen­
são em qualquer sentido dos seus termos não é necessariamente
assentir enquanto tal, mas proporciona também um carácter dis­
tinto aos seus actos. Se, por conseguinte, nos importa saber mais a
propósito do Assentimento, devemos agora conhecer melhor a
apreensão que o acompanha. Portanto, abordarei, de seguida, o
tema da apreensão.

U m a G r a m á r i c a do A s s e n t i m e n t o • 49
CAPÍTULO 3

A APREENSÃO DE PROPOSIÇÕES

Afirmei, nos capítulos introdutórios, que não pode haver assentimen­


to a uma proposição sem alguma espécie de apreensão dos seus ter­
mos; em seguida, que há dois modos de apreensão, nocional e real;
em terceiro lugar, que, embora o assentimento possa ser dado a uma
proposição em qualquer apreensão dela, contudo, os seus actos são
escolhidos de modo mais cordial e forçoso quando se realizam na
base da apreensão real, que tem coisas por seus objectos, do que
quando são realizados a favor de noções e com uma apreensão nocio­
nal. Acabei justamente de discutir o primeiro destes três pontos; ago­
ra, avançarei para o segundo, a saber, os dois modos de apreender
proposições, deixando o terceiro para os capítulos subsequentes.
Utilizei a palavra apreensão, e não compreensão, porque esta
última é de significado incerto, surgindo, umas vezes, em lugar da
faculdade ou do acto de conceber uma proposição, outras, em
lugar do acto de a compreender; nenhum deles se apresenta no
sentido de apreensão. É possível apreender sem compreender.
Apreendo o que se intenta, ao dizer que João é o marido da tia do
pai da esposa de Ricardo, mas, se eu for incapaz de captar estas
relações sucessivas de modo a compreender o resultado do todo, a
saber, que João é o tio-avô por afinidade de Ricardo, não posso
dizer que entendo a proposição;
De igual modo, posso ter uma visão justa da conduta de um
homem e, portanto, apreendo-a; no entanto, posso afirmar que
não consigo entendê-la; isto é, não tenho a chave para ela, não vejo

U m a G r a m i t i c a do Ass e n t i m e n t o •
51
a sua consistência em pormenor: não tenho justamente uma con­
cepção dela. A apreensão é, pois, apenas uma aceitação inteligente
da ideia, ou do facto que uma proposição enuncia. «Ü orgulho
acabará por cair»; «Napoleão morreu em Santa Helena»; não tenho
dificuldade em entrar no sentimento contido na primeira proposi­
ção ou no facto expresso na última; isto é, apreendo as duas.
Ora a apreensão, como referi, tem duas matérias de facto: con­
forme a linguagem expressa coisas a nós externas ou os nossos pró­
prios pensamentos, assim a apreensão é real ou nocional. É nocional
no gramático, real no experimentalista. O gramático tem de deter­
minar a força das palavras e das frases; deve dominar a estrutura
das sentenças e a composição dos parágrafos; tem de comparar lín­
gua com língua, estabelecer as ideias comuns expressas sob diferen­
tes formas idiomáticas e levar a cabo a difícil tarefa de reconstituir
a mente do autor originário no molde de uma tradução. Por outro
lado, o filósofo ou o experimentalista pretende investigar, questio­
nar, estabelecer factos, causas, efeitos, acções, qualidades: estas são
coisas, e ele esforça-se por que as suas palavras distintamente se
lhes subordinem, como meios a um fim. O primeiro dever de um
homem de letras é ter concepções claras, ser exacto e inteligível na
expressão que lhes dá; mas, num filósofo, é um mérito não ser
extremamente vago, incoerente e obscuro no seu ensinamento, e
se ele nem sequer consegue este baixo padrão de linguagem, lem­
bramo-nos de que a sua obscuridade talvez se deva à sua profun­
didade. Nenhum poder das palavras seria, num conferencista,
suficiente para facilitar a psicologia aos seus ouvintes; e se estes
hão-de lucrar com ele alguma coisa, devem arrojar as suas mentes
para as matérias em discussão, acompanhar o tratamento que delas
é feito com uma concorrência activa, pessoal, e interpretar por si
mesmos, à medida que ele avança, as débeis sugestões e os vislum-

52 • J o h n H e n ry N e w m a n
bres dos objectos, que ele tem o direito de pressupor, ao usá-los,
como imagens que existem na apreensão deles e também na sua
própria.
De um modo algo paralelo, a deficiência que menos se pode
desculpar num orador é carecer de clareza de estilo, e é igualmente
a falta que mais se perdoa a um poeta.
Mais uma vez, um economista lida com factos; haja o que
houver de teoria no seu trabalho, ele declara que se baseia em fac­
tos, pelos factos apenas deve o seu juízo ser interpretado, e dirige­
-se somente aos que estão bem providos dos factos necessários;
todavia, um estudante inteligente, a partir de um conhecimento
gramatical perfeito de ambas as línguas, poderia traduzir para
inglês um tratado francês sobre a riqueza, a produção, o consumo,
o trabalho, os lucros, as medidas de valor, a divida pública e o
meio de circulação nacionais, com uma apreensão daquilo que o
seu autor considerava suficiente para o tornar claro a um leitor
inglês, embora não tivesse a mínima ideia daquilo que o tratado,
por ele traduzido, realmente determinava. O homem usa a lingua­
gem como veículo de coisas, e o estudante, de abstracções.
Por isso, nos exames literários, uma prova de bons conhecimen­
tos universitários é a capacidade de construir com correcção, sem ser
preciso compreender o sentimento, a acção ou a ocorrência histórica
veiculada na passagem assim cuidadosamente traduzida, seja ela uma
batalha em Lívio ou um subtil veio de pensamento em Virgílio ou
em Píndaro. E os que no exame se saíram melhor estarão, muitas
vezes, inclinados a pensar que surpreendentemente fracassaram, pela
genuína razão de estarem demasiado ocupados com a gramática de
cada frase que ia aparecendo para, na sua interpretação, se poderem
centrar nos factos ou nos sentimentos que, deles próprios desconhe­
cidos, iam expondo.

Uma G r a m á c i c a do Ass e n t i m e n t o •
53
Tomemos um exemplo muito diferente deste contraste entre
noções e factos; - a patologia e a medicina, no interesse da ciên­
cia e como protecção para o prático, ocultam as realidades chocan­
tes da doença e do sofrimento físico sob uma fraseologia nocional,
sob os termos abstractos de debilidade, infelicidade, irritabilidade,
paroxismo e um acervo de palavras gregas e latinas. As artes da
medicina e da cirurgia são necessariamente experimentais; mas,
para se escrever e falar destes assuntos, exigem ser despidas da asso­
ciação dos factos de que derivam.
Tais são os dois modos de apreensão. Os termos de uma pro­
posição estão, ou não, em lugar de coisas. Se sim, então são termos
singulares, pois todas as coisas que existem são unidades. Mas se
não, devem estar em vez de noções, e são termos comuns. Os
nomes singulares derivam da experi,ência; os nomes comuns, da
abstracção. À apreensão dos primeiros chamo real, à dos últimos
nocional. Vejamos agora, mais de perto, esta diferença entre eles.

r. A Apreensão Real é, como afirmei, no primeiro exemplo uma


experiência ou informação acerca do concreto. Ora, quando estas
informações nos são, de facto, apresentadas (isto é, quando são
directamente sujeitas aos nossos sentidos corporais ou às nossas sen­
sações mentais, por exemplo, quando dizemos «0 sol brilha» ou <<A
perspectiva é encantadora», ou indirectamente mediante um quadro
ou até uma narrativa) , então não há dificuldade alguma em determi­
nar o que se quer dizer, ao afirmar que a nossa enunciação de uma
proposição a seu respeito implica uma apreensão de coisas; porque
podemos efectivamente assinalar os objectos que eles indicam. Mas,
na suposição de que estas coisas já não estão diante de nós, na supo­
sição de que já saíram do nosso campo de visão, ou de que está

54 • J o h n H e n ry N e w m a n
fechado o livro em que se encontra a sua descrição, como se pode
dizer que persiste para nós uma apreensão das coisas? Todavia, ela
persiste nas nossas mentes, graças à faculdade da memória. Esta con­
siste numa imaginação presente das coisas já passadas; a memória
retém as impressões e as semelhanças do que elas eram, quando na
nossa presença; e usarmos a proposição que a elas se refere, ela forne­
ce-nos os objectos com que a interpretamos. Eles são ainda coisas,
porquanto são reflexos das coisas num espelho mental.
Daí que o poeta chame à memória «O olho da mente». Encon­
tro-me num país estrangeiro no meio de paisagens não familiares;
sou capaz, à vontade, de trazer à minha presença a visão da minha
casa e tudo que lhe pertence, os seus quartos e o seu mobiliário, os
seus livros, os seus habitantes, as suas caras, olhares e movimentos.
Vejo aqueles que antes lá viviam e que não mais estão; cenas passa­
das, a genuína expressão das faces, os tons das vozes, os que nelas
participaram numa época de provação ou dificuldade.
Nada crio; vejo os fac-símiles dos factos; e destes fac-símiles as
palavras, as proposições, que a seu respeito uso, são da associação
habitual a adequada ou única expressão. E, de novo, posso ter visto
uma pintura célebre, uma grande exibição ou algum homem
público; e tenho armazenada na minha memória, disponível mas
latente, uma impressão mais ou menos distinta dessa experiência.
As palavras «a Madona de S. Sixto», «a última Coroação» ou «O
duque de Wellington» têm o poder de reavivar esta sua impressão.
A memória lida com coisas individuais, com nada mais excepto o
que é individual. E a minha apreensão das suas infon�ações é
sugerida num conjunto de proposições singulares e reais. Até aqui,
aduzi exemplos (mormente) dos objectos da visão; mas a memória
preserva a impressão, embora não tão viva, das experiências que
também nos chegam através dos nossos outros sentidos. A memó-

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 55
ria de uma bela ária ou o odor de uma flor particular, tanto quando
dela persiste alguma recordação, é a presença incessante nas nossas
mentes de uma semelhança sua, que ali deixou a sua presença efecti­
va. Posso trazer à minha presença a música do Adeste fideles, como se
efectivamente o estivesse a ouvir; e a fragrância de uma clêmatis,
como se me encontrasse no jardim; e o cheiro de um pêssego, como
se fosse na estação própria; e o pensamento que tenho de todos eles
é como de algo individual e a partir de fora - na medida em que as
próprias coisas, a melodia, o odor e a fragrância vêm de fora -
embora, comparadas com as próprias coisas, estas imagens {como
assim se podem chamar) são ténues e intermitentes.
Semelhante imagem também não precisa, em sentido algum, de
ser uma abstracção; embora eu possa ter comido, em épocas passa­
das, centenas de pêssegos, a impressão que do cheiro permanece na
minha memória pode ser de qualquer um deles, de dez, vinte, trinta
unidades, e não uma noção geral, distinta de cada um, e formada a
partir deles mediante uma construção da minha mente.
E assim, mais uma vez, a apreensão que temos dos nossos actos
mentais passados de qualquer tipo, de esperança, inquirição, esforço,
triunfo, desapontamento, suspeita, aversão e centenas de outros, é
uma apreensão da memória desses actos determinados; logo, uma
apreensão de coisas; para não dizer que muitos deles não precisam
de memória, mas são de índole tal que podem ser verdadeiramente
convocados e repetidos a nosso bel-prazer. Semelhante apreensão é,
mais uma vez, evocada por proposições que incorporam as informa­
ções da nossa história, das nossas investigações e dos seus resultados,
dos nossos amigos, das nossas perdas, das nossas doenças, dos nossos
golpes de sorte, que permanecem impressos na nossa memória de
modo tão nítido e profundo como qualquer lembrança da vista.
Mais ainda, tais lembranças podem ter em si uma individualidade e

56 • John H e n ry Newman
uma inteireza que sobrevive às impressões suscitadas pelos objectos
sensíveis. A memória de semblantes e de lugares em ocasiões passa­
das podem esvanecer-se da mente; mas nunca a imagem viva de cer­
tas angústias ou libertações.
E, graças a estas experiências particulares e pessoais, assim im­
pressas em nós, obtemos uma apreensão do que tais coisas são nou­
tras ocasiões, quando delas não temos experiência; uma tal apreensão
de vistas e sons, de cores e formas, de lugares e pessoas, de actos e es­
tados mentais, paralelos às nossas experiências concretas, que, ao de­
pararmos com proposições determinadas que os expressam, a nossa
apreensão se não pode dizer abstracta e nocional. Se me dizem «há
um fogo violento em Londres» ou «Londres está a arder», «fogo» não
precisa de ser, mais do que «Londres», um nome comum na minha
apreensão. A palavra pode trazer à minha memória a experiência de
um fogo que observei noutro lugar ou de uma descrição viva que li.
É, sem dúvida, difícil traçar a linha divisória e dizer onde acaba o
papel da memória e onde a abstracção toma o seu lugar; e, mais uma
vez, como afirmei nas primeiras páginas, a mesma proposição é para
um homem uma imagem, para outro uma noção; mas há ainda uma
chusma de predicados, dos mais diversos tipos, «amável», «vulgar»,
«um homem presumido», «uma cidade industrial», «uma catástrofe»
e muitos outros que, embora enquanto predicados se considerariam
nomes comuns, são de facto, nas bocas de pessoas particulares, singu­
lares, imagens portadoras de coisas individuais, como o campónio
afirma em Virgílio,

Urbem, quam dicunt Romam, Melibcee, putavi,


Stultus ego, huic nostrae simileml .

1 «Vê lá tu, Melibeu, que eu, tolo, I Pensava que a cidade, a que dão o nome de Roma, era

igual à nossa>>.

Uma G r a m á c i c a do A s s e n t i m e n t o •
57
E assim a ideia que uma criança tem de um rei, enquanto
derivada do seu livro de imagens, será a de um homem feroz, seve­
ro ou venerando, sentado no cimo de um lance de degraus, com
uma coroa na sua cabeça e um ceptro na sua mão. Nestes dois
exemplos, de facto, a experiência apenas engana, quando aplicada
ao desconhecido; mas, muitas vezes, acontece ·a contrário, ela é
uma ajuda útil, sobretudo quando um homem tem amplas expe­
riências e aprendeu a distinguir entre elas e a aplicá-las de um modo
conveniente, como no exemplo do herói «que conhecia muitas cida­
des dos homens e muitas mentes».
Além disso, graças a uma faculdade inventiva ou, como eu a
poderia designar, à faculdade de composição, somos capazes de se­
guir as descrições de coisas que nunca tivemos diante de nós e, a
partir das impressões passivas como a experiência as depositou, até
agora, nas nossas mentes, formar novas imagens que, embora cria­
ções mentais, de nenhum modo são abstracções e, apesar de ideais,
não são nacionais. São elas unidades concretas nas mentes da parte
que a descreve e da parte a seu respeito informada. Assim, posso
nunca ter visto uma palmeira ou uma banana, mas conversei com
aqueles que as têm, ou li descrições gráficas suas e, a partir do meu
conhecimento prévio de outras árvores, consegui, com uma inteli­
gência tão lesta a interpretar a sua linguagem e a iluminar essa
imagem sua nos meus pensamentos, que, se nunca tivesse estado
nos países onde a árvore se encontra, imaginaria que de facto a vi.
Por isso, mais uma vez, o genuíno elogio que fazemos às persona­
gens de algum grande poeta ou historiador é que ele é deveras
individual. Sou, por assim dizer, capaz de encarar Tibério, como
Tácito o descreve, e imaginar para mim mesmo o nosso Jaime I,
como é retratado no romance de Scott. O assassínio de César, o
seu « Et tu, Brute?>>, o seu acto de se envolver na toga, e a sua queda

58 • John H e n ry Newman
debaixo da estátua de Pompeu, tudo isto se torna para mim um
facto e um objecto de apreensão real. Vivemos assim no passado e
na lonjura, graças à nossa capacidade de interpretar as afirmações
de outros acerca de épocas antigas ou de climas estrangeiros pelas
luzes da nossa própria experiência. O quadro, que os historiadores
conseguem pôr diante de nós, da morte de César vai buscar a sua
vividez e o seu efeito ao seu apelo virtual para as imagens diversas
da nossa memória.
Esta faculdade de composição é, claro está, um passo mais
além de experiência, mas alcançámos agora o seu ponto mais dian­
teiro; é sobretudo limitado quanto aos seus materiais, pelo sentido
da visão. No tocante aos outros sentidos, não é possível extrair e
modelar novas imagens a partir de experiências antigas. Nenhuma
descrição, por completa que seja, poderia sugerir à minha mente
uma semelhança exacta de uma melodia ou de uma harmonia, que
jamais ouvi; e ainda menos de um aroma, que nunca cheirei. É
possível, decerto, produzir semelhanças genéricas e substitutos
metafóricos; mas nunca obteria qualquer conhecimento real da
área escocesa « There's nae luck», se me dissessem que ela era seme­
lhante a «Auld lan syne» ou «Robin Gray». E se eu afirmasse que as
melodias de Mozart são como um céu de verão ou como o sopro
do Zéfiro, nunca seria mais bem compreendido por aqueles que
conheceram Mozart do que por aqueles que o não conheceram.
Tais ilustrações vagas sugerem noções intelectuais, não imagens.
E é igualmente difícil criar ou apreender por descrição ima­
gens de factos mentais, dos quais não temos experiência directa.
Posso decerto, como já afirmei, trazer à minha mente um facto tão
complexo como uma personagem histórica, por composição a partir
das minhas experiências acerca de uma personagem em geral; Tibé­
rio, Jaime I, Luís XI ou Napoleão. Mas quem conseguirá infundir

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o •
59
em mim, ou como assimilarei, um sentido das particularidades do
estilo de Cícero ou de Virgílio, se não li os seus escritos? Ou como
obterei um vestígio da percepção do espírito ou da graça atribuída
à conversação dos salões franceses, se sou um John Bull que não
viaja? Assim, mais uma vez, no tocante às afecções e às paixões da
nossa natureza, elas são sui generis, incomensuráveis, e tem de ser
objecto de experiências várias, para que possam realmente ser
apreendidas. Posso entender a rabbia de um autóctone do Sul da
Europa, se eu próprio tiver um temperamento apaixonado; e o gosto
da especulação ou da aposta, com que se depara nos grandes comer­
ciantes ou nas corridas de cavalos, se apreciar a aventura ou os jogos
de azar; mas, por outro lado, nem todas as possíveis descrições do
amor impetuoso me farão compreender o delirium, se nunca dele
tive um vislumbre; nem alguma vez muitos sermões acerca da satis­
fação íntima da consciência estrita suscitarão na minha mente a ima­
gem de uma acção virtuosa e dos seus sentimentos concomitantes, se
fui educado a mentir, a roubar e a satisfazer os meus apetites. Depa­
ramos, deste modo, com homens do mundo que não conseguem
interiorizar a ideia genuína de devoção e pensam, por exemplo, que
uma vida de reclusão religiosa deve, por isso, ser uma existência ou
de monotonia indizível ou de sensualidade sem rédeas, porque eles
não conhecem nenhum exercício das afecções a não ser o que é
meramente humano; e deparamos ainda com outros que, vivendo
no recinto do seu próprio egoísmo, ridicularizam como algo fanático
e deplorável os auto-sacrifícios da magnanimidade generosa e da
honra cavalheiresca. Não conseguem criar imagens destas coisas, tal
como, ao invés, as crianças o não conseguem do vício, quando per­
guntam onde estão e quem são os homens maus; pois não têm
recordações pessoais e devem contentar-se com noções tiradas dos
livros ou do que os outros lhes dizem.

60 • J o h n H e n ry N e w m a n
E basta, acerca da apreensão de coisas e da apreensão real no
nosso uso da linguagem; passemos agora ao sentido nocional.

2. A experiência fala-nos apenas de coisas individuais, e estas são

inumeráveis. As nossas mentes poderiam ter sido construídas de tal


modo que conseguissem receber e reter uma imagem exacta de
cada um dos diversos objectos, um a um, tal como ele surge diante
de nós, mas só em si e por si mesmo, sem o poder de o comparar
com qualquer dos outros. Mas não é este o nosso caso: pelo con­
trário, comparar e contrastar fazem parte das nossas mais proemi­
nentes e activas funções intelectuais. Instintivamente, embora de
modo inconsciente, estamos sempre a estabelecer comparações
entre os múltiplos fenómenos do mundo externo, à medida que
com eles deparamos, criticando-os, referindo-os a um padrão, reu­
nindo-os e analisando-os. De facto, como que por uma e mesma
acção, logo que os percepcionamos, captamos também que eles são
entre si semelhantes ou diferentes, ou então semelhantes e diferen­
tes ao mesmo tempo. Apreendemos espontaneamente, mesmo
antes de nos dispormos a apreender, que um homem é semelhante
a um homem e, todavia, diferente; e diferente de um cavalo, de
uma árvore, de uma montanha ou de um monumento, todavia,
sob certos aspectos, embora não os mesmos, são entre si semelhan­
tes. Por conseguinte, como afirmei, estamos sempre a agrupar e a
discriminar, a medir e a examinar, formulando classes e divisões
transversais e, por isso, indo dos particulares para os gerais, isto é,
das imagens para as noções.
Em processos deste tipo, olhamos as coisas, não como em si
mesmas são, mas sobretudo como se encontram na sua relação
recíproca. Nada encaramos apenas por si mesmo; não conseguimos

Uma G r a m á t i c a do A s s e n c i m e n r n • 6l
olhar para qualquer coisa sem, ademais; fixarmos os olhos em mui­
tíssimas outras. O «homem» já não é o que realmente ele é, um indi­
víduo a nós apresentado pelos sentidos, mas como o vemos à luz das
comparações e dos contrastes que, por nós, foi levado a sugerir-nos.
É minimizado num aspecto ou relegado para o seu lugar numa clas­
sificação. Assim, a sua designação visa sugerir não o ente real que ele
é neste ou naquele espécime de si mesmo, mas uma definição. Se me
fosse permitido usar uma metáfora ousada, diria que ele se tornou o
logaritmo do seu verdadeiro Si mesmo, e que nesta configuração é
tratado com a facilidade e a satisfação dos logaritmos.
A linguagem, no sistema de noções intelectuais, comportará
decerto um sentido diferente daquele que tem quando é represen­
tativa das coisas; e este seu uso não é apenas o genuíno fundamen­
to de toda a ciência, mas pode ser, e é, veiculado na literatura e na
troca habitual de homem com homem. Acontece assim que as pro­
posições individuais acerca do concreto quase deixaram de ser e se
encontram diluídas ou esbatidas em noções abstractas. Os aconte­
cimentos da história e as personagens que nela figuram perdem a
sua individualidade. Os estados e os governos, a sociedade e as suas
partes componentes, as cidades, as nações e até a face física do
país, as coisas passadas ou contemporâneas, toda esta plenitude de
significado, que descrevi como depositada na linguagem a partir da
experiência, uma vez ausente esta, torna-se necessariamente para a
multidão dos homens apenas um montão de noções, pouco mais
inteligível do que as belezas de uma paisagem para o míope, ou a
música de um grande mestre para um ouvinte sem ouvido.
Suponho que a maioria dos homens recordará, nos seus anos
passados, quão numerosos foram os erros que eles cometeram acerca
de pessoas, de partidos, de ocorrências locais, de nações e quejandos,
dos quais não tinham na altura nenhum conhecimento concreto

62 • J o h n H e n ry N e w m a n
próprio: quão envergonhados ou divertidos se terão sentido com o
seu idealismo gratuito, quando entraram na posse dos factos reais a
seu respeito. Estavam acostumados a tratar o Tito ou Semprónio
determinado como o quidam homo, o individuum vagum do lógico.
Falavam das suas opiniões, dos seus motivos, das suas práticas, como
da sua regra tradicional para a species Tito ou Semprónio prescrita.
Para descobrir o que eram os homens individuais em carne e osso,
pensavam que era suficiente referir-se apenas a lugares-comuns, dis­
postos em ordem alfabética. Sentiam-se assim à altura da persona­
gem de um estadista Whig, de um magnata Tory, de um seguidor de
Wesley, de um Congregacionalista, de um pastor protestante, de um
sacerdote, de um filantropo, de um polemista, de um céptico; e sen­
tiam-se preparados, sem o incómodo da investigação directa, para
esboçar o indivíduo segundo as peculiaridades do seu tipo. E assim
também em relação ao carácter nacional; o falecido Duque de Wel­
lington terá sido impulsivo, truculento, espirituoso, inteligente na
réplica, pois era irlandês; de igual modo, teremos escoceses frios e
egoístas, italianos astutos, americanos vulgares e franceses meio­
-tigres, meio-macacos. Quanto aos Franceses, os que são assaz idosos
para recordar as guerras com Napoleão, sabem quão excêntricas
eram as noções que, a seu respeito, se acalentavam popularmente na
Inglaterra; como constituía até uma surpresa descobrir que algum
militar, prisioneiro de guerra, era alto e forte, pois existia a ideia feita
de que todos os Franceses eram minúsculos e comiam rãs.
Tais são, mais uma vez, as personagens ideais que figuram nas
novelas e nos dramas da velha escola; tiranos, monges, cruzados,
príncipes disfarçados e donzelas cativas; pais benevolentes ou ira­
dos e herdeiros perdulários; como as personagens simbólicas em
certas peças de Shakespeare, «um taberneiro» ou «um maioral», ou
na indicação teatral «Entram dois assassinos».

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 63
O que tenho estado a ilustrar n:o caso de pessoas, poderia
exemplificar-se relativamente a lugares, a transacções, a calamida­
des físicas, a acontecimentos na história. As palavras utilizadas por
uma testemunha ocular para expressar coisas, a não ser que ela seja
especialmente eloquente ou gráfica, conseguem apenas veicular
noções gerais. Tal é, e sempre será, o modo popular e ordinário de
apreender a linguagem. Só a propósito de uns quantos temas têm
alguns de nós a oportunidade de se dar conta nas suas mentes do
que falam ou ouvem; e imaginamos que prestamos j ustiça aos
homens e às coisas individuais fazendo deles uma mera síntese de
qualidades, como se qualquer número de abstracções houvesse,
pela sua fusão, de ser equivalente a algo de concreto.
Temos aqui, então, dois modos de pensamento; ambos utilizam
as mesmas palavras, ambos têm uma só origem, todavia, nada têm
em comum nos seus resultados. As informações dos sentidos e da
sensação constituem a base inicial dos dois; mas, num deles, apossa­
mo-nos dos objectos a partir de dentro e, no outro, vemo-los a partir
de fora; perpetuamo-los como imagens num caso, transformamo-los
em noções, no outro. Ambos os processos nos são naturais nos seus
primeiros elementos e no seu crescimento, porém, são divergentes e
independentes na sua direcção, e não podem realmente ser entre si
inconsistentes; contudo, ninguém, a partir da vista de um cavalo ou
de um cão, conseguiria antecipar a sua definição zoológica, nem de
um conhecimento da sua definição extrair um quadro, como se
tivesse de dirigir o olhar para o espécime vivo.
Cada uso das proposições tem a sua própria excelência e utilida­
de, cada qual a sua própria imperfeição. Apreender por meio de
noções é ter vastidão de mente, mas ser superficial; apreender real­
mente é ser profundo, mas de mente restrita. Este último é o princí­
pio conservador do conhecimento; e o primeiro, o princípio do seu

64 • John Henry Newman


progresso. Sem a apreensão de noções, giraríamos para sempre à vol­
ta de um pequeno círculo de conhecimento; sem um firme contacto
com as coisas, esgotar-nos-emos em especulações vagas. Todavia, a
apreensão real tem a precedência, porque é o escopo, o fim e o teste
da nocional; e quanto mais pleno é o domínio da mente sobre as
coisas ou sobre o que ela considera tal, tanto mais fértil ela é nos seus
aspectos respectivos e tanto mais prática nas suas definições.
Naturalmente, como os dois não são entre si inconsistentes,
podem na mesma mente coexistir. De facto, não há ninguém que,
até certo ponto, não exercite um e outro. Considerados em relação
ao Assentimento, que deles me levou a falar, de nenhum modo
afectam a natureza do próprio Assentimento, que é em todos os
casos absoluto e incondicional; mas dão-lhe um carácter corres­
pondente ao que lhes é peculiar: tanto que, à primeira vista, pode­
ria parecer que o Assentimento possui graus, em virtude da
variação da intensidade nestas diferentes apreensões. Assim como
as noções derivam de abstracções, assim as imagens provêm de
experiências; quanto mais plenamente a mente é ocupada por uma
experiência, tanto mais vivo será o seu assentimento a ela, se anuir;
por outro lado, quanto mais baço e menos eficaz é o seu assenti­
mento, tanto mais enleada ela se encontra numa abstracção. É
assim concebível uma escala de assentimentos, ou no exemplo de
uma mente centrada em diferentes assuntos ou de muitas mentes
incidindo num só tema, variando desde um assentimento que se
assemelha a uma simples inferência até uma crença intensa e práti­
ca - desde a aceitação que tributamos a algumas notícias aciden­
tais do dia até à fé dogmática sobrenatural do cristão.
Importa, pois, abordar o assentimento sob o duplo aspecto do
se u conteúdo - assentimento a noções e assentimento a coisas.

U m a G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 65
CAPÍTU LO 4

ASSENTIM ENTO NOCIONAL E REAL

1 . Afirmei que a nossa apreensão de uma proposição varia na força,

e que é mais forte quando incide numa proposição que expressa


coisas do que quando diz respeito a uma proposição que expressa
noções; e aduzi para tal a razão seguinte: o concreto exerce uma
força e causa uma impressão na mente que nada de abstracto pode
emular. Isso é assim, afirmei, porque o objecto é mais poderoso,
portanto, assim é também a sua apreensão.
Não penso que seja incorrecto raciocinar deste modo para
tomar a apreensão por objecto seu. A mente é sempre estimulada
em proporção à causa que a estimula. Dominam-nos, por exem­
plo, as vistas, e não os aromas; se tal se deve a um maior poder na
coisa vista ou a uma maior receptividade e expansão no sentido da
visão, é uma questão supérflua. O objecto forte tornaria forte a
apreensão. O nosso sentido da visão consegue abrir-se ao seu
objecto, de um modo que o nosso sentido do olfacto não o faz ao
seu. Os seus objectos conseguem despertar a mente, apossar-se
dela, inspirá-la, actuar através dela, com uma energia e uma varie­
dade que não se encontra no caso dos cheiros e da sua apreensão.
Visto que não podemos traçar a linha entre o objecto e o acto,
tenho a liberdade de dizer, como fiz, que tal como é a coisa apreen­
dida assim será a apreensão.
E o mesmo se diga acerca da apreensão dos objectos mentais.
Se uma imagem derivada da experiência, ou uma informação, é
mais forte do que uma abstracção, uma concepção ou conclusão

U m a G r a m á. t i c a do Ass e n t i m e n t o • 67
- se sou mais cativado pela atitude do · Senhor diante de Pilatos e de
Herodes do que pelo ]ustum et tenacem, etc. do poeta, mais cativado
pela sua voz que nos diz, «Dá àquele que te pediu», do que pelos
melhores argumentos do economista contra a esmola indiscrimina­
da, não interessa ao meu presente propósito se os objectos dão força
à apreensão ou se a apreensão faculta a entrada ampla do objecto na
mente. É próprio da natureza humana ser mais afectada pelo concre­
to do que pelo abstracto; talvez aconteça o contrário com outros
seres. Pode, pois, dizer-se honestamente que a apreensão tem a força
que actua sobre nós, como o objecto apreendido.

2. A apreensão real pode dizer-se mais forte do que a nocional,


porque as coisas, que são os seus objectos, são confessadamente
mais impressivas e afectivas do que as noções, que são os objectos
da nocional. As experiências e as suas imagens assaltam e ocupam a
mente de um modo que as abstracções e as suas combinações não
conseguem. Em seguida, passando ao Assentimento, advirto que a
variação na apreensão que a mente faz de um objecto a que anui, e
não qualquer insuficiência no próprio assentimento, é que nos leva
a falar de assentimentos fortes e fracos, como se o próprio Assenti­
mento admitisse graus. Nos dois modos de apreensão, seja ela real
ou nocional, o assentimento preserva a sua característica essencial
de ser incondicional. O assentimento de um estóico ao «]ustum et
tenacem», etc., pode ser um assentimento tão genuíno, tão absolu­
to e íntegro, tão pouco aberto aos graus ou às variações, tão distin­
to de um acto de inferência, como o assentimento de um cristão à
história da paixão do Senhor no Evangelho.

68 • John H e n ry N e w m a n
3 . É, sem dúvida, peculiar ao Assentimento ser assim, na sua nature­
za, apenas um só e indivisível e, por conseguinte, essencialmente
diferente da Inferência, a qual é sempre variável na força, nunca de
todo com a mesma intensidade em quaisquer dois dos seus actos;
por outro lado, é ao mesmo tempo verdade que pode ser, de facto,
difícil, mediante indícios externos, distinguir determinados actos de
assentimento de certos actos de inferência. Deste modo, ninguém
pode, porventura, confundir o assentimento real de um cristão ao
facto da crucificação do Senhor com a aceitação nocional do mes­
mo, enquanto momento da história, por parte de um pagão filósofo
(tão afastados toto ca?lo estão entre si os respectivos modos de o
apreender nos dois casos, apesar de o assentimento, na sua natureza,
ser em ambos um só e o mesmo); todavia, seria fácil confundir o
assentimento nocional do estóico, por genuíno que ele seja, com a
nobreza moral do homem justo «que luta nas tormentas do desti­
no», com um simples acto de inferência a partir dos princípios da
sua confissão estóica ou, ainda, com um assentimento dado apenas à
necessidade inferencial da nobreza desta luta. Nada, de facto, é mais
comum do que louvar os homens pela consistência com os seus
princípios, sejam quais forem estes princípios, isto é, elogiá-los na
base de uma inferência, sem assim implicar qualquer assentimento
aos próprios princípios.
A causa desta semelhança entre actos tão distintos é óbvia. A
semelhança existe só nos casos de assentimentos nocionais. E quan­
do o assentimento é dado a noções, então é efectivamente possível
hesitar em decidir se ele é um assentimento ou uma inferência, se a
mente está apenas sem dúvida ou realmente certa. E a razão é esta: o
Assentimento nocional assemelha-se a uma Inferência, porque a
apreensão que acompanha actos de Inferência é também nocional
- pois a Inferência está quase sempre implicada em proposições

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 69
nacionais, a premissa e a conclusão. Registo aqui, com clareza, este
ponto, que em toda a parte insinuei; dele me ocuparei, a seguir, com
maior extensão. Só as proposições acerca de indivíduos não são
nacionais, e estas raramente são matéria de inferência. Assim, se o
estóico inferisse o facto da morte do Senhor, em vez de a ela assentir,
essa proposição enquanto inferida seria para ele uma abstracção aná­
loga ao <<fustum», etc.; melhor ainda, o <<fustus et tenax» foi, pelo
menos, uma noção na sua mente, mas «Jesus Cristo», nas escolas de
Atenas ou de Roma, teria significado menos, um ente desconhecido,
o x ou y de uma fórmula. Afora, pois, alguns casos de conclusões
singulares, as inferências são utilizadas em torno de noções, a não
ser, insisto, quando se empregam a propósito de meros símbolos; e,
de facto, quando são simbólicas, são então mais claras e mais con­
vincentes, como depois mostrarei. Os casos imediatamente mais cla­
ros são os que suscitam os necessários resultados de classificações
prévias e, por conseguinte, podem chamar-se definições ou conclu­
sões, como nos aprouver. Por exemplo, se dividimos os seres nas suas
classes, a definição de homem é inevitável.

4. Podemos então dar-lhe o nome de estado normal de Inferência


para apreender proposições enquanto noções; e pode denominar­
-se o estado normal de Assentimento para apreender proposições
como coisas. Se a apreensão nocional é mais congénita à Inferên­
cia, a apreensão real será a concomitante mais natural do assenti­
mento. Um acto de Inferência inclui no seu objecto a dependência
da sua tese relativamente às premissas, a saber, quanto a uma rela­
ção, que é uma abstracção; mas um acto de Assentimento funda-se
totalmente na tese do seu objecto, e a realidade da tese é quase
uma condição da sua incondicionalidade.

70 • John H e n ry Newman
5. Sou assim induzido a fazer mais uma advertência, e será a última.
Um acto de assentimento é, parece, o mais perfeito e elevado
da sua espécie, quando se exerce sobre proposições que são apreen­
didas como experiências e imagens, isto é, que estão em vez de coi­
sas; e, por outro lado, um acto de inferência é o mais perfeito e
elevado da sua espécie, quando é exercido sobre proposições que
são apreendidas como noções, isto é, que ·são criações da mente.
Um acto de inferência pode, de facto, realizar-se com qualquer
destes modos de apreensão; também um acto de assentimento;
mas quando as inferências são exercidas em coisas, tendem a ser
conjecturas ou pressentimentos, sem força lógica; e quando os
assentimentos são exercidos em noções, tendem a ser simples asser­
ções, sem qualquer adesão pessoal a elas por parte de quem as faz.
Se assim é, então é verdadeiro o paradoxo seguinte: quando a Infe­
rência é mais clara, menos força terá o Assentimento; e quando o
Assentimento é mais intenso, menos clara será a Inferência -
pois, embora os actos de assentimento exijam actos prévios de
inferência, não os requerem como causas adequadas, mas como
condições sine qua non; e enquanto a apreensão fortalece o Assen­
timento, muitas vezes, a Inferência enfraquece a apreensão.

1. As s e n t i m e n t o s n o c 1 0 n a1 s

Irei considerar o Assentimento dado a proposições que expressam


abstracções ou noções, sob cinco epígrafes, a que darei o nome de
alegação, crédito, opinião, presunção e especulação.

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 71
1. Al egação
Há assentimentos tão fracos e superficiais que pouco mais são
do que asserções. Classifico-os a todos sob o rótulo de Alegação. Tais
são os assentimentos feitos por hábito e sem reflexão; como quando
alguém se denomina a si mesmo um conservador ou um liberal,
como tendo sido assim educado; ou ainda quando adopta como
algo natural o [gosto] literário ou outras modas do dia, admirando
os problemas, as novelas, a música, as personagens, o vestuário, os
vinhos, as maneiras, realmente populares ou que são patrocinados
nas altas esferas. Tais são também os assentimentos dos homens de
mentes vacilantes e inquietas, que acolhem e, em seguida, abando­
nam crenças de modo tão pronto, tão súbito, que aparentemente
não tinham opinião alguma (como se diz) sobre o assunto que pro­
fessavam, e não conheciam aquilo a que assentiram ou porquê.
Em seguida, quando os homens dizem que não duvidam de
uma coisa, trata-se do caso em que é difícil determinar se eles lhe
dão assentimento, se a inferem ou a consideram muito provável.
Há, de facto, muitos casos em que é impossível discriminar entre
assentimento, inferência e asserção, em virtude do carácter ocioso,
passivo e incoerente do acto em questão. Se eu disser que amanhã
o tempo vai estar bom, que é que esta enunciação quer dizer? Sig­
nificará, porventura, que estará bom, se o barómetro disser a ver­
dade; então é a inferência de uma probabilidade. Talvez não
signifique mais do que uma conjectura, porque hoje o tempo está
óptimo ou assim esteve na semana passada. E talvez seja uma defe­
rência para com a palavra de outrem; neste caso é, às vezes, um
assentimento real, e outras, uma asserção delicada ou um desejo.
Muitos adeptos de uma escola filosófica, que se expressam com
fluência, não prestam assentimento quando, aparentemente, anuem
aos dieta do seu mestre, porque talvez de tal se dão pouca conta.

72 • John Henry Newman


Nem estão ao abrigo do auto-engano em virtude do conhecimento
dos argumentos em que esses dieta se baseiam, pois podem aprender
os argumentos de cor, tal como um estudante descuidado prepara o
seu Euclides. Esta prática de asserir só na base da autoridade, com a
pretensão e sem a realidade do assentimento, é o que se indica por
formalismo. Dizer «não entendo uma proposição, mas aceito-a por
mor da autoridade» não é formalismo, mas fé; não é um assentimen­
to directo à proposição, mas é um assentimento à autoridade que a
enuncia; aqui, porém, refiro-me à declaração de compreender sem
compreensão. É assim que se criam os motes políticos e religiosos;
primeiro, adopta-os um homem de nome, depois outro, até que o
seu uso se torna popular e, então, cada um os professa, porque todos
os demais assim fazem. Tais palavras são «liberalidade», «progresso»,
«luz», «civilização»; assim também «justificação só pela fé», «religião
vital», «juíw privado», «a Bíblia, e nada mais do que a Bíblia»; ou
ainda «Racionalismo», «Galicanismo», «Jesuitismo», «Ultramonta­
nismo» - todas elas, nas bocas de pensadores conscienciosos, têm
um significado determinado, mas são usadas pela multidão como
gritos de guerra, alcunhas, shibboleths, com pouco mais do que a
mínima apreensão gramatical para permitir que sejam, na verdade,
consideradas outra coisa além de asserções.
Por isso, de tempos a tempos, surgem exemplos quando, em
virtude da urgência de alguma superstição em voga ou de uma ilu­
são popular, uma autoridade científica eminente é incitada a apare­
cer e a endireitar o mundo com o seu ipse dixit. Sabe ele muito
bem de que se trata; tem um direito a falar; os seus raciocínios e as
suas conclusões são suficientes, não só para o seu próprio assenti­
mento, mas também para o geral e, porventura, são tão simples­
mente verdadeiros e inexpugnáveis quanto respeitáveis; mas não é
de esperar, no caso dos homens em geral, uma adesão inteligente

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o •
73
ao assunto em disputa, como a que ele tem. No entanto, cada um
e todos repetem e repartem os seus argumentos, tão subitamente
como se não tivessem de os estudar, tão cordialmente como se os
entendessem, agitando-se e tornando-se tão fortes antagonistas do
erro que o seu mestre expôs, como se nunca tivessem sido seus
defensores. Segundo dizem, não é apenas a sua autoridade que os
move - o que neles seria bastante sensato e adequado -, pois a
apreensão e o assentimento radicam então na máxima Cuique in arte
sua credenduml ; mas como renegam este motivo e, numa questão
científica, pretendem discutir o valor de argumentos que exigem
um conhecimento efectivo, pouco mais são do que simuladores e
formalistas, aliás, num assunto não muito sério.
A autoridade, mas também a Inferência, pode, pois, impor-nos
assentimentos que em si pouco mais são do que asserções, e que na
medida em que são assentimentos podem apenas ser assentimentos
nacionais; não são assentimentos às proposições inferidas, mas à ver­
dade dessas proposições. Por exemplo, pode demonstrar-se com cál­
culos irrefutáveis que as estrelas estão biliões de milhas afastadas da
terra; e o processo de cálculo, com que tais enunciados são feitos,
não é tão difícil que exija a autoridade para garantir a nossa aceita­
ção dela e deles; todavia, quem poderá dizer que tem qualquer
apreensão real, ou melhor, nocional de um bilião ou de um trilião?
Podemos, sem dúvida, ter disso alguma noção, se a analisarmos
nos seus factores, se a compararmos com outros números, se a ilus­
trarmos por meio de analogias ou das suas implicações; mas estou
a falar de um número grande em si mesmo. Não podemos anuir a
uma proposição da qual ele é predicado; mas podemos dar o assen­
timento à sua verdade.

1 «Deve confiar-se em cada um no seu ofício».

74 • J o h n H e n ry N e w m a n
Isto leva-me à questão de se a fé num mistério poderá ser mais
do que uma asserção. Julgo que pode ser um assentimento; as
minhas razões para assim falar são as seguintes: - um mistério é
uma proposição que encerra noções incompatíveis, um enunciado
do inconcebível. Ora podemos assentir a proposições (e um misté­
rio é uma proposição) , contanto que as possamos apreender; por
conseguinte, podemos assentir a um mistério, pois, se não o
apreendêssemos de alguma forma, não o reconheceríamos como
mistério, isto é, como um enunciado que une noções incompatí­
veis. Logo, o mesmo acto que nos capacita para discernir que as
palavras da proposição expressam um mistério, capacita-nos tam­
bém para a ele anuir. Palavras que formam um contra-senso não
constituem um mistério. Ninguém diria que o verso de Warton -
«Revolving swans proclaim the welkin near » [cisnes volteando
anunciam que o firmamento está perto] - é uma asserção incon­
cebível. Patente é também que o assentimento por nós dado aos
mistérios, enquanto tais, é um assentimento nocional; é, por supo­
sição, um assentimento a proposições que não podemos conceber,
ao passo que, se deles tivéssemos tido a experiência, seríamos capa­
zes de os conceber, e sem experiência não é real o assentimento.
Mas, segue-se a questão, podem os processos de inferência
desembocar num mistério? - isto · é, não só naquilo que é incom­
preensível, que as estrelas estão a biliões de milhas umas das outras,
mas naquilo que é inconcebível, na coexistência de (aparentes)
incompatibilidades? Pois, perguntar-se-á, como pode a razão inserir
noções nas suas proposições contraditórias? É que todos os desenvol­
vimentos de uma verdade devem, a partir da natureza do caso, ser
consistentes com ele e entre si. Respondo: os processos de inferência,
por exactos que sejam, podem decerto desembocar num mistério; e
elimino a objecção a semelhante doutrina deste modo: a nossa

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 75
noção de uma coisa pode só em parte ser fiel ao original; pode exce­
der a coisa ou representá-la de modo incompleto; pode, por conse­
guinte, servir para ela, pode estar em seu lugar só até certo ponto e
em certos casos, mas não mais. Alcançado este ponto, separam-se a
noção e a coisa; e, em seguida, a noção, se ainda for usada como
representativa da coisa, suscitará conclusões, não inconsistentes com
ela própria, mas com a coisa a que já não corresponde.
Tal vê-se, do modo mais familiar, no uso de metáforas. Assim,
numa sátira de Oxford, que merecidamente causou sensação na
altura, afirma-se que o vício «da sua dureza tira também o brilho»l .
Poderia, portanto, argumentar-se que, embora viciado, Calihan era
também educado; mas a boa educação e Caliban são noções
incompatíveis. Ou quando alguém disse, talvez o Dr. Johnson, que
um certo escritor (a saber, Hume) era um pensador claro, ele res­
pondeu «Todos os néscios são claros». Mas supondo que Hume
era, de facto, um pensador claro e profundo, supondo ademais que
a clareza e a profundidade são incompatíveis no seu sentido literal
- o que a objecção parece implicar - e que ainda, no seu pleno
sentido literal, elas se deveriam atribuir a Hume, então o nosso
raciocínio acerca do seu intelecto desemboca no mistério, «0 Hume
profundo é néscio»; ao passo que a contradição não reside no
raciocínio, mas em imaginar que noções inadequadas se podem
tomar como as representações exactas das coisas.
Por isso, na ciência, usamos às vezes uma definição ou uma for­
mu/,a, não como exacta, mas como suficiente para o nosso propósito,
a fim de tirar certas conclusões em prol de uma aproximação prática,
se o erro for pequeno, até se alcançar um certo ponto. É aquilo a
que nas investigações teológicas eu daria o nome de economia.

1 «The Oxford Spy», 1 8 1 8; por J. S. Boone, p. 1 07.

76 • J o h n Henry Newman
Um contraste semelhante entre as noções e as coisas que elas
representam é o princípio da suspensão e da curiosidade nas senten­
ças enigmáticas, muito frequentes no estádio primitivo da sociedade
humana. O problema nelas proposto à subtileza dos ouvintes é
encontrar alguma coisa real que possa unir em si mesma certas
noções conflituosas que, na questão, lhe são atribuídas: «Do preda­
dor veio a carne, do forte veio a doçura»; ou «Qual a criatura que,
de manhã, anda com quatro pernas, ao meio-dia com duas e, à
noite, com três?» A resposta, que nomeia a coisa, interpreta e, por
conseguinte, limita as noções sob as quais foi representada.
Tomemos um exemplo da álgebra. O seu cálculo emprega-se
comummente para investigar não só as relações de quantidades em
geral, mas os factos geométricos em particular. Ora ela é ao mesmo
tempo demasiado ampla e demasiado estreita para semelhante pro­
pósito, apropriada para a doutrina das linhas e dos ângulos com
mau corte, tal como o casaco de um homem pequeno e entronca­
do poderia remediar as necessidades de alguém que era alto e
esguio. Funciona bem, sem dúvida, até certo ponto, para fins geo­
métricos, como quando nos permite dispensar o método incómo­
do da demonstração em questões de relação e de proporção, que é
adaptado no quinto livro de Euclides; mas que faremos com a
quarta potência de a, quando ela se deve traduzir para a linguagem
geométrica? Se, a partir desta expressão algébrica, determinássemos
que o espaço admitia quatro dimensões, enunciaríamos um misté­
rio, porque estaríamos a aplicar ao espaço uma noção que pertence
à quantidade. A álgebra excede, neste caso, a verdade geométrica.
Tomemos agora um exemplo em que ela fica aquém da geometria
- Qual é o significado da raiz quadrada de menos a? Aqui, o mis­
tério reside no lado da álgebra; e, de harmonia com o princípio
que estou a ilustrar, ele tem sido, por vezes, considerado como um

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o •
77
esforço abortado de expressar o que está realmente para lá da capa­
cidade da notação algébrica, a direcção e a posição de linhas na ter­
ceira dimensão do espaço, como também a sua extensão num
plano. Quando o cálculo é exigido pelo curso inevitável do traba­
lho para fazer o que ele não pode fazer, embate como que numa
resistência e declara estar perante um absurdo.
As nossas noções das coisas nunca são simplesmente comensurá­
veis com as próprias coisas; são aspectos seus, mais ou menos exactos
e, por vezes, um erro ab initio. Tomemos um exemplo da aritmética:
estamos habituados a submeter tudo o que existe há numeração;
mas, em vista da correcção, somos obrigados, primeiro, a reduzir a
algum nível de possível comparação as coisas que desejamos enume­
rar. Devemos ser capazes de dizer não só que elas são dez, vinte ou
cem, mas outras tantas quantias determinadas. Por exemplo, não
poderíamos, sem extravagância, amontoar o cérebro, a ambição, a
mão, a alma, o sorriso, a altura e a idade de Napoleão em Marengo e
dizer que eram sete, embora existam sete palavras; nem será também
suficiente contentar-nos com o que se poderia chamar um nível
negativo, a saber, que esses sete são um sete não existente ou faleci­
do. A não ser que a enumeração desemboque num contra-senso,
deve levar-se a cabo sob determinadas condições. Sendo este o caso,
há, tanto quanto sabemos, conjuntos de seres a que a noção de nú­
mero não se pode associar, excepto por catacrese, tomados individual­
mente, nenhum ponto de real acordo se pode entre eles encontrar,
pelo qual os denominemos. Se, de facto, os conseguimos denotar
com um nome plural, então poderemos medir esta pluralidade; mas
se eles em nada concordam, não podem conjugar-se na posse de um
nome comum, e dizer que equivalem a um milhar destes ou daque­
les não é enumerá-los, mas contar um certo número de nomes ou
palavras que escrevemos.

78 • John Henry Newman


Foi assim que os teólogos pensaram que, entre os anjos, cada
qual tinha para si uma espécie; e podemos imaginar cada um deles
de modo tão absolutamente sui similis que a nada mais se asseme­
lham, pelo que seria tão erróneo falar de mil Anjos como de mil
Aníbales ou Cíceros. Dir-se-á, na verdade, que todos os seres, excep­
to Um pelo menos, se incluirão na noção de criaturas, e que são
dependentes desse Um; mas tal verifica-se com o cérebro, o sorriso e
a altura de Napoleão, que ninguém terá por três criaturas. Mas, se
tudo isto é assim, muito mais se aplicará às nossas especulações acer­
ca do Ser Supremo, a cujo respeito pode ser absurdo não só enume­
rá-lo com os outros seres, mas também sujeitá-lo ao número, quanto
às suas próprias características intrínsecas. Isto é, aplicar-Lhe noções
aritméticas pode ser tão afilosófico quanto profano. Embora Ele seja
ao mesmo tempo Pai, Filho e Espírito Santo, a palavra «Trindade»
pertence às noções que nos são impostas pela necessidade das nossas
concepções' finitas, pela distinção real e imutável que existe entre
Pessoa e Pessoa, sem que isso implique em si uma infracção da Sua
Unidade real e numérica. E se alguém perguntar agora como é que,
não podendo nós, em rigor, falar d'Ele enquanto Três, podemos d'Ele
falar enquanto Um, respondo que Ele não é Um do mesmo modo
que as coisas criadas são unidades diversas; pois um, enquanto apli­
cado a nós, usa-se em contraste com dois ou três e com uma série
completa de números; mas, a propósito do Ser Supremo, é melhor
usar a palavra «mónada» do que unidade, pois Ele nem sequer tem
uma relação às suas criaturas que permita, em termos filosóficos, o
contraste com elas.
Regressando ao tema principal, que ilustrei sob o risco de
digressão, advirto que um facto alegado não é impossível por ser
inco ncebível; pois as noções incompatíveis, em que consiste a
imp ossibilidade da sua conceptualização, não precisam, cada uma

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o •
79
delas, de pertencer realmente a esta pl�nitude que implicaria a sua
recíproca incompatibilidade. É verdade que nego a possibilidade
de duas linhas rectas rodearem um espaço, em virtude de serem
inconcebíveis; mas procedo assim, porque uma linha recta é uma
noção e nada mais; não é uma coisa a que eu possa ter associado
uma noção mais ou menos fidedigna. Defini uma linha recta à
minha maneira e a meu bel-prazer; a questão não é acerca de fac­
tos, mas da consistência recíproca das definições e das suas conse­
quências lógicas.
«Ü espaço não é infinito, pois infinito é só o Criador»: a partir
desta tese enquanto informação teológica para ser tomada como um
facto, embora não da experiência, chegamos de imediato a um mis­
tério insolúvel; pois, se o espaço não é infinito, é finito; mas o espaço
finito é uma contradição nos termos, já que o espaço enquanto tal
implica a ausência de limites. Mais uma vez, é a nossa noção que nos
leva além do facto e em oposição a ele, mostrando que, desde o iní­
cio, o que do espaço apreendemos não corresponde em todos os
aspectos à coisa, da qual não temos imagem alguma.
Este é, então, outro exemplo em que a justaposição de noções
pela faculdade lógica nos faz desembarcar naquilo a que, comum­
mente, se dá o nome de mistérios. As noções são apenas aspectos das
coisas; as deduções livres a partir de um destes aspectos contradizem
necessariamente as livres deduções a partir de outro. Após avançar­
mos de um certo modo nas nossas investigações, apresenta-se de
repente, diante da visão mental, um vazio ou um labirinto, como
quando o olho é confundido pelas lâminas divergentes de um teles­
cópio. Cremos, assim, na infinitude dos Atributos Divinos, mas não
podemos ter a experiência da infinitude enquanto facto; a palavra
está em vez de uma definição ou noção. Por conseguinte, quando
tentamos, no mundo moral, reconciliar a plenitude da misericórdia

8O • John Henry Newman


com a probidade na santidade e na justiça, ou explicar que os indí­
cios físicos da habilidade criativa não precisam de sugerir nenhuma
deficiência do poder criador, descobrimos que não dominamos o
nosso tema. Damo-nos assaz conta de que somos capazes de assentir
a estas verdades teológicas como mistérios; se as não apreendêssemos,
faríamos simples asserções; embora, mesmo então, conseguíssemos
transformar tal asserção num assentimento, se esse procedimento nos
agradasse, como já mostrei, fazendo dela o sujeito de uma proposi­
ção, e predicando a seu respeito que ela é verdadeira.

2. C r é d i t o
O que pretendo dizer por dar crédito a proposições é mais ou
menos o mesmo que «não ter dúvidas» a seu respeito. É o tipo de
assentimento que damos às opiniões e aos factos alegados que conti­
nuamente se nos apresentam, sem qualquer esforço da nossa parte, e
que em geral temos por garantidos, obtendo assim um� ampla base
de pensamento para nós próprios e um meio de comunhão entre
nós e os outros. Esta forma de assentimento nocional abarca uma
grande variedade de temas; e, como já sugeri, tem um carácter fiítil e
passivo, aceitando tudo o que vem à mão, seja de que área for, garan­
tido ou não, de modo que nada traz consigo para desvantagem sua.
Desde a altura em que começamos a observar, a pensar e a racioci­
nar, até ao fiasco derradeiro dos nossos poderes, estamos sempre a
adquirir informações frescas e novas mediante os nossos sentidos, e
ainda mais a partir dos outros e dos livros. Os amigos ou estranhos
com que deparamos ao longo do dia, as conversas ou as discussões
de que somos parceiros, os jornais, a leitura ligeira das férias, as nos­
sas distracções, os nossos passeios pelo campo, os nossos giros pelo
estrangeiro - tudo verte as suas contribuições de conteúdo intelec-

Uma Gramática do Assentimento • 81


tual nos armazéns da nossa memória; e, embora muito se possa per­
der, muito também se conserva. Essas informações, recebidas com
um assentimento espontâneo, constituem o mobiliário da mente e
fazem a diferença entre a sua condição civilizada e um estado da
natureza. São a sua educação, tanto quanto o conhecimento geral
assim se pode designar; e embora a educação seja disciplina e tam­
bém aprendizagem, contudo, a não ser que a mente acolha implicita­
mente as verdades, reais ou ilusórias, que estas informações fornecem,
não obterá nem uma formação nem um estímulo para a sua activida­
de e o seu progresso. Ademais, acreditar sinceramente no que se diz
é, no jovem, um exercício de docilidade e de humildade.
Crédito é o meio pelo qual, no superior e no inferior, no homem
do mundo e no recluso, a nossa natureza destituída e estéril é invadi­
da e diversificada a partir de fora com uma indumentária rica e viva.
É mediante tais assentimentos generosos, expeditos, ao que em tanta
profusão nos é oferecido, que entramos na posse dos princípios, das
doutrinas, dos sentimentos e dos factos, que constituem o conheci­
mento útil e, em especial, o conhecimento liberal. Estes diversos ensi­
namentos, apesar da sua superficialidade, são de uma amplitude que
nos defende das /,acun12 do conhecimento, susceptíveis de ocorrer ao
estudante confesso, nos mantêm em dia na literatura, nas artes, na
história e nos assuntos públicos. Fornecem-nos, em grande medida, a
nossa moralidade, a nossa política, o nosso código social, a nossa arte
da vida. Facultam os elementos da opinião política, os motes do
patriotismo, os padrões do pensamento e da acção; são as nossas
compreensões mútuas, os nossos canais de simpatia, os nossos meios
de cooperação e o vínculo da nossa união civil. Tornam-se na nossa
linguagem moral; aprendemo-los como aprendemos a nossa língua
materna; distinguem-nos dos estrangeiros; são, em cada um de nós,
não propriamente características pessoais, mas nacionais.

82 • J o h n H e n ry N e w m a n
Esta sua descrição implica que eles são recebidos com um
assentimento nocional, não real; são demasiado heterogéneos para
serem recebidos de qualquer outro modo. Até as mentes mais exer­
citadas e sérias carecem, por força, de ser superficiais na maior par­
te dos seus conhecimentos pessoais. Sabem o suficiente sobre todos
os temas, na literatura, na história, na política, na filosofia e na
arte, para conseguirem conversar com inteligência a seu respeito e
entender os que são efectivamente profundos em qualquer deles.
Tal é o que se chama, com uma renitência especial, o conhecimen­
to de um cavalheiro, em contraste com o de um profissional; não é
nem desprovido de valor nem desprezível, se for usado para os seus
fins adequados; nunca passa do mobiliário da mente, tal como o
designei; jamais é por ele de todo absorvido. Todavia, nada há que
impeça aqueles que, inclusive, têm o mais amplo provimento de
tais noções de se dedicarem a um ou a vários dos temas a que tais
noções pertencem, e o dominarem com uma apreensão real; e, em
seguida, o seu conhecimento geral de todos os assuntos talvez se
torne diversamente útil na orientação do estudo particular ou da
ocupação que escolheram.
Falei, até agora, do conhecimento secular; mas a religião pode
igualmente ser um tema de assentimento nocional, e assim acontece
no nosso país. A teologia, enquanto tal, porque científica, é sempre
nocional: a religião, enquanto pessoal, deve ser real; mas, excepto
num pequeno âmbito de temas, comummente não é real na Ingla­
terra. Nas populações católicas, como as da Europa medieval, da
Espanha de hoje, ou nas quase-católicas como as da Rússia, o assen­
timento a objectos religiosos é real, e não nocional. Para elas, o Ser
Supremo, o Senhor, a Virgem Santa, os Anjos e os Santos, o céu e o
inferno, são tão presentes como se fossem objectos da vista; mas
semelhante fé não se ajusta ao génio da Inglaterra moderna. Existe

U m a G r a m á t i c a do Assc n t i ln e n c o • 83
no mundo literário, precisamente agora, uma afectação em chamar à
religião um «sentimento»; e há que reconhecer que, habitualmente,
no nosso próprio povo, educado ou rude, ela não vai além disso.
Dificilmente lhe são necessários objectos. Não digo o mesmo acerca
do velho Calvinismo ou da Religião Evangélica; não designo a reli­
gião de Leighton, Beveridge, Wesley, Thomas Scott ou Cecil como
um mero sentimento; nem assim designo o Alto Anglicanismo da
geração presente. Trata-se apenas de denominações, de partidos e
escolas, em comparação com a religião nacional da Inglaterra na sua
extensão e amplitude. «Religião da Bíblia» é o título reconhecido e a
melhor descrição da religião inglesa.
Não consiste ela em ritos ou credos, mas sobretudo em ler a
Bíblia na Igreja, na família ou em privado. Ora, estou muito longe
de desvalorizar este simples conhecimento da Escritura, que assim
é transmitido de uma forma irregular à população. Pelo menos na
Inglaterra, compensou, até certo ponto, grandes e gravosas perdas
no seu cristianismo. A reiteração muito frequente, de modo fixo
no serviço público, das palavras de mestres inspirados nas duas
Alianças, e isto naquele inglês grave e majestoso, foi, de facto, um
grande benefício para o nosso povo. Sintonizou as suas mentes
com os pensamentos religiosos; forneceu-lhes um elevado padrão
moral; ajudou-as a associar a religião a composições que, mesmo
humanamente consideradas, se encontram entre as mais sublimes e
belas alguma vez escritas; sobretudo, imprimiu nelas a série de cui­
dados divinos a favor do homem desde a sua criação até ao seu fim
e, acima tudo, as palavras, os actos e os sofrimentos sagrados de
Cristo, no qual se centram todas as Providências de Deus.
Até agora, a leitura indiscriminada da Escritura prestou um ser­
viço útil; todavia, é preciso muito mais do que os benefícios que enu­
merei, para responder à ideia de uma religião; se tivermos em conta

84 • John Henry Newman


que a nossa forma nacional alega ser pouco mais do que a leitura da
Bíblia e viver uma vida correcta. Não é uma religião de pessoas e coi­
sas, de actos de fé e de devoção orientada, mas de cenas sagradas e de
sentimentos piedosos. Preocupou-se, comparativamente, pouco com
o credo e o catecismo; mostrou, por conseguinte, um escasso sentido
da necessidade de consistência no conteúdo do seu ensino. AI> suas
doutrinas não são tanto factos quanto aspectos estereotipados de fac­
tos; e receia, por assim dizer, girar à sua volta. Induz os seus adeptos a
contentar-se com esta magra visão da verdade revelada; ou antes, sus­
peita e protesta, ou até receia, como se num quadro visse uma figura
a sair da sua moldura, quando o Senhor, a Virgem sagrada ou os San­
tos Apóstolos são mencionados como seres reais, e como eles, de fac­
to, são realmente, segundo a Escritura. Não nego que o assentimento
que ela inculca e suscita seja genuíno no tocante ao âmbito estreito
da doutrina, mas é, quando muito, nocional. O que a Escritura
sobretudo ilustra, desde a primeira à última página, é a Providência
de Deus; e esta é quase a única doutrina, defendida com um assenti­
mento real, pela massa dos Ingleses religiosos. É por isso que a Bíblia
é para eles, na perturbação, um tão grande consolo e refúgio. Repito,
não estou a falar de escolas e de partidos particulares na Inglaterra,
quer da Alta ou da Baixa Igreja, mas da massa de pessoas de mente
piedosa e de vida boa em todas as categorias da comunidade.

3 . O p i n i ão
A classe de assentimentos a que dei o nome de Crédito, por
ser uma aceitação espontânea das diversas informações, transmiti­
das por quaisquer meios às nossas mentes, recebe, por vezes, o
no me de Opinião. Ao falarmos das opiniões de um homem, que
preten demos indicar, a não ser o conjunto de noções que, por aca-

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 85
so, ele tem e que facilmente não desperdiça, embora não tenha
delas nem uma prova suficiente nem uma apreensão firme? Isto é
verdade; todavia, Opinião é uma palavra com vários significados, e
prefiro usá-la de acordo com o meu próprio. Além de substituir
Crédito, pode, às vezes, significar Convicção, como quando falamos
da «variedade das opiniões religiosas», ou de «ser perseguido por opi­
niões religiosas», ou de não ter «nenhuma opinião sobre um ponto
particular», ou de não ter «opiniões religiosas». E, às vezes, é usada
em contraste com Convicção, como sinónimo de assentimento ligei­
ro e casual, embora genuíno; assim, se um homem mudasse, todos
os dias, de ideias, isto é, de assentimentos, poderíamos dizer que ele
é muito inconstante nas suas opiniões.
Empregarei aqui a palavra para indicar um assentimento, mas
um assentimento a uma proposição, não como verdadeira, mas
como provavelmente verdadeira, isto é, à probabilidade daquilo
que a proposição enuncia; e assim como tal probabilidade pode,
sem limite, variar em força, assim também a força e o peso da opi­
nião. Esta explicação da Opinião pode, aparentemente, confundi­
-la com a Inferência; pois a força de uma inferência varia com as
suas premissas e é uma probabilidade; mas os dois actos da mente
são realmente distintos. A Opinião, enquanto assentimento, é
independente das premissas. Temos opiniões que jamais pensamos
defendê-las por argumentos, embora decerto pensemos que tal é
possível. Somos até nelas obstinados, ou aquilo que se chama «opi­
niático», e pode dizer-se que temos o direito de pensar como nos
apraz, de raciocinar ou não; ao passo que a Inferência é, na sua
natureza e pelo seu estatuto, condicional e incerta. Dizer que «tere­
mos uma boa colheita de feno, se o tempo presente durar» não
dimana do mesmo estado mental como «Sou da opinião de que,
este ano, iremos ter uma boa colheita de feno».

86 • J o h n H e n ry N e w m a n
A Opinião, assim explicada, tem um nexo maior com o Crédi­
to do que com a Inferência. Difere de Crédito em dois pontos, a
saber: enquanto a Opinião dá um assentimento explícito à proba­
bilidade de uma determinada proposição, o Crédito é um assenti­
mento implícito à sua verdade. Difere de Crédito num terceiro
aspecto, a saber, por ser um acto reflexo; - quando temos uma
coisa por garantida, temos nela crédito; quando começamos a
reflectir sobre o seu crédito, a medi-la, a avaliá-la e a modificá-la,
estamos então a formar uma opinião.
É neste sentido que os Católicos falam de opinião teológica, em
contraste com a fé no dogma. É muito mais do que um acto infe­
rencial, mas distingue-se de um acto de certeza. E este é realmente o
sentido que os Protestantes dão à palavra, quando a tomam por
Convicção; pois, a sua mais elevada opinião na religião é, falando
em geral, um assentimento a uma probabilidade - como até Butler
foi bem, ou mal, interpretado na sua doutrina - e, por conseguin­
te, consistente com a tolerância da sua contraditória.
A Opinião, por ser como a descrevi, é um assentimento nocio­
nal, pois o predicado da proposição em que ela é exercida é a pala­
vra abstracta «provável».

- 4 . P r e s u n ção
Por presunção entendo um assentimento a primeiros princí­
pios; e por primeiros princípios entendo as proposições com que
começamos a raciocinar sobre qualquer assunto dado. São, por
conseguinte, muito numerosos; variam em grande medida com as
pessoas que raciocinam, segundo o seu j uízo e o seu poder de
assentimento; são acatados por algumas mentes, e não por outras,
e ap enas uns quantos são universalmente aceites. Todos eles são

Uma G r a m á c i c a d o A s s e n t i m e n t o • 87
noções, não imagens, porque expressam o que é abstracto, não o
que é individual e derivado da experiência directa.

1. Por vezes, a nossa confiança nos nossos poderes de raciocínio e

de memória, isto é, o nosso assentimento implícito à sua enuncia­


ção verdadeira, é olhada como um primeiro princípio; mas, em
rigor, não podemos dizer que temos qualquer confiança neles
enquanto faculdades. Quando muito, confiamos nos actos particu­
lares de memória e de raciocínio. Estamos certos de que houve um
ontem, de que nele fizemos isto ou aquilo; estamos certos de que
três vezes seis são dezoito e de que a diagonal de um quadrado é
mais longa do que um lado. Podemos, até agora, dizer que confia­
mos no acto mental, pelo qual o objecto do nosso assentimento é
verificado; mas, ao fazê-lo, não expressamos nenhum reconheci­
mento de um poder ou faculdade geral, ou de qualquer capacidade
ou afecção das nossas mentes, sobre e acima do acto particular.
Sabemos, sem dúvida, que temos uma faculdade pela qual recorda­
mos, tal como sabemos que temos uma faculdade pela qual respi­
ramos; mas adquirimos este conhecimento por abstracção ou
inferência a partir dos seus actos particulares, não por experiência
directa. Nem confiamos na faculdade da memória ou do raciocínio
enquanto tal, mesmo após termos inferido a sua existência; pois os
seus actos são, muitas vezes, inexactos, nem a eles damos invaria­
velmente o assentimento.
Todavia, se devo expressar o meu pensamento, tenho ainda ou­
tra razão para a relutância em falar da nossa confiança na memória
ou no raciocínio, excepto, sem dúvida, por meio de uma figura de
discurso. Afigura-se-me afilosófico falar da confiança em nós mes­
mos. Somos o que somos, e usamos as nossas faculdades, não con-

88 • J o h n H e n ry N e w m a n
fiamos nelas. Disputar acerca da confiança num caso como este
assemelha-se à confusão contida no desejo de eu ter tido uma esco­
lha sobre se haveria, ou não, de ser criado, ou na especulação sobre
a minha aparência provável, se tivesse nascido de outros pais. Pro­
ximus sum egomet mihz1 . A nossa consciência de si é anterior a
todas as questões de confiança ou de assentimento. Agimos de har­
monia com a nossa natureza, por meio de nós próprios, quando
recordamos ou raciocinamos. Somos tão pouco capazes de aceitar
ou rejeitar a nossa constituição mental quanto o nosso ser. Não
temos opção; podemos apenas perverter ou arruinar as suas fun­
ções. Não nos confrontamos ou pactuam�s connosco mesmos; por
conseguinte, não posso chamar à fiabilidade das faculdades da
memória e do raciocínio um dos nossos primeiros princípios.

2. Em seguida, na proposição de que há coisas que têm uma exis­


tência externa a nós próprios vejo um primeiro princípio, e decer­
to de universal aceitação. Radica num instinto; designo-o assim,
porque a criação bruta o possui. Este instinto está orientado para
fenómenos individuais, um a um, e nada tem do carácter de uma
generalização; visto que existe nas bestas, o dom da razão não é
uma condição da sua existência, e pode justamente considerar-se
também como um instinto no homem. A mente humana faz o que
os animais não conseguem fazer, por exemplo, extrair das nossas
experiências recorrentes do seu testemunho em coisas particulares
uma proposição geral e, porque este instinto, ou intuição, actua
sempre que os fenómenos dos sentidos se apresentam a si mesmos,
estabelecer em termos amplos, mediante um processo indutivo, o

1 «Sou muito chegado a mim mesmo».

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 89
grande aforismo de que existe um mundo externo, e que todos os
fenómenos dos sentidos dele derivam. Esta proposição geral, a que
incessantemente anuímos, vai (extensive, embora não intensive)
muito além da nossa experiência, por ilimitável que esta posa ser, e
representa uma noção.

3 . Falei, e penso que correctamente, de instinto como de uma força


que, de modo espontâneo, nos impele não só a movimentos cor­
porais, mas também a actos mentais. É o instinto que induz o
princípio quase inteligente (seja ele o que for) nos animais a perce­
ber nos fenómenos dos sentidos algo distinto de e além desses
fenómenos. É o instinto que impele a criança a reconhecer nos
sorrisos ou nas expressões de um semblante, que se oferece aos seus
olhos, não só um ser externo a si, mas alguém cujos olhares susci­
tam nela confiança ou receio. E assim como interpreta instintiva­
mente estes fenómenos físicos enquanto indícios de coisas para
além delas próprias, assim também das sensações concomitantes de
certas classes dos seus pensamentos e acções extrai uma percepção
de um ser externo, que lê a sua mente, a quem ela reponde, que
elogia e censura, que promete e ameaça. Visto que estou apenas a
ilustrar uma concepção geral por meio de exemplos, terei aqui por
garantida esta analogia. Se, pois, obtemos o nosso conhecimento
inicial do universo através dos sentidos, então, no primeiro passo,
começamos também a saber algo acerca do seu Senhor e de Deus a
partir da consciência; e assim como a partir dos actos particulares
deste instinto - que faz de experiências, de meras imagens (como,
ao fim e ao cabo, são) na retina, os meios da nossa percepção de
algo real para lá delas - vamos tirando a conclusão geral de que
existe um vasto mundo externo, assim dos exemplos recorrentes

9O • J o h n H e n ry N e w m a n
em que a consciência actua, impondo-nos oportunamente o man­
damento de um Superior, nos advém uma prova muito viva da
existência de um Soberano Senhor, do qual dimanam esses ditames
particulares que experimentamos; pelo que, com limitações que
aqui se não podem fazer sem me afastar do tema principal, pode­
mos, graças à indução a partir de experiências particulares da cons­
ciência, ter uma garantia igualmente boa para inferir a Presença
Ubíqua de um Mestre supremo, como a temos, a partir da expe­
riência paralela dos sentidos, para dar assentimento ao facto de um
multiforme e vasto mundo, material e mental.
Contudo, este assentimento é nocional, pois generalizamos
uma forma consistente, metódica, de Unidade e Personalidade
divinas com os Seus atributos, a partir de experiências particulares
do instinto religioso que, só intensive e não extensive, na imagina­
ção e não intelectualmente, são intimações da sua Presença; embo­
ra, ao mesmo tempo, este assentimento se possa, de facto, tornar
real, como acontece com o assentimento dado ao mundo externo,
por exemplo. quando aplicamos o nosso conhecimento geral a um
exemplo, particular deste conhecimento, tal como, de acordo com
uma primeira observação, o geral varium et muta bile se realizou em
Dido. E, ao abordar assim a origem destas grandes noções, não
esqueço a ajuda que, desde os nossos primeiros anos, recebemos
dos nossos professores, nem nego a influência de certas formas ori­
ginais de pensamento ou ideias formativas, conaturais às nossas
mentes, sem as quais de nenhum modo poderíamos raciocinar.
Contemplo apenas a mente tal como ela realmente se move, graças
a qualquer mecanismo oculto; da mesma maneira que o motor de
uma locomotiva se não poderia mover sem vapor, mas, apesar de
tu do, por acção seja de que forças for, ela parte de Birmingham e
ch ega a Londres.

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 91
4. E assim também, no tocante aos primeiros princípios expressos
em proposições como «Existe o bem e o mal», «a verdade e a falsi­
dade», «a justiça e a injustiça», «a beleza e a fealdade»; são abstrac­
ções a que damos um assentimento nocional, em virtude das
nossas experiências particulares de qualidades no concreto, às quais
prestamos um assentimento real. Assim como formamos a nossa
noção de brancura a partir da vista efectiva da neve, do leite, de
um lírio ou de uma nuvem, assim também, após experimentarmos
o sentimento de aprovação que surge em nós à vista de certos actos
singulares, vamos atribuindo a este sentimento uma causa e àque­
les actos uma qualidade, e damos a essa causa ou qualidade nocio­
nal o nome de virtude, que é uma abstracção, e não uma coisa. De
igual modo, quando somos afectados por um certo prazer específi­
co de admiração à vista deste ou daquele objecto concreto, ousa­
mos, por um acto arbitrário da mente, dar um nome à causa ou
qualidade hipotética no abstracto, que a suscita. Referimo-nos a
ela como beleza e, doravante, ao chamarmos bela a uma coisa, sig­
nificamos pela palavra uma certa qualidade das coisas, que cria em
nós essa sensação peculiar.
Os chamados primeiros princípios, insisto, são realmente con­
clusões ou abstracções a partir de experiências particulares; e um
assentimento à sua existência não é um assentimento a coisas ou às
suas imagens, mas a noções, já que o assentimento real se restringe
às proposições que corporificam directamente essas experiências.
Tais noções são, de facto, uma prova da realidade dos sentimentos
especiais em exemplos particulares, sem os quais elas se não teriam
formado; mas, em si mesmas, são abstracções a partir de factos,
não verdades elementares prévias ao raciocínio.
Não me passa pela cabeça, claro está, negar a existência objec­
tiva da Lei moral, nem o nosso reconhecimento instintivo da dife-

92 • J o h n H e n ry N e w m a n
rença imutável na qualidade moral dos actos, como suscitado em
nós por um exemplo deles. Até um acto de crueldade, de ingrati­
dão, de generosidade ou de justiça nos revela, de repente, intensive
a distinção imutável entre aquelas qualidades e os seus contrários;
isto é, naquele exemplo particular e pro hac vice. A partir de seme­
lhante experiência - uma experiência sempre recorrente - avan­
çamos para a abstracção e a generalização; e, assim, a proposição
abstracta «Existe o bem e o mal», enquanto representa um acto de
inferência, é acatada pela mente com um assentimento nocional,
não real. Todavia, assim como, regularmente, obedecemos aos
ditames particulares, que são indícios seus, assim também somos
cada vez mais elevados a divisá-la na conexão desses particulares,
que são reais, e virtualmente a mudar a nossa noção dela para a
imagem do facto objectivo que, em cada caso particular, ela inega­
velmente é.

5. Outra das presunções é a crença na causação. Suscita em mim


uma perplexidade o facto de que autores sérios enunciem, aparen­
temente, como uma verdade intuitiva, que todas as coisas devem
ter uma causa. Se assim fosse, a voz da natureza soaria a falso; pois,
neste caso, porque deter-se de repente num que é em Si sem causa?
O assentimento que prestamos à proposição, enquanto primeiro
princípio, de que nada acontece sem uma causa é derivado, no pri­
meiro exemplo, daquilo que de nós mesmos conhecemos; e do que
dentro de nós existe argumentamos analogicamente para aquilo
que nos é exterior. Uma das primeiras experiências que a criança
tem é a do seu querer e fazer; e, com o passar do tempo, uma das
primeiras tentações do jovem é precatar-se em si do facto do seu
soberano poder arbitrário, embora à custa da teimosia, da traquini-

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 93
ce e da desobediência. E quando os séus pais, como adversários da
sua obstinação, começam a refreá-lo, a modelar a sua mente e o
seu comportamento, então ele tem uma segunda série de experiên­
cias de causa e efeito, e tal de acordo com um princípio ou regra. A
noção de causação é, pois, uma das primeiras lições que ele apren­
de da experiência, da experiência que a restringe a agentes dotados
de inteligência e de vontade. É a noção de poder associado a um
propósito e a um fim. Os fenómenos físicos, enquanto tais, são
desprovidos de sentido; a experiência nada nos ensina acerca dos
fenómenos físicos enquanto causas. Por conseguinte, sempre que o
mundo é jovem, os movimentos e as mudanças da natureza física
foram e são espontaneamente atribuídos pelos seus habitantes à
presença e à vontade de agentes ocultos, que assediam cada parte
sua, os bosques, as montanhas e as correntes, o ar e as estrelas, para
o bem ou para o mal; - tal como as crianças, ao baterem no chão
após terem caído, sugerem que aquilo que as feriu tem inteligên­
cia; - nada de ilógico existe em semelhante crença. Assenta no
argumento a partir da analogia.
Com o passar do tempo, com a formação da sociedade e com o
domínio da ideia de ciência, um diferente aspecto do universo físico
se apresenta à mente. Visto que a causação implica uma sequência
de actos no nosso próprio caso, e o nosso fazer é sempre ulterior,
jamais contemporâneo ou anterior, ao nosso querer, por conseguin­
te, quando atestamos antecedentes e consequentes invariáveis, cha­
mamos aos primeiros a causa dos últimos, embora a inteligência
esteja ausente, a partir da analogia das aparências externas. Conti­
nuamos, porém, a confundir a causação com a ordem; e porque
eventualmente conseguimos fazer uma análise bem sucedida de
algum conj unto complexo de fenómenos, que a experiência pôs
diante de nós no cenário visível das coisas, e os reduzimos a uma

94 • J o h n Henry Newman
tolerável dependência recíproca, denominamos os últimos elementos
desta análise e os factos hipotéticos, em que a massa inteira dos fenó­
menos está congregada, com o nome de causas, embora elas sejam,
na realidade, apenas a fórmula sob a qual esses fenómenos são
comodamente representados. Assim, a fórmula constitucional «Ü rei
não pode cometer a injustiça» não é um facto, ou uma causa da
Constituição, mas um modo feliz de expor o seu génio, de determi­
nar as correlações dos seus elementos, de agrupar ou ajustar as regras
e os comportamentos políticos numa direcção particular e numa
forma particular. E, de modo semelhante, que todas as partículas da
matéria em todo o universo sejam entre si atraídas com uma força
que varia inversamente com o quadrado das suas respectivas distân­
cias, é uma ideia profunda, que harmoniza as obras físicas do Cria­
dor; mas, ainda que fosse possível provar ser um facto universal, e
portanto a causa efectiva dos movimentos de todos os corpos no
universo, não seria todavia uma experiência, como também não o é
a doutrina mitológica da presença de inumeráveis espíritos nesses
mesmos fenómenos físicos.
Dos dois sentidos da palavra «causa», a saber, aquilo que faz
uma coisa ser, e aquilo a que uma coisa, sob certas circunstâncias,
se segue, o primeiro é aquele em que incide a nossa experiência
mais antiga e mais íntima, porque nos é sugerido pela nossa cons­
ciência do querer e do fazer. O último dos dois exige uma discri­
minação e exactidão de pensamento para a sua apreensão, o que
implica um treino mental específico; ademais, como é que apren­
demos a chamar ao alimento a causa da restauração das forças, mas
nunca dizemos que o dia é a causa da noite, embora a noite suceda
ao dia com maior certeza do que a restauração das forças se segue
ao alimento? A partir da experiência, suponho, pois, que uma cau­
sa é uma vontade efectiva; e, pela doutrina da causação, refiro a

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 95
noção, ou o primeiro princípio, de que todas as coisas brotam da
vontade efectiva; e a recepção ou presunção desta noção é um
assentimento nocional.

6. Quanto à causação no segundo sentido (a saber, a sucessão habi­


tual de antecedentes e consequentes, ou o que se chama a Ordem
da Natureza) , quando assim explicada, integra-se na doutrina das
leis gerais; e parto desta para mencionar, como outro primeiro
princípio ou noção, por nós derivado da experiência, e aceite com
aquilo a que chamei uma presunção. Por lei natural entendo o fac­
to de as coisas acontecerem uniformemente segundo certas cir­
cunstâncias, e não sem elas e ao acaso: isto é, ocorrem numa
ordem; e, como todas as coisas no universo são unidades e indivi­
duais, a ordem implica uma certa repetição, quer das coisas ou
como coisas, quer das suas afecções e relações. Temos assim a expe­
riência, por exemplo, da regularidade das nossas funções físicas,
tais como o bater do pulso e o arfar da respiração; das sensações
recorrentes da fome e da sede; da alternância do acordar e do ador­
mecer, da sucessão da juventude e da velhice. Temos, de igual
modo, a experiência dos grandes fenómenos recorrentes dos céus e
da terra, do dia e da noite, do verão e do inverno. Temos, pois, a
experiência de uma análoga sucessão uniforme no exemplo do
fogo que queima, da água que sufoca, das pedras que caem para
baixo e não para cima, do ferro que se desloca em direcção ao
íman, da fricção seguida por faíscas e estalidos, de um remo que
parece torcido na corrente, do vapor comprimido que rebenta o
seu recipiente. Portanto, por meio de uma análise científica, somos
levados à conclusão de que fenómenos, entre si aparentemente
muito diversos, admitem ser agrupados como modos da operação

96 • John Henry Newman


de uma lei hipotética, actuando sobre múltiplas circunstâncias. Por
exemplo, o movimento de uma pedra em queda livre, de um pro­
jéctil e de um planeta pode generalizar-se como uma única e mes­
ma propriedade, em cada um deles, das partículas da matéria; e
esta generalização perde o seu carácter de hipótese, torna-se uma
probabilidade, e temos assim razão para pensar, por outros moti­
vos, que as partículas de toda a matéria se atraem entre si de uma
certa maneira em relação ao espaço e ao tempo, e não de uns
quantos modos; a saber, que a natureza actua segundo leis unifor­
mes. E, assim, passamos à noção geral, ou ao primeiro princípio,
da soberania da lei em todo o universo.
Há filósofos que vão ainda mais longe; ensinam não só uma
uniformidade geral, mas também invariável, inviolável e necessária
na acção das leis da natureza, afirmando que cada coisa é o resulta­
do de alguma lei ou leis, e que as excepções são impossíveis; mas
não vejo sobre que base da experiência ou da razão podem tomar
esta posição. A nossa experiência é antes contrária a semelhante
doutrina, pois, que facto ou fenómeno concreto se repete exacta­
mente a si mesmo? Dele é necessária alguma concepção abstracta,
mais perfeita do que o próprio fenómeno recorrente, antes de
podermos dizer que ele teve lugar inclusive duas vezes, e as varia­
ções que acompanham a repetição têm a natureza de excepções. A
terra, por exemplo, nunca se move exactamente na mesma órbita,
ano após ano, mas está em perpétua oscilação. Responder-se-á,
sem dúvida, que isso é resultado da interacção de uma lei com
outra, e a sua órbita concreta é apenas o resultado acidental de a
terra estar sob a influência de uma variedade de atracções dos cor­
pos cósmicos, e que, se está sujeita a contínuas aberrações no seu
curso, estas são explicadas com exactidão ou de modo suficiente
pela presença dessas extraordinárias e variáveis atracções: - por

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 97
conseguinte, a ciência, mediante os seus processos analíticos, corrige
a confusão prima focie aparente. Sem dúvida; não depreendamos,
todavia, em virtude das nossas palavras, que estamos a apelar para a
experiência, quando, na realidade, estamos só a elucidar, e isto
mediante uma hipótese, a ausência de experiência. A confusão é um
facto, os processos de raciocínio não são factos. As atracções extraor­
dinárias, aduzidas para justificar a nossa experiência desta confusão,
não são em si factos fenoménicos experimentados, mas hipóteses
mais ou menos prováveis, comprovadas mediante uma suposta ana­
logia entre os corpos cósmicos a que essas atracções se referem e os
corpos em queda na terra. Digo �<suposta», porque esta analogia (por
outras palavras, a uniformidade infalível da natureza) é o ponto pre­
ciso que importa demonstrar. É verdade que podemos experimentar
a lei da atracção no caso dos corpos sobre a terra; mas, repito, supor,
a partir da analogia, que, assim como as pedras se dirigem para a ter­
ra, assim também Júpiter, se estivesse isolado, cairia sobre a terra e a
terra sobre Júpiter, e com certas peculiaridades de velocidade em
ambos os lados, é recorrer a uma explicação que não é necessaria­
mente válida, a não ser que a natureza seja necessariamente unifor­
me. De facto, não se demonstrou ainda, nem sequer se deve supor
que a lei da velocidade da queda dos corpos sobre a terra é invariável
na sua operação; pois também isto é apenas um exemplo da proposi­
ção geral, que constitui a tese em discussão. Aparentemente, é mais
seguro afirmar então que a ordem da natureza não é necessária, mas
geral nas suas manifestações.
Mas, insistir-se-á, se uma coisa acontece uma vez, deve aconte­
cer sempre; de facto, o que é que a impedirá? Pelo contrário, porque
é que as partículas de matéria, lá por uma delas ter uma certa pro­
priedade, hão-de todas ter a mesma? Lá por as partículas terem mil
vezes exemplificado a propriedade, porque é que a deveriam ilustrar

98 • J o h n Henry Newman
também uma milésima primeira vez? É inexplicável prima facie que
um acidente deva ocorrer duas vezes, para não falar da sua ocorrên­
cia permanente. Se esperamos que uma coisa aconteça duas vezes, é
porque pensamos que ela não é um acidente, mas tem uma causa. O
que uma vez produziu uma coisa pode produzi-la duas vezes. Que
impedirá a sua ocorrência? em vez de: Que a faz acontecer? Aqui, da
questão da Ordem somos remetidos para a da Causação. Uma lei
não é uma causa, mas um facto; ao abordarmos a questão da causa,
como afirmei, não temos experiência de causa alguma excepto da
vontade. Se, pois, tenho de responder à pergunta, Que é que alterará
a ordem da natureza? Replico, Aquele que assim quis; Aquele que
assim quis pode também não querer; e a invariabilidade da lei
depende da imutabilidade desta Vontade.
E aqui sou levado a observar o seguinte: assim como uma causa
implica uma vontade, assim a ordem implica um propósito. Se, por
toda a Europa, vimos machados de sílex, nos seus vários receptácu­
los, sempre talhados com certos sinais especiais e característicos,
embora esses sinais não tivessem qualquer significado assinalável ou
qualquer causa final, deveríamos então admitir que j ustamente essa
repetição, a qual é, de facto, o princípio da ordem, constitui uma
prova de inteligência. Por conseguinte, o agente que manteve, e
mantém, as leis gerais da natureza, actuando energicamente, ao
mesmo tempo, em Sírio e na terra, e na terra tanto no seu período
originário como no século XIX, deve ser uma Mente, e nada mais,
e uma Mente, pelo menos, tão vasta e estável na sua acção viva
como as idades e os espaços incomensuráveis do universo, em que
tal agente deixou os seus vestígios.
Nestas observações, afastei-me do meu tema imediato, mas
têm alguma relação com pontos que, subsequentemente, virão à
discussão.

Uma G r a m ácica do Assen t i m e n t o • 99


5 . E s p e c u l ação
Especulação é uma das palavras que, no vernáculo, têm um sen­
tido muito diferente daquele que comportam na filosofia. Supõe-se
comummente que ela significa uma conjectura ou um aventurar-se à
sorte; mas o seu significado genuíno é visão mental, ou a contempla­
ção das operações mentais e dos seus resultados enquanto opostos à
experiência, ao experimento ou aos sentidos, análogo ao seu signifi­
cado no verso de Shakespeare, «Não tens especulação alguma nesses
olhos». É nesse sentido que aqui a uso.
E emprego-a nessa acepção para denotar os assentimentos
nacionais, que são os mais directos, explícitos e perfeitos da sua
espécie, a saber, os que constituem a aceitação firme, consciente, de
proposições enquanto verdadeiras. Este tipo de assentimento inclui
o assentimento a todo o raciocínio e às suas conclusões, a todas as
proposições gerais, a todas as regras de conduta, a todos os provér­
bios, aforismos, sentenças e reflexões sobre os homens e a sociedade.
Naturalmente, também as investigações e verdades matemáticas são
conteúdos deste assentimento especulativo; e ainda os juízos legais,
as máximas constitucionais, na medida em que incitam ao assenti­
mento. São-no igualmente as determinações da ciência; ademais, os
princípios, as disputas e as doutrinas da teologia. Que Deus existe,
que Ele tem certos atributos e em que sentido se pode dizer que tem
atributos, que fez certas obras, que realizou certas revelações de Si
mesmo e da Sua vontade; o que elas são e as múltiplas relações recí­
procas das partes da doutrina, assim desenvolvidas e formadas -
tudo isto é o conteúdo do assentimento nocional e do seu departa­
mento particular, a que chamei Especulação. Na medida em que
estes tópicos particulares se podem divisar no concreto e representam
experiências, são também susceptíveis de ser acatados por assenti­
mento real; mas, enquanto expressos em proposições gerais, perten­
cem à apreensão e ao assentimento nacionais.

l 00 • J o h n H e n ry N e w m a n
2. As s e n t i m e n to s reais

Antecipei, em certa medida, a substância do Assentimento Real,


mediante aquilo que disse acerca do Nocional. Em comparação
com o carácter directo e a força da apreensão que temos de um
objecto, quando o nosso assentimento se deve denominar real, o
Assentimento Nocional e a Inferência são, aparentemente, remeti­
dos para uma única e mesma classe de actos intelectuais, embora o
primeiro dos dois seja sempre uma aceitação incondicional de uma
proposição, e a segunda uma aceitação sob a condição da aceitação
das suas premissas. Nos seus assentimentos nocionais e nas suas
inferências, a mente contempla as suas próprias criações em vez
das coisas; nos reais, está voltada para as coisas, representadas pelas
impressões que elas deixaram na imaginação. Estas imagens, quan­
do a elas se anuiu, têm uma influência sobre o indivíduo e a socie­
dade, que as meras noções não conseguem exercer.
Já aduzi ilustrações diversas do Assentimento Real; prossegui­
-las-ei, aqui, com alguns exemplos da transformação do assenti­
mento Nocional em Real.

I. Por exemplo: os jovens, na escola, são entre si parecidos e prosse­


guem os mesmos estudos, alguns com maior êxito do que outros;
mas, às vezes, acontecerá que os que nos estudos tiveram apenas
um resultado medíocre, ao mergulharem na acção da vida e ao
empreenderem algum trabalho particular, por eles já aprendido na
teo ria e com pouca promessa de aproveitamento, revelam, de
repente, ter, segundo se diz, olho para o ramo - olho para ques­
tões co merciais, para a engenharia, para um gosto especial pela
lite ratura - que ninguém deles esperava na escola, enquanto se

U rn a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 101
ocupavam de noções. Mentes deste timbre não só conhecem as
regras acatadas na sua profissão, mas mergulham nelas, e até as ante­
cipam, dispensam ou substituem por outras. E quando novas ques­
tões surgem, ou uma longa série de argumentos se esgrime de um ou
de outro lado, eles, com uma natural facilidade e com desembaraço,
formam as suas perspectivas, tomam a sua decisão, como se não
tivessem necessidade de raciocinar a partir da sua dara apreensão da
situação e da consequência de todo o assunto em discussão, como se
ela estivesse, diante deles, traçada num mapa. São estes os reforma­
dores, sistematizadores e inventores nos diversos departamentos do
pensamento, especulativo e prático; na educação, na administração,
nos assuntos sociais e políticos, na ciência. Tais homens estão, sem
dúvida, longe de ser infalíveis; por grandes que sejam os seus pode­
res, caem, por vezes, em grandes erros, no seu próprio departamento
específico, enquanto os homens de segunda categoria, que seguem a
regra, chegam a conclusões acertadas e seguras. As imagens não pre­
cisam de ser verdadeiras; mas estou a ilustrar o que é a viveza da
apreensão, a força da crença a ela consequente.

2. Além disso: Há cerca de vinte anos, o Duque de Wellington


escreveu a sua famosa carta sobre o tema da defesa nacional. A sua
autoridade proporcionou-lhe uma imediata circulação em todas as
classes da comunidade; nenhuma pôs em causa o que ele disse, não
só como se confiasse nas suas palavras, mas também como se inte­
lectualmente reconhecesse a sua verdade; todavia, não se pode
dizer que foram muitos os que viram ou sentiram essa verdade. A
sua carta assentava, por assim dizer, no puro intelecto da mente
nacional e, durante algum tempo, nada dela resultou. Mas, onze
anos depois, a seguir à sua morte, a irritação dos coronéis franceses

102 • John Henry Newman


connosco, após o atentado à vida de Luís Napoleão, transferiu os
seus factos para a responsabilidade da imaginação. Então, o assen­
timento nacional converteu-se imediatamente, de vários modos,
num princípio operativo, sobretudo na sua promoção do movi­
mento voluntário. O Duque, por ter um olho especial para assun­
tos militares, vira logo, desde início, o estado de coisas; mas foram
necessários alguns anos para imprimir na mente pública um assen­
timento à sua advertência, mais profundo e mais enérgico do que a
recepção que é habitual dar a um artigo inteligente, num jornal ou
numa revista.

3. Por isso, as grandes verdades, práticas ou éticas, flutuam em geral


à superfície da sociedade, admitidas por todos, valorizadas por uns
quantos, exemplificando o adágio do poeta probitas laudatur el -

algetl -até que as circunstâncias alteradas, um acidente ou a con­


tínua pressão dos seus defensores, obrigam a tê-las em atenção. A
iniquidade, por exemplo, do tráfico de escravos terá sido, desde o
começo, reconhecida por todos os homens; foi reconhecida por mui­
tos, mas foi necessária uma agitação organizada, com inumeráveis
panfletos e discursos, de modo a afectar a inteligência dos homens e a
tornar eficaz o reconhecimento desta iniquidade.
De igual modo, quando o senhor Wilberforce, após o seu êxito
na questão da escravatura, instou com o Duque de Wellington para
que usasse a sua grande influência na condenação do duelo, pôde
ap enas obter dele a resposta, «Uma relíquia da barbárie, senhor Wil­
berforce»; como se ele aceitasse uma noção, sem se dar conta de um
facto: por fim, a crescente inteligência da comunidade e o choque

1 «Louva-se a probidade e gela-se».

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n c o • 103
por ela sofrido em virtude das trágic:is circunstâncias de um duelo
particular, foram fatais a tal barbárie. As classes governantes desper­
taram da sua aquiescência onírica a uma verdade abstracta e reco­
nheceram o dever de lhe dar uma expressão prática.

4. Consideremos também quão diversamente os jovens e os velhos


são afectados pelas palavras de algum autor clássico, como Homero
ou Horácio. Passagens, que para um rapaz são apenas lugares
comuns retóricos, nem melhores nem piores do que centenas de
outras que qualquer escritor inteligente poderia facultar, que ele
aprende de cor e considera muito boas e, segundo pensa, imita com
êxito, na sua fluente versificação, convencem-no, por fim, passados
já longos anos e adquirida a experiência de vida, e penetram-no,
como se antes jamais as tivesse conhecido, com a sua melancólica
seriedade e viva exactidão. Consegue, então, compreender como é
que essas linhas, o despontar de alguma amanhã ou tarde eventual
num festival jónico, ou nas colinas Sabinas, persistiram geração após
geração, durante milhares de anos, com um poder sobre a mente, e
um encanto, com que a literatura corrente da sua própria época,
com todas as suas vantagens óbvias, é de todo incapaz de rivalizar.
Talvez seja esta a razão da opinião medieval acerca de Virgílio, como
se ele fora um profeta ou um mago; as suas palavras e frases singula­
res, os seus meios versos patéticos, que expressam, qual voz da pró­
pria natureza, a dor e o cansaço, e também a esperança das coisas,
que é a experiência dos seus filhos em todas as épocas.

5. E a função que a experiência do mundo desempenha para a ilus­


tração dos autores clássicos leva-a a cabo o sentido religioso, cuida-

104 • John Henry Newman


dosamente cultivado, em relação à Sagrada Escritura. Para o
homem devoto e espiritual, a Palavra Divina fala de coisas, não só
de noções. E, mais uma vez, o desamparado, o tentado, o perplexo
e o sofredor experimentam, graças às suas provações, um alarga­
mento do pensamento que os capacita para nela ver o que antes
nunca vislumbraram. Doravante, abre-se-lhes uma realidade nos
seus ensinamentos, que eles reconhecem como um argumento, e o
melhor dos argumentos, pela sua origem divina. Daí, a prática da
meditação em torno do Texto Sagrado, tão altamente apreciada
pelos católicos. Ao lermos os Evangelhos, como é prática nossa,
desde a juventude, corremos o perigo de com eles nos tornarmos
tão familiares que morremos para a sua força e os vemos como
uma simples história. O propósito, porém, da meditação é levá-los
à realização; fazer que os factos que eles relatam se ponham diante
das nossas mentes como objectos, de modo que possam ser apro­
priados por uma fé tão viva como a imaginação que os apreendeu.
É óbvia a referência ao indigno uso que das partes mais sole­
nes do livro sagrado faz o simples pregador popular. O seu típico
modo de leitura, quer se trate de advertências ou de orações, é
como se ele as concebesse como pouco mais do que uma escrita
elegante, poética no sentido, musical no som e digna de inspira­
ção. As mais grandiosas verdades são para ele apenas concepções
sublimes ou belas, e são por ele mencionadas e usadas, de um
modo oportuno ou inoportuno, em vista dos seus próprios propó­
sitos, para embelezar o seu estilo ou arredondar os seus períodos.
Mas que o seu coração seja, por fim, rasgado por alguma dor agu­
da ou profunda ansiedade, e a Escritura será para ele um livro
novo. Eis a mudança que, tantas vezes, ocorre naquilo a que se dá
o no me de conversão religiosa; é uma mudança simplesmente para
o melh or, seja qual for a enfermidade ou o erro que, no caso parti-

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 105


cular, a acompanha. E é-nos sugerida, de modo impressionante,
para aduzirmos um exemplo sagrado, na confissão do patriarca Jó,
quando este contrasta a sua apreensão do Omnipotente, antes e
após as suas provações. Diz ele que teve, antes e depois, uma verda­
deira apreensão dos Atributos Divinos; mas, com a provação, deu-se
uma grande mudança no carácter desta apreensão: «Conhecia-te só
de ouvido», afirma, «mas agora viram-te meus olhos; por isso, retrac­
to-me e faço penitência no pó e na cinza».

Sejam suficientes estes exemplos do Assentimento real na sua rela.:.


ção com o nocional; lev.am-me a fazer três observações numa ulte­
rior ilustração do seu carácter.

1. O facto da viveza das imagens, que são exigidas para o assenti­


mento real, não é uma garantia da existência dos objectos que tais
imagens representam. Uma proposição, ainda que seja profunda­
mente apreendida, pode ser verdadeira ou falsa. Se apenas pomos
de lado toda a informação inferencial, tal como é derivada do teste­
munho, da crença geral, do concurso dos sentidos, do senso comum
ou de outro modo, não temos o direito de pensar que apreendemos
uma verdade, em virtude somente da força da impressão mental que
dela temos. Daí, o provérbio, Fronti nulla fidesl . Uma imagem, com
as características de perfeita veracidade e fidelidade, pode porven­
tura ser um objecto muito distinto e eloquente perante a mente
(ou, como por vezes é designado, um objectum internum, ou um
«sujeito-objecto»); mas, no entanto, pode dar-se o caso de não haver
uma realidade externa que lhe corresponda, pese ao seu carácter

I «Nenhuma confiança na face».

106 • J o h n H e n ry N e w m a n
impressivo. Um dos exemplos mais notáveis desta impressão fala­
ciosa é a ilusão que se apossa das mentes de homens capazes,
sobretudo dos que estão exercitados em investigações físicas, em
prol da inviolabilidade das leis da natureza. Filósofos da escola de
Hume rejeitam a simples suposição de milagres e, com desdém,
recusam-se a ouvir provas a seu favor em dados exemplos, a partir
da sua íntima experiência da ordem física e da conexão sempre
recorrente do antecedente e do consequente. A sua imaginação
usurpa as funções da razão; e não conseguem sequer acolher como
hipótese (e é tudo o que se lhes pede para fazer) um pensamento
contrário à impressão viva de que eles são vítimas, que a uniformi­
dade da natureza, por eles testemunhada hora a hora, é equivalente
a uma lei necessária, inviolável.
No entanto, é evidente, e tê-lo-ei aqui por garantido, que quan­
do dou o assentimento a uma proposição, devo ter mais alguma
legítima razão para o fazer do que o simples brilho da imagem, que
esta proposição expressa. Que eu tenha a experiência do acontecer
de uma coisa só de um modo é uma causa da intensidade do meu
assentimento, se eu anuir, mas não uma razão para o meu assentir.
Ao dizer isto, não me inclino a negar a presença em certos homens
de uma sagacidade idiossincrática, que real e correctamente enxer­
ga razões em impressões que os seres humanos comuns não vêem,
e está protegida do perigo de confundir a verdade com a credulida­
de; mas trata-se de um génio, e para lá de toda a regra. Concedo
também, claro está, que acidentalmente o carácter impressivo
numa questão de facto, como no exemplo por mim aduzido, cons­
titui o motivo principal da crença; pois a mente está sempre exposta
ao p erigo de ser desencaminhada pela viveza das suas concepções,
com o sacrifício do bom-senso e da cautela conscienciosa, e quanto
maio res e mais raros são os seus dons tanto maior é o risco de se

Uma G r a m á c i c a d o Asse n t i m e n t o • 107


desviar da linha da razão e do dever ; mas, aqui, não me refiro a
transgressões da regra ou a excepções à mesma, mas à constituição
normal das nossas mentes, ao efeito natural e correcto em nós dos
actos da imaginação, e tal não é suscitar o assentimento, mas
intensificá-lo.

2. Em seguida, o Assentimento, ainda que forte e consonante com


imagens também vivas, não é, pois, necessariamente prático. Em
rigor, não é a imaginação que causa a acção; mas a esperança e o
medo, os gostos e as aversões, o apetite, a paixão, a afecção, os
tumultos do egoísmo e do amor de si. O que a imaginação nos
procura é encontrar um meio de estimular esses poderes motores; e
fá-lo, pondo ao nosso dispor um fornecimento de objectos assaz
fortes para os estimular. O pensamento da honra, da glória, do
dever, da autoglorificação, do lucro ou, por outro lado, da Bonda­
de Divina, da recompensa futura, da vida eterna, na sua insistência
contínua, faz-nos enveredar por um curso da acção que lhe corres­
ponde, mas só no caso de haver nas nossas mentes o que lhe é con­
génito. Todavia, quando esta preparação da mente tem lugar, o
pensamento leva efectivamente ao acto. É, por isso, que o facto de
uma proposição ser aceite com um assentimento real constitui por­
ventura um penhor de que ela será levada a efeito na conduta; e
pode dizer-se, em certo sentido, que a imaginação é de natureza
prática, porquanto induz indirectamente à prática, pela acção do
seu objecto nas afecções.

3. Há uma terceira observação, sugerida pela minha concepção dos


assentimentos reais, a saber, que eles são de carácter pessoal; cada

108 • J o h n H e n ry N e w m a n
indivíduo tem os seus próprios e é por eles conhecido. & coisas
passam-se de modo diferente com as noções; a apreensão nocional
é em si um acto ordinário da nossa natureza comum. Todos temos
o poder de abstracção, podemos ser ensinados ou a fazer ou a
ingressar nas mesmas abstracções e, assim, a cooperar na instaura­
ção de uma medida comum entre mente e mente. E, embora para
cada um, e também para todos nós, prestar assentimento às noções
que apreendemos em comum seja um passo ulterior, porquanto
exige a adopção de um comum ponto de partida de princípio e de
juízo, contudo, também isto depende, em boa medida, de certos
processos lógicos do pensamento, com os quais todos estamos
familiarizados, e de factos que todos temos por garantidos. Mas
não podemos certificar-nos, a nós ou a outros, da apreensão e do
assentimento reais, porque temos, primeiro, de garantir as imagens
que são os seus objectos, e estes são, muitas vezes, peculiares e
especiais. Dependem da experiência pessoal; e a experiência de um
homem não é a experiência de outro. Por isso, o assentimento real,
tal como a experiência que ele pressupõe, é próprio do indivíduo
e, como tal, enfraquece, em vez de promover, o intercâmbio de
homem com homem. Fecha-se, por assim dizer, em sua casa, ou
pelo menos é a sua própria testemunha e o seu próprio padrão; e,
como nos exemplos acima dados, não se pode contar com ele, ante­
cipar, explicar, porquanto é o acidente deste ou daquele homem.
Às características de um indivíduo chamo acidentes, apesar do
rei no universal da lei, porque são rigorosamente os co-incidentes de
muitas leis e, por enquanto, não há leis descobertas de semelhante
coincidência. Um homem que é atropelado na rua ou morto sofre,
em certo sentido, de acordo com a regra ou a lei; ia a atravessar a via,
era míope ou estava preocupado na sua mente, olhava para o outro
lado; era surdo, coxo ou estava atrapalhado; e a caleche vinha a gran-

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 109
de velocidade. Se tudo assim aconteceu, era forçoso que ele fosse
atropelado; teria sido um milagre, se a tal escapasse. Até aqui, isto é
claro; mas o que não é claro é o modo como todas estas diversas
condições confluem no caso particular, como é que um homem,
míope, de ouvido duro, deficiente na atenção da mente, se encontra­
va por acaso no caminho de uma tipóia apressada para apanhar um
comboio. Este caso concreto não entra em qualquer lei de mortes
súbitas, mas, à semelhança do percurso anual da terra, por mim aci­
ma mencionado, é o acidente do indivíduo.
Não vem a propósito referir a lei das médias, porque tais leis
lidam com percentagens, não com indivíduos, e é de indivíduos
que estou a falar. Que este homem particular, entre os três milhões
apinhados na metrópole, havia de ter a experiência desta catástrofe
e ser a vítima seleccionada para satisfazer a lei das médias, nenhu­
ma tabela estatística o poderia predizer, embora pudesse determi­
nar que era uma fatalidade que, naquela semana ou dia, umas
quatro pessoas na extensão e na amplidão de Londres iriam ser
atropeladas. E, de igual modo, que esta ou aquela pessoa haveria
de ter as experiências particulares necessárias para o assentimento
real acerca de qualquer ponto, que o deísta se deveria converter em
teísta, o erastiano em católico, o proteccionista em livre-comer­
ciante, o conservador em legitimista, o tory extremo em democrata
radical - são factos, cada um dos quais pode ser o resultado de
uma multidão de coincidências num só e mesmo indivíduo, coin­
cidências que não conseguimos determinar; podemos, por conse­
guinte, chamar-lhes acidentes. Pois

Existe uma divindade que modela os nossos fins,


Os desbasta como desejamos.

IIO • J o h n H e n ry N e w m a n
Tais acidentes são as características das pessoas, tal como as
differenti12 e as propriedades são as características das espécies ou
naturezas.
Que um homem morra quando privado de ar não é um aci­
dente da sua pessoa, mas uma lei da sua natureza; que não possa
viver sem quinino ou ópio, ou fora do clima da Madeira, é uma
peculiaridade sua. Se todos os homens, em toda a parte, tivessem
habitualmente a febre-amarela uma vez nas suas vidas, dar-lhe­
-íamos o nome (falando segundo o nosso conhecimento) de uma
lei da constituição humana; se os habitantes de um dado país
comummente a tivessem, designá-la-íamos como uma lei do cli­
ma; se um homem saudável tem febre num lugar saudável, numa
estação salubre, diríamos que é um acidente, embora este se possa
reduzir à coincidência das leis, porque não existe uma lei conheci­
da da sua coincidência. Ser racional, ter linguagem, passar por
sucessivas mudanças da mente e do corpo desde a infância à mor­
te, é próprio da natureza humana; ter uma história particular, ser
casado ou solteiro, ter filhos ou não, viver um certo número de
anos, ter uma certa constituição, um certo temperamento moral,
equipamento intelectual, formação mental - estas e outras coisas
semelhantes, tomadas em conjunto, são os acidentes que consti­
tuem a nossa noção da pessoa de um homem, e são o alicerce ou a
condição das suas experiências particulares.
Além disso, várias das experiências que sucedem a este homem
podem ser as mesmas que ocorrem a outro, embora cada uma delas
resulte da combinação dos seus próprios acidentes e, por último, se
possa enquadrar também na sua própria condição ou história. Isto é,
imagens que são possuídas em comum, com as suas apreensões e
assentimentos, podem todavia ser características pessoais. Se depa­
rarmos com duzentos ou trezentos homens que não podem viver

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • III
fora da Madeira, tal incapacidade seria ainda um acidente e uma
peculiaridade de cada um deles. Mesmo se, em cada caso, isso impli­
casse fraqueza de pulmões, esta fraqueza é ainda uma noção vaga,
que abrange em si uma grande variedade de casos em pormenor. Se
«quinhentos irmãos ao mesmo tempo» contemplaram o Senhor res­
suscitado, esta experiência comum não seria uma lei, mas um aci­
dente pessoal que foi prerrogativa de cada qual. E assim também,
hoje, a fé que tantos milhares têm na Sua Divindade não é nocional,
por ser comum, mas pode ser uma fé real e pessoal, pois é suscitada
em diferentes mentes individuais por diversas experiências e causas
determinantes, diversamente combinadas; como, por exemplo, uma
imaginação ardente ou forte, uma grande sensibilidade, a compun­
ção e o horror pelo pecado, a assistência à missa e a outros ritos da
Igreja, a meditação sobre os conteúdos dos Evangelhos, a familiari­
dade com os hinos e os poemas religiosos, a insistência nas Provas, o
exemplo e a instrução paternais, amigos religiosos, providências
estranhas, uma pregação poderosa. Em cada caso, a imagem ínsita
na mente, com as experiências a partir das quais ela é formada, seria
um resultado pessoal; e, embora a mesma em todos, seria em cada
caso tão idiossincrática nas suas circunstâncias que se aguentaria por
si mesma, como uma formação especial, desconexa de qualquer lei;
embora, ao mesmo tempo, fosse necessariamente um princípio de
simpatia e um vínculo de comunicação entre aqueles cujas mentes
foram assim diversamente talhadas num assentimento comum, mui­
to mais forte do que se proviesse de uma multidão de simples
noções, que eles com unanimidade acatam. E, inclusive, quando este
assentimento não é o resultado de causas concorrentes, se é que tal
caso é possível, mas tem uma origem única, como o estudo da Escri­
tura, o ensino cuidadoso ou um temperamento religioso, a sua pre­
sença demonstra ainda uma história especial e uma formação

112 • J o h n H e n ry N e w m a n
pessoal, que uma abstracção não possui. Pois, uma abstracção pode
ser feita a seu bel-prazer, pode ser obra de um momento; mas as
experiências morais que se perpetuam em imagens devem ser objec­
to de busca para se encontrarem, devem ser encorajadas e cultivadas
a fim de serem pessoalmente assimiladas.

Referi agora tudo o que me ocorre a propósito dos Assentimentos


Reais, talvez não sem algum risco de subtileza e de minúcia. São,
por vezes, chamados crenças, convicções, certezas; e, por serem
dados a objectos morais, são porventura tão raros como poderosos.
Enquanto não estivermos na sua posse, não obstante uma plena
apreensão e assentimento no campo das noções, não temos amar­
ras intelectuais, e estamos à mercê dos impulsos, dos devaneios e
das luzes vagabundas, quer quanto à conduta pessoal quer quanto
à acção social e política ou à religião. Estas crenças, verdadeiras ou
falsas no caso particular, formam a mente que as engendra, confe­
rem-lhe uma seriedade e virilidade que inspira nas outras mentes
uma confiança nas suas concepções; e é este um dos segredos do
carácter persuasivo e da influência no palco público do mundo.
Suscitam, conforme o caso, heróis e santos, grandes dirigentes,
homens de Estado, pregadores e reformadores, os pioneiros da des­
coberta na ciência, os visionários, os fanáticos, os cavaleiros andan­
tes, os demagogos e os aventureiros. Deram ao mundo homens de
uma só ideia, de imensa energia, de uma vontade dura como o dia­
mante, de poder revolucionário. Despertam simpatias entre
homem e homem, aglutinam as inumeráveis unidades que consti­
tuem uma raça e uma nação. Tornam-se no princípio da sua exis­
tê ncia política; conferem-lhe a homogeneidade de pensamento e a
com unhão de fins. Deram forma à teocracia medieval e à supersti-

Uma G r a m á t i ca do Ass e n t i m e n t o • 113


ção maometana; são agora a vida da «Santa Rússia» e da liberdade
de palavra e de acção, que constitui o alarde especial dos Ingleses.

3 . C o n t raste e n tre o s as s e n t i m e n t o s
. . .
n o C i o n a1 s e reais

Do que foi dito torna-se evidente que, embora o Assentimento Real


não seja intrinsecamente operativo, afecta, de modo acidental e indi­
recto, a prática. Ele é em si um acto intelectual, cujo objecto lhe é
proposto pela imaginação; e embora o puro intelecto não induza à
acção, como também não a imaginação, contudo, esta, ao contrário
do puro intelecto, tem os meios de estimular os poderes da mente, de
que brota a acção. O Assentimento Real, ou a Crença, como se pode
chamar, olhado em si mesmo, isto é, apenas como Assentimento, não
conduz à acção; mas as imagens em que ele vive, representando efec­
tivamente o concreto, têm o poder do concreto sobre as afecções e as
paixões, e por meio destas tornam-se indirectamente operativas. Ape­
sar de tudo, esta influência prática não é invariável, nem nela se deve
confiar; pois, certas imagens podem não ter propensão alguma para
afectar determinadas mentes, ou para as excitar à acção. Assim, um
filósofo ou um poeta consegue compreender vivamente as brilhantes
recompensas do génio militar ou da eloquência, sem desejar ser um
comandante ou um orador. Mas, em geral, ao estabelecermos um
contraste amplo entre a Crença, o Assentimento Nocional e a Infe­
rência, não deveremos, com esta explicação, estar muito enganados,
se afirmarmos que os actos de Assentimento Nocional e de Inferência
não afectam a nossa conduta, e que a afectam (não de modo necessá­
rio, mas efectivo) os actos de Crença, isto é, de Assentimento Real.

114 • J o h n H e n ry N e w m a n
Desde o meu capítulo introdutório, pouco referi ainda acerca
da Inferência, embora pretenda, antes de concluir, ocupar-me dela
com amplitude; mas disse o suficiente para aqui a introduzir em
contraste com o Assentimento Real ou a Crença, e este contraste é
necessário para completar o que acerca do último expressei. Seja­
-me, então, permitido, por mor do último, repetir aqui que, enquan­
to o Assentimento, ou a Crença, pressupõe alguma apreensão das
coisas acreditadas, a Inferência não exige apreensão alguma das
coisas inferidas; que, por conseguinte, a Inferência diz necessaria­
mente respeito a superfícies e a aspectos; que começa consigo e em
si mesma acaba; que não chega aos factos; que é utilizada em fór­
mulas; que, ao ter em conta objectos reais de qualquer tipo, como
motivos e acções, carácter e conduta, arte, ciência, gosto, moral,
religião, lida com eles, não como são, mas apenas no seu estilo
próprio, como materiais de argumento ou indagação, que eles
nada para ela são excepto premissas maiores e menores e conclu­
sões. A Crença, por outro lado, por incidir em coisas concretas,
não abstractas, que excitam de modo vário a mente a partir das
suas propriedades morais e imaginativas, tem por objectos seus não
só directamente o que é verdadeiro, mas, inclusive, o que é belo,
útil, admirável, heróico; objectos que estimulam a devoção, ateiam
as paixões e atraem os afectos; e, deste modo, encaminha para
acções de todo tipo, para o estabelecimento de princípios e para a
formação do carácter; está assim, mais uma vez, intimamente asso­
ciada ao que é individual e pessoal.
Insisti na distinção assinalada entre Crenças, por um lado, e
Assentimentos· Nocionais e Inferências, por outro, já há muitos
anos, em palavras que será agora propósito meu utilizar! . Cito-as

I Vide «Discussions andArguments on �rious Subjects», artigo 4.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • li 5
pela razão seguinte: além do contraste que neste lugar oferecem,
apresentam a doutrina que repisei, de um segundo ponto de vista e
com uma frescura e uma força que agora já não domino e, acima
tudo, apesar de serem minhas, quase com o peso de um testemu­
nho independente (devido à extensão do tempo decorrido desde a
sua publicação) .
Ocorrem elas num protesto que tive ocasião de escrever em
Fevereiro de 1 841, contra uma doutrina perigosa defendida, como
eu pensava, por dois homens eminentes dessa altura, agora já não -
Lord Brougham e Sir Robert Peel. Pretendia essa doutrina que as
reivindicações da religião poderiam ser garantidas e defendidas na
massa dos homens, e sobretudo nas classes inferiores da sociedade,
mediante o trato com a literatura e a ciência física, e graças à acção
dos Institutos de Mecânica e das Salas de Leitura, em sério descrédi­
to, como se me afigurava, da instrução cristã directa. Na sequência
das minhas observações encontra-se a passagem que aqui citarei; não
obstante as diferenças de terminologia, a temeridade da asserção,
adequada às circunstâncias da sua publicação, e até, no tocante às
palavras, a incorrecção da afirmação teológica, elas ilustram de modo
conveniente o tema aqui em discussão. Reza assim o protesto:
«Dizem-me as pessoas que é apenas um sonho supor que o
cristianismo deveria recuperar na sociedade humana o poder orgâ­
nico, que outrora possuiu. Nada posso fazer; nunca disse que
podia. Não sou político; não proponho medidas, mas exponho
uma falácia e resisto a uma pretensão. Deixemos que o benthamis­
mo reine, se os homens não têm aspirações; mas não lhes digamos
para serem românticos e, em seguida, os consolemos com «glória»:
não tentemos obter pela filosofia o que outrora foi feito pela reli­
gião. A ascendência da fé pode ser impraticável, mas o reino do
conhecimento é incompreensível. O problema dos estadistas deste

!!6 • J o h n H e n ry N e w m a n
tempo é como educar as massas; a literatura e a ciência não podem
fornecer a solução . . .
«A ciência fornece-nos os fundamentos ou as premissas a par­
tir das quais as verdades religiosas se devem inferir; mas não as
infere, muito menos chega à inferência - não é essa a sua provín­
cia. Põe diante de nós os fenómenos e permite-nos, se quisermos,
chamar-lhes obras de desígnio, de sabedoria ou benevolência; e,
mais ainda, se quisermos, dar um passo em frente e confessar um
Criador Inteligente. Temos de aceitar os seus factos, dar-lhes um
significado, tirar as nossas conclusões próprias a partir deles. Pri­
meiro, surge o conhecimento, em seguida uma visão, depois o
raciocínio e, por fim, a crença. Eis a razão por que a ciência é tão
parca na tendência religiosa; as deduções não têm poder de persua­
são. Ao coração chega-se comummente, não através da razão, mas
da imaginação, mediante impressões directas, pelo testemunho de
factos e acontecimentos, pela história, pela descrição. Influenciam­
-nos as pessoas, acalentam-nos as vozes, subjugam-nos os olhares,
inflamam-nos as proezas. Muitos homens viverão e morrerão por
um dogma: ninguém será mártir por uma conclusão. Uma conclu­
são é apenas uma opinião; não é uma coisa que é, mas algo a cujo
respeito estamos "de todo certos"; e muitas vezes se observou que
nunca dizemos que estamos certos e seguros, sem implicar que
duvidamos. Dizer que uma coisa deve ser é admitir que ela pode
não ser. Ninguém, afirmo, morrerá pelos seus próprios cálculos:
morre por realidades. Por isso é que uma religião literária gera tão
escassa dependência a seu respeito; parece boa quando faz bom tem­
po; mas as suas doutrinas são opiniões e, quando intimada a sofrer
por elas, escapa-lhes entre os seus manuscritos ou queima-as na larei­
ra. É também este o segredo da desconfiança e da troça com que os
moralistas, tantas vezes, foram incomodados. Eles falam e não

Uma Gramática do Assentimento • 117


fazem. Porquê? Porque contemplam a justeza das coisas e vivem
segundo o esquadro, quando deveriam realizar no concreto as suas
elevadas máximas. Ora Sir Robert Peel tem em maior monta a his­
tória natural, a química e a gastronomia do que semelhante ética;
mas são, porventura, estas também mais do que teologia in posse?
Protesta ele contra "a teologia de controvérsia": será a inferencial
muito melhor?
Não tenho, pois, confiança em filósofos que não conseguem
ser religiosos, e são cristãos por implicação. Estão em casa e che­
gam a distâncias que nos espantam; mas acertam sem apreensão, e
às vezes mostram-se tão confiantes acerca de sombras como de rea­
lidades. Elaboraram por cálculo a situação de um país que nunca
viram, e cartografaram-no por meio de um dicionário geográfico;
e, como cegos, embora capazes de indicar a um estrangeiro o seu
caminho, não conseguem caminhar a direito, e nem sequer têm
por ocupação sua caminhar.
«A lógica suscita apenas uma retórica ridícula com a multidão;
desfaz, primeiro, os dilemas e talvez não desespere de converter
por meio de silogismos. Diz aos homens para adquirirem a noção
de um Criador a partir das Suas obras; se a tal se dispusessem (o
que ninguém faz) , ficariam esgotados e cansados com o labirinto
por eles traçado. As suas mentes ficariam empanturradas e saciadas
com a operação lógica. Os lógicos preocupam-se mais com inferir
bem do que com tirar conclusões correctas. Não conseguem ver o
fim do processo. Raros são os homens que têm aquele poder da
mente que os faz apreender depressa e com firmeza uma variedade
de pensamentos. Ridicularizamos os "homens de uma só ideià'; mas
muitos de nós nasceram para assim ser, e seríamos mais felizes se tal
soubéssemos. Para a maioria dos homens, a discussão torna a ques­
tão presente apenas mais duvidosa e, em grau considerável, menos

118 • J o h n H e n ry N e w m a n
tocante. Ao fim e ao cabo, o homem não é um animal raciocinante;
é um animal que vê, sente, contempla, actua. É influenciado por
aquilo que é directo e preciso. Refrescar as nossas impressões e con­
vicções a partir da física está muito bem, mas, para as criarmos,
temos de ir a outro lugar. Sir Robert Peel "não acha possível que
uma mente possa ser constituída de tal modo que, após estar fami­
liarizada com as descobertas admiráveis, realizadas em todas as partes
da ciência experimental, consiga deixar tais contemplações sem um
conceito mais amplo da providência de Deus e com uma maior
reverência pelo Seu Nome". Se ele fala da mente religiosa, enuncia
um truísmo; se da irreligiosa, insinua um paradoxo.
<<A vida não é assaz longa para uma religião de inferências; nun­
ca teremos começado, se determinarmos começar com demonstra­
ções. Jamais lançaremos os alicerces; converteremos a teologia em
confirmações e os clérigos em peritos da Escritura. Nunca chegare­
mos aos nossos primeiros princípios. Decide em nada acreditar, e
terás de demonstrar as tuas provas e analisar os teus elementos, afi.m­
dando-te cada vez mais e encontrando, "na profundidade mais ima
um profundo ainda mais fundo", até desembocares no amplo seio
do cepticismo. Eu gostaria mais de estar obrigado a defender a racio­
nalidade de supor que o cristianismo é verdadeiro do que a demons­
trar um governo moral a partir do mundo físico. A vida é para a
acção. Se insistirmos em provas para todas as coisas, jamais chegare­
mos à acção: para agir tens de supor, e tal suposição chama-se fé.
«Ninguém imagine que, ao dizer isto, estou a asseverar que
todas as provas são igualmente difíceis e todas as proposições igual­
mente debatíveis. Pressupostos há que são mais importantes do
que outros; algumas doutrinas implicam postulados mais amplos
do que outras, e em maior número. Afirmo apenas o seguinte: as
i mp ressões impelem à acção, os raciocínios afastam dela. Viver não

Uma Gramática do Assen timento • 119


é ter conhecimento de premissas e fazer inferências a partir delas.
Analisar, como tema da curiosidade liberal e da filosofia, os nossos
modos de pensamento está muito bem: mas que isso venha em
segundo lugar, e quando houver tempo livre, e então as nossas
indagações serão até, de múltiplos modos, subservientes à acção.
Mas se partirmos do conhecimento científico e da demonstração
argumentativa, se fizermos finca-pé nele como a base do cristianis­
mo pessoal ou tentarmos converter o homem em moral e religioso
por meio de bibliotecas e de museus, então, de modo consistente,
façamos dos químicos os nossos cozinheiros e dos mineralogistas
os nossos pedreiros.
«Desejo afirmar tudo isto como uma questão de facto, para ser
julgado pelo testemunho sincero de quaisquer pessoas. O meu fito
não é perguntar: porque é que somos de tal modo constituídos que
a fé, e não o conhecimento ou a demonstração, é o nosso princípio
da acção? Penso que se trata de um facto e, se assim for, devemos
resignar-nos a ele o melhor que pudermos, a não ser que nos refu­
giemos no paradoxo intolerável de que a massa dos homens foi
criada para nada, e que eles estão destinados a deixar a vida como
nela entraram.
«No plano prático, isto entendeu-se tão bem em todas as ida­
des do mundo que nenhuma religião foi alguma vez uma religião
da física ou da filosofia. Foi sempre sinónimo de revelação. Nunca
foi uma dedução a partir do que conhecemos; foi sempre uma
asserção daquilo em que devemos crer. Nunca viveu de uma con­
clusão; foi sempre uma mensagem, uma história ou uma visão.
Nenhum legislador ou sacerdote teve alguma vez o sonho de edu­
car a nossa natureza moral por meio da ciência ou da argumenta­
ção. Aqui, não há diferença entre uma religião verdadeira e outra
fingida. Moisés não foi instruído para pensar a partir da criação,

1 20 • J o h n H e n ry N e w m a n
mas para realizar milagres. O cristianismo é uma história sobrena­
tural e quase teatral: fala-nos do que o seu Autor é, dizendo-nos o
que Ele realizou . . .
«Ü próprio Lord Brougham reconheceu a força deste princí­
pio. Não confiou a sua religião filosófica à argumentação; entre­
gou-a à guarda da imaginação. Porque haveria ele de delinear uma
grande república das letras e um panteão intelectual, a não ser por­
que sente que só os exemplos e os modelos, não os raciocínios lógi­
cos, são as conclusões vivas que se apossam das afecções ou podem
formar o carácter?»

U m a G r a m á r i c a do As s e n t i m e n t o • 121
C APÍT ULO 5

APR E ENSÃO E AS S ENTIM ENTO


E M M AT É RIA D E RELI G IÃO

Estamos agora capacitados para determinar o que é um dogma de


fé e o que é acreditar nele. Um dogma é uma proposição; está em
vez de uma noção ou de uma coisa; e acreditar nele é dar-lhe o
assentimento da mente, pois está no lugar de uma ou da outra.
Dar-lhe um assentimento real é um acto de religião; dar-lhe um
assentimento nocional é um acto teológico. Ele é objecto de dis­
cernimento, nele se descansa, é assimilado como uma realidade
pela imaginação religiosa; é olhado como uma verdade pelo inte­
lecto teológico.
Não como se, de facto, houvesse, ou pudesse haver, qualquer
linha de demarcação, ou uma parede divisória, entre estes dois
modos de assentimento, o religioso e o teológico. Visto que o inte­
lecto, como a imaginação, é comum a todos os seres humanos,
todo o homem religioso é, até certo ponto, um teólogo, e nenhu­
ma teologia pode começar ou florescer, sem a iniciativa e a presen­
ça permanente da religião. Assim como nos afazeres deste mundo,
os sentidos, a sensação, o instinto e a intuição nos fornecem factos,
e o intelecto os utiliza, assim também, no tocante às nossas rela­
ções com o Ser Supremo, vamos buscar os factos a testemunhas,
pri meiro à natureza, em seguida à revelação e às nossas doutrinas,
em que eles despontam, mediante o exercício da abstracção e da
inferência. Isto é óbvio; mas não interfere com a afirmação de que
existe um hábito teológico da mente, e também um religioso, entre
si distintos, usando a religião a teologia e servindo-se a teologia da

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 1 23
religião. Entendidas assim as coisas, proponho-me considerar os
dogmas do Ser de Deus, da Trindade Divina na Unidade, na sua
relação ao assentimento, nocional e real, e sobretudo ao assenti­
mento real; contudo, ainda não acabei tudo o que tinha para dizer
à guisa de introdução.
Ora o meu tema é, antes de mais, o assentimento, e não a
inferência. Não é propósito meu apresentar os argumentos que
surgem na crença destas doutrinas, mas indagar o que é acreditar
nelas, o que a mente faz, o que contempla, quando leva a cabo um
acto de fé. É verdade que os mesmos factos elementares que criam
um objecto para o assentimento fornecem também conteúdo para
uma inferência: e aó mostrar aquilo em que acreditamos, consegui­
rei também inevitavelmente mostrar porque acreditamos; é esta a
verdadeira razão que me obriga, no começo, a insistir na decisão
real entre estas duas vias de pensamento concorrentes e coinciden­
tes, e a pressupor, à maneira de precaução, para não ser mal enten­
dido, que não tenho em vista a questão de que existe um Deus,
mas antes do que Deus é.
E, em segundo lugar, por crença entendo, não precisamente a
fé, porque esta, no seu sentido teológico, inclui uma crença, não só
na coisa em que incide a fé, mas também no fundamento do crer;
isto é, não só a crença em certas doutrinas, mas a crença nelas
expressamente porque Deus as revelou; mas, aqui, estou empenhado
somente naquilo que se designou como objecto material da fé - na
coisa em que se acredita, não no elemento formal. O Omnipotente
dá testemunho de Si mesmo na Revelação; cremos que Ele é um só e
que é Três, porque assim o diz. Cremos também que Ele nos fala dos
Seus Atributos, das suas providências e dispensações, das Suas deter­
minações e actos, do que fez e há-de fazer. E se tudo isto é demasia­
do para nós - quer para o trazer ao mesmo tempo às nossas mentes

1 24 • J o h n Henry Newman
a partir da sua variedade, quer até para o apreender ou enunciar a
partir da nossa estreiteza de intelecto ou ausência de instrução -,
então, pelo menos, acreditamos in globo em tudo o que Ele nos reve­
lou acerca de Si mesmo, e justamente porque o revelou. Todavia,
este «porque Ele o diw não faz parte do escopo da presente indaga­
ção, mas somente as próprias verdades e estas verdades particulares,
«Ele é Um só», «Ele é Três»; e das duas, ambas presentes na Revela­
ção, não considerarei a proposição «Ele é Um só» como verdade
revelada, mas como aquilo que também é uma verdade natural, o
fundamento de toda a religião. Será este o meu começo.

1. A crença n u m s ó D e u s

Há um só Deus, tal e tal na Natureza e nos Atributos.


Digo «tal e tal» porque, a não ser que explique o que entendo
por «Um só Deus», uso palavras que podem significar tudo ou
nada. Posso querer indicar uma simples anima mundi; ou um prin­
cípio inicial que outrora esteve em acção, e agora não; ou a huma­
nidade colectiva. Falo, pois, do Deus do Teísta e do Cristão: um
Deus que é numericamente Um só, que é Pessoal; o Autor, o Sus­
tentador e o Consumador de todas as coisas, a vida da Lei e da
Ordem, o Governador moral; Um só que é Supremo e Único;
igual a Si próprio, diferente de todas as coisas além de Si, que são
apenas criaturas suas; distinto e independente de todas elas; Um só
que é auto-existente, absolutamente infinito, que nunca foi ou
será, para o qual nada é passado ou futuro; que é toda a perfeição,
a plenitude e o arquétipo de toda a excelência possível, a própria
Verdade, Sabedoria, Amor, Justiça, Santidade; Um só que é Todo-

Uma G r a m á c i c a do A s s e n t i m e n t o • l25
-poderoso, Omnisciente, Omnipresente, Incompreensível. Eis algu­
mas das prerrogativas distintivas que atribuo incondicionalmente e
sem reserva ao grande Ser a que chamo Deus.
Como Ele é o que os Teístas têm em mente quando falam de
Deus, o seu assentimento a esta verdade admite, sem dificuldade,
ser o que denominei um assentimento nocional. É um assentimen­
to que se segue a actos de inferência e a outros exercícios puramen­
te intelectuais; e é um assentimento a um amplo desenvolvimento
de predicados, entre si correlativas ou, pelo menos, intimamente
ligados entre si, como que desenhados no papel, tal como podería­
mos cartografar um país que jamais vimos, construir tabelas mate­
máticas ou dominar os métodos da descoberta de Newton ou de
Davy, sem sermos geógrafos, matemáticos ou químicos.
Até aqui, tudo é claro; mas segue-se a questão: poderei chegar
a um assentimento mais vivo ao Ser de um Deus do que aquele
que é simplesmente dado às noções do intelecto? Poderei ingressar
com um pensamento pessoal no círculo de verdades que consti­
tuem esta grande ideia? Poderei alcandorar-me ao que chamei uma
apreensão imaginativa dEle? Poderei acreditar, como se visse? Uma
vez que esse assentimento elevado exige uma experiência ou
memória presente do facto, é como se, à primeira vista, a resposta
houvesse de ser negativa; pois, como poderei dar um assentimento
como se visse, a não ser que tenha realmente visto? Mas ninguém
nesta vida pode ver Deus. Concebo, todavia, que um assentimento
real é possível, e irei mostrar como.
Quando se diz que não podemos ver Deus, isto é inegável;
mas, ainda assim, em que sentido temos nós um discernimento das
suas criaturas, dos seres individuais que nos rodeiam? A prova que
da sua presença temos reside nos fenómenos que se dirigem aos nos­
sos sentidos, e a nossa garantia para os aceitar como demonstração é

126 • J o h n H e n ry N e w m a n
a nossa certeza instintiva de que eles são prova. Pela lei da nossa
natureza, associamos esses fenómenos sensíveis ou impressões a
certas unidades, indivíduos, substâncias, seja qual for o seu nome,
que estão fora e além do alcance dos sentidos, e que nós mesmos
representamos nesses fenómenos. Os fenómenos são como que
quadros; mas, ao mesmo tempo, não nos proporcionam, para lá
deles, nenhuma exacta medida ou característica das coisas incógni­
tas - pois, quem dirá que existe qualquer uniformidade entre as
impressões que dois de nós respectivamente teriam de uma terceira
coisa, supondo que um de nós tinha apenas o sentido do tacto, e o
outro somente o sentido do ouvido? Por conseguinte, ao dizermos
que temos um quadro das coisas apercebidas através dos sentidos,
queremos significar uma certa representação, quanto possível ver­
dadeira, mas não adequada.
E assim também a propósito dos objectos intelectuais e morais,
que nos chegam mediante os nossos sentidos: sabemos por instinto
que eles existem; captamos que são tais e tais, em virtude das im­
pressões que deixam nas nossas mentes. Assim a vida e os escritos
de Cícero ou do Dr. Johnson, de S. Jerónimo ou S. Crisóstomo, dei­
xam em nós certas impressões do carácter intelectual e moral de cada
um deles, sui generis e infalíveis. Pegamos numa passagem de Crisós­
to mo ou de Jerónimo; não há a possibilidade de confundir um com
o outro; em cada caso, vemos o homem na sua linguagem. E assim
também a propósito de qualquer grande homem, que porventura
tenhamos conhecido: que ele não é uma simples impressão nos sen­
tidos , mas um ser real, sabemo-lo por instinto; sabemos que ele é tal
e tal, pela matéria ou pela qualidade desta impressão.
Ora a ideia de Deus, como os Teístas a encaram, não é adqui­
rida por uma associação instintiva da Sua presença a quaisquer
fenó menos sensíveis; mas pela função, em face da criação, directa-

Uma G r a m á r i c a do A s s e n t i m e n r o • l27
mente desempenhada pelos sentidos que, de modo indirecto, se
transfere para alguns dos nossos fenómenos mentais em relação ao
Criador. Esses fenómenos encontram-se no sentido da obrigação
moral. Assim como de uma multidão de percepções instintivas,
operando em exemplos particulares, de algo para além dos senti­
dos, generalizamos a noção de um mundo exterior e, em seguida,
representamos este mundo em e de acordo com os fenómenos par­
ticulares de que partimos, assim também do poder perceptivo, que
identifica as intimações da consciência com as reverberações ou
ecos (por assim dizer) de uma admoestação externa, chegamos à
noção de um Supremo Governante e Juiz e, em seguida, o imagi­
namos a Ele e aos seus Atributos naquelas intimações recorrentes,
graças às quais, enquanto fenómenos mentais, se obteve original­
mente o nosso reconhecimento da Sua existência. E se as impres­
sões que as Suas criaturas em nós causam através dos sentidos nos
obrigam a olhar essas criaturas como respectivamente sui generis,
não é de admirar que as luzes, que Ele indirectamente nos fornece
por meio da nossa consciência, acerca da Sua própria natureza
sejam de molde a levar-nos a compreender que Ele é semelhante a
Si mesmo, e a nada mais.
Afirmei já que não me proponho aqui demonstrar o Ser de
Deus; descobri, porém, que é impossível evitar dizer onde fui bus­
car a prova disso. Procuro essa demonstração no mesmo âmbito
onde iniciaria uma prova dos Seus atributos e do seu carácter -
recorrendo aos mesmos meios pelos quais mostro como O apreen­
demos, não só como uma noção, mas também como uma realida­
de. De facto, a última das três investigações é única que aqui me
interessa, mas não posso excluir as duas primeiras da minha consi­
deração. Todavia, repito, o que directamente demando é explicar
como adquirimos uma imagem de Deus e damos um assentimento

128 • John Henry Newman


real à proposição de que Ele existe. Em seguida, para tal levar a
cabo, devo, claro está, partir de algum primeiro princípio; e este
primeiro princípio, · que pressuponho e não tentarei demonstrar, é
aquele que utilizarei como fundamento nas outras duas inquiri­
ções, a saber, que, por natureza, temos uma consciência.
Pressuponho, então, que a Consciência ocupa um lugar legíti­
mo entre os nossos actos mentais; tão realmente como a acção da
memória, do raciocínio, da imaginação, ou como o sentido do belo;
que, assim como há objectos que, quando presentes à mente, a
levam a sentir dor, arrependimento, alegria ou desejo, assim também
há coisas que excitam em nós a aprovação ou a censura, e que, por
conseguinte, chamamos boas ou más; e que, em nós experimenta­
das, despertam em nós esse específico sentido de prazer ou dor, que
recebe o nome de uma boa ou má consciência. Concedido isto, ten­
tarei mostrar que neste sentimento especial, que se segue por incum­
bência do que denominarei bem ou mal, residem os materiais para a
apreensão real de um Divino Soberano e Juiz.
O sentimento da consciência (a saber, repito, uma certa e
intensa sensibilidade, agradável ou incómoda - de auto-aprova­
ção e esperança, de compunção e temor - que acompanha algu­
mas das nossas acções, que, por conseguinte, dizemos boas ou
más) é duplo: é um sentido moral e um sentido do dever; um juízo
da razão e um ditado magistral. O seu acto é, sem dúvida, indivisí­
vel; todavia, tem esses dois aspectos, entre si distintos, e que admi­
tem uma consideração separada. Ainda que eu tenha perdido o
meu sentido de obrigação, a que estou sujeito, para me abster dos
actos de desonestidade, não deveria, por conseguinte, perder o sen­
tido de que tais acções eram um ultraje feito à minha natureza
moral. Mais uma vez, ainda que eu tenha perdido o meu sentido
da sua deformidade moral, não deveria, pois, perder o sentido de

U m a G r a m á t i c a do Assen c i m c n c o • 1 29
que elas me são interditas. A consciência tem assim uma função
crítica e judicial; embora os seus incitamentos, nos peitos de milhões
de seres humanos aos quais ela é dada, não sejam correctos em
todos os casos, isso não interfere necessariamente com a força do
seu testemunho e da sua sanção: o seu testemunho de que existe
um bem e um mal, e a sua sanção a esse testemunho veiculado nos
sentimentos que acompanham a conduta boa ou má. Falarei, aqui,
da consciência, do último ponto de vista, não enquanto nos forne­
ce, por meio dos seus diversos actos, os elementos da moral, tais
como podem ser estabelecidos pelo intelecto num código ético,
mas apenas como o ditado de um conselheiro autorizado em rela­
ção aos pormenores da conduta como eles se nos apresentam, e
completo nos seus diversos actos, um a um.
Consideremos, pois, assim a consciência, não como uma
regra, mas como uma sanção da boa conduta. É este o seu primei­
ro e mais autorizado aspecto; é o sentido ordinário da palavra.
Meio mundo ficaria perplexo por saber o que se intenta com o
sentido moral; mas todos sabem o que se entende por uma boa ou
má consciência. A consciência impõe-se sempre a nós por ameaças
e por promessas de que devemos seguir o bem e evitar o mal; até
agora, é uma só e a mesma na mente de cada um, sejam quais
forem os seus erros particulares nas mentes individuais quanto aos
actos que ela ordena fazer ou evitar; e, sob este aspecto, correspon­
de à nossa percepção do belo e do feio. Assim como temos natural­
mente um sentido do belo e do gracioso na natureza e na arte,
embora os gostos sejam proverbialmente diferentes, assim também
temos um sentido do dever e da obrigação, quer todos o associem,
ou não, a certas e determinadas acções em particular. Aqui, porém,
tem lugar uma separação entre Gosto e Consciência: pois, o senti­
do da beleza não tem, como o Sentido Moral, relações especiais

130 • J o h n H e n r y Newman
com pessoas, mas visa objectos em si mesmos; a consciência, por
outro lado, concerne, em primeiro lugar, às pessoas e às acções
sobretudo enquanto olhadas nos seus agentes, ou antes ao Si mes­
mo apenas e às suas acções, e aos outros só indirectamente e como
que em associação com o Si mesmo. Ademais, o gosto é atestação
de si mesmo, sem apelar para algo além do seu próprio sentido do
belo ou do feio, e desfruta os espécimes do belo só por mor deles;
a consciência, porém, não assenta em si mesma; de modo vago e
indistinto, chega a algo para lá de si e discerne obscuramente uma
sanção mais elevada do que ela própria para as suas decisões, bem
patenteada no agudo sentido de obrigação e de responsabilidade
que as informa. E, por isso, estamos habituados a falar da cons­
ciência como de uma voz, um termo que jamais tencionaríamos
aplicar ao sentido do belo; e, além disso, uma voz, ou o eco de
uma voz, imperativa e constrangedora, como nenhum outro dita­
me na totalidade da nossa experiência.
E, mais uma vez, em virtude da prerrogativa de ditar e man­
dar, que é inerente à sua essência. A consciência tem uma relação
íntima com as nossas afecções e emoções, induzindo-nos à reverên­
cia e ao temor, à esperança e ao medo, sobretudo medo, um senti­
mento que é, em grande parte, estranho não só ao gosto, mas até
ao Sentido Moral, excepto em virtude de associações acidentais.
Nenh um temor é sentido por quem quer que reconheça que a sua
conduta não foi bela, embora em si se possa sentir humilhado, se
porventura perdeu assim alguma vantagem; mas, se foi seduzido a
cometer alguma espécie de imoralidade, tem um sentido vivo de
respo nsabilidade e de culpa, embora o acto não seja uma ofensa
contra a sociedade - de mal-estar e de apreensão, embora lhe pos­
sa trazer uma utilidade actual -, de compunção e de desgosto,
embo ra em si mesmo seja sumamente aprazível - de vergonha na

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 131
face, embora não tenha testemunha5. Estas diversas perturbações
da mente, características da má consciência, e que podem ser mui­
to consideráveis - auto-censura, vergonha mordaz, remorso acuti­
lante, consternação desencorajante à vista do futuro - e os seus
contrários, quando a consciência é boa, tão real embora menos
violenta, auto-aprovação, paz interior, alegria do coração e quejan­
dos, estas emoções constituem uma diferença específica entre a cons­
ciência e os nossos outros sentidos intelectuais - senso comum,
bom senso, sentido da oponunidade, gosto, sentido da honra, e coi­
sas semelhantes - como, de facto, também constituiriam entre a
consciência e o sentido moral, na suposição de que os dois não eram
aspectos de um só e mesmo sentimento, exercido sobre uma só e
mesma matéria.
Baste isto a propósito dos fenómenos característicos que a cons­
ciência apresenta, nem é difícil determinar o que eles implicam.
Refiro, uma ve:z mais, o nosso sentido do belo. Este sentido é acom­
panhado por uma fruição intelectual; é isento de tudo o que panilha
a natureza da emoção, excepto num só caso, a saber, quando é exci­
tado por objectos pessoais; pois, então, o sentimento tranquilo de
admiração é trocado pela excitação da afecção e da paixão. Também
a consciência, olhada como um sentido moral, um sentimento inte­
lectual, é um sentido de admiração e de desgosto, de aprovação e de
censura: mas é algo mais do que um sentido moral; é sempre o que
o sentido do belo é apenas em cenos casos, a saber, sempre emocio­
nal. Não admira, pois, que ela implique sempre o que esse sentido
só algumas ve:zes sugere; implica sempre o reconhecimento de um
objecto vivo, para o qual está orientada. As coisas inanimadas não
podem galvanizar as nossas afecções; estas são correlativas das pes­
soas. Se, como acontece, sentimos responsabilidade, se estamos
envergonhados ou temerosos por transgredir a voz da consciência,

13 2 • J o h n H e n ry N e w m a n
isso implica que existe Alguém perante o qual somos responsáveis,
diante de quem sentimos vergonha, cujas pretensões sobre nós recea­
mos. Se, ao fazer o mal, sentimos a mesma dor triste, que parte o
coração, que nos esmaga ao magoarmos uma mãe; se, ao fazermos o
bem, sentimos a mesma serenidade luminosa da mente, a mesma
calma, o mesmo deleite satisfatório que nasce de sermos louvados
por um pai, temos, sem dúvida, dentro de nós a imagem de alguma
pessoa, que o nosso amor e a nossa veneração encaram, em cujo sor­
riso encontramos a nossa felicidade, por quem anelamos, a quem
dirigimos as nossas súplicas, com cuja cólera ficamos perturbados e
definhamos. Estes sentimentos são em nós tais que exigem, como
sua causa excitadora, um ser inteligente; não somos afectuosos para
com uma pedra nem sentimos vergonha diante de um cavalo ou de
um cão; não temos remorso ou compunção por infringir uma sim­
ples lei humana; todavia, assim é, a consciência excita todas estas
emoções incómodas, a confusão, o mau prenúncio, a autocondena­
ção; e, por outro lado, derrama sobre nós uma paz profunda, um
sentido de segurança, uma resignação e uma esperança, cuja evoca­
ção nenhum objecto sensível ou terreno origina. «Ü malvado foge,
quando ninguém o persegue»; então, porque foge? Donde vem o seu
terror? A quem vê ele na solidão, na treva, nas ocultas câmaras do
seu coração? Se a causa destas emoções não pertence ao mundo visí­
vel, o Objecto a que se dirige a sua percepção deve ser Sobrenatural
e Divino; por isso, os fenómenos da Consciência, qual ditado, ser­
vem para impressionar a imaginação com o quadro! de um Gover­
nador Supremo, um Juiz, santo, justo, poderoso, omnividente,
retribuidor, e é o princípio criativo da religião, tal como o sentido
mo ral é o princípio da ética.

1 Sobre a formação das imagens, vide supra, capítulo 3, pp. 4 1 , 43.

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 133
E seja-me permitido referir aqui� de novo, o facto para o qual
já chamei a atenção, a saber, que o instinto da mente de reconhe­
cer um Mestre externo no ditado da consciência, e de imaginar a
Sua ideia nas impressões definidas que a consciência produz, é
paralelo à outra lei, não só da natureza humana, mas também da
animal, pela qual a presença de seres individuais invisíveis é vis­
lumbrada sob as formas e as cores fugidias do mundo visível. Será
pelos sentidos, ou pela razão, que os brutos entendem as unidades
reais, materiais e espirituais, significadas pelas luzes e pelas som­
bras, pelo brilhante caleidoscópio sempre mutável, como se pode­
ria chamar, que impressiona a sua «retina»? Não pela razão, pois não
a têm; não pelos sentidos, porque elas os transcendem; será, então,
por um instinto. Esta faculdade, por parte dos animais, a não ser
que a ela estejamos habituados, afectar-nos-ia como um grande
mistério. Uma peculiaridade das naturezas animais consiste em ser
susceptível de fenómenos através dos canais dos sentidos; outra é
ter nesses fenómenos sensíveis uma percepção dos indivíduos a que
este ou aquele grupo seu pertence. Esta percepção das coisas indi­
viduais, em pleno labirinto de formas e de cores com que a sua
visão depara, é dada em ampla medida aos animais, e tal, aparente­
mente, desde o momento do seu nascimento. Não é por mero ins­
tinto físico, como aquele que o orienta para a mãe a fim de se
amamentar, que o borrego recém-nascido reconhece cada um dos
outros cordeirinhos como um todo, consistindo em muitas partes
ligadas num só e, já antes de ter uma hora de vida, faz a experiência
da sua e das outras individualidades rivais. E, com uma distinção
muito maior, reconhecem o cavalo e o cão, inclusive, a personalida­
de do seu dono. Como explicaremos esta apreensão das coisas, que
são singulares e individuais, no meio de um mundo de pluralida­
des e de transmutações, no exemplo dos animais ou também das

I34 • J o h n H e n ry Newman
crianças? Mas, até explicarmos o conhecimento que uma criança
possui da sua mãe ou da sua ama, que razão temos para abrir uma
excepção na doutrina, tão estranha e difícil, de que no ditado da
consciência, sem experiências prévias ou raciocínio analógico, ela é
gradualmente capaz de perceber a voz, ou os ecos da voz, de um
Senhor, vivo, pessoal e soberano?

Concedo, claro está, que não podemos indicar uma data, assim tão
cedo, antes da qual ela nada aprendeu nem formou quaisquer asso­
ciações mentais, a partir das palavras e da conduta dos que dela cui­
daram. Mas, ainda assim, se uma criança de cinco ou seis anos,
quando a razão está, por fim, plenamente desperta, já aprendeu a
dominar e se apropriou de ideias e crenças, em virtude da sua instru­
ção, de maneira a conseguir lidar com elas e aplicá-las familiarmen­
te, de acordo com a ocasião, como princípios da acção intelectual,
essas crenças devem, pelo menos, ser singularmente congénitas à sua
mente, se é que não conaturais à sua acção inicial. E admitirei, até
estar convencido de que estou enganado ao fazê-lo, que semelhante
recepção espontânea das verdades religiosas é comum às crianças. A
criança entende intensamente que existe uma diferença entre o bem
e o mal; e quando fez o que j ulga ser mau, está consciente de que
ofendeu Alguém perante o qual é responsável, que ela não vê, e que
a vê. A sua mente alça-se, com um forte pressentimento, à noção de
um Governador moral, soberano sobre ela, atento e justo. E ocorre­

-lhe uma espécie de impulso da natureza para o acolher.


É desejo meu tomar em consideração uma criança ordinária,
mas ainda subtraída às influências destruidoras dos seus instintos
religiosos. Supondo que ela ofendeu os seus pais, pôr-se-á sozinha
e sem esforço, como se fosse o mais natural dos actos, na presença

Uma G r a m á t i c a d o Asse n t i m e n t o • 13 5
de Deus e suplicar-Lhe-á para com �les se reconciliar. Considere­
mos o que nesse simples acto se encerra. Primeiro, inclui este a
impressão na sua mente de um Ser invisível com o qual se encon­
tra numa relação imediata, e que esta relação é tão familiar que ela
se pode dirigir a Ele sempre que decidir; em seguida, de Alguém
cuja boa vontade para com ela tem por certa e pode olhar como
garantida - sim, que a ama mais, e está mais perto dela, do que
os seus pais; além disso, de Alguém que a pode ouvir, sempre que
tal acontecer, e que pode ler os seus pensamentos, pois a sua ora­
ção não precisa de ser vocal; por· último, de Alguém que pode sus­
citar uma mudança crítica no estado de sentimento dos outros
para com ela. Isto é, não nos enganaremos em afirmar que esta
criança tem na sua mente a imagem de um Ser Invisível, que exer­
ce uma particular providência no meio de nós, que está presente
em toda a parte, que lê e muda o coração, sempre acessível, aberto
à súplica. Que forte e íntima visão de Deus deve ela já ter alcança­
do se, como eu supus, uma habitual perturbação da mente tem o
efeito espontâneo de a levar à busca de consolação e de ajuda num
Poder Pessoal Invisível!
Além disso, esta imagem proposta à sua visão mental é a ima­
gem de Alguém que, por uma ameaça e promessa implícitas, ordena
certas coisas que ela, a mesma criança por coincidência, mediante o
mesmo acto da sua mente, aprova; que recebe a adesão do seu senti­
do e juízo morais, como recto e bom. É a imagem de Alguém que é
bom, porquanto obriga e intima ao que é recto e bom; e, por conse­
guinte, não só suscita na criança esperança e temor - e (pode acres­
centar-se) gratidão para com Ele, como aquele que fornece uma lei e
a mantém mediante a recompensa e o castigo - mas suscita nela
amor para com Ele, como aquele que proporciona uma boa lei e,
por conseguinte, como sendo Ele mesmo bom, pois a propriedade

l3 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
da bondade é suscitar amor, ou antes o genuíno objecto do amor é a
bondade; e todos estes elementos distintos da lei moral, que a crian­
ça típica, por mim suposta, mais ou menos conscientemente louva e
aprova - verdade, pureza, justiça, a amabilidade e quejandos - são
apenas configurações e aspectos da bondade. E como, à sua medida,
ela tem uma sensibilidade para todos eles, é também por mor de
todos eles levada a amar o Legislador, que os impõe. E, como pode
contemplar estas qualidades e as suas manifestações sob o nome
comum de bondade, está preparada para os pensar entre si como
indivisíveis, correlativos e suplementares numa só e mesma Persona­
lidade, pelo que não há nenhum aspecto da bondade que Deus não
seja; e é tanto mais assim quanto a noção de uma perfeição que
abarca todas as excelências possíveis, morais e intelectuais, é especial­
mente congénita à mente; e há, de facto, atributos intelectuais, além
dos morais, incluídos na imagem que a criança tem de Deus, como
acima se expôs.
Tal é a apreensão que até uma criança pode ter do seu Soberano
Legislador e Juiz; ela é possível no caso das crianças porque, ao
menos, algumas delas a possuem, quer isso aconteça, ou não, com
outras; e quando com ela se depara nas crianças, descobre-se que
actua com presteza e intensidade, em virtude da escassez das suas
ideias. É uma imagem do Deus bom, bom em Si mesmo, bom rela­
tivamente à criança, por muito incompleta que seja; uma imagem,
antes de sobre esta ter reflectido, antes de por ela ser reconhecida
como uma noção. Embora a criança não consiga explicar ou definir
a palavra «Deus», quando se lhe diz para a usar, os seus actos mos­
tram que para ela é muito mais do que uma palavra. Escuta, de fac­
to , com encanto e interesse as fábulas ou os contos; tem um sentido
ténue, indistinto do que ouve acerca de pessoas e assuntos deste
mundo; mas tem dentro de si o que efectivamente vibra, responde e

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 137
confere um profundo significado às liÇões dos seus primeiros mestres
acerca da vontade e da providência de Deus.
Não temos meios de determinar nem, para o meu presente
propósito, é necessário determinar até que ponto este conhecimen­
to religioso inicial vem de fora, até que ponto vem de dentro, até
que ponto é natural e em que medida implica uma ajuda divina
especial, que transcende a natureza. Não estou empenhado em
delinear a imagem de Deus na mente de uma criança ou de um
homem até às suas primeiras origens, mas em mostrar que ela pode
estar imbuída de semelhante imagem, mais além e acima de todas
as simples noções de Deus, e naquilo em que esta imagem consis­
te. É muito duvidoso se os seus elementos, latentes na mente,
seriam alguma vez excitados sem ajuda extrínseca; mas, seja qual
for a história concreta da primeira formação da imagem divina
dentro de nós, pelo menos é certo que, mediante informações
externas a nós mesmos, com o decurso do tempo, ela aceita ser for­
talecida e melhorada. Certo é também que; se ela se torna mais
viva e mais forte ou se, por outro lado, esmorece, se distorce ou é
esquecida, depende de cada um de nós individualmente, e não das
circunstâncias. É mais do que provável que, ao fim e ao cabo, por
negligência, devido às tentações da vida, às más companhias ou em
virtude da urgência das ocupações seculares, a luz da alma se des­
vaneça e extinga. Os homens transgridem o seu sentido do dever e,
pouco a pouco, perdem os sentimentos da vergonha e do temor, os
suplementos naturais da transgressão, que, como afirmei, são as
testemunhas do Juiz Invisível. E mesmo que se afigurasse impossí­
vel que aqueles que dEle tiveram, na sua primeira juventude, uma
genuína apreensão alguma vez a poderiam de todo perder, todavia,
essa apreensão pode tornar-se quase indistinguível de uma aceita­
ção inferencial da grande verdade ou reduzir-se a uma mera noção

138 • J o h n H e n ry N e w m a n
do seu intelecto. Pelo contrário, a imagem de Deus, se devidamen­
te acarinhada, pode expandir-se, aprofundar-se e aperfeiçoar-se,
com o crescimento dos seus poderes e no decurso da vida, à luz das
variadas lições, dentro e fora deles, que lhes chegam acerca do mes­
mo Deus, uno e pessoal, através da educação, do trato social, da
experiência e da literatura.
A uma mente assim cuidadosamente formada na base da sua
consciência natural, o mundo, tanto da natureza como do homem,
está longe de proporcionar um reflexo das verdades acerca do úni­
co Deus Vivo, que lhe foram familiares desde a infância. O bem e
o mal deparam-se-nos todos os dias, no decurso da nossa vida, e há
quem tenha por filosófico o agir frente à manifestação de cada um
deles com alguma espécie de imparcialidade, como se o mal tivesse
o mesmo direito a existir que o bem, ou até algo melhor, como
tendo triunfos mais impressionantes e uma jurisdição mais ampla.
E porque o curso das coisas é determinado por leis fixas, pensam
eles que estas leis excluem a acção presente do Criador no desenrolar
dos acontecimentos particulares. O caso é diferente com a teologia
de uma imaginação religiosa. Adere esta vivamente a verdades que se
devem realmente encontrar no mundo, embora não estejam à
superfície. É capaz de ajuizar por antecipação, o que exige um lon­
go argumento para demonstração - que o bem é a regra, e o mal a
excepção. É capaz de supor que, dada a uniformidade das leis da
natureza, elas são consistentes com uma Providência particular.
Interpreta, graças a esse ensinamento interior prévio, o que vê à sua
volta como a verdadeira chave deste labirinto de tão vasta e compli­
cada desordem; e obtém assim uma visão cada vez mais coerente e
luminosa de Deus a partir de materiais pouco prometedores. A
consciência é, pois, um princípio de conexão entre a criatura e o seu
Criador; e a aceitação mais firme das verdades teológicas obtém-se

U m a G r a m á c i c a d o Asse n t i m e n t o • 139
mediante hábitos de religião pessoal. Quando os homens come­
çam todas as suas obras com o pensamento de Deus, agindo por
Seu amor e para cumprir a Sua vontade, quando pedem a Sua bên­
ção para si mesmos e para a sua vida, quando O invocam em vista
dos objectos que desejam e O vislumbram nos acontecimentos,
ocorram, ou não, estes segundo as suas orações, descobrem que
tudo o que acontece tende a confirmá-los nas verdades a Seu res­
peito que vivem na sua imaginação, por variadas e absurdas que
tais verdades possam ser. Postam-se, então, na Sua presença como
diante de uma Pessoa Viva, conseguem com Ele conversar, justa­
mente com a rectidão, a simplicidade, a confiança e a intimidade,
mutatis mutandis, que costumamos ter para com um superior ter­
reno; pelo que é duvidoso se imaginaremos a companhia dos nos­
sos congéneres com maior intensidade do que estas mentes
favorecidas são capazes de contemplar e adorar o Criador Invisível,
Incompreensível.
Esta vigorosa apreensão dos objectos religiosos, a cujo respeito
me alarguei, é independente dos registos escritos da Revelação; não
requer qualquer conhecimento da Escritura nem da história ou do
ensinamento da Igreja Católica. É independente dos livros. Mas se
já tanto se pode esboçar na penumbra da Religião Natural, é óbvio
quão grande será o suplemento de plenitude e de exactidão que se
fornece à nossa imagem mental da Personalidade Divina e dos seus
Atributos, à luz do cristianismo. E, de facto, facultar-nos um
objecto claro e suficiente para a nossa fé é um propósito central das
Dispensações sobrenaturais da Religião. Semelhante fito é levado a
cabo na Palavra escrita, com uma eficácia que só a inspiração
poderia garantir, primeiro, pelas histórias que formam uma tão
vasta porção do Antigo Testamento; e dificilmente de modo menos
impressionante no sistema profético, tal como ele, pouco a pouco,

I40 • John Henry Newman


se desdobrou e aperfeiçoou nos escritos dos que foram os seus
ministros e porta-vozes. E como o exercício das afecções fortifica a
nossa apreensão do seu objecto, é impossível exagerar a influência
exercida na imaginação religiosa por um livro de devoção tão
sublime, tão penetrante, tão repleto de instruções profundas como
o Saltério, para nada dizer de outras partes dos Hagiographa. E, em

seguida, no tocante ao Novo Testamento; os Evangelhos, graças ao


seu tema, encerram uma tão especial manifestação da Natureza
Divina que, em virtude do contraste, a fazem aparecer como se
nada se soubesse de Deus, quando eles eram desconhecidos. Por
último, as Cartas apostólicas, a longa história da Igreja com as suas
sempre frescas manifestações da Acção Divina, as Vidas dos San­
tos, os raciocínios, as colisões internas e as decisões da Escola Teo­
lógica, constituem um extenso comentário das palavras e das obras
de Nosso Senhor.
Não preciso de dizer mais nada, creio eu, para ilustrar o tema
que me propus abordar nesta Secção. Quis delinear o processo
pelo qual a mente leva a cabo não só um assentimento nocional,
mas também um assentimento imaginativo ou real à doutrina de
que existe um Único Deus, isto é, um assentimento mediante a
apreensão do que as palavras da proposição significam e do objecto
por elas denotado. Sem uma proposição ou tese, não pode haver
nem assentimento nem crença; tal como não pode haver também
inferência sem conclusão. A proposição de que existe um Ú nico
Deus Pessoal e Presente pode enunciar-se de dois modos: como
verdade teológica e como facto ou realidade religiosa. A noção e a
realidade a que se dá o assentimento são representadas por uma só
e mesma proposição, mas surgem como distintas interpretações
suas. Quando apreendida para os fins de prova, de análise, de com­
paração e de outros exercícios intelectuais semelhantes, a proposi-

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 1 41
ção emprega-se como a expressão de uma noção; quando ao servi­
ço da devoção, é a imagem de uma realidade. A teologia, de modo
adequado e directo, lida com a apreensão nocional; a religião, com
a imaginativa.
Temos aqui a solução do erro comum de supor que existe uma
oposição e um antagonismo entre ·um credo dogmático e uma reli­
gião vital. Declaram as pessoas que a salvação não consiste em crer
nas proposições de que Deus existe, de que há um Salvador, de que
o Nosso Senhor é Deus, de que existe uma Trindade, mas em crer
em Deus, num Salvador, num Santificador; e objectam que seme­
lhantes proposições são apenas um meio formal e humano de des­
truir toda a genuína recepção do Evangelho, de fazer da religião
uma questão de palavras ou de lógica, em vez de ter a sua sede no
coração. Até aqui, têm razão; os homens podem apoiar-se e, às
vezes, apoiam-se efectivamente nas proposições enquanto estas
expressam noções intelectuais; mas estão enganadas, quando afir­
mam que os homens precisam de fazer assim ou sempre assim
fazem. As proposições podem e devem usar-se, e facilmente se
podem usar como a expressão de factos, não de noções, e são
necessárias à mente da mesma forma que a linguagem é sempre
necessária para denotar factos, para nós mesmos enquanto indiví­
duos e para o nosso intercâmbio com os outros. Mais uma vez, são
úteis no seu aspecto dogmático enquanto asserem e tornam para
nós claras as verdades em que a imaginação religiosa tem de assen­
tar. O conhecimento deve sempre preceder o exercício das afec­
ções. Sentimos gratidão e amor, sentimos indignação e desgosto,
sempre que temos concretamente diante de nós as informações
que devem estimular essas diversas emoções. Amamos os nossos
pais como nossos pais, sempre que os conhecemos como sendo
nossos pais; devemos conhecer Deus, antes de podermos sentir

142 • J o h n H e n ry N e w m a n
amor, temor, esperança ou confiança para com Ele. A devoção
deve ter objectos seus; estes, enquanto sobrenaturais, quando não
representados aos nossos sentidos por símbolos materiais, devem
surgir diante da mente em proposições. A fórmula, que para o teó­
logo encarna um dogma, sugere prontamente ao fiel o objecto.
Parece um truísmo dizer, mas é tudo o que até agora disse, que na
religião a imaginação e as afecções deveriam estar sempre sob o
controlo da razão. A teologia pode existir como ciência substanti­
va, mesmo sem a vida da religião; mas a religião não pode preser­
var a sua base sem a teologia. O sentimento, imaginativo ou
emocional, recorre ao intelecto para a sua permanência, quando
não é possível invocar a acção dos sentidos; e é deste modo que a
devoção recorre ao dogma.

2 . A crença na Tri n dade S an t a

Não posso, naturalmente, esperar arrastar comigo todas as mentes


inquiridoras para aquilo que estabeleci na Secção anterior. Apelei
para o testemunho dado implicitamente pela nossa consciência ao
Ser Divino e aos Seus Atributos, e há aqueles cuja experiência,
como bem sei, não responderá ao apelo: é indubitável; mas haverá
quaisquer verdades que têm realidade, ou pela experiência ou pela
razão, que não sejam postas em causa por algumas escolas de filo­
sofia ou por alguns grupos de homens? Se pressupusermos apenas
o que tem acolhimento universal, o campo das nossas possíveis
dis cussões sofrerá uma grande contracção; pelo que se considerará
s uficie nte em qualquer indagação, se os princípios ou factos pres­
sup ostos tiverem um amplo seguimento. Esta condição é, em gran-

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 143


de parte, satisfeita no tocante à autorl.dade e ao significado religio­
so da consciência - que a consciência é a voz de Deus quase se
tornou um provérbio. Este dogma solene é reconhecido como tal
pela grande massa dos jovens e dos analfabetos, pelos poucos reli­
giosos e pelos muitos irreligiosos. É proclamado na história e na
literatura das nações; tem adeptos em todas as idades, lugares, cre­
dos, formas de vida social, profissões e classes. Preservou o seu fun­
damento sob grandes desvantagens intelectuais e morais; recuperou
a sua supremacia e, por fim, triunfou nas mentes dos que contra ele
se revoltaram. Até filósofos, que foram antagónicos acerca de outros
pontos, concordam em reconhecer a voz interior desse solene Con­
selheiro, pessoal, peremptório, indiscutível, esquivo a responder,
ameaçador, definitivo. Na minha opinião, isto livra-me da necessi­
dade de discutir com aqueles que reduziriam o nosso sentido do
bem e do mal a um sentido do Conveniente ou do Belo, ou referi­
riam as suas sugestões autorizadas ao efeito do ensino ou da associa­
ção. Há quem consiga ver e ouvir para todos os fins comuns da vida,
todavia não têm olhos para as cores e para os seus matizes, ou não
tem ouvido para a música; além disso, há graus de sensibilidade às
cores e aos sons, na comparação de homem com homem, enquanto
outros são cegos ou surdos como pedras. Mais uma vez, todos os
homens, com o tempo, tendem a perder a intensidade da visão e do
ouvido que possuíam na juventude; e assim, de igual modo, pode­
mos perder na vida adulta e na velhice aquele sentido de um Supre­
mo Mestre e Juiz, que foi o dom dos nossos primeiros anos; e tanto
mais que, na maioria dos homens, a imaginação sofre com o fluxo
do tempo e a experiência da vida, muito antes de falharem os senti­
dos corporais. E isto harmoniza-se com o conselho do escritor sagra­
do para «nos lembrarmos do Criador nos dias da nossa j uventude»,
enquanto as nossas sensibilidades morais estão frescas, «antes de o

144 • J o h n H e n ry N e w m a n
sol, a luz, a lua e as estrelas escurecerem, e as nuvens regressarem
após a chuva». Por conseguinte, se há aqueles que negam que o dita­
me da consciência seja sempre mais do que um sabor, ou uma asso­
ciação, é menos difícil para mim acreditar que eles carecem ou do
sentido religioso ou da sua memória dos primeiros anos, do que se
nunca tivessem tido aquilo que os outros, à sua volta, sem hesitação
confessam, no seu caso pessoal, ter recebido da natureza.
E basta, acerca da doutrina do Ser e dos Atributos de Deus, e da
apreensão real com que podemos meditar a seu respeito e a ela
anuir: volto-me agora para a doutrina da Trindade Santa, com o fito
de investigar também em que medida ela pertence à teologia, à fé e à
devoção do indivíduo; em que medida as proposições que a enun­
ciam estão confinadas à expressão de noções intelectuais, até que
ponto estão também em lugar das coisas e admitem o assentimento
dado aos objectos que nos são propostos pela imaginação. E, antes
de mais, tenho de estabelecer o que é a nossa doutrina.
Ninguém que não acredite num Deus Pessoal se deve chamar
Teísta, seja qual for a dificuldade que possa haver em definir a pala­
vra «pessoal». Ora a crença dos Católicos acerca de Ser Supremo é
que esta característica essencial da Sua Natureza é reiterada de três
modos distintos; pelo que o Deus Omnipotente, em vez de ser ape­
nas uma Única Pessoa, que é o ensinamento da Religião Natural,

tem Três Personalidades e, segundo o vemos a Ele numa ou noutra,


é ao mesmo tempo o Pai, o Filho e o Espírito - um Três Divino -
que têm entre si as diversas relações que aqueles nomes indicam e
são , neste aspecto, distintos um do outro, e só nisso.
Este é o ensinamento do Credo de Santo Atanásio: o Único
D eus Pessoal, que não é uma unidade lógica ou física, mas uma
Monas viva, de modo mais real do que um homem individual é
um só - Ele ( » unus», não « unum>>, por causa da inseparabilidade

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 14 5
da Sua Natureza e Personalidade) - é, ao mesmo tempo, Pai,
Filho, Espírito Santo. Cada um deles é este Único Deus Pessoal na
plenitude do Seu Ser e dos Seus Atributos; pelo que o Pai é tudo o
que é significado pela palavra «Deus», como se nada soubéssemos
do Filho ou do Espírito; e, de igual modo, o Filho e o Espírito são
Cada um por si mesmo tudo aquilo que é significado pela palavra,
como se os Outros Dois fossem desconhecidos; além disso, pela
palavra «Deus» nada mais se indica além e acima do que se intenta
com o termo «Pai», ou com o termo «Filho» ou com «Espírito San­
to»; e o Pai em nenhum sentido é o Filho, nem o Filho é o Espírito
Santo, nem o Espírito Santo é o Pai. A prerrogativa da Infinitude
Divina é tal que este Ser Pessoal Único e Singular, o Deus podero­
so, é realmente Três, embora seja absolutamente Único.
De facto, pode dizer-se que o Dogma Católico se resume na
fórmula que Santo Agostinho tanto realça, « Tres et Unus», não ape­
nas « Unum»; ela é, por isso, a nota central, conforme se pode cha­
mar, do Credo de S. Atanásio. Neste Credo, damos testemunho do
Unus Increatus, do Unus Immensus, Omnipotens, Deus e Dominus,
todavia, Cada um dos Três é também por Si mesmo Increatus,
Immensus, Omnipotens, pois Cada um é este Deus Único, embora
Cada um não seja o Outro; Cada um, tal como é proclamado pelo
Unus Increatus, é o Único Deus Pessoal da Religião Natural.
É evidente que esta doutrina, assim delineada, possui um carác­
ter nocional; a questão que se me apresenta é se, em qualquer senti­
do, ela se poderá tornar o objecto de apreensão real, isto é, se
qualquer porção sua se poderá considerar como endereçada à imagi­
nação, e será capaz de exercer a ascendência viva sobre a mente,
exemplificada, como acima mostrei, na proposição «Existe Deus».
O enunciado «Existe Deus», quando realmente apreendido, é o
objecto de uma forte e energética adesão, que opera na mente uma

146 • J o h n H e n ry Newman
revolução; mas, quando afirmado só como uma noção, nada mais
requer do que uma aceitação fria e ineficaz, embora possa também
ser incondicionalmente defendido. Tal é, no seu carácter, o assenti­
mento de milhares, cujas imaginações não são estimuladas, nem os
seus corações inflamados, nem a sua conduta afectada, pela mais
augusta de todas as verdades concebidas. Pergunto, então, a propósi­
to da doutrina da Trindade Santa, tal como esbocei que ela deve ser:
será susceptível de ser apreendida de outro modo a não ser nocional?
Será ela uma teoria, decerto inegável, mas dirigida ao estudante, e a
ninguém mais? Será a exibição elaborada, subtil, triunfante, de uma
verdade, inteiramente desenvolvida e ajustada com felicidade, cuida­
dosamente equilibrada no seu centro, inexpugnável em todas as ver­
tentes, como um prospecto científico, totus, teres, atque rotundusI ,
desafiando todos os assaltantes ou, por outro lado, virá ela ao encon­
tro dos ignorantes, dos jovens, dos sempre ocupados e dos aflitos,
como um facto que os deve prender, imbuir, apoiar e animar na sua
passagem pela vida? Isto é, aceitará ela ser defendida na imaginação e
abraçada com um assentimento real? Afirmo que sim; esta é a fé
normal que cada Cristão tem e na qual se afirma; é a sua vida espiri­
tual; nada há na exposição do dogma, como acima o propus, que
não se dirija à imaginação e também ao intelecto.
Observemos, agora, o que nesta exposição não existe; - não
há nela termos científicos. Não admitirei que «pessoal» seja um
termo assim, porque é uma palavra de uso comum; embora, quan­
do se usa a propósito de Deus, ela não possa significar justamente
o mes mo que quando aplicada ao homem, contudo, é suficiente­
mente elucidada pelo uso comum, para permitir ser referida de
modo inteligível à Natureza Divina. As outras palavras, que ocor-

1 •Integral, forte e rotundo•.

Um a G r a m á t i c a· do A s s e n t i m e n t o • 14 7
rem na anterior justificação da doutrina - Três, Único, Ele, Deus,
Pai, Filho, Espírito, - não são em si peculiares à teologia, têm
todas um significado popular, e usam-se de acordo com este signi­
ficado óbvio e popular, quando inseridas no dogma Católico.
Nenhumas palavras humanas são, de facto, dignas do Ser Supre­
mo, nenhumas são adequadas; mas não temos outras palavras para
usar a não ser as humanas, e as mencionadas são das mais simples e
inteligíveis com que na linguagem se depara.
Não há, pois, na exposição precedente, termos que não acatem
um sentido simples, e neste sentido se empregam; além disso, este
sentido é o que eu denominei real, pois as palavras, no seu uso
ordinário, estão em vez das coisas. As palavras, Pai, Filho, Espírito,
Ele, Único e o resto, não são termos abstractos, mas concretos e
aptos a excitar imagens. E essas palavras, simples e claras, estão
inseridas em proposições simples, claras, breves, mas categóricas.
Também nada de abstruso existe nos próprios termos ou no seu
enquadramento. O caso, sem dúvida, muda de figura com os trata­
dos teológicos formais em torno do dogma. Deparamos neles com
palavras como substância, essência, forma, subsistência, noção, cir­
cumincessão; e embora estas sejam muito mais fáceis de entender
do que à primeira vista se possa pensar, ainda assim, elas dirigem­
se, decerto, ao intelecto, e podem somente requerer um assenti­
mento nocional.
Advertir-se-á também que nem sequer as palavras «misteriosi­
dade» e «mistério» ocorrem na exposição, que acima acerca da
doutrina ofereci; omiti-as, porque não são partes da Verdade Divi­
na enquanto tal, mas em relação às criaturas e ao entendimento
humano; e porque são de carácter nocional. É evidente, sem dúvi­
da, mesmo à primeira vista, que a doutrina é um mistério impers­
crutável, ou tem uma misteriosidade insondável; poucas mentes,

148 • J o h n H e n ry N e w m a n
de facto, têm teologia suficiente para ver isso; e se um homem
educado, a quem ela é apresentada, não apreender imediatamente
este carácter misterioso é um sinal seguro de que não captou cor­
rectamente as proposições, que contêm a doutrina. Depreende-se
daí que a tese «a doutrina da Trindade Santa na Unidade é miste­
riosa» é indirectamente um artigo da fé. Mas semelhante artigo,
por ser uma reflexão feita a propósito de uma verdade revelada
numa inferência, expressa uma noção, não uma coisa. Não se refe­
re à apreensão directa do objecto, mas a um juízo da nossa razão
sobre o objecto. Por conseguinte, a misteriosidade da doutrina não
é, em termos estritos, a ela intrínseca, tal como é proposta à
apreensão religiosa, embora realmente uma mente devota, ao vis­
lumbrar esta misteriosidade, dela com amor se apropriará como
implicada na revelação divina; e assim como essa mente orientará
todos os pensamentos que lhe ocorrem para um uso sagrado, assim
também reflectirá sobre o mistério da Trindade com reverência e
veneração, como uma verdade que, por assim dizer, se harmoniza
com a Imensidade e a Incompreensibilidade do Ser Supremo.
Todavia, não propus o mistério como o objectivo directo da
apreensão real ou religiosa; nem também a doutrina complexa
(quando é vista, per modum unius, como um todo) em que reside o
mistério. Advirta-se que é possível à mente asserir várias proposi­
ções quer na sua combinação como um todo, quer uma a uma;
uma a uma, com uma percepção inteligente de todas e da orienta­
ção geral de cada uma para o resto, e ainda de cada uma em sepa­
rado do resto, só por mor dela, e não em conexão, e de uma
j untamente com o resto. Posso, assim, conhecer muito bem Lon­
dres, achar, sem dificuldade, o meu caminho de rua a rua em qual­
quer parte sua e, todavia, ser incapaz de desenhar o seu mapa. A
co mparação, o cálculo, a catalogação, o arranjo e a classificação são

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 149
actos intelectuais subsequentes, e não necessários para uma apreen­
são real das coisas em que eles se levam a cabo. Em rigor, pois, o
dogma da Trindade Santa, como um todo complexo, ou como
mistério, não é o objecto formal da apreensão e do assentimento
religiosos; mas enquanto é um conjunto de proposições, tomadas
uma a uma. Este todo complexo é, pois, o objecto do assentimen­
to, mas é o objecto nocional; e, quando proposto às mentes reli­
giosas, é por elas nocionalmente acolhido; e também de modo
implícito, ou seja, no assentimento real que elas dão à palavra de
Deus enquanto a elas transmitida por meio da instrumentalidade
da Sua Igreja. Será bom alargar a discussão destes pontos.
Sem dúvida, como tenho dito, um homem de inteligência
normal ficará, de repente, impressionado com o aparente antago­
nismo recíproco das proposições entre si que constituem o Dogma
Celeste e, em virtude da actividade espontânea da sua mente e ain­
da de uma associação habitual, será compelido a ver o Dogma à
luz desta oposição - tanto mais que anuir a uma e a todas estas
proposições separadas será, para esse homem, a mesma coisa que
afirmar o mistério enquanto mistério; e, por conseguinte, a ele
anuirá; - mas, ainda assim, repito, aderirá a ele só com uma
apreensão nocional. Aceitará cuidadosamente o significado de cada
uma das proposições dogmáticas na sua relação com as restantes,
combinando-as num todo e abarcando o que ele não consegue
imaginar com um assentimento, nocional decerto, mas tão genuí­
no e perfeito como o pode ser qualquer assentimento real. Mas a
questão é se um assentimento real ao mistério, enquanto tal, será
possível; e digo que não é possível porque, embora consigamos
imaginar as proposições separadas, não as podemos imaginar no
seu conjunto. Não podemos, j ustamente porque o mistério trans­
cende toda a nossa experiência; não temos na nossa memória expe-

150 • J o h n H e n ry N e w m a n
riências que possamos reunir, comparar, contrastar, unir e, deste
modo, transmutar em imagem da Verdade Inefável; - sem dúvi­
da; mas o que em certa medida é uma questão de experiência, o
que é proposto à imaginação, às afecções, à devoção, à vida espiri­
tual do Cristão para aí se firmar com um assentimento real, o que
está em vez das coisas e não apenas das noções, é cada uma das
proposições tomadas uma a uma, e tal, não só no caso das mentes
intelectuais e reflexivas, mas de todas as mentes religiosas, no caso
de uma criança, de um camponês e também de um filósofo.
Este é apenas um exemplo de um princípio geral que se
aguenta bem em todas as apreensões reais, como nos são possíveis,
de Deus e dos Seus Atributos. Não só O vemos, quando muito,
apenas em sombras, mas nem sequer conseguimos juntar essas
sombras, porque elas fogem de um lado para outro, e nunca nos
estão presentes ao mesmo tempo. Podemos, sem dúvida, mediante
um acto do intelecto, combinar as várias questões que a Seu respei­
to conhecemos, e tratá-las teologicamente, mas tais combinações
teológicas não são objectos para o olhar da imaginação. A nossa
imagem dEle nunca é única, mas fragmentada em inúmeros aspec­
tos parciais, entre si independentes. Assim como não podemos
contemplar ao mesmo tempo todo o firmamento estrelado, mas
temos de nos virar do Oriente para o Ocidente e, em seguida, de
novo para o Oriente, vendo primeiro uma constelação e, depois,
outra, e perdendo estas para enxergarmos aquelas, assim sucede, e
muito mais, com as apreensões reais que conseguimos garantir
acerca da Natureza Divina. Acerca dEle conhecemos uma verdade
e mais outra - mas não conseguimos imaginar as duas ao mesmo
tempo; não conseguimos pô-las diante de nós por um só acto da
mente; deixamos uma enquanto nos viramos para considerar a
outra. Nenhuma delas atrai plenamente a atenção ou se frui, quan-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 151
do olhadas na sua combinação. Além di sso, a nossa devoção é pos­
ta à prova e confundida pela longa lista de proposições que a teolo­
gia é obrigada a extrair, pelas delimitações, explicações, definições,
ajustamentos, equilíbrios, precauções, proibições arbitrárias, que
são imperativamente requeridos pela fraqueza do pensamento
humano e pelas imperfeições das linguagens dos homens. Tais
exercícios de raciocínio apenas intensificam e harmonizam a nossa
apreensão nocional do dogma, mas pouco acrescentam à luminosi­
dade e à força vital com que as suas proposições separadas se insi­
nuam à nossa imaginação; e se forem necessárias, como decerto
são, não é em vista da fé, mas contra a descrença.
Decomponhamos um raio de luz nas suas cores constitutivas,
cada uma é bela, cada uma pode ser desfrutada; tentemos uni-las e
talvez suscitemos apenas um branco sujo. A Luz pura e indivisível
é contemplada apenas pelos felizes habitantes dos céus; aqui,
temos dela somente reflexos desmaiados fornecidos pela sua difrac­
ção; mas são suficientes para a fé e a devoção. Tentemos combiná­
los num só, e nada obteremos a não ser um mistério, que podemos
descrever como uma noção, mas nunca tingir como uma imagina­
ção. E o que é verdade acerca dos Atributos Divinos verifica-se
também com a Trindade Santa na Unidade. É por isso, talvez, que
a última doutrina nunca é referida como um Mistério no livro
sagrado, endereçado muito mais à imaginação e aos afectos do que
ao intelecto. Daí também - e é mais notável - que nos Credos
não se chame ao dogma um mistério; não no dos Apóstolos, não no
de Niceia, nem sequer no de S. Atanásio. A razão, aparentemente, é
porque os Credos se inscrevem no Ritual; são actos de devoção,
têm a natureza de orações, dirigidas a Deus; e, em tais invocações,
falar de dificuldades intelectuais seria deslocado. Importa recordar
sobretudo que o Credo de S. Atanásio foi, por vezes, chamado o

I52 • J o h n H e n ry N e w m a n
«Psalmus Quicumque>>. Não se trata de uma simples colecção de
noções, por importantes que sejam. É um salmo ou hino de lou­
vor, de confissão, de profunda e auto-rendida homenagem, com­
parável aos cânticos dos eleitos no Apocalipse. Apela tanto para a
imaginação quanto para o intelecto. É o canto guerreiro da fé com
que, primeiro, nos incentivamos a nós mesmos, em seguida, uns
aos outros e, depois, a todos aqueles que estão ao alcance da sua
escuta, e da escuta da Verdade, que é o nosso Deus; e de como O
devemos adorar, e quão grande será a nossa responsabilidade, se
conhecermos aquilo em que devemos crer e, no entanto, não cre­
mos. É

O Salmo que congrega numa esplêndida balada


Todos os cantos que alguma vez desceram do céu à terra;
Credo dos Santos, Hino dos Bem-aventurados
E admoestação calma e serena do mais terno amor,
Que um dia agfrou o peito de uma mãe vigilante.

Quanto a mim, sempre divisei nele o formulário mais simples


e sublime, mais ardente na devoção, que o Cristianismo alguma
vez suscitou, mais ainda do que o �ni Creator e o Te Deum. Inclu­
sive, a forma antitética das suas frases, uma pedra de escândalo
para tantos, e que aparentemente impõe, e exulta em impor um
mistério a mentes recalcitrantes, tem, para a minha apreensão,
mesmo nocionalmente considerada, um fascínio muito diferente.
É intentada como um escrutínio dos nossos raciocínios, para não
se transviarem numa direcção fora dos limites da verdade e os
reconduzir à direcção oposta. Implica, sem dúvida, uma glorifica­
ção no Mistério; mas não é apenas um enunciado do Mistério em
virtude do seu carácter misterioso.

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 1 53
Mais notável ainda é que semelhante silêncio quanto à misterio­
sidade da doutrina se observe, a seu respeito, nas sucessivas defini­
ções da Igreja. Ao longo dos séculos, profere-se confissão após
confissão, cânone após cânone; Papas e Concílios viram como dever
seu insistir sempre de novo no dogma; enunciaram-no em novas ou
adicionais proposições; mas, tanto quanto sei, nem sequer nos seus
formulários mais elaborados utilizam a palavra «mistério». O grande
Concílio de Toledo insiste nas ramificações científicas da doutrina,
com a exacta diligência da teologia, numa extensão quatro vezes a do
Credo de S. Atanásio; ou N Concílio de Latrão completa, com uma
declaração final, o desenvolvimento da sagrada doutrina segundo o
espírito de Santo Agostinho; o Credo do Papa Pio N prescreve a
regra geral da fé contra as heresias das épocas mais recentes; mas em
nenhum deles deparamos ou com a palavra «mistério» ou com qual­
quer sugestão de misteriosidade.
Tal é o uso da Igreja nas suas declarações dogmáticas acerca de
Trindade Santa, como se assim desse cumprimento à máxima Lex
orandi, lex credendz1 . Suponho que ele se funda numa tradição,
pois o costume é diferente no tocante aos catecismos e aos tratados
teológicos. Estes pertencem a épocas e a lugares particulares e diri­
gem-se ao intelecto. Neles, sem dúvida, a misteriosidade da doutri­
na é quase objecto de uma insistência uniforme. Mas, embora se
tenha de explicar este uso contrastado, os Credos são suficientes
para mostrar que o dogma se pode ensinar na sua plenitude para
os fins da fé e da devoção popular, sem directamente se insistir no
carácter misterioso que, de modo necessário, está implicado na
visão combinada das suas proposições isoladas. Este todo sistemati-

1 «A lei da oração é a lei da fé•.

1 54 • John H e n ry Newman
zado é o objecto do assentimento nocional, e as suas proposições,
uma a uma, são os objectos do assentimento real.
Para tal efectivamente demonstrar, vou enumerar as proposi­
ções separadas em que consiste o dogma. São nove, e apresentam­
-se assim:
1 . Há Três que dão testemunho no céu, o Pai, a Palavra ou o
Filho e o Espírito Santo. 2. Do Pai é, e sempre foi, o Filho. 3. Do
Pai e do Filho é, e sempre foi, o Espírito.
4. O Pai é o Único Deus Pessoal e Eterno. 5 . O Filho é o
Único Deus Pessoal e Eterno. 6. O Espírito é o Ú nico Deus Pes­
soal e Eterno.
7. O Pai não é o Filho. 8. O Filho não é o Espírito Santo. 9 .
O Espírito Santo não é o Pai.
Ora, segundo penso, é um facto que, embora estas nove pro­
posições contenham o Mistério, contudo, tomadas não como um
todo, mas separadamente, cada uma por si, são não só apreensí­
veis, mas permitem uma apreensão real.
Assim, por exemplo, se a proposição «Existe um Único que dá
testemunho de si mesmo» ou «se revela a Si mesmo» acatar um
assentimento real, porque não o faz também a proposição «Há Três
que dão testemunho»?
Além disso, se a palavra «Deus» pode suscitar uma imagem
nas nossas mentes, porque não acontecerá assim também com a
proposição «0 Pai é Deus»? ou ainda, «0 Filho» ou «O Espírito
Santo é Deus»?
Ademais, dizer que «0 Filho é diferente do Espírito Santo» ou
«Nem o Filho nem o Espírito Santo é o Pai» não é uma simples
negativa, mas uma declaração de que Cada um do Três Divino por
Si mesmo é em Si completo, simples e absolutamente Deus como
se os Outros Dois nos não fossem revelados.

U m a Gramárica do Assentimento • 155


E ainda, a partir da nossa experiência das obras do homem,
aceitamos com uma apreensão real a proposição «Üs Anjos são fei­
tos por Deus», corrigindo a palavra «feitos», como se exige no caso
de um Poder criador e de uma obra espiritual: - então, porque é
que, em matéria semelhante, não poderemos refinar e melhorar a
analogia humana, preservando todavia a imagem, quando um
Nascimento Divino nos é proposto em termos que, em rigor, se
inscrevem no que é humano e terreno? Se a nossa experiência nos
capacita para apreender o facto essencial da filiação como uma
comunicação de ser e de natureza de um a outro, porque não deve­
remos também, em certa medida, imaginar a proposição <<A Pala­
vra é o Filho de Deus»?
Mais uma vez, temos na natureza numerosos exemplos da lei
geral de uma coisa que deriva de outra ou de outras: assim como a
criança surge no homem como o seu quase-sucessor, e a criança e o
adulto surgem no ancião como ambos, mas não os mesmos, tão
diferentes que quase têm uma personalidade viva distinta de cada
um, assim podemos formar alguma imagem, embora vaga, da pro­
cessão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho. É isto o que eu
deveria dizer das proposições a que atribuí o número de dois e três,
que são ao menos susceptíveis de um assentimento real entre as
nove.
À primeira vista, basta; mas a força do que afirmei entender­
-se-á melhor, se atendermos ao que a Escritura e o Ritual da Igreja
atestam em concordância com isso. Na referência a estes dois gran­
des depósitos da fé e da devoção, devo pressupor, como quando
me referi ao Ser de Deus, que não estou a demonstrar por seu
intermédio o dogma da Trindade Santa, mas a servir-me de um ou
de outro para ilustrar a acção dos artigos isolados deste dogma
sobre a imaginação, embora a verdade complexa em que, quando

I56 • J o h n H e n ry N e w m a n
combinados, eles surgem não esteja com ela em consonância ou
correspondência, mas de todo além dela; e, de seguida, a acção e a
influência desses artigos separados, mediante a imaginação, sobre
os afectos e a obediência dos Cristãos, da alta e baixa Igreja.
Entendido isto, pergunto: que capítulo de S. João ou de S.
Paulo não está cheio dos Três Nomes Divinos, inseridos numa ou
noutra das nove proposições acima mencionadas, expressos ou
implícitos, nos seus lugares paralelos, em partes ou em equivalen­
tes delas? Que lição nos é dada aí por estes dois grandes escritores
do Novo Testamento, que não tenha dimanado das Três Pessoas e
das Suas Funções? Umas vezes, lemos acerca da graça da Segunda
Pessoa, do amor da Primeira e da comunicação da Terceira; outras,
é-nos dito pelo Filho, «Pedirei ao Pai, e Ele enviar-vos-á outro
Parádito»; e, em seguida, «Tudo o que o Pai tem é meu; o Parácli­
to receberá de Mim». Depois, mais uma vez, lemos a propósito da
«predestinação do Pai, da santificação do Espírito, do Sangue de
Jesus Cristo»; e, de novo, devemos «orar no Espírito Santo, habitar
no amor de Deus e buscar a misericórdia de Jesus». E assim, de
igual modo, a Cada uma, em diferentes passagens, são atribuídos
os mesmos títulos e as mesmas obras: Cada uma é reconhecida
como Senhor; Cada uma é eterna; Cada uma é a Verdade; Cada
uma é a Santidade; Cada uma é tudo em tudo; Cada uma é o
Criador; Cada uma quer com uma suprema Vontade; Cada uma é
o autor do novo nascimento; Cada uma fala-nos nos Seus minis­
tros; Cada uma é o Revelador; Cada uma é o Legislador; Cada
uma é o Mestre dos eleitos; em Cada uma têm comunhão os elei­
to s; Cada uma os guia; Cada uma os ressuscita dos mortos. Que é
tudo isto senão «O Pai eterno, o Filho eterno e Espírito Santo eter­
no; o Pai, o Filho e Espírito Santo Omnipotente; o Pai, o Filho e o
Espírito Santo Deus» do Credo de S. Atanásio? E se o Novo Testa-

U m a G r a m á r i c a d o Ass e n t i m e n t o • I 57
mento é, como expressamente é, tão real no seu ensinamento, tão
luminoso, tão impressionante, tão constringente, tão repleto de
imagens, tão sóbrio em simples noções, donde procede tudo isso a
não ser porque, nas suas referências ao Objecto do nosso culto
supremo, está sempre suscitando as mudanças (por assim dizer)
nas nove proposições que eu estabeleci, e nos enunciados particu­
lares em que elas se podem diversamente resolver?
Tomemos uma delas como exemplo, a saber, o enunciado dog­
mático « 0 Filho é Deus». A ilustração do assentimento real que se
pode dar a esta proposição e ao seu poder sobre as nossas afecções
e emoções é a primeira metade do primeiro capítulo do evangelho
de S . João! Ou, então, a visão de Nosso Senhor no primeiro capí­
tulo do Apocalipse! Ou o primeiro capítulo da primeira Epístola
de S. João! Mais uma vez, como são ardentes as palavras de S. Pau­
lo, quando fala da crucificação e da morte de Nosso Senhor! Qual
o segredo desta chama, senão a mesma frase dogmática, « 0 Filho é
Deus»? Porque deveria a morte do Filho ser mais veneranda do que
qualquer outra morte, excepto porque Ele, embora homem, era
.
Deus? E assim, mais uma vez, ao longo de todo o Antigo Testa­
mento, que é que dá uma interpretação e um poder persuasivo a
tantas passagens e secções, sobretudo dos Salmos e dos Profetas, a
não ser esta mesma fórmula teológica, « 0 Messias é Deus»? Esta
proposição, na mente religiosa, nunca poderia dar tal vida à letra
do texto sagrado, a não ser que apelasse para a imaginação e pudes­
se ser aceite com um assentimento muito mais forte do que qual­
quer outro, apenas nocional?
Esta mesma força do dogma pode ser ilustrada a partir do
Ritual. Consideremos a liturgia do Natal ou da Epifania; da Pás­
coa, da Ascensão e (poderei dizer) sobretudo do Corpo de Deus;
que são todas estas festividades a não ser comentários das palavras,

158 • J o h n H e n ry N e w m a n
«Ü Filho é Deus»? Todavia, quem dirá que elas têm a subtileza, a
aridez, a frieza da mera ciência escolástica? Dirigem-se ao puro
intelecto ou à imaginação? Interessam à nossa faculdade lógica ou
excitam a nossa devoção? Porque é que, pessoalmente, nos acha­
mos, com frequência, tão renitentes a nelas tomar parte, excepto
porque não somos suficientemente bons, porque, no nosso caso, o
dogma é muito mais uma noção teológica, e não tanto uma ima­
gem que vive dentro de nós? E assim, também, em relação à
Divindade do Espírito Santo: consideremos os ofícios do breviário
para o Pentecostes e para a sua Oitava, porventura a maior em todo
o ano; serão eles criados a partir de simples abstracções e inferências
ou daquilo que, por vezes, chamamos distinções metafísicas, ou não
terá a proposição categórica de S. Atanásio, «Ü Espírito Santo é
Deus», um lugar igual na imaginação e no coração, que baste para
fazer nascer os nobres hinos, Veni Creator e Veni, Sancte Spiritus?
Resumo, pois, em vista do mesmo efeito, como na secção pre­
cedente. A religião tem a ver com o real, e o real é o particular; a
teologia lida com o nocional, e o nocional é o geral e o sistemático.
Logo, a teologia tem de se ocupar do Dogma da Trindade Santa
como de um todo constituído por muitas proposições; mas a Reli­
gião lida com cada uma das proposições isoladas que o compõem,
vive e cresce na contemplação que delas faz. Nelas encontra os
motivos para a devoção e a obediência fiel; enquanto a teologia,
por outro lado, as forma e protege em virtude da sua função de as
considerar, não só uma a uma, mas como um sistema de verdade.
Uma outra observação tem aqui lugar. Se, como demonstrei,
os artigos isolados do Credo de S. Atanásio têm uma ligação tão
íntima com a religião vital e pessoal, se fornecem os motivos com
que um homem pode agir, se determinam o estado da mente, os
pensamentos, as afecções e os hábitos especiais, que ele leva consi-

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • l 59
go deste mundo para o próximo, haverá razão para se espantar de
que o Credo proclame, alto e bom som, que aqueles que interior­
mente não são, como Cristo, por meio ele, veio para os fazer, não
estejam capacitados para o céu, para onde Ele os leva, mediante a
Sua morte? Não será a importância de aceitar o dogma a verdadei­
ra explicação desta cuidadosa minúcia com que umas quantas ver­
dades simples, que o compõem, são inculcadas e reiteradas no
Credo? E deverá a Igreja de Deus, à qual foi confiada «a dispensa­
ção» do Evangelho, esquecer a obrigação concomitante, «Ai de
mim, se não pregar o Evangelho»? Atrairão os seus ministros, pelo
seu silêncio, o anátema do Profeta, «Maldito aquele que fez a obra
do Senhor com engano»? Poderão eles, alguma vez, esquecer a
lição que lhes foi transmitida no protesto do Apóstolo, «Deus sabe
como a nossa pregação no meio de vós não foi Sim e Não . . . pois
somos o bom odor de Cristo para Deus naqueles que estão no
caminho da salvação, e naqueles que morrem. Pois não somos
como muitos, que adulteram a palavra de Deus; mas com sinceri­
dade, como que a partir de Deus, na presença de Deus, assim fala­
mos em Cristo» 1 ?

3 . A crença n a t e o l o gi a d o gm á t i c a

Uma acusação familiar contra a Igreja Católica na boca dos seus


adversários é que ela impõe aos seus filhos, como matérias de fé,
não só dogmas que têm uma relação estreita com a conduta moral
e o carácter, mas também um grande número de doutrinas que

1 Vide nota II, p. 477.

1 60 • J o h n H e n ry N e w m a n
ninguém, a não ser os teólogos profissionais, consegue entender e
que, por conseguinte, apenas oprimem a mente e são o alimento
perpétuo da controvérsia. O primeiro a fazer esta queixa foi, nada
mais nada menos, um homem como o grande Constantino, e jus­
tamente na altura em que surgiu a origem da heresia ariana, que
ele, ainda catecúmeno, se dignou considerar como um erro trivial
e tolerável. Para decidir a questão, escreveu de imediato uma carta
a Alexandre, bispo de Alexandria, e a Ario, que era presbítero na
mesma cidade, exortando-os a abandonar a questão em disputa e a
viver em paz um com o outro. E recebeu uma resposta através da
convocação do Concílio de Niceia e da inserção da palavra «Con­
substancial» no Credo da Igreja.
O que o Imperador pensava acerca da própria controvérsia
pensou-o também o bispo Jeremy Taylor a propósito da inserção
de «Consubstancial», a saber, que era um caso deletério e jamais
devia ter ocorrido. Cita e comenta assim a missiva do imperador:
«A Carta de Constantino a Alexandre e a Ario diz a verdade, cen­
sura os dois por terem iniciado a questão, a Alexandre porque a
desencadeou, a Ario porque a reteve. E, embora seja verdade que
teria sido melhor para a Igreja se nela nunca se tivesse embarcado,
todavia, uma vez iniciada, que fazer com ela? A este respeito temos
também, nessa admirável carta, o juízo do Imperador (suponho
que não sem o conselho e o valimento de Hósio) , . . . primeiro, cha­
ma-lhe ele uma certa questão inútil, que começou mal e se tornou
pública de modo imprudente - uma questão que nenhuma lei ou
cânone eclesiástico definiu; uma disputa infrutífera; produto de
cérebros ociosos; um assunto tão belo, tão obscuro, tão intrincado
que nunca seria explicado pelo clero nem entendido pelo povo;
uma querela de palavras, uma doutrina inexplicável, mas suma­
mente perigosa quando ensinada, porque susceptível de introduzir

Uma G r a m á t i c a d o Assen r i m e n r o • I61


a discórdia ou a blasfémia; e, portanto, precipitado foi o objector,
imprudente a resposta, pois não dizia respeito nem à substância da
fé ou ao culto de Deus nem ao mandamento principal da Escritu­
ra; logo, porque haveria ela de ser matéria de discórdia? Pois,
embora a matéria seja grave, contudo, por não ser nem necessária
nem explicável, a disputa é trivial e uma ninharia. . . Se, pois, a
questão não tinha importância, mas era vã e uma niquice em rela­
ção às excelentes bênçãos da paz e da caridade, seria bom que Ale­
xandre e Ario deixassem de se guerrear, guardassem para si as suas
opiniões, pedissem reciprocamente perdão e fossem mutuamente
tolerantes» 1 .
Além disso, Taylor é de opinião - uma opinião contrária ao
facto histórico - que «ambos acreditavam num único Deus e na
Trindade Santa». Afirma, pois, que «a melhor fé é a que tem maior
simplicidade; que, de qualquer modo, mais vale submeter-se com
humildade do que inquirir curiosamente ou intrometer-se no mis­
tério sob a nuvem e aventurar-se à fé melhorando conhecimento».
É, além disso, de opinião que, «se os Padres de Niceia assim tives­
sem também feito, possivelmente a Igreja jamais de tal se teria
arrependido». Pensa ainda que a decisão de inserir o «Consubstan­
cial» no Credo foi um mau precedente.
Se isso terá sido, provavelmente, agir, ou não, como um prece­
dente - de facto não foi bem assim, pois já decorreram mil e qui­
nhentos anos desde o Concílio de Niceia, e trata-se do único
exemplo de um termo científico inserido no Credo, desde esse dia
até agora. E, ao fim e ao cabo, a palavra em questão tem um signi­
ficado claro, tal como o Concílio o usou, estabelecido sem dificul­
dade e a todos inteligível; pois, «consubstancial ao Pai» significa

1 Libert:y ofProphesying. § 2.

162 • John Henry N e w m a n


apenas «realmente um só com o Pai» e foi adoptado para obviar ao
subterfúgio dos Arianos. O Credo permanece, então, agora o que
foi no início, uma forma popular de fé, adequada a todas as ida­
des, classes e condições. As suas declarações são categóricas, breves,
claras, elementares, de primeira importância, expressivas do con­
creto, dos objectos da apreensão real, a base e a regra da devoção.
Quanto à genuína fórmula de Niceia, afora o único termo «Con­
substancial», não tem palavra alguma que não se refira aos factos
rudimentares do Cristianismo. Os Símbolos Niceno-constantino­
politanos e os diversos Símbolos anteriores a Niceia, dos quais um
é o dos Apóstolos, acrescentam sumariamente um ou dois artigos
nocionais, como «a comunhão dos Santos» e «a remissão dos peca­
dos» que, todavia, se podem facilmente transformar em proposi­
ções reais. Por outro lado, um dogma fundamental, que é fácil
para a apreensão popular, está necessariamente ausente de todos
eles, a Presença Real; mas a omissão deve-se à antiga «Disciplina
ArcanÍ>>, que ocultava o Mistério Sagrado aos catecúmenos e aos
pagãos, dos quais o Credo era conhecido.
Até aqui, a crítica que Taylor propõe não tem grande plausibi­
lidade; mas ainda não é tudo. Não posso negar que um longo e
sempre crescente agregado de proposições, de noções abstractas,
não de verdades concretas, se tornou, pelas sucessivas definições
dos Concílios, uma parte dos credenda e se impõe imperativamente
à fé de cada Católico; e, sendo assim, perguntar-se-me-á como é
que pelos factos sou levado a alargar-me, como fiz, sobre a simpli­
cidade, o carácter directo e a realidade tangível dos ensinamentos
dogmáticos da Igreja.
Suporei assim a objecção levantada: porque é que a Igreja
Católica não limitou os seus credenda a proposições como as que
aparecem no Credo, concretas e práticas, de fácil apreensão e de

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 1 63
uma índole que suscita o assentimento - por exemplo, «Cristo é
Deus»; «Isto é o meu Corpo»; «Ü baptismo dá vida à alma»; «Üs
Santos intercedem por nós»; «A morte, o juízo, o céu e o inferno
são as últimas quatro coisas»; «Há sete dons do Espírito Santo»,
«três virtudes teologais», «sete pecados capitais» e quejandos, como
se encontram nos seus catecismos? Em contrapartida, ela obriga
todos, padres e leigos, a declarar como verdade revelada todos os
cânones dos Concílios e inumeráveis decisões dos Papas, proposi­
ções tão diversas, tão nocionais que só alguns as podem conhecer e
bastante menos compreender. Que sentido, por exemplo, pode uma
criança, um camponês, mais, qualquer Católico ordinário, atribuir
aos Cânones tridentinos, mesmo em tradução - como «Siquis dixe­
rit homines sine Christi justitia, per quam nobis meruit, justificari, aut
per eam ipsam formaliter justos esse, anathema si't>>I ou «Siquis dixerit
justificatum peccare, dum intuitu teternte mercedis bene operatur, ana­
thema si't>>2? Ou consideremos então o autêntico anatematismo
acrescentado pelo Concílio de Niceia ao seu Credo, cuja linguagem
é tão obscura que até os teólogos divergem a propósito do seu signi­
ficado. Reza ele do modo seguinte: - «Üs que dizem que, no iní­
cio, o Filho não existia, que antes de ser gerado não existia, que foi
feito a partir daquilo que não era, ou que sustentam que Ele era de
outra hipóstase ou substância, ou que o Filho de Deus é criado,
mutável ou sujeito a alteração, são anatematizados pela Igreja Santa,
Católica e Apostólica». Estes enunciados doutrinais são de fide, a
acreditar neles estão obrigados tanto os camponeses como os contro­
versialistas, e a acreditar neles tão verdadeiramente como acreditam

1 «Se alguém disse que os homens se justificam sem a justiça de Cristo, pela qual ele nos redi­

miu, ou por ela própria são formalmente justos, seja anátema».


2 «Se alguém disse que quem foi justificado peca, enquanto pratica o bem tendo em vista o
prémio eterno, seja anátema».

1 64 • J o h n H e n ry N e w m a n
que o nosso Senhor é Deus. Como é que então os credenda católicos
são fáceis e estão ao alcance de todos os homens?
Inicio a minha resposta a esta objecção, recorrendo ao que já
se afirmou acerca da relação da teologia com as suas proposições
nocionais para o assentimento religioso e devocional. A devoção é,
sem dúvida, excitada pelas verdades simples e categóricas da revela­
ção, como os artigos do Credo; depende destes; com eles se satis­
faz. Aceita-as uma a uma; não se preocupa com a sua consistência
intelectual; retira de cada uma o alimento espiritual que assim se
pretende fornecer. Muito diferente, decerto, é natureza e a função
do intelecto. Ele é sempre activo, inquiridor, penetrante; examina
doutrina e doutrina; compara-as, contrasta-as, erige-as em ciência;
esta ciência é a teologia. Ora a ciência teológica, enquanto exercí­
cio do intelecto acerca dos credenda da revelação e embora não
directamente devocional, é ao mesmo tempo natural, excelente e
necessária. É natural, porque o intelecto é uma das nossas faculda­
des mais elevadas; excelente, porque é dever nosso usar plenamente
as nossas faculdades; necessário, porque, se não aplicarmos correc­
tamente o nosso intelecto à verdade revelada, outros hão-de nela
exercer de um modo erróneo as suas mentes. Por conseguinte, o
intelecto católico leva a cabo um exame e um catálogo das doutri­
nas contidas no depositum da revelação, tal como foi confiado à
guarda da Igreja; situa, ajusta, define cada uma delas, insere-as
num todo. Além disso, aborda aspectos ou fragmentos particulares
s eus; analisa-as ou nos seus reais e genuínos primeiros princípios
ou em hipóteses de carácter ilustrativo. Forma generalizações e dá­
-lhes nomes. Todas estas deduções são verdadeiras, se correctamen­
te feitas, porque são inferidas a partir do que é verdadeiro; e, por
conseguinte, são em certo sentido uma porção do depositum da fé
ou dos credenda, enquanto, noutra acepção, são adições suas: toda-

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 165
via, adições, ou não, têm - e prontamente concedo - a caracte­
rística desvantagem de serem enunciados abstractos e nocionais.
Mas isto não é tudo: o repúdio do erro é muito mais frutífero
nos acrescentos do que a injunção da verdade. Há outro conjunto
de deduções, também inevitável, igualmente parte, ou não, dos
credenda revelados, conforme nos comprazemos em vê-las. Se uma
proposição é verdadeira, a sua contraditória é falsa. Se, pois, um
homem acredita que Cristo é Deus, acredita também, e isto neces­
sariamente, que é falso dizer que Ele não é Deus, e que estão no
erro os que assim se expressam. Aqui, então, a perspectiva abre-nos
de novo uma multidão inumerável de proposições que, nos seus
primeiros elementos, são muito chegadas à verdade devocional, -
de grupos de proposições, e decerto grupos divergentes, indepen­
dentes, sempre jorrando para a vida com uma fecundidade inesgo­
tável, em consonância com as formas sempre emergentes da
heresia, às quais eles são antagónicos. Também eles têm o seu lugar
na ciência teológica.
Tal é a teologia em contraste com a religião; e como ela dimana
das circunstâncias da sua formação, embora alguns dos seus enuncia­
dos facilmente encontrem equivalentes na linguagem da devoção, o
maior número deles é mais ou menos ininteligível ao católico ordi­
nário, tal como acontece com os livros de Direito em relação ao
cidadão privado. E, em especial, as partes da teologia que são uma
criação indirecta, não do pensamento ortodoxo, mas herético, como
as repudiações do erro contidas nos Cânones dos Concílios, das
quais se aduziram acima alguns exemplos, serão sempre exóticas,
estranhas e difíceis para a mente piedosa, porém, incontroversas;
pois, que terão de fazer os bons Cristãos, no decurso habitual das
coisas, com as subtis alucinações do intelecto? Isso é manifesto a par­
tir da natureza de cada caso; mas, em seguida, reaparece a questão:

166 • J o h n H e n ry N e w m a n
porque é que as refutações da heresia têm de ser os nossos objectos
de fé? Se nenhuma mente, teológica ou não, pode acreditar no que
se não pode entender, em que sentido podem os Cânones dos Con­
cílios e outras determinações eclesiásticas ser incluídos nos credenda
que a Igreja apresenta a cada católico como se fossem apreensíveis, e
a que todo o católico dá o seu firme assentimento interior?
Na solução desta dificuldade, desejo, primeiro, advertir que, se é
dever da Igreja actuar como «a coluna e o fundamento da verdade»,
ela está manifestamente obrigada, de tempos a tempos e até ao fim
do tempo, a denunciar opiniões incompatíveis com essa verdade,
sempre que mentes capazes e subtis ousem, na sua comunhão,
publicar tais opiniões. Se, por suposição, certos bispos e sacerdotes
começassem hoje a ensinar que o Islamismo ou o Budismo era uma
revelação directa e imediata de Deus, ela estaria obrigada a usar a
autoridade que Deus lhe conferiu para declarar que semelhante pro­
posição não se harmoniza com o Cristianismo, e que aqueles que a
defendem não são membros seus; e estaria obrigada a impor seme­
lhante declaração ao grupo de pessoas que subscrevem a nova propo­
sição para que, se não abjurassem do erro, pudessem ser separadas da
sua comunhão, tal como se separaram da sua fé. Em semelhante
caso, as massas da sua população ou não atenderiam à controvérsia
ou de imediato alinhariam com a Igreja e, sem esforço, prestariam
qualquer juramento que assegurasse a expulsão dos inovadores; e ela,
por outro lado, inferiria que aquilo que é uma regra para alguns
Católicos deve ser a regra para todos. Quem traçará a linha entre os
que hão-de, ou não, reconhecer esta regra? É evidente que na mesma
comunhão não pode haver duas regras de fé ou até, como realmente
poderia acontecer, uma variedade infinda de regras, em vigor segun­
do a multiplicação das teorias heréticas, os graus de conhecimento e
as variedades de sensibilidade nos Católicos individuais. Existe ape-

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 1 67
nas uma regra de fé para todos; e ad� itir uma regra incerta de fé
seria uma dificuldade ainda maior do que (se essa fosse, mas não é, a
alternativa) impor a mentes não educadas uma confissão que elas
não conseguem compreender.
Mas nem o resultado necessário da unidade de confissão nem
a realidade é que a Igreja imponha enunciados dogmáticos ao
assentimento interior daqueles que os não podem compreender.
Esta dificuldade é removida pelo dogma da infalibilidade da Igreja
e do dever consequente da «fé implícita» na sua palavra. A «Igreja
Una, Santa, Católica e Apostólica» é um artigo do Credo - um
artigo que, incluindo a sua infalibilidade, todos os homens, supe­
riores e humildes, facilmente podem compreender e acatar com
um assentimento real e operativo. Está em vez de todas as proposi­
ções abstrusas na mente de um católico, pois acreditar na palavra
da Igreja é, virtualmente, acreditar em todas elas. Pode, ao menos,
acreditar que é verdadeiro mesmo aquilo que ele não consegue
entender; e acredita que é verdadeiro, porque crê na Igreja.
O rationale desta condição para a devoção não ilustrada é o
seguinte: É conforme à razão que todos nós, ilustrados e não ilus­
trados, sejamos obrigados a aceitar pela fé a doutrina revelada ínte­
gra em todas as suas partes e em tudo aquilo que ela infere, à
medida que porção após porção se insinua claramente à nossa
consciência como a ela inerente; e é também conforme à razão que
uma doutrina, tão profunda e tão diversa como o depositum revela­
do da fé, não possa, de imediato, ser para nós de todo translúcida e
por nós apropriada. Nenhuma mente, por vasta e penetrante que
seja, consegue directa e plenamente, mediante um só acto, enten­
der qualquer verdade, apesar de simples. Que é que pode ser mais
inteligível do que «Alexandre conquistou a Ásia» ou que <<A veraci­
dade é um dever»? Mas que profusão de proposições encerrada em

I 68 • John Henry Newman


qualquer destas teses! Contudo, se afirmarmos uma ou outra, -
afirmamos tudo o que ela inclui. Assim, no tocante ao Credo
Católico, se realmente acreditamos que Nosso Senhor é Deus,
acreditamos em tudo aquilo que é intentado por semelhante fé;
ou, então, não somos sérios, quando declaramos acreditar na pro­
posição. No acto de nela acreditar, obrigamo-nos imediatamente
de antemão a crer em verdades em que, agora, não acreditamos,
porque nunca se nos apresentaram; - doravante, limitamos o
âmbito do nosso possível juízo privado em virtude das condições,
sejam elas quais forem, desse dogma. Assim, os Arianos alegavam
acreditar na divindade do Senhor, mas negavam-na quando eram
pressionados a confessar a sua eternidade, mostrando assim, de fac­
to, que nunca h aviam acreditado na sua divindade. Por outras
palavras, um homem que realmente crê na divindade genuína de
Nosso Senhor acredita implicite na sua eternidade.
E assim, de igual modo, a propósito do depositum integral da
fé ou da palavra revelada: se acreditamos na revelação, acreditamos
no que é revelado, em tudo o que é revelado, ainda que nos possa
vir a ser clarificado pelo raciocínio ou de qualquer outra forma.
Quem acredita que Cristo é a Verdade e que os Evangelistas são
verídicos crê em tudo o que Ele disse por seu intermédio, embora
só tenha lido S. Mateus, e não S. João. Quem acredita no deposi­
tum da Revelação acredita em todas as doutrinas do depositum; e
como não as pode conhecer todas ao mesmo tempo, conhece algu­
mas, e outras não; pode conhecer não só o Credo, mas porventura
ap enas as suas partes principais; porém, conheça pouco ou muito,
tem a intenção de acreditar em tudo o que há para acreditar, sem­
pre e logo que lhe é clarificado, se é que realmente acredita na
Revelação. Tudo o que agora conhece como revelado, tudo o que
virá a conhecer, tudo o que existe para conhecer é por ele abrangi-

Uma G r a m á t i c a d o Ass c n t i m c n c o • I 69
do na sua intenção por um único actó de fé; é meramente aciden­
tal que ele acredite nisto ou naquilo, e não porque é uma revela­
ção. A esta crença virtual, interpretativa ou prospectiva chama-se
um acreditar implicite, depreende-se então que, uma vez admitido
que os Cânones dos Concílios e os outros documentos e confissões
eclesiásticos, por mim referidos, estão realmente implicados no
depositum ou na palavra revelada, todo o Católico, ao aceitar o
depositum, aceita implicite essas decisões dogmáticas.
Digo, «uma vez admitido que essas diversas proposições estão
virtualmente contidas na palavra revelada», pois esta é a única
questão em aberto; e, para o Católico, é desde logo claro que deve­
rá receber uma resposta afirmativa, porque a Igreja declara que elas
fazem realmente parte dessa palavra. Foi-lhe entregue o cuidado, a
interpretação da revelação. A palavra da Igreja é a palavra de reve­
lação. Que a Igreja seja o oráculo infalível da verdade é o dogma
fundamental da religião católica; e «Acredito no que a Igreja pro­
põe para ser acreditado» é um acto de assentimento real, incluindo
todos os assentimentos particulares, nocionais e reais; e, embora
seja possível aos não ilustrados e aos ilustrados, é imperativo tanto
para os instruídos como para os não instruídos. Por isso, ao acredi­
tar na palavra da Igreja implicite, isto é, ao crer em tudo o que esta
palavra contém ou virá a declarar que contém, todo o Católico, de
acordo com a sua capacidade intelectual, suplementa as deficiên­
cias do seu conhecimento, sem ofuscar o seu assentimento real
àquilo que é elementar; e aceita, desde início, para si a verdade ple­
na da revelação, progredindo de uma apreensão sua para outra, de
harmonia com as oportunidades que tem de assim fazer.

170 • J o h n H e n ry N e w m a n
PARTE I I

ASSENTIMENTO E INF ERÊNCIA


CAPÍTULO 6

Ü A S S E N T I M E N T O C O N S I D E RA D O
C O M O I N C O N D I C I O NA L

J á disse tudo o que havia a dizer acerca da relação d o Assentimento


e da Apreensão; e retornarei à consideração da relação que existe
entre Assentimento e Inferência.
Assim como a apreensão é um concomitante, assim a inferência
é, de modo habitual, o antecedente do assentimento - não preciso,
a este respeito, de me alargar - mas nem a apreensão nem a inferên­
cia interferem com o carácter incondicional do assentimento, olhado
em si mesmo. As circunstâncias de um acto, embora necessárias, não
entram no acto; o assentimento é, na sua natureza, absoluto e incon­
dicional, embora não possa ter lugar excepto sob certas condições.
Isto é óbvio; mas o que apresenta alguma dificuldade é o modo
como a aceitação incondicional de uma proposição - por exemplo,
um acto de inferência - nos consegue levar, como faz, a uma aceita­

ção incondicional sua - tal como é o assentimento; como é que


uma proposição que não é, e não pode ser, demonstrada, que, quan­
do muito, pode apenas ser demonstrada como verosímil, não verda­
deira, por exemplo, «Hei-de morrer», exige e recebe, todavia, a nossa
adesão sem reservas. Avançarei agora para a consideração deste para­
doxo, como ele se pode chamar; a saber, para a consideração, primei­
ro, do acto - incondicional - de assentimento a uma proposição;

em seguida, do acto de inferência, que ocorre antes do assentimento e


é condicional; e, em terceiro lugar, da solução da aparente inconsis­
tência implicada na afirmação de que a aceitação incondicional de
uma proposição pode ser o resultado da sua verificação condicional.

Uma G r a m á [ i c a d o A s s e n t i m e n t o • 1 73
1. As s e n t i m e n t o s i m p l e s

A doutrina que tenho estado a formular exige uma explicação tão


cuidadosa que não é de espantar que se venha a deparar com escrito­
res de grande habilidade e nomeada que a puseram de lado, a favor
de uma doutrina sua; mas nenhuma doutrina sobre o tema está des­
provida de dificuldades, e decerto não a deles, embora apresente um
indício de senso comum. Os autores a que me refiro pretendem afir­
mar que há graus de assentimento; que, assim como as razões para
uma proposição são fortes ou fracas, assim também é o assentimen­
to. Depreende-se assim que este assentimento absoluto não tem um
exercício legítimo, excepto como rectificador de actos da intuição ou
da demonstração. O que assim nos é clarificado deve, de facto, ser
incondicionalmente aceite; mas, no tocante a raciocínios em assun­
tos concretos, eles são apenas probabilidades, e a probabilidade em
cada conclusão que tiramos é a medida do nosso assentimento a tal
conclusão. O assentimento torna-se, deste modo, uma espécie de
sombra necessária subsequente à inferência, que é a substância; e
nunca se encontra sem alguma mescla de dúvida, porque a inferên­
cia no concreto jamais vai além da probabilidade.
Tal é o que se pode chamar o método a priori de olhar o assenti­
mento na sua relação à inferência. Ele reprova um assentimento
incondicional em matérias concretas por causa daquilo que se pode
chamar a natureza do caso. O assentimento nunca pode ir além da
sua fonte, a inferência em tais questões é, quando muito, condicio­
nal; logo, condicional é também o assentimento.
O argumento abstracto é sempre perigoso, e este exemplo não
é excepção à regra; prefiro guiar-me pelos factos. A teoria a que me
referi não se pode levar a efeito na prática. Pode, com razão, dizer-

1 74 • J o h n H e n ry N e w m a n
-se que ela prova demasiado; priva-nos do assentimento incondi­
cional em casos em que a voz comum da humanidade, incluindo
os defensores desta teoria, protestaria contra a proibição. Há mui­
tas verdades em questões concretas, que ninguém pode demons­
trar; no entanto, todos incondicionalmente as aceitam; e embora,
claro está, haja inumeráveis proposições a que seria absurdo dar
um assentimento absoluto, contudo, o absurdo reside nas circuns­
tâncias de cada caso particular, tal como é tomado em si mesmo, e
não na sua violação comum do axioma pretensioso de que o racio­
cínio provável jamais pode conduzir à certeza.
As observações de Locke a este respeito são uma ilustração do
que tenho estado a dizer. Este celebrado escritor, de acordo com o
estilo da sua escola, fala livremente de graus de assentimento e consi­
dera que a força do assentimento dada a cada proposição varia com
a força da inferência a que se segue o assentimento; todavia, é obri­
gado a fazer excepções a este princípio geral - excepções ininteligí­
veis na sua doutrina abstracta, mas exigidas pela lógica dos factos. A
prática da humanidade é demasiado forte para o teorema antece­
dente, a que ele deseja submetê-la.
Começa por dizer, no seu capítulo «Da probabilidade»: «As
proposições sobre as quais mormente pensamos, raciocinamos, dis­
corremos, mas também agimos, são tais que não podemos ter um
conhecimento indubitável da sua verdade; contudo, algumas delas
aproximam-se tanto da certeza que não suscitam a seu respeito dúvi­
da alguma, antes lhes damos um assentimento muito firme e agimos
resolutamente de acordo com este assentimento, como se estivessem
infalivelmente demonstradas e o nosso conhecimento delas fosse
perfeito e certo» . Segundo ele, as inferências, que apenas «se apro­
ximam da certeza», estão dela tão perto que legitimamente as acei-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 175
tamos «Sem duvidar» e «lhes damos um assentimento tão firme
como se tivessem sido infalivelmente demonstradas». Ou seja, ele
afirma e sanciona o genuíno paradoxo a que eu próprio me votei.
Afirma ele ainda o seguinte, no seu capítulo sobre «Üs graus do
assentimento»: «Quando alguma coisa particular, consonante com a
observação constante de nós mesmos e dos outros no caso semelhan­
te, é atestada pelos relatos concorrentes de todos os que a mencio­
nam, recebemo-la com muita facilidade e apoiamo-nos nela com
grande firmeza, como se fosse conhecimento certo; por conseguinte,
raciocinamos e agimos com tão escassa dúvida como se ela fosse uma
demonstração peifeitt:t». E insiste: «Essas probabilidades aproximam-se
tanto da certeza que governam absolutamente os nossos pensamentos e
influenciam todas as nossas acções de modo tão pleno como se fora a
mais evidente demonstraçãu, e naquilo que nos diz respeito, pouca ou
nenhuma diferença fazemos entre elas e o conhecimento certo. A nos­
sa crença assim alicerçada alcandora-se à certeza>>. Mais uma vez, as
«probabilidades» podem aqui ser tão fortes que, qual pura demons­
tração, «regem inteiramente os nossos pensamentos», tão fortes que a
crença, nelas baseada, «se eleva à segurança», isto é, à certeza.
Tenho um tão grande respeito pelo carácter e pela competên­
cia de Locke, pela viril simplicidade da sua mente, pela sua sinceri­
dade sem reservas, é tanta a riqueza das suas observações sobre o
raciocínio e a prova a cujo respeito estou de pleno acordo, que não
sinto prazer em ver nele um adversário de concepções que eu pró­
prio, com uma devoção obstinada, sempre acalentei como verda­
deiras; e de bom grado pensaria que, na passagem ulterior, no seu
capítulo sobre «Entusiasmo», ele visa extravagâncias supersticiosas,
que, como ele, também eu repudiaria; mas, se assim for, as suas
palavras vão além da circunstância presente e contradizem o que
acima dele citei.

176 • J o h n H e n ry N e w m a n
«Quem seriamente se vota à busca da verdade deve, em pri­
meiro lugar, preparar a sua mente com o amor por ela. Pois quem
a não ama não se esforçará muito por alcançá-la, nem se preocupa­
rá muito por perdê-la. Não há ninguém, na comunidade do saber,
que não se proclame a si mesmo como amante da verdade - e
não existe nenhuma criatura racional que não levasse a mal se dela
de outro modo se pensasse. E, no entanto, por tudo isto se poderia
verdadeiramente dizer que há muito poucos amantes da verdade,
por mor da verdade, mesmo entre aqueles que estão convencidos
de que o são. Vale a pena indagar como é que um homem pode
saber se ele assim é, a sério; e penso que existe um indício infalível,
a saber, não afirmar qualquer proposição com maior garantia do que
a permitida pelas provas em que ela assenta. Quem quer que vá além
desta medida do assentimento mostra que não aceita a verdade por
amor dela, não ama a verdade por mor da verdade, mas por qual­
quer outro fim secundário. Se a demonstração de que uma propo­
sição é verdadeira (excepto as que são auto-evidentes) residir apenas
nas provas que um homem dela tem, sejam quais forem os graus
do assentimento que ele apresenta para ld dos graus dessa demons­
tração, então é claro que todo esse excesso de segurança se deve a
algum outro afecto, e não ao amor da verdade; pois é impossível
que o amor da verdade induza o meu assentimento para lá da prova
existente de que ela é verdadeira, tal como o amor da verdade me
levaria a dar o assentimento a qualquer proposição em vista da
prova que ela não tem de ser verdadeira; o que é, de facto, amá-la
co mo uma verdade, pois é possível ou provável que ela possa não
ser verdadeiral » .

1 Referência às afirmações de Locke i n Essay o n Development ofDoctrine, capítulo VII, § 2.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 177
Afirma ele, a este respeito, que é não só ilógico, mas imoral,
«induzir o nosso assentimento para lá da prova de que uma proposi­
ção é verdadeira», ter «Um excesso de segu,rança para ld dos graus
dessa demonstração». E a única excepção que ele faz a esta regra
são as proposições auto-evidentes. Como é que, então, não será
inconsistente com a recta razão, com o amor da verdade por mor
da verdade, admitir, nas suas palavras acima citadas, certas «proba­
bilidades» fortes para «reger os nossos pensamentos de modo tão
absoluto como a mais evidente demonstração»? Como é que não
há-de existir um «excesso de segurança para lá dos graus da
demonstração» se, no caso dessas probabilidades fortes, permiti­
mos que «a nossa crença, assim alicerçada, se eleve à segurança»,
quando ele diz que somos racionais no agir? Naturalmente, tinha
em vista um conj unto de exemplos, ao sugerir que a demonstração
era a condição do assentimento absoluto, e outro conj unto, ao
afirmar que ela não era essa condição; mas, de facto, Locke não
pode ser desculpado de pensar de um modo confuso, ao abordar
um tema tão nuclear. Um filósofo deveria, pois, prever a aplicação
e preservar a enunciação dos seus princípios, a fim de os salvaguar­
dar do risco de serem confundidos com outros, defender o que ele
tende a denunciar, condenar o que, a seu ver, é necessário sancio­
nar. Todavia, pense-se o que se pensar acerca do seu método a prio­
ri e da sua consistência lógica, receio que o seu animus se entenda
como contrário à doutrina que tenho vindo a propor. Em relação à
inferência e ao assentimento, Locke opta por uma concepção da
mente humana, que se me afigura teórica e irreal. Os raciocínios e
as convicções, que tenho por naturais e legítimos, denomina-os
ele, aparentemente, como irracionais, emotivos, perversos e imo­
rais; e isto, penso eu, porque ele se refere ao seu ideal de como a
mente deve agir, em vez de interrogar a natureza humana como

178 • J o h n H e n ry Newman
algo existente, tal como ela se encontra no mundo. Em vez de se
guiar pelo testemunho dos factos psicológicos e, por conseguinte,
delimitar as nossas faculdades constitutivas e a nossa própria con­
dição, em vez de se contentar com a mente, como Deus a fez, ele
plasmaria os homens como pensa que eles devem ser modelados
em algo de melhor e de mais elevado, e chama-lhes irracionais e
indesculpáveis, se (por assim dizer) caem à água, em vez de perma­
necerem sob as asas estreitas da sua própria teoria arbitrária.

1. Ora, a primeira questão que esta teoria me leva a considerar é se,


de facto, existirá semelhante acto da mente como o assentimento. Se
existe, é claro que ele se deve revelar inequivocamente como tal,
como distinto de outros actos. Pois, se um acto reconhecido se
puder ver apenas como a repetição necessária e imediata de outro
acto, se o assentimento for uma espécie de reprodução e o duplo de
um acto de inferência, se quando a influência determina que uma

proposição é em parte ou não, um pouco ou muito semelhante à


verdade, o assentimento, como seu complemento natural e normal,
diz que ela é em parte, ou não, um pouco ou muito semelhante à
verdade, então não vejo o que pretendemos dizer, ou porque é que
de todo dizemos, que existe semelhante acto. De um ponto de vista
psicológico, é simplesmente supérfluo, uma curiosidade para mentes
subtis, e quanto mais depressa se remover tanto melhor. Quando
dou o assentimento, supõe-se, parece, que faço precisamente o que
faço ao inferir, ou antes, não é exactamente o mesmo, mas algo que
está incluído no inferir; pois, enquanto a disposição da minha mente
para com uma dada proposição é idêntica no assentimento e na infe­
rência, apenas abandono o pensamento das premissas ao assentir,
embora não da sua influência sobre a proposição inferida. Isto, pois,

Uma G r a m ! t i c a do Ass e n t i m e n t o • 179


e não mais, é o que natureza prescreve; isto, e apenas isto, é o uso
consciencioso das nossas faculdades, de modo que assentir nada
mais é, na verdade, do que inferir. Então, repito, se este era realmen­
te o caso, se assentir de nenhum modo difere da inferência, é uma só
e mesma coisa com ela. É outro nome para a inferência, e falar dele
apenas gera confusão. Nem, em boa verdade, se pode alegar como
caso análogo que um acto de reconhecimento consciente, embora
distinto de um acto de conhecimento, é, ao fim e ao cabo, apenas a
sua repetição. Pelo contrário, semelhante reconhecimento é um acto
reflexo com o seu próprio objecto, a saber, o próprio acto de conhe­
cimento. Poderia igualmente dizer-se que ouvir os sons da minha
voz é uma repetição do acto de cantar - não confere, pois, nenhu­
ma plausibilidade à anomalia que estou a combater.
Estabeleço, então, como princípio o seguinte: ou o assenti­
mento é intrinsecamente distinto da inferência ou quanto mais
depressa, na filosofia, nos libertarmos da palavra tanto melhor. Se
for somente o eco de uma inferência, não o devemos olhar como
um acto substantivo; mas, por outro lado, se supusermos que ele
não é essa repetição ociosa, como estou certo de que não é - na
suposição de que a palavra «assentimento» ocupa um lugar legíti­
mo na linguagem e no pensamento; se não admitir ser confundido
com concluir e inferir, se as duas palavras se empregam para duas
operações do intelecto que não podem alterar o seu carácter; se, de
facto, nem sempre se encontram juntas, se não se mudam entre si;
se uma é, por vezes, encontrada sem a outra, se uma é forte, quan­
do a outra é fraca; se, por vezes, elas parecem mesmo estar em con­
flito recíproco, então, visto que sabemos perfeitamente bem o que
uma inferência é, cabe-nos considerar o que, enquanto distinto da
inferência, um assentimento também é; e, graças ao simples facto
de ele ser distinto, demos um passo em frente para a sua explica-

180 • J o h n H e n ry N e w m a n
ção, a meu ver, verdadeira. Portanto, o primeiro passo para decidir
a questão será indagar o que é que a experiência da vida humana,
tal como se nos apresenta todos os dias, nos ensina acerca da rela­
ção recíproca de inferência e assentimento.
( 1 .) Primeiro, sabemos por experiência que os assentimentos
podem persistir, sem a presença dos actos inferenciais a partir dos
quais eles foram originalmente encetados. Sem dúvida, com o
andar da vida, não só nos formamos e mudamos interiormente
pelo aumento dos hábitos, mas somos também enriquecidos por
uma grande multidão de crenças e de opiniões, e tal a propósito de
uma variedade de temas. Estas crenças e opiniões, aceites, como
algumas delas são, quase como primeiros princípios, são assenti­
mentos e, por assim dizer, constituem a indumentária e o mobiliá­
rio da mente. Já delas falei sob o título de «Crédito» e «Opinião».
Umas vezes, somos delas plenamente conscientes; outras, são
implícitas, ou só de modo esporádico elas se apresentam directa­
mente à nossa faculdade reflexiva. São, todavia, assentimentos; e,
quando primeiramente os aceitamos, temos algum tipo de razão,
fraco ou forte, reconhecido ou não, para assim fazer. Contudo,
sejam quais forem essas razões, mesmo se alguma vez delas tivemos
noção, há muito que as esquecemos. Se foi a autoridade de outrem
ou a nossa própria observação, a nossa leitura ou as nossas refle­
xões, que se tornaram garante do nosso assentimento, acatámos de
qualquer modo como verdadeiros os temas em questão nas nossas
mentes, e ali lhe demos guarida. Prestámos-lhes assentimento, e
ainda o fazemos, embora tenhamos esquecido qual era o garante.
Presentemente, são autónomos nas nossas mentes, e assim foram,
durante longos anos; não são, em sentido algum, conclusões; não
i mplicam nenhum processo de pensamento. Aqui temos, pois, um
caso em que o assentimento sobressai como distinto da inferência.

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 18I
(2.) Além disso, o assentimento está, por vezes ausente, enquan­
to as razões para ele e para o acto inferencial, que é o reconhecimen­
to das razões, estão ainda presentes, e em força. As nossas razões
podem parecer-nos mais fortes do que nunca e, todavia, não garan­
tem o nosso assentimento. As nossas crenças, nelas fundadas, foram
e já não são; talvez não possamos dizer quando se desvaneceram;
podemos ter pensado que ainda as tínhamos até que, por acaso, algo
nos chamou a atenção para o estado das nossas mentes e, de seguida,
descobrimos que o nosso assentimento se tornou uma asserção. Às
vezes, pode, sem dúvida, encontrar-se uma causa por que é que elas
se desvaneceram; pode ter havido um sentimento vago da presença
de uma deficiência na base derradeira, ou nas condições subjacentes,
dos nossos raciocínios; ou um receio de que o seu conteúdo estava
para lá do alcance da mente humana; ou a consciência que adquiri­
mos de uma visão das coisas em geral mais amplas do que quando,
pela primeira vez, demos o nosso assentimento; ou de que havia for­
tes objecções às nossas primeiras convicções, que nunca havíamos
tido em conta. Mas nem sempre é assim; por vezes, a nossa mente
muda muito depressa, de modo inexplicável e desproporcionado a
quaisquer argumentos tangíveis a que a mudança se pode referir, e
com um reconhecimento tão persistente da força dos antigos argu­
mentos que surge a suspeita de que, no fundo, estão causas morais,
nascidas da nossa condição, idade, companhia, ocupações e acasos.
Todavia, esvaneceu-se o que outrora foi assentimento; persiste,
porém, a percepção dos antigos argumentos, mostrando que a infe­
rência é uma coisa, e o assentimento outra.
(3. ) E assim como, por vezes, o assentimento morre sem
razões tangíveis, suficientes para explicar a sua ausência, assim
também, por vezes, ele nunca surge, apesar dos argumentos fortes
e convincentes. Deparamos, às vezes, com homens ruidosos na sua

!82 • J o h n H e n ry Newman
admiração de verdades que nunca professam. Assim como, pela lei
da nossa constituição mental, a obediência é de todo distinta da fé,
e os homens podem acreditar sem praticar, assim também o assen­
timento é independente dos nossos actos de inferência. Mais uma
vez, o preconceito impede o assentimento às provas mais indiscutí­
veis. Acontece também, com muita frequência, que enquanto a
vivacidade da faculdade de raciocinar capacita um homem para, na
altura, ver o resultado final de um problema complicado, passam
anos antes de ele o aceitar como uma verdade e o reconhecer como
um elemento no círculo do seu conhecimento. Acaba, no entanto,
por aceitá-lo e dizemos, então, que ele lhe dá o seu assentimento.
(4. ) Mais ainda, são muito numerosos os casos em que bons
argumentos, e realmente bons a valer e por nós reconhecidos como
bons, não são, todavia, assaz fortes para predispor minimamente as
nossas mentes à conclusão que apontam. Mas porque é que não
assentimos um pouco, em proporção a esses argumentos? Pelo
contrário, alijamos todo o onus probandi para o lado da conclusão
e recusamos prestar-lhe assentimento, até que, por fim, a ela conse­
guimos anuir. A prova é susceptível de crescimento; mas o assenti­
mento ou existe, ou não.
(5.) Já aludi à influência dos motivos morais em impedir o
assentimento a conclusões que são logicamente inatacáveis. Segun­
do a copia

«Um homem convencido contra a sua vontade


É ainda da mesma opinião»;

Portanto, o assentimento não é o mesmo que inferência.


(6.) Por estranho que possa parecer, o contraste entre inferên­
cia e assentimento está também exemplificado no campo da

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 183
matemática. Um argumento nem sempre consegue forçar o nosso
Assentimento, embora seja demonstrativo. Por vezes, como é de
esperar, impõe o seu caminho, a saber, quando os passos do raciocí­
nio são poucos e aceitam ser contemplados pela mente. Não pode,
decerto, conceber-se um homem que tenha diante de si a série de
condições e de verdades, em virtude das quais os três ângulos de um
triângulo são iguais a dois ângulos rectos, e que todavia não dê o
assentimento a esta proposição. Se todas as proposições fossem assim
claras, embora o assentimento não fosse o mesmo acto que a infe­
rência, todavia, desta imediatamente se seguiria. Concedo, pois, que,
quando um argumento leva em si e por si mesmo à conclusão de
uma verdade tem, por uma lei da nossa natureza, o mesmo poder
sobre o nosso assentimento, ou antes, a verdade que ele alcançou
tem o mesmo poder que os nossos sentidos possuem. A nossa natu­
reza intelectual encontra-se decerto sob leis, e o correlativo da verda­
de descoberta é o assentimento sem reservas.
Mas não estou a falar de demonstrações curtas e lúcidas, antes
de investigações matemáticas longas e intrincadas; neste caso,
embora cada passo possa ser indiscutível, requer, contudo, uma
atenção especialmente persistente e um esforço de memória para
ter na mente, ao mesmo tempo, todos os passos da demonstração,
com as suas relações recíprocas, e os antecedentes que eles diversa­
mente implicam; e estas condições da inferência podem interferir
com a prontidão do nosso assentimento.
É por isso que o espírito de partido, o sentimento nacional ou
as predisposições religiosas tiveram, até agora, poder para retardar
a recepção das verdades de carácter matemático - o que nunca
poderia ter acontecido, se as demonstrações fossem ipso facto assen­
timentos. Nem matemático algum, mesmo em questões de pura
ciência, daria o assentimento às suas próprias conclusões, numa

184 • J o h n H e n ry N e w m a n
base nova e difícil e no caso de cálculos abstrusos, por mais vezes
que ele fosse além do seu trabalho e tivesse, apesar de tudo, a cor­
roboração de outros j uízos, além do seu. Teria cuidadosamente
revisto a sua inferência, daria o assentimento à probabilidade do
seu rigor no inferir, mas, não obstante, abster-se-ia ainda de um
assentimento imediato à verdade da sua conclusão. A corroboração
de outros não pode, porém, acrescentar-se à sua aceitação da pro­
va; ele perceberia ainda a demonstração, mesmo se não conseguisse
obter a corroboração de outros. E, no entanto, poderia arbitraria­
mente fazer dela a sua regra, nunca dar o assentimento às suas con­
clusões sem tal corroboração ou, pelo menos, antes do lapso de um
intervalo suficiente. Aqui, mais uma vez, a inferência é distinta do
assentamento.
Tenho estado a mostrar que a inferência e o assentimento são
actos distintos da mente, e que se podem levar a cabo independen­
temente um do outro. Não se pode, claro está, pressupor como
propósito meu afirmar que não existe entre eles nenhuma conexão
legítima ou real, como se argumentos contrários a uma conclusão
não impedissem naturalmente o assentimento; ou como se a incli­
nação para dar o assentimento não fosse maior ou menos ajustada,
conforme o acto particular de inferência expressar uma maior ou
menor probabilidade; ou como se o assentimento não implicasse
sempre motivos na razão, implícitos, se não mesmo explícitos, ou
p udesse ser correctamente dado sem motivos suficientes. De tal
modo se reconhece comummente que o assentimento deve ser pre­
cedido de actos inferenciais que os homens contumazes mencio­
nam a sua vontade própria como a legitimação para assentir, se
nada melhor puderem pensar; «stat pro ratione voluntas». De facto,
duvido se o assentimento alguma vez se dará sem qualquer preli­
minar, que está em vez de uma razão; mas daqui não se segue que

Uma G r a m á c i c a do A s s e n t i m e n t o • 185
ele não possa ser recusado em casos em que há boas razões para o
prestar a uma proposição, ou que não possa ser recusado após ter
sido dado, permanecendo as razões, ou que não possa persistir
quando as razões estão esquecidas, ou que deva sempre variar em
intensidade, quando mudam as razões; e esta substantividade,
como assim a posso designar, do acto de assentimento é o ponto
genuíno que pretendi estabelecer.

2. E, ao mostrar que o assentimento é distinto de um acto de infe­


rência, já adiantei o suficiente para mostrar em que é que ele dela
se distingue. Se o assentimento e a inferência são respectivamente a
aceitação de uma proposição, mas a característica especial da infe­
rência consiste em ser condicional, é natural supor que o assenti­
mento será incondicional. Mais uma vez, se o assentimento é a
aceitação da verdade e a verdade é o objecto próprio do intelecto, e
ninguém pode afirmar condicionalmente o que, pelo mesmo acto,
afirma ser verdadeiro, existe aqui uma razão para dizer que o assen­
timento é uma adesão sem reserva ou dúvida à proposição a que é
prestado. E importa, de novo, presumir que a palavra não tem dois
significados: o significado que ela tem numa altura, tem-no nou­
tra. A inferência é sempre inferência; mesmo se demonstrativa, é
ainda condicional; estabelece uma conclusão indiscutível sob a
condição de premissas incontroversas. À conclusão assim tirada o
assentimento presta o seu reconhecimento absoluto. No caso de
todas as demonstrações, o assentimento, quando dado, é incondi­
cionalmente dado. Numa classe de temas, o assentimento é, pois,
sempre incondicional; mas se a palavra está em vez de um acto da
mente indubitável e sem hesitação, porque é que ele não denota
sempre o mesmo? Que prova existe aí de que ele significa sempre

!86 • J o h n H e n ry N e w m a n
algo diferente daquilo que o mundo inteiro atestará, em uníssono,
que ele significa em certos casos? Porque é que não deveremos
interpretar o que é controverso por aquilo que é conhecido? Eis o
que se sugere no primeiro exame da questão; mas continuemos:
Em questões demonstrativas, o assentimento exclui a presença
da dúvida: mas haverá, por outro lado, exemplos apresentáveis da
sua permanente coexistência com a dúvida em casos concretos?
Como os exemplos acima mencionados revelaram, em muitíssimas
questões não prestamos assentimento algum. O que comummente
acontece é o seguinte: após ouvirmos e acatarmos o que se diz como
uma proposição, nada dizemos nem a favor nem contra ela. Pode­
mos aceitar a conclusão como uma conclusão, dependente de pre­
missas, abstracta e tendendo para o concreto; mas não seguimos a
nossa inferência de uma proposição, dando-lhe o assentimento.
Mostrarei agora que há proposições concretas a que damos assenti­
mentos incondicionais; mas não ando à cata de exemplos do condi­
cional, de exemplos em que assentimos um pouco, e não muito.
Habitualmente, não prestamos assentimento algum. Cada dia que
chega traz consigo oportunidades para alargarmos o nosso âmbito de
assentimentos. Lemos os jornais; percorremos os debates no parla­
mento, as alegações nos tribunais, artigos de fundo, cartas de corres­
pondentes, recensões de livros, críticas nas Belas Artes; ou não
formamos opinião alguma a propósito dos temas discutidos, porque
situados fora do nosso ramo, ou temos, quando muito, a seu respei­
to apenas uma opinião. No limite extremo, dizemos que estamos
inclinados a acreditar nesta ou naquela proposição, que não estamos
seguros de que ela não seja verdadeira, de que muito se pode dizer a
seu respeito, de que fomos por ela muito afectados; mas nunca dize­
mos que lhe damos um grau de assentimento. Poderíamos igual­
mente falar de graus de verdade como de graus de assentimento.

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • l87


Contudo, Locke intitula um dos seus capítulos com a expres­
são «Graus de assentimento»; e um escritor deste século, que mere­
ce o nosso respeito pelo tom e pela orientação da sua obra,
expressa-se assim à maneira de Locke: «A evidência moral», afirma,
«pode suscitar uma variedade de graus de assentimentos, desde a
suspeita à certeza moral. Pois, aqui, o grau de assentimento depen­
de do grau em que a evidência é preponderante num lado, ou
excessiva no outro. E assim como esta preponderância pode variar
quase infinitamente, assim também os graus de assentimento. Para
alguns destes graus, embora só para alguns, inventaram-se nomes.
Deste modo, se a evidência, num dos lados, sobressair muito pou­
co, há fundamento para a suspeita ou a conjectura. Presunção, per­
suasão, crença, ilação, convicção, certeza moral - dúvida, hesitação,
desconfiança, descrença - são palavras que implicam um aumento
ou uma diminuição desta preponderância. Por isso, algumas delas
admitem epítetos que denotam um ulterior crescimento ou dimi­
nuição do assentimento» ! .
Poderá haver uma melhor ilustração do que a que esta passagem
fornece daquilo em que acima insisti, a saber, que, ao inculcar vários
graus de assentimento, tendemos ao mesmo tempo a destruir o
assentimento, enquanto acto da mente? Este autor multiplica até ao
«infinito» os graus de assentimento, tal como infinitos são os graus
da probabilidade. Os seus assentimentos são, na realidade, apenas
inferências, e assentimento é um nome sem significado, a repetição
inútil de uma inferência. Mas, na verdade, «suspeita, conjectura,
presunção, persuasão, crença, ilação, convicção, certeza moral» não
são «assentimentos»; são somente inferências, mais ou menos fortes,
de uma proposição; e «dúvida, hesitação, desconfiança, descrença,»

I Gambier a propósiro da Evidência Moral.

I88 • J o h n H e n ry N e w m a n
são reconhecimentos, mais ou menos intensos, da probabilidade da
sua contraditória.
Há apenas um sentido em que nos é permitido chamar assen­
timentos a tais actos ou estados da mente. Eles são opiniões; e, por
isso, como já adverti, ao falar da Opinião, são assentimentos à
plausibilidade, probabilidade, ambiguidade ou falsidade, de uma
proposição; isto é, não variações do assentimento a uma inferência,
mas assentimentos a uma variação nas inferências. Quando dou o
assentimento a uma incerteza, ou a uma probabilidade, o meu
assentimento, enquanto tal, é tão completo como se eu anuísse a
uma verdade; não é um certo grau de assentimento. E, de igual
modo, posso estar certo de uma incerteza; isto não destrói a noção
específica presente na palavra «certo».
Não sei, pois, quando é que alguma vez damos deliberadamente
o assentimento a uma proposição, sem pretender dar a outros
a impressão de que a aceitamos sem reservas, e tal porque ela é
verdadeira.
Sem dúvida, usamos familiarmente tais frases como um semi­
-assentimento, tal como falamos de meias verdades; mas um semi-
-assentimento não é assentimento algum, tal como uma meia ver-
dade não é uma verdade. Assim como o objecto é indivisível, assim
também o acto. Uma meia verdade é uma proposição que, num
aspecto, é uma verdade e, noutro, não; prestar um semi-assenti­
mento é sentir-se arrastado para o assentimento ou assentir num
momento, e não no seguinte, ou estar prestes a dar assentimento.
Significa que a proposição em questão merece ser ouvida, que é
provável ou atractiva, que abre perspectivas importantes, que é
uma chave para dificuldades emaranhadas, ou quejandos.

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 189


3 . Portanto, ao abordar o tema, não segundo a justeza a priori, mas
de harmonia com os factos da natureza humana, como eles se
encontram na acção concreta da vida, descubro inúmeros casos em
que não damos qualquer assentimento, e nenhum em que o assen­
timento seja claramente condicional - e muitos, como agora irei
mostrar, em que ele é incondicional, e estes em questões que nada
incluem de superior a um raciocínio provável. Se a natureza huma­
na houver de ser a sua própria testemunha, não há meio-termo
entre dar e não dar assentimento. A teoria lockeana do dever de
assentir mais ou menos, segundo os graus de evidência, é invalida­
da pelo testemunho de superiores e inferiores, jovens e velhos,
antigos e modernos, tal como continuamente se apresentam nos
seus dizeres e afazeres ordinários. De facto, como mostrei, o pró­
prio Locke não a defende de uma forma estrita; todavia, embora
apreenda em certos casos que as pretensões da natureza e de facto
são demasiado fortes, não aduz nenhuma razão por que é que nes­
tes ele violou a sua teoria e, todavia, não em muitos mais.
Passemos agora em revista alguns desses assentimentos, que os
homens dão acerca de dados que carecem de intuição e demonstra­
ção, mas que são tão incondicionais como se tivessem esta evidên­
cia suprema.
Antes de mais, começando pela intuição, todos nós, natural­
mente, cremos, sem qualquer dúvida, que existimos; que temos uma
individualidade e uma identidade só nossa; que pensamos, sentimos
e agimos, no íntimo das nossas próprias mentes; que temos um sen­
tido presente do bem e do mal, do correcto e do errado, da verdade
e da falsidade, da beleza e da fealdade, seja como for que analisemos
as nossas ideias a seu respeito. Temos diante de nós uma visão abso­
luta do que aconteceu ontem ou no último ano, de modo que, sem
qualquer possibilidade de erro, podemos apresentar provas a seu

190 • J o h n H e n ry N e w m a n
respeito num tribunal, por mais sérias que sejam as consequências.
Estamos certos de que ignoramos muitas coisas, de que acerca de
muitas coisas temos dúvidas, de que a propósito de muitas coisas
não temos dúvida alguma.
Nem o assentimento que damos a factos se encontra limitado
ao recinto da autoconsciência. Estamos certos, para lá de todo o
risco de erro, de que o nosso Si mesmo não é o único ser existente;
de que existe um mundo externo, de que ele é um sistema com
partes e um todo, num universo sujeito a leis; e que o futuro é
afectado pelo passado. Aceitamos e afirmamos com um assenti­
mento pleno que a terra, considerada como um fenómeno, é um
globo; que todas as suas regiões vêem o sol por turnos; que há nela
várias e vastas extensões de terra e de água; que há cidades real­
mente existentes em lugares definidos, que dão pelos nomes de
Londres, Paris, Florença e Madrid. Estamos certos de que Paris ou
Londres, a não ser que seja de repente engolida por um terramoto
ou queimada de ponta a ponta, está hoje onde justamente ontem
estava, quando a deixámos.
Rimo-nos, com desprezo, da ideia de que não tivemos pais,
embora careçamos da memória do nosso nascimento; de que nun­
ca deixaremos esta vida, embora não tenhamos experiência do
futuro; de que somos capazes de viver sem alimento, embora nun­
ca tenhamos tentado; de que um mundo de homens não viveu
antes da nossa era, ou que este mundo não tem história; de que
não houve ascensão e decadência de Estados, grandes homens,
guerras, revoluções, arte, ciência, literatura ou religião.
Reagiríamos ou com indignação ou com humor à notícia de que
os nossos amigos íntimos são para nós falsos; e, por vezes, somos
capazes, sem qualquer hesitação, de acusar certos partidos de hosti­
lidade e de injustiça para connosco. Podemos ter uma consciência

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n c o • 191


profunda, que jamais podemos perder, · de que, da nossa parte, fomos
cruéis para com os outros, de que eles acreditaram que assim somos,
ou de que fomos e, na sua apreensão, somos sem generosidade para
com aqueles que nos amam. Podemos ter uma noção avassaladora
da nossa fraqueza moral, da precariedade da nossa vida, da saúde, da
riqueza, da posição e da boa fortuna. Podemos ter uma clara visão
dos pontos fracos da nossa constituição física, de que alimento ou
remédio é bom para nós, e do que nos faz mal. Podemos ser capazes
de, pelo menos em parte, controlar o curso da nossa história passa­
da; os seus pontos de viragem, os nossos êxitos e os nossos grandes
erros. Podemos ter um sentido da presença de um Ser Supremo, que
nunca foi sequer obscurecido por uma sombra passageira, que sem­
pre nos habitou desde que podemos lembrar qualquer coisa e cuja
perda não conseguimos imaginar. Somos capazes, pois também
outros o foram, de pôr de tal modo em prática os preceitos e as ver­
dades do Cristianismo que prefiramos deliberadamente perder a
nossa vida a transgredir uns ou a negar as outras.
Aderimos a todas estas verdades de modo imediato e sem hesi­
tação, nem nos temos por culpados de não amar a verdade por
mor da verdade, porque não podemos a elas chegar mediante uma
série de proposições intuitivas. O assentimento a raciocínios não
demonstrativos é olhado, de modo demasiado amplo, como um
acto irracional, a não ser que a natureza do homem seja irracional,
demasiado íntimo ao prudente e clarividente para ser uma enfer­
midade ou uma extravagância. Nenhum de nós pode pensar ou
agir sem a aceitação de verdades, não intuitivas, não demonstradas,
todavia soberanas. Se a nossa natureza tem alguma constituição,
algumas leis, uma delas é este absoluto acatamento de proposições
como verdadeiras, que residem fora do estreito âmbito das conclu­
sões a que a lógica, formal ou virtual, está presa; nem teoria filosó-

192 • J o h n H e n ry N e w m a n
fica alguma tem o poder de nos impor uma regra que nem sequer
funcionará um dia.
Quando, pois, os filósofos estabelecem princípios, em virtude
dos quais se segue que o nosso assentimento, excepto quando dado
a obj ectos de intuição ou demonstração, é condicional, que o
assentimento prestado a proposições por mentes metódicas neces­
sariamente varia com a demonstração para elas produzida, e que
não permanece nem pode permanecer um só e o mesmo, enquan­
to a prova é fortalecida ou enfraquecida - não se deverá pensar
que eles confundem duas coisas muito distintas entre si, um acto
ou estado mental e uma regra científica, um assentimento interior
e um conj unto de fórmulas lógicas? Quando eles falam de graus de
assentimento, não têm decerto a intenção de definir a posição da
própria mente relativa à adopção de uma dada conclusão, mas
registam a sua percepção da relação desta conclusão com as pre­
missas. Indagam como funcionam os símbolos representativos, e
não como o intelecto é afectado frente à coisa que tais símbolos
representam. Tentam tão pouco afirmar, na verdade real, o princí­
pio de medir pela lógica os nossos assentimentos, como imagina­
riam que seria possível registar o restabelecimento que nos advém
do ar livre mediante a leitura da escala graduada de um termóme­
tro. Há uma conexão indubitável entre uma conclusão lógica e um
assentimento, como também entre a variação do mercúrio e as
nossas sensações; mas nem o mercúrio é a causa da vida e da saúde
nem a argumentação verbal é o princípio da crença interior. Se
sentimos calor ou frio, ninguém nos convencerá do contrário,
insistindo em que o vidro está a 60°. É a mente que raciocina e dá
o assentimento, não um diagrama no papel. Posso sentir dificulda­
des na execução de uma prova, enquanto permaneço inabalável na
minha adesão à conclusão. Suponhamos que um estudante não

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • l93
consegue ajustar a sua resposta a alguma questão aritmética ou
algébrica com o manual, precisará ele, de súbito, de desconfiar do
livro? Diminuirá a sua confiança nele um certo número de
degraus, segundo a força da sua dificuldade? Pelo contrário, aferra­
se ao princípio, implícito mas presente na sua mente, com que
pegou no livro, de que este estará provavelmente mais certo do que
ele; e esta simples preponderância da probabilidade é suficiente
para o levar a ter confiança na crença que tem na sua exactidão, até
que a sua incorrecção seja efectivamente demonstrada.
A minha opinião é que a classe de escritores, por mim referi­
dos, desconfia tão pouco das verdades que eles pretendem pesar e
medir, como os seus ingénuos vizinhos; antes pensam que é dever
seu recordar-nos que, em virtude de a etiqueta completa das exigên­
cias lógicas não ter sido observada, devemos, correndo perigo, crer
naquelas verdades. Advertem-nos de que um problema que nunca se
pode transformar em questão de facto é todavia, em teoria, uma
suposição possível. Não pretendem, por exemplo, insinuar, por um
momento, que exista sequer a sombra de uma dúvida de que a Grã­
-Bretanha é uma ilha, mas pensam que devemos saber, se ainda
não sabemos, que não existe nenhuma demonstração do facto, em
modo e em figura, igual à demonstração de uma proposição de
Euclides; e que, por conseguinte, eles e nós estamos obrigados a
suspender o nosso juízo acerca de semelhante facto, embora ele
seja num grau infinitesimal, para que não pareça que não amamos
a verdade por mor da verdade. Tendo assim protestado, eles mer­
gulham sem escrúpulo nesta mesma segurança absoluta de verda­
des apenas parcialmente demonstradas, que é natural à imaginação
ilógica da multidão.

194 • J o h n H e n ry N e w m a n
4. Falta explicar algumas expressões coloquiais, à primeira vista
favoráveis a esta doutrina dos graus no assentimento, que tenho
estado a combater.
( 1 .) Falamos, muitas vezes, de prestar um assentimento modifi­
cado, qualificado, presumível e prima facie ou (como já afirmei) um
semi-assentimento a opiniões ou a factos; mas estas expressões com­
portam uma fácil explicação. O assentimento, na base da autoridade
de outros, é muitas vezes, como já adverti ao falar de assentimentos
nacionais, pouco mais do que uma declaração, uma aquiescência ou
inferência, e não uma aceitação real de uma proposição. Relato, por
exemplo, que houve um incêndio perigoso na cidade, na noite pas­
sada; e, de seguida, acrescento talvez que, pelo menos, os jornais
amanhã assim dirão - isto é, não tenho porventura uma dúvida
positiva do facto; ainda assim, ao fazer uma referência aos jornais,
insinuo que não assumo para mim próprio a responsabilidade do
enunciado. Ao qualificar assim o meu assentimento aparente, mos­
tro que ele não era um assentimento genuíno. De modo semelhante,
um assentimento prima facie é um assentimento a uma probabilida­
de antecedente de um facto, e não ao próprio facto; tal como eu
poderia dar um assentimento prima facie à Pluralidade dos mundos
ou à personalidade de Homero, sem me comprometer absolutamen­
te com nenhum deles. O «semi-assentimento», de que acima falei, é
uma inclinação ao assentimento, ou ainda, uma intenção de assentir,
quando certas dificuldades são superadas. Ao falarmos sem reflexão,
o assentimento tem um significado tão vago como o semi-assenti­
mento; mas se deliberadamente dissermos, «Dou o meu assentimen­
to», significamos um acto da mente tão definido que não admite
mudança alguma, excepto a da sua própria cessação.
(2.) E por isso, também, embora usemos, às vezes, a expressão
«assentimento condicional», pretendemos assim dizer apenas que

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • l95
assentiremos sob certas contingência5. Podemos decerto, se nos
aprouver, incluir uma condição na proposição a que o nosso assen­
timento é dado; e então, esta condição entra na matéria do assen­
timento, mas não no próprio assentimento. Assentir a «Se este
homem tem tuberculose, então os seus dias estão contados» é tão
pouco um assentimento condicional como assentir a «Üs dias deste
paciente tuberculoso estão contados», que (embora sem a forma
condicional) é uma proposição equivalente. Em tais casos, falando
com rigor, o assentimento não é dado nem ao antecedente nem ao
consequente da proposição condicional, mas à sua conexão, isto é, à
inferentia entimemátic�. Se colocarmos a condição como externa à
proposição, então o assentimento será dado a «Que ·"os seus dias
estão contados" é condicionalmente verdadeiro»; e, decerto, pode­
mos assentir tanto à condicionalidade de uma proposição como à
sua probabilidade. Ou ainda, se assim for, podemos dar o nosso
assentimento não só à inferentia numa proposição condicional com­
plexa, mas a cada uma das proposições simples, de que ela é com­
posta. «Haverá dentro em breve uma tempestade, pois o mercúrio
está a descer» - aqui, além de assentir à conexão das proposições,
podemos também dar o assentimento a «Ü mercúrio está a descer» e
a «Haverá uma tempestade». Isto é dar o assentimento à premissa,
inferentia, e à coisa inferida, tudo ao mesmo tempo; assentimos a
todo o silogismo e às suas partes componentes.
(3.) De igual modo se devem explicar as expressões «assenti­
mento deliberado», «assentimento racional»; um assentimento «súbi­
to», «impulsivo» ou «hesitante». Essas expressões não denotam
espécies ou qualidades, mas as circunstâncias no assentimento. Um
assentimento deliberado é um assentimento que se segue a uma deli­
beração. Chama-se, por vezes, convicção, uma palavra que comum­
mente inclui no seu significado dois actos, o acto de inferência e o

196 • J o h n H e n ry N e w m a n
acto de assentimento consequente à inferência. Este tema será abor­
dado na próxima Secção. Por outro lado, um assentimento hesitante
é um assentimento a que chegamos de modo lento e intermitente;
ou um assentimento que, quando dado, é frustrado e obscurecido
por receios externos e fugidios, embora não tais que entrem no pró­
prio acto ou o prejudiquem de modo essencial.
Outro sentido há em que falamos de assentimento hesitante ou
incerto, a saber, quando assentimos no acto, mas não no hábito das
nossas mentes. Até que o assentimento a uma doutrina ou a um facto
se torne para mim um hábito, estou à mercê de inferências a ele con­
trárias; dou o assentimento hoje, e abandono a minha crença ou
inclino-me à descrença, amanhã. Posso achar, por exemplo, que é
meu dever, após a oportunidade de cuidadosa inquirição e inferência,
anuir à inocência de outrem, que, durante anos, tenho por culpado;
mas, em virtude de um longo preconceito, posso, quanto a mim, ser
incapaz de levar a cabo o meu novo assentimento, e posso, a cada
momento, recair em pensamentos fugidios para ele injuriosos.
(4.) Uma objecção mais plausível à absoluta ausência de toda a
dúvida ou receio num acto de assentimento encontra-se no uso das
expressões «assentimento firme» e «fraco», ou no aumento da cren­
ça e da confiança. Damos, pois, o assentimento aos acontecimen­
tos da história, mas não com a plenitude e a força de adesão ao seu
registo recebido, com que efectuámos um registo das ocorrências
que estão dentro da nossa própria memória. E ainda, damos um
assentimento ao louvor concedido às boas qualidades de um amigo
com uma energia que não sentimos quando falamos da virtude em
ab stracto: e se pertencemos a um partido político, o nosso assenti­
mento é muito frio, quando não o podemos recusar a demonstra­
ções feitas a favor da sabedoria ou do patriotismo de homens de
Estado, que não apreciamos. E, então, no tocante a temas religio-

Uma G r a m á t i c a d o Asse n t i m e n t o • 197


sos, falamos de fé «forte» e de fé «fraéa»; da fé que poderia mover
montanhas, da fé habitual «sem a qual é impossível agradar a
Deus». E assim como podemos crescer em graças, assim também
podemos crescer, inclusive, na fé. Ademais, de uma obra sobre Tes­
temunhos Cristãos saímos com a nossa fé avivada e fortalecida; de
outra, porventura, com as palavras confusas daquele pai na nossa
boca, «Creio, aj uda a minha descrença».
Ora é evidente, antes de mais, que os hábitos da mente se
podem intensificar, como algo de permanente e contínuo; e por
assentimento intensificado pretende dizer-se, muitas vezes, apenas
que o hábito cresce e tem um maior poder sobre a mente.
Mas, mais uma vez, quando encaramos cuidadosamente o
assunto, descobrir-se-á que este aumento, ou decrescimento, de
força não reside no próprio assentimento, mas nas suas circunstân­
cias e concomitantes; por exemplo, nas emoções, na faculdade de
raciocinar ou na imaginação.
Por exemplo, quanto às emoções, esta força do assentimento
pode ser apenas a intensidade do amor, do ódio, do interesse, do
desejo ou do medo, que o objecto do assentimento faz surgir, e
isto acontece sobretudo quando este objecto é de natureza religio­
sa. Semelhante intensidade é adventícia e acidental; pode aparecer,
pode esvanecer-se; encontra-se num homem, e não noutro; não
interfere com a sinceridade e a prevenção do acto de assentimento.
Balaão anuiu ao facto do seu próprio contacto com o sobrenatural,
tal como Moisés; mas, para usar uma linguagem religiosa, ele teve
a iluminação sem amor; o seu intelecto era claro, mas frio o seu
coração. Por isso, a sua fé seria popularmente considerada como
desprovida de força. Por outro lado, o preconceito implica assenti­
mentos fortes em desfavor do seu objecto; isto é, encoraja tais
assentimentos e preserva-os da possibilidade de se perderem.

198 • J o h n H e n ry N e w m a n
De novo, quando uma conclusão nos é recomendada pelo
número e pela força dos argumentos na sua demonstração, o nosso
reconhecimento deles envolve-a numa luminosidade que, em certo
sentido, acrescenta força ao nosso assentimento a seu respeito, tal
como, sem dúvida, protege e encoraja esse assentimento. Assim,
assentimos a um exame de acontecimentos recentes, que tínhamos
estudado a partir de documentos originais, com uma intransigência
triunfante que não nos ocorre, nem nos é possível exercer, quando
realizamos um acto de assentimento ao assassinato de Júlio César, ou
à existência dos Abípones, embora estejamos tão firmemente certos
destes últimos factos como das actividades e ocorrências de ontem.
E, ademais, tudo o que eu disse acerca da apreensão de proposi­
ções vem aqui a propósito. Podemos falar de assentimento à divin­
dade de Nosso Senhor como forte ou fraco, segundo ele é dado à
realidade enquanto impressa na imaginação ou à sua noção como
considerada pelo intelecto.
(5.) Nem, por último, interfere esta doutrina da integridade e
da indivisibilidade intrínsecas {se assim posso falar) do assentimen­
to com o ensinamento da teologia Católica quanto à preeminência
da força na fé divina que, quando comparada com toda a crença
meramente humana e natural, tem uma origem sobrenatural. Pois,
em primeiro lugar, esta preeminência não consiste na sua diferença
em relação à fé humana, apenas no grau de assentimento, mas
também na sua superioridade na natureza e na espécieI , pelo que

1 «Supernaturalis mentis assensus, rebus jidei exhibitus, cum praecipue dependeat a gratia Dei

intrinsecus mentem illuminante et commovente, potest esse, et est, major quocumque assensu certitudini
naturali praestito, seu ex motivis naturalibus orto, » («O assentimento sobrenatural da mente, revelado
nas questões de fé, como depende sobretudo da graça de Deus, que ilumina e move de modo intrín­
seco a mente, pode ser, e é, maior do que qualquer assentimento dado à certeza natural, ou nascida
de motivos naturais») - Dmouski, lnstit. t. i. p. 28.

U m a G r a m á. t i c a do Ass e n t i m e n t o • I99
uma não admite uma comparação com a outra; e, em segundo
lugar, a sua superioridade intrínseca não é uma questão de expe­
riência, mas está acima da experiência 1 .
O assentimento é sempre assentimento2; mas no assentimen­
to, subsequente a um anúncio divino e vivificado por uma graça
divina, existe, em virtude da natureza do caso, uma adesão trans­
cendente da mente, intelectual e moral, e uma especial autoprotec­
ção3, para lá da operação das leis ordinárias do pensamento, as
únicas de que se ocupa a minha discussão.

t «Hoc [viz. multo certior est homo de eo quod audit a Deo qui folli non potest, quam de eo quod

videt propria ratione qua folli potest] intelligendum est de certitudine fidei secundum appretiationem,
non secundum intentionem; nam saepe contingit, ut scientia clarius percipiatur ab intellectu, atque ut
connexio jidei cum eadem; cognitiones enim naturales, utpote captui nostro accomodatae, magis animum
quietant, delectant, et veluti satiant. («Isto [a saber, que o homem está muito mais certo daquilo que
»

ouve de Deus, que não se pode enganar, do que daquilo que ele vê com a própria razão, em si falí­
vel] deve entender-se acerca da certeza da fé segundo o valor, não segundo a intenção; pois muitas
vezes acontece que a ciência é apreendida com maior clareza pelo intelecto, e decerto como conexão
da fé com a mesma; os conhecimentos naturais, porque acomodados à nossa captação, pacificam,
deleitam e como que saciam mais o ânimo».) - Scavini, Theol. Moral. t. ii. p. 428.
2 aSuppono enim, veritatem jidei non esse certiorem veritate metaphysica aut geometrica quoad
modum assentionis, sed tantum quoad modum adhaesionis; quia utrinque intellectus absolute sine modo
limitante assentitur. Sola autem adhaesio voluntatis diversa est; quia in actu fidei gratia seu habitus info­
sus roborat intellectum et voluntatem, ne tam focile mutentur aut perturbentur.• (•Suponho, de facto,

que a verdade da fé não é mais certa do que a verdade metafísica ou geométrica quanto ao modo de
assentimento, mas apenas quanto ao modo de adesão; porque o intelecto dá, em ambos lados, o seu
assentimento absolutamente, sem qualquer limitação. Só a adesão da vontade é diferente; pois, no
acto de fé, a graça ou o hábito infuso fortifica o intelecto e a vontade para que não mudem ou se
perturbem com tanta facilidade.») - Amort, Theol t. i. p. 3 1 2.
«Haec distinctio certitudinis [ex diversitate motivorum} extrinsecam tantum differentiam impor­
tat, cum omnis natura/is certitudo, formaliter spectata, sit aequalis; debet enim essentialiter erroris peri­
culum amovere, exclusio autem periculi erroris in indivisibili consistit; aut enim habetur aut non
habetur.• (•Esta distinção da certeza [pela diversidade dos motivos] implica apenas uma diferença
extrínseca, já que toda a certeza natural, formalmente considerada, é igual; deve, de facto, remover
essencialmente o perigo de erro. Mas a exclusão do perigo de erro consiste no indivisível; ou se tem
ou não se tem».) - Dmouski, ibid. p. 27.
3 «Fides est certior omni veritate naturali, etiam geometrice aut metaphysice certa; idque non

solum certitudine adhaesionis sed etiam assentionis. . . . lntellectus sentit se in multis veritatibus etiam
metaphysice certis posse per objectiones perturbari, e.g. si legat scepticos. . E contra circa ea, quae constat
. .

200 • J o h n H e n ry N e w m a n
2 . As s e n ti m e n t o c o m p l exo

Tenho estado a considerar o assentimento como a asserção mental


de uma proposição inteligível, como um acto do intelecto directo,
absoluto, em si completo, incondicional, arbitrário, todavia não
incompatível com um apelo ao argumento e, pelo menos em muitos
casos, inconscientemente exercido. Não insisti nesta última caracte­
rística do assentimento, visto que não me saiu ao caminho; nem
ele é mais do que um acidente dos actos de assentimento, se bem
que um acidente ordinário. Não se pode duvidar de que é de ocor­
rência habitual. Na sua maioria, os nossos assentimentos são só
expressões das nossas preferências, gostos, princípios, motivos e
opiniões pessoais, como ditados pela natureza ou derivados do
hábito; por outras palavras, são actos e manifestações do Si mes­
mo: ora, que há-de de mais raro do que o conhecimento de si? Em
proporção, pois, com a nossa ignorância do eu está a nossa incons­
ciência dos inumeráveis assentimentos, que incessantemente leva­
mos a cabo. E assim, mais uma vez, naquilo que quase se pode
denominar a operação mecânica das nossas mentes, nos nossos con­
tínuos actos de apreensão e inferência, de especulação e resolução, as
proposições passam diante de nós e recebem o nosso assentimento,
sem a nossa consciência. Daí, que sejamos tão inclinados a confim­
dir actos de assentimento e actos de inferência. Na verdade, eu
poderia honestamente dizer que os assentimentos feitos com um
conhecimento directo do que fazemos são raros em comparação

esse revelata a Deo, nullus poteste perturbari». («A fé é mais certa do que toda a verdade natural, mes­
mo geométrica ou metafisicamente certa; e isto não só com a certeza da adesão, mas também do
assentimento . . . O intelecto vê que ele, em muitas verdades também metafisicamente certas, pode
ser perturbado por objecções, por exemplo, ao ler os cépticos - pelo contrário, acerca daquelas coi­
sas que são revelados por Deus ninguém se pode perturbar».) - Amort, ibid. p. 367.

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 201
com a multidão de actos semelhantes que atravessam as nossas men­
tes numa longa sucessão, sem a eles prestarmos atenção.
A este modo de assentimento, assim inconscientemente exerci­
do, posso chamar assentimento simples, e dele tratei na secção pre­
cedente; mas agora irei falar de assentimentos que devem ser feitos
com consciência e com deliberação, e a que darei o nome de assen­
timentos complexos ou reflexos. E começo por lembrar o que já
afirmei acerca da relação em que se encontram reciprocamente o
Assentimento e a Inferência - Inferência, que se atém condicio­
nalmente a proposições, e Assentimento, que incondicionalmente
as aceita; a relação é esta:
Actos de Inferência são os antecedentes do assentimento antes
de assentir, e os seus concomitantes habituais após assentir. Por
exemplo, afirmo absolutamente que o país, que chamamos Índia,
existe, na base de um testemunho fidedigno; e, em seguida, posso
continuar a acreditar nisso, apoiado no mesmo testemunho; de igual
modo, sempre acreditei que a Grã-Bretanha é uma ilha, por certas
razões suficientes; e, com as mesmas razões, posso persistir na cren­
ça. Mas pode acontecer que eu esqueça as razões daquilo que acredi­
to ser absolutamente verdadeiro; ou que talvez nunca me tenha
interrogado acerca delas, ou que nunca formalmente as pus em
ordem, antes me acostumei a assentir sem um reconhecimento do
meu assentimento ou dos seus motivos; e, em seguida, talvez aconte­
ça que algo me leve a rever e a completar esses motivos, analisando­
-os e ordenando-os, sem todavia implicar por isso necessariamente
qualquer suspensão, mesmo débil, do assentimento à proposição de
que a Índia está numa certa parte da terra e de que a Grã-Bretanha é
uma ilha. Sem qualquer suspensão do assentimento; tal como o
estudante, na minha ilustração anterior, não tinha também dúvida
alguma acerca da resposta estabelecida no seu livro de aritmética,

202 • J o h n H e n ry N e w m a n
quando começou a elaborar a questão; da mesma maneira que tam­
bém não duvida dos seus olhos e do seu senso comum, de que os
dois lados de um triângulo são conjuntamente maiores do que o ter­
ceiro, porque fez a demonstração geométrica a esse respeito. Apenas
repete, após a sua demonstração formal, o assentimento que antes
fizera, e dá o seu assentimento ao seu prévio assentir. Tal é o que eu
denomino um assentimento reflexo ou complexo.
Digo, não existe uma incompatibilidade necessária entre assen­
tir assim e, no entanto, demonstrar - pois o carácter conclusivo
de uma proposição não é sinónimo da sua verdade. Uma proposi­
ção pode ser verdadeira e, todavia, não permite ser inferida; pode
ser uma conclusão e, contudo, não é uma verdade. Vê-la sob um
aspecto não é vê-la sob outro e os dois aspectos podem ser consis­
tentes, em virtude do facto genuíno de serem dois aspectos. Por
conseguinte, tratar de concluir uma proposição não é ipso facto
duvidar da sua verdade; podemos tentar inferir uma proposição
enquanto, em todo o tempo, a ela assentimos. Temos de fazer isto
como uma ocorrência comum, quando empreendemos por nós
mesmos convencer outrem de qualquer ponto em que ele de nós
difere. Não negamos a nossa própria fé, porque nos enredamos em
controvérsias; e, de igual modo, podemos ocupar-nos em demons­
trar que aquilo em que já acreditamos é verdadeiro, apenas para
tornar mais precisa a prova produzida a seu favor, e realizar o que
nos é devido a nós mesmos e às exigências e responsabilidades da
nossa educação e da nossa posição social.
Tenho estado a falar de investigação, não de exame; é inteira­
mente verdade que a inquirição é inconsistente com o assentimen­
to, mas a inquirição é algo mais do que um mero exercício da
inferência. Quem indaga não encontrou; está na dúvida sobre o
lugar onde reside a verdade e deseja que a sua confissão presente

Uma G r a m á r i c a d o Ass e n t i m e n t o • 20 3
seja ou provada ou refutada. Não podemos, sem absurdo, chamar­
-nos a nós mesmos ao mesmo tempo crentes e inquiridores. Cha­
mou-se, assim, por vezes, infortúnio à situação de um Católico que
não está autorizado a indagar a verdade do seu Credo; decerto que
não pode, se há-de conservar o nome de crente. Não pode estar, ao
mesmo tempo, dentro e fora da Igreja. É apenas senso comum dizer­
lhe que, se busca, ainda não encontrou. Se buscar inclui a dúvida, e
se a dúvida exclui a crença, então o Católico que decide inquirir
declara assim que ele não é um Católico. Já perdeu a sua fé. E esta é
sua melhor protecção para inquirir, a saber, que já não é um Católi­
co e deseja tornar-se um. Quem lhe proibisse inquirir estaria, neste
caso, a fechar a porta do estábulo, depois de o cavalo ter sido rouba­
do. Que poderá ele fazer de melhor do que inquirir, se está na dúvi­
da? Como poderá de outro modo tornar-se novamente Católico?
Não inquirir é, neste caso, contentar-se com a descrença.
Todavia, ao falar assim, vejo a questão em abstracto, sem tomar
em consideração as múltiplas inconsistências dos indivíduos, tal
como se encontram no mundo, que tentam unir incompatibilida­
des; que não duvidam, mas que agem como se o fizessem; que,
embora acreditem, são fracos na fé e se expõem a perdê-la, ao darem
desnecessariamente ouvidos a objecções. Além disso, há mentes para
as quais, em todo o tempo, impugnar uma verdade é torná-la discu­
tível e investigar é equivalente a inquirir; mais uma vez, pode haver
crenças tão sagradas ou tão delicadas que, se me é permitido usar a
metáfora, elas não iriam a lavar sem encolher e perder a cor. Conce­
do tudo isso; mas, aqui, discuto princípios amplos, não casos indivi­
duais; e esses princípios são os seguintes: a inquirição implica a
dúvida, mas a investigação, não; e os que assentem a uma doutrina
ou a um facto podem, sem incoerência, investigar a sua credibilida­
de, embora literalmente não possam impugnar a sua verdade.

2 04 • J o h n H e n ry Newman
De seguida, penso que, no caso de mentes educadas, as inves­
tigações da demonstração argumentativa das coisas a que elas
deram o seu assentimento, é uma obrigação, ou antes, uma neces­
sidade. Semelhante empreendimento dos seus intelectos é uma lei
da sua natureza, tal como o crescimento da infância para a vida
adulta, e análoga ao ordálio moral que é o instrumento da sua vida
espiritual. As lições do bem e do mal, ensinadas na escola, devem
desdobrar-se em acção, no meio do bem e do mal do mundo; e,
por isso, mais uma vez, os assentimentos intelectuais em que elas,
desde o início, foram instruídas devem ser testados, realizados e
desenvolvidos pelo exercício do seu juíw maduro.
Sem dúvida, tais processos de investigação, em temas religiosos
ou seculares, desembocam muitas vezes na inversão dos assentimen­
tos que, originalmente, pretendiam confirmar: tal como o jovem
que resolve um problema de aritmética a partir do seu livro talvez
acabe por descobrir, ou pensar que descobre, na resposta uma gralha
tipográfica. Mas a questão que temos diante de nós é se os actos de
assentimento e de inferência serão compatíveis; e a consciência vaga
que tenho da possibilidade de uma revogação da minha crença, ao
longo das minhas indagações, interfere tão pouco com a honesti­
dade e a firmeza desta crença no decurso das pesquisas como o
reconhecimento da possibilidade do descarrilamento do meu com­
boio é a prova da minha intenção de sofrer tão grande calamidade.
A minha mente não é movida por um cômputo científico das pos­
sibilidades, nem lei alguma das médias pode afectar o meu caso
particular. Correr um risco não é esperar o contrário; e, se as minhas
opiniões são verdadeiras, tenho um direito a pensar que elas aguen­
tam um exame. Nem, por outro lado, a crença, olhada na sua ideia,

implica uma resolução positiva na pessoa que supõe jamais abando­


nar essa crença. O que a crença, enquanto tal, insinua não é uma

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 205
intenção de nunca se alterar, mas a ausência total de todo o pensa­
mento, expectação ou receio de mudar. Uma resolução espontânea
de nunca mudar é inconsistente com a ideia da crença; pois, a verda­
deira força, a absolutidade do acto de assentimento exclui semelhan­
te resolução. Em geral, não determinamos não fazer o que não
podemos imaginar que alguma V€:Z faremos. De facto, sem demora
faríamos semelhante promessa formal, se fôssemos chamados a pro­
ceder assim; pois, visto que temos a verdade, e a verdade não pode
mudar, como é que possivelmente podemos mudar nas nossas cren­
ças, a não ser por causa da nossa própria fraqueza ou inconstância?
Não temos intenção alguma de ser fracos ou inconstantes; por isso, a
nossa promessa é apenas a garantia natural da nossa sinceridade. É,
pois, possível, sem deslealdade para com as nossas convicções, exa­
minar os seus motivos, mesmo se eles, neste caso, se sujeitam a exa­
me, pois não suspeitamos deste desaire.
E semelhante escrutínio, como afirmei, cumpre apenas uma
lei da nossa natureza. Os nossos primeiros assentimentos, correctos
ou errados, muitas vezes, pouco mais são do que preconceitos. Os
raciocínios, que os precedem e acompanham, embora suficientes
para o seu propósito, não chegam à importância e à energia dos
próprios assentimentos. Com o tempo, gradualmente e sem deli­
beração, por reflexão e experiência, começamos a confirmar ou a
corrigir as noções e as imagens a que são dados os nossos assenti­
mentos. Por vezes, é uma necessidade de formalmente empreender
o exame e a revisão desta ou daquela sua classe, dos que se referem
à religião, ao dever social, à política ou à conduta de vida. Por
vezes, esta revisão começa na dúvida quanto às questões que nos
propomos considerar, isto é, numa suspensão dos assentimentos
que até então nos eram familiares; por vezes, esses assentimentos
são demasiado fortes para aceitarem a sua perda à primeira agita-

206 • J o h n H e n ry N e w m a n
ção do intelecto inquisitivo, e se, à medida que o tempo passa, eles
se desvanecem, a nossa mudança de mente, para o bem ou para o
mal, deve-se à força acumulativa dos argumentos, fortes ou fracos,
que incidem nas proposições que até então acatámos. De facto, as
objecções, enquanto tais, não têm uma força directa para enfra­
quecer o assentimento; mas, quando se multiplicam, impugnam os
raciocínios implícitos ou as inferências formais que são o seu
garante, suspendem os seus actos e, pouco a pouco, minam o seu
hábito. Esmorece então o assentimento; porém, se devagar ou de
repente, se de modo visível ou imperceptível, é uma questão de
circunstância ou acidente. Todavia, persista ou não o assentimento
original, o novo assentimento difere do antigo no seguinte: tem a
força da explicitação e da deliberação, não é um mero preconceito,
e a sua força não é a força do preconceito. É um assentimento, não
só a uma dada proposição, mas à pretensão desta proposição ao
nosso assentimento enquanto verdadeira; é um assentimento a um
assentimento, ou aquilo a que, em geral, se chama uma convicção.
Naturalmente, estes actos reflexos podem repetir-se em série.
Como ao dizer que «a Grã-Bretanha é uma ilha» e, em seguida, afir­
mo «Que "a Grã-Bretanha é uma ilhà' reclama o meu assentimen­
to», que «se lhe deve assentir» e «aceitar como verdadeira» ou ser
«acreditada», ou apenas que «é verdadeira» (se esses predicados forem
equivalentes) , posso continuar, <<A proposição "Que a Grã-Bretanha­
-é-uma-ilhd' deve ser acreditada» é para ser acreditada», etc. etc. , e
assim por diante ad infinitum. Mas isto seria fütil. A mente é como
um duplo espelho em que os reflexos do Si mesmo dentro do Si
mesmo se multiplicam até serem indistinguíveis, e o primeiro reflexo
contém tudo o mais. Ao mesmo tempo, vale a pena atentar noutras
duas proposições reflexas: «Que "a Grã-Bretanha é uma ilhà' é pro­
vável» é verdadeira; e «Que "a Grã-Bretanha é uma ilhà' é incerta» é

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 2 07
verdadeira; pois, a primeira das duas é a expressão da Opinião, e a
última, da dúvida formal ou teológica, como já estipulei.
Devo ainda dar mais um passo. Suponhamos que a proposição
a que se presta o assentimento é tão absolutamente verdadeira
quanto o acto reflexo assere que ela é, a saber, objectiva e subjecti­
vamente verdadeira: então, chamar-se-á ao assentimento uma per­
cepção, à convicção uma certeza [subjectiva] , à proposição ou à
verdade uma certeza [objectiva] ou coisa conhecida, ou uma maté­
ria de conhecimento, e a ela assentir é conhecer.
Ao falar assim, levanto, naturalmente, a questão importantíssi­
ma: que é a verdade, e que é a verdade aparente? Que é o genuíno
conhecimento, e que é a sua contrafacção? Quais os testes para dis­
criminar a certeza da mera persuasão ou ilusão? Seja o que for que
um homem tem por verdadeiro, ele dirá que o tem por certo; por
agora, devo conceder-lhe este seu pressuposto, esperando, de uma
ou de outra forma, à medida que avanço, atenuar as dificuldades
que residem no modo de o intimar a justificar o seu procedimento.
E tenho menos escrúpulo em enveredar por este caminho do que
em crer que, entre os homens honestamente prudentes e circuns­
pectos, há muito menos exemplos de falsa certeza do que, à pri­
meira vista, se poderia supor. Os homens têm, muitas vezes,
dúvidas acerca de proposições que são realmente verdadeiras; não
raro, estão certos a seu respeito como sendo simplesmente falsas.
O que eles j ulgam ser uma certeza é, em questões de facto, quase
sempre uma verdade. Não é que não exista uma grande mole de
conversa precipitada mesmo entre a parte educada da comunidade,
e muitos homens fazem confissões de certeza, para as quais não
têm garantia alguma; mas semelhante linguagem despropositada e
confiante não é sinal de como as pessoas se expressarão a si mes­
mas, quando a põem a livro. Ninguém, com justeza, se considerará

208 • J o h n H e n ry N e w m a n
certo acerca de qualquer assunto, a não ser que tenha razões sufi­
cientes para assim pensar; e é raro que aquilo que não é verdadeiro
esteja isento de toda a circunstância e de todo o indício de falsida­
de, para não suscitar suspeita na sua mente quanto à sua vantagem,
nem razão alguma para suspender o juízo. Todavia, terei de fazer
algumas observações acerca desta dificuldade, já a seguir; aqui,
mencionei duas condições da certeza, em íntima ligação com o
preliminar necessário de investigação e da prova, por mim referi­
das, que a este respeito arrojará alguma luz. Uma, que é a priori,
ou a partir da natureza do caso, dir-nos-á o que a certeza não é; a
outra, que é a posteriori, ou a partir da experiência, dir-nos-á em
certa medida o que a certeza é.
A certeza, como afirmei, é a percepção de uma verdade com a
apreensão de que ela é uma verdade, ou a consciência de saber,
como expressa na frase, «Eu sei que sei» ou «Sei que sei que sei» ou
simplesmente «sei»; pois uma asserção reflexa da mente acerca do
Si mesmo resume a série das autoconsciências, sem necessidade de
qualquer evolução concreta destas.

I. Mas se assim é, se por certeza acerca de uma coisa se deve enten­


der o conhecimento da sua verdade, considere-se que aquilo que é
de imediato verdadeiro é sempre verdadeiro, e não pode falhar, ao
passo que aquilo que uma vez foi conhecido nem sempre precisa
ser conhecido, e é susceptível de erro. Portanto, se estou certo de
uma coisa, creio que ela continuará a ser o que agora afirmo que
ela é, embora a minha mente possa ter a má sorte de a deixar des­
vanecer-se. Visto que o simples argumento não é a medida do
assentimento, não se poderá dizer certo acerca de uma proposição
aquele cuja mente não rejeite espontânea e prontamente, à sua pri-

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 20 9
meira sugestão, como ociosas, como irrelevantes, como sofisticas,
quaisquer objecções que foram dirigidas contra a sua verdade. De
uma verdade não pode estar certo quem consiga suportar o pensa­
mento relativo ao facto da existência ou ocorrência da sua contra­
ditória; e isto não a partir de qualquer deliberação ou esforço para
rejeitar esse pensamento, mas, como afirmei, em virtude da acção
espontânea do intelecto. O que é contraditório à verdade, com o
seu equipamento de argumentos, esvanece-se da mente tão depres­
sa como nela entrou; e embora possa, muitas vezes, retornar à
mente pela pertinácia de um adversário, ou por um acto voluntá­
rio ou involuntário da imaginação, mesmo assim essa proposição
contraditória e os seus argumentos são meros fantasmas e sonhos,
à luz da nossa certeza, e o seu real ingresso na mente é o primeiro
passo para dela sair. Tal é a posição das nossas mentes frente à fan­
tasia pagã de que Enceladus se encontra sob o Etna; ou, para não
aduzirmos um caso tão extremo, de que Joanna Southcote era um
mensageiro dos céus ou o imperador Napoleão tinha realmente
uma estrela. Igual a esta asserção peremptória de proposições nega­
tivas é a rejeição pela mente de suposições incompatíveis com
enunciados positivos das quais estamos certos, embora sejam ver­
dades abstractas ou factos; que uma linha recta é a mais longa dis­
tância possível entre os seus pontos extremos, que a Grã-Bretanha
é, quanto à forma, um quadrado ou um círculo exacto, que eu
escaparei à morte ou que o meu amigo íntimo é para mim falso.
Podemos, de facto, dizer, se nos aprouver, que um homem não
deveria ter uma tão soberana convicção num dado caso, ou em
qualquer caso; e que, por conseguinte, está enganado ao abordar
opiniões, que ele próprio não sustenta, com este desprezo mesmo
involuntário; temos, sem dúvida, o direito de assim falar, se quiser­
mos; mas se, em questões de facto, um homem tem semelhante

210 • J o h n H e n ry N e w m a n
convicção, se está seguro de que a Irlanda se encontra a Ocidente
da Inglaterra, ou de que o Papa é o Vigário de Cristo, nada lhe res­
ta, se eu for consistente, excepto deter a sua convicção na intole­
rância magistral de qualquer asserção contrária; e se, na sua própria
mente, fosse tolerante, não digo paciente (pois a paciência e a gen­
tileza são deveres morais, mas quero dizer intelectualmente tole­
rante) , com objecções enquanto objecções, estaria virtualmente a
aprovar as concepções que essas objecções representam. Repito, eu
seria decerto muito intolerante perante a noção de que, um dia,
virei a ser imperador dos Franceses; tê-la-ia por demasiado absurda
até para ser ridícula, e penso que deveria estar louco, inclusive,
antes de a poder tomar em consideração. E se um homem tentasse
persuadir-me de que a perfídia, a crueldade ou a ingratidão eram
tão louváveis como a honestidade, a temperança, e que alguém que
viveu a vida de um tratante e teve a morte de um bruto nada tinha
a recear de uma futura retribuição, deveria pensar que eu não era
instado a escutar os seus argumentos, excepto com a esperança de
o converter, embora ele me chamasse um fanático e um cobarde,
por recusar o exame das suas especulações. E se, numa questão em
que estavam em jogo os meus interesses temporais, ele tentasse
reconciliar-me com actos fraudulentos mediante aquilo que ele
chamava concepções filosóficas, deveria eu dizer-lhe, «Retro Satan11>> ;
e tal, não por suspeita da sua capacidade de inverter princípios
imutáveis, mas em virtude da consciência da minha própria muta­
bilidade moral, e do receio de que, assim, eu não fosse intelectual­
mente verdadeiro em face da verdade. Esta é, pois, a partir da
natureza do caso, uma característica central da certeza em qualquer
assunto: confiar que ela persistirá, e confiar também em que, se ela
faltar, a própria coisa de que estamos certos, seja ela o que for, per­
manecerá j ustamente como é, verdadeira e irreversível. Se assim

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 211
for, é fácil aduzir exemplos dos casos de uma adesão a proposições,
que não satisfaz as condições da certeza; por exemplo:
( 1 .) Quão positivos e circunstanciais podem ser os litigantes
nas duas vertentes de uma questão de facto, a cujo respeito pro­
porcionam as suas provas, até serem convocados a jurar por ela, e
quão cauteloso e incondicional se torna então o seu testemunho!
Além disso, quão confiantes se mostram eles nos seus relatos rivais
de uma transacção a que assistiram, até que uma terceira pessoa
surge em cena, e cuja palavra será decisiva a tal respeito! Então, de
repente, baixam de tom, ajustam as suas afirmações e, com reservas
e explicações, arranjam buracos para escapar, no caso de o seu tes­
temunho redundar em desvantagem sua. De início, nenhuma lin­
guagem poderia ser tão ousada ou absoluta para expressar a nitidez
do seu conhecimento deste ou daquele aspecto; mas uma segunda
reflexão é melhor, e o recuo deles mostra que a sua crença não che­
ga à importância da certeza.
(2.) Além disso, poderemos porventura duvidar que muitos e
autoconfiantes expositores da Escritura, tão seguros de que S . Pau­
lo disse isto, e S . João e S. Tiago não, ficariam seriamente descon­
certados com a presença desses Apóstolos, se tal presença fosse
possível? Mas agora ostentam eles uma especial «ousadia de discur­
so» em abordar o seu tema, porque não existe ninguém com auto­
ridade para os corrigir, se estiverem no erro.
(3.) Tomemos outro exemplo, em que a ausência de certeza é
afirmada desde o início. Embora seja uma matéria de fé para os Cató­
licos que os milagres nunca acabam na Igreja, contudo, que este ou
aquele milagre afirmado tenha realmente acontecido é, quase sempre,
apenas uma questão de opinião, e quando é aceite pela crença, na
base do testemunho ou da tradição, não o é com exclusão de toda a
dúvida, quer acerca do facto quer do seu carácter milagroso. Pode-

212 • J o h n H e n ry N e w m a n
mos, pois, acreditar na liquefacção do sangue de S. Pantaleão e crer,
com o melhor dos juízos, que se trata de um milagre; todavia, se um
químico se propusesse suscitar exactamente o mesmo fenómeno em
circunstâncias de todo análogas, com os materiais postos ao seu dis­
por pela ciência, de modo a minimizar o que parecia estar além da
natureza no âmbito das leis naturais, eu deveria observar, com algu­
ma suspensão da mente e algum receio, o curso da sua experiência,
como não apresentando uma Palavra Divina a que recorrer enquanto
motivo da certeza de que a liquefacção era miraculosa.
(4. ) Consideremos outra exibição virtual do medo; quero
dizer, a exasperação e a impaciência da contradição, a veemência
da asserção, a determinação de calar os outros - eis os sinais de
uma mente que ainda não alcançou o gozo tranquilo da certeza.
Ninguém, suponho, diria que está certo da pluralidade de mun­
dos: a incerteza a este respeito é j ustamente a explicação, e a única
explicação satisfatória para a minha mente, da estranha violência
da linguagem que, até agora, desonrou a controvérsia filosófica a
tal respeito. Os que estão certos de um facto são litigantes indolen­
tes; basta-lhes ter a verdade; e têm pouca disposição, excepto ao
apelo do dever, para criticar as alucinações de outros, e muito
menos se enfurecem com o seu carácter positivo ou a sua ingenui­
dade no argumento; mas chamar-lhes nomes, atribuir motivos,
acusá-los de sofisma, de serem impetuosos e autoritários, é o qui­
nhão dos homens que ficam alarmados com a sua própria posição
e receiam ter-se dela aproximado demasiado. E, de igual modo, a
intemperança da linguagem e do pensamento que, por vezes, se
encontra nos convertidos a um credo religioso, é frequentemente
atribuída, não sem plausibilidade (embora por erro no caso parti­
cular) , a alguma falha na integralidade da sua certeza, que interfere
com a harmonia e a paz das suas convicções.

U m a G ra m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 213
(5.) De novo, esta inquietude intelectual, incompatível com a
certeza, revela-se, nas nossas mentes, em recorrer aos argumentos
com que chegámos à crença, em não admitir apenas as nossas con­
clusões, em aprovar e fortalecer as provas e, por assim dizer, em
aprendê-las de cor, como se o nosso mais elevado assentimento
fosse apenas uma inferência. E assim é também a nossa desnecessá­
ria declaração de que estamos certos, como que para nos tranquili­
zarmos, e o nosso apelo a outros em vista do seu sufrágio a favor
das verdades de que estamos tão seguros; o que é a mesma coisa
que perguntar a outros se estamos cansados e famintos, ou se
comemos e bebemos para nossa satisfação.
Todas as leis são gerais; nenhumas são invariáveis; não escrevo
como um moralista ou um casuísta. Importa sempre recordar que
estes diversos fenómenos da mente, embora sinais, não são sinais
infalíveis de incerteza; podem derivar, no caso particular, de outras
circunstâncias. Tais ansiedades e alarmes podem ser apenas emo­
cionais e derivar da imaginação, e não intelectuais; comparáveis ao
bater do coração, mas também, como afirmei, ao tremer dos mem­
bros, inclusive dos homens mais bravos, antes de uma batalha,
quando, em pé e serenos, recebem o primeiro ataque do inimigo.
Assim é também esta auto-interrogação palpitante, esta perturba­
ção da mente com receio de não acreditar com força suficiente, a
qual, não haja dúvida, está subjacente à sensibilidade descrita nos
bem conhecidos versos:

«Com os olhos despertas, mas inseguros,


Suportar, na obscuridade, por Seu amor».

E, ainda, a seriedade extrema de um homem na argumentação


pode dimanar do fervor ou da caridade; a sua impaciência, da leal-

21 4 • J o h n H e n ry Newman
dade à verdade; a sua extravagância, da falta de gosto, do entusias­
mo ou do ardor juvenil; e o seu retorno irrequieto à discussão, não
da inquietude pessoal, mas de uma viva apreciação do talento
polemista de um adversário, ou do seu próprio, ou das simples
dificuldades filosóficas do tema em discussão. Eis alguns pontos
para a consideração dos que se preocupam com registar e explicar
aquilo a que se pode dar o nome de fenómenos meteorológicos da
mente humana; não interferem com o amplo princípio que eu
estabeleceria, a saber, recear o raciocínio é duvidar da conclusão,
estar certo de uma verdade é não atender às objecções que lhe são
feitas - nem com a regra prática de que o assentimento simples
não é a certeza, nem com ela se deve confundir.

2. Consideremos agora o que é a Certeza, não simplesmente como


ela deve ser, mas na experiência concreta que dela temos.
É acompanhada, enquanto estado da mente, por um sentimen­
to específico, a ela peculiar, e que a discrimina de outros estados,
intelectuais e morais, não digo, como seu exame prático ou como
sua dijferentia,, mas como o seu sinal e, em certo sentido, a sua for­
ma. Quando um homem diz que está certo quer dizer que é cons­
ciente de ele mesmo ter este sentimento específico. É um sentimento
de satisfação, de autocongratulação, de segurança intelectual, que
brota de um sentido de êxito, consecução, posse e finalidade, no
tocante ao assunto que esteve em disputa. Assim como um acto
consciente é assistido por uma auto-aprovação que apenas a si mes­
ma se pode criar, assim a certeza está unida a um sentimento sui
generis em que ela vive e transparece. Estes dois sentimentos parale­
los não têm, de facto, relação alguma entre si, pois o auto-repouso
aprazível da certeza é tão alheio a um acto bom quanto o clarão

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 21 5
auto-aprovativo da consciência o é à percepção de uma verdade;
contudo, o conhecimento, tal como a virtude, é um fim, e conheci­
mento e virtude, quando sobre eles se reflecte, trazem consigo res­
pectivamente a sua próprio recompensa no sentimento característico
que, como afirmei, é a cada qual peculiar. E assim como a realização
do que é bom se distingue por esta paz religiosa, assim a consecução
do que é verdadeiro é certificado por esta segurança intelectual.
E assim como o sentimento de auto-aprovação, próprio da
boa conduta, não é inerente ao sentido ou à posse do belo ou do
conveniente, do agradável ou do útil, assim também não é de espe­
rar que o especial sossego e repouso da mente, sinal da Certeza, algu­
ma vez acompanhe o simples Assentimento, em processos de
Inferência ou na Dúvida; nem na Investigação, conjectura, opinião,
enquanto tais, ou em qualquer outro estado ou acção da mente,
além da Certeza. Pelo contrário, estes actos e estados da mente têm
gratificações que lhes são peculiares, e diversamente do da Certeza,
como se tornará assaz evidente, na sua consideração em separado.
( 1 .) Os filósofos gostam de se alargar sobre os prazeres do
Conhecimento (isto é, do Conhecimento enquanto tal) , nem é
necessário que eu demonstre aqui que tais prazeres existem; mas o
repouso no Si mesmo e nos seus objectos, enquanto ligados ao Si
mesmo, que atribuo à Certeza, não está associado ao mero conhecer,
isto é, à percepção das coisas, antes à consciência de se ter tal conhe­
cimento. A percepção simples e directa das coisas tem a sua própria
grande satisfação; mas deve reconhecê-las como realidades, reconhe­
cê-las como conhecidas, antes de se tornar percepção, e tem a satisfa­
ção que cabe à certeza. De facto, tanto quanto vislumbro, o prazer
de apreender a verdade, sem reflectir sobre ela enquanto verdade,
não é muito diferente, excepto na intensidade e na dignidade, do
prazer enquanto tal do assentimento ou da crença dada ao que não é

216 • J o h n H e n ry N e w m a n
verdadeiro, e ainda do prazer da mera recepção passiva de relatos ou
narrativas, que não pretendem ser verdadeiros nem exigem ser objec­
tos de crença. As representações de qualquer tipo são aprazíveis na
sua própria natureza, sejam, ou não, verdadeiras, surjam, ou não,
diante de nós, como verdadeiras. Com prazer lemos uma história ou
uma notícia biográfica; com prazer lemos um romance; e é um pra­
zer que está inteiramente à parte da questão de facto ou da ficção.
Na realidade, se desejamos persuadir os jovens a ler história, dize­
mos-lhes que ela é tão interessante como um romance ou uma
novela. A simples aquisição de novas imagens, e daquelas imagens
surpreendentes, grandes, diversas, inesperadas, belas, com mútuas
relações e referências, como partes de um todo, com continuidade,
sucessão e desenvolvimento, com complicações recorrentes e solu­
ções correspondentes, com uma crise e uma catástrofe, é altamente
aprazível, com plena independência da questão de se nelas existe ver­
dade alguma. Não nego que deveríamos ficar contrariados e desa­
pontados, se nos dissessem que todas elas são falsas, mas tudo isto
parece derivar da reflexão que empreendemos; não como se o facto
da sua verdade fosse um elemento distinto do prazer, embora ele
intensificasse o prazer, porquanto lhes infunde um carácter de mara­
vilha e as associa a lugares conhecidos ou precisos. Mas, embora o
prazer do conhecimento não radique assim na imaginação, pelo
menos não consiste no sossego triunfante da mente após uma luta,
que é a característica da certeza.
E assim também quanto aos enunciados que conseguem de
nós um semi-assentimento, como as fábulas supersticiosas, as his­
tórias de magia, de crime romântico e de fantasmas, ou aquelas
que na altura seguimos com um assentimento esmorecido e débil
- a história contemporânea, as ocorrências políticas, as notícias
quotidianas - o prazer delas derivado é o da novidade ou curiosi-

Uma G r a m á c i c a do As s e n t i m e n to • 217
·
dade, e assemelha-se ao prazer que nasce da excitação do acaso e da
variedade; não alberga em si nenhum sentido de posse: é-nos sim­
plesmente externo, nada tem de afim ao pensamento de uma bata­
lha e de uma vitória.
(2.) Mais ainda, a Demanda do conhecimento tem o seu prazer
peculiar - tão distinto dos prazeres do conhecimento quanto dife­
rente do prazer de conscientemente estar na sua posse. Tal tornar-se­
á imediatamente evidente, se considerarmos o vazio e a depressão da
mente que, por vezes, nos advém no termo de uma inquirição, ainda
que levada a cabo com êxito, comparada com o interesse e o espírito
com que nela embarcámos. O prazer da busca, tal como o da caça,
reside na procura e acaba no ponto em que se inicia o prazer da Cer­
teza. Os seus elementos são de todo estranhos àqueles que irão cons­
tituir a serena satisfação da Certeza. Primeiro, os passos sucessivos da
descoberta, que acompanham uma investigação, são informações
contínuas e sempre crescentes, agradáveis, não só enquanto tais,
mas também como a prova de esforços passados e, por fim, o
penhor do êxito. Em seguida, há o interesse que está ligado a um
mistério, ainda não superado, mas tendendo para a eliminação -
o prazer complexo da admiração, da expectação, das surpresas súbi­
tas, da suspensão e da esperança, dos avanços irregulares, embora
seguros, para o desconhecido. E existe o prazer associado à canseira e
ao conflito do forte, a consciência e as provas sucessivas do poder,
moral e intelectual, a ufania da inventividade e da habilidade, da
diligência, da paciência, da vigilância e da perseverança.
Tais são os prazeres da investigação e da descoberta; e a estes
devemos acrescentar o que sugeri na última frase, a satisfação lógica,
como se poderia denominar, que acompanha os esforços da mente.
Existe, como é patente, um grande prazer, pelo menos para certas
mentes, em avançar de factos particulares para princípios, em genera-

218 • J o h n H e n ry N e w m a n
lizar e discriminar, em reduzir à �rdem e ao significado o emaranha­
do de fenómenos que a natureza nos apresenta. Este é o tipo de pra­
zer que acompanha o tratamento de probabilidades que apontam
para conclusões sem as alcançar, ou de objecções que devem ser pon­
deradas, medidas e ajustadas por aquilo que valem, a propósito e con­
tra as proposições que são previamente evidentes. É o prazer especial
inerente à Inferência enquanto contrastada com o Assentimento, um
prazer quase poético, tal como o crepúsculo tem em si mais poesia do
que o meio-dia. Tal é a alegria do advogado de defesa, com um bom
caso na mão, e que aguarda os ataques separados de meia dúzia de
intelectos brilhantes, cada qual partindo de um ponto próprio. Supo­
nho que este era o prazer que os Académicos tinham em mente, ao
afirmarem que a felicidade não consiste em encontrar a verdade, mas
em procurá-la. De facto, buscar, com a certeza de não encontrar o
que demandamos, não pode ser, em qualquer assunto sério, mais
agradável do que a tarefa de Sísifo ou das Danaides; mas quando o
resultado não tem muito a ver connosco, os argumentos subtis e os
seus rivais têm a atracção de um jogo de azar ou de habilidade, quer
levem, ou não, a qualquer conclusão definida.
(3.) Haverá prazeres da Dúvida, bem como da Inferência e do
Assentimento? Num sentido, sim. Não, porém, se a dúvida signifi­
car apenas ignorância, incerteza ou suspensão irremediável; mas
existe uma certa grave aquiescência na ignorância, um reconheci­
mento da nossa impotência para resolver questões momentosas e
urgentes, que tem um atractivo próprio. Após elevadas aspirações,
após esforços renovados, após uma fadiga inútil, após longas errân­
cias, após a esperança, o esforço, o cansaço e o fiasco, na sua peno­
sa alternância e recorrência, é um alívio imenso para a mente
esgotada ser capaz de dizer, «Finalmente, sei que nada posso saber
acerca de coisa alguma>> - isto é, embora ela consiga persistir numa

Uma G r a m li. t i c a do A s s e n t i m e n t o • 21 9
postura de pensamento, não tem promessa alguma de permanên­
cia, porque é inatural. Mas, aqui, a satisfação não reside em não
saber, antes em saber que nada há para saber. É um acto positivo
de assentimento ou de convicção, dado ao que no caso particular é
uma inverdade. O assentimento e a falsa certeza é que são a causa
da tranquilidade da mente. A ignorância continua a ser o mal que
sempre foi, mas algo da paz da Certeza se obtém em saber o pior, e
em conseguir a reconciliação da mente nessa adversidade.
Talvez se afigure que eu fui desnecessariamente difuso, ao insis­
tir assim nas afecções aprazíveis que, de modo vário, acompanham
as multifárias condições do intelecto, mas tinha um objectivo ao
fazê-lo. Que a Certeza é um estado natural e normal da mente, e
não (como às vezes se objecta) uma das suas extravagâncias ou enfer­
midades, é demonstrado, de facto, pelas observações que acima fiz
acerca da mesma objecção, quando dirigida contra o Assentimento;
pois, a Certeza é somente uma das suas formas. Mas, além disso,
achei por bem sugerir, mesmo à custa de uma digressão, que assim
como ninguém recusará à Inquirição, à Dúvida e ao Conhecimento
um lugar legítimo entre os nossos constituintes mentais, assim tam­
bém ninguém, sensatamente, pode ignorar um estado da mente que
não só se revela essencial por possuir um sentimento sui generis e
característico, mas é ainda análogo à Inquirição, à Dúvida e ao
Conhecimento, no facto de assim ter um sentimento muito seu.

220 • John Henry Newman


CAP ÍTULO 7

C E RT E ZA

1. C o n t raste entre Ass e n t i m e n t o e C e r t e z a

Ao prosseguir na comparação entre assentimento simples e comple­


xo, isto é, Assentimento e Certeza, começo por advertir que, popu­
larmente, não se faz distinção alguma entre os dois; ou antes, que,
na instrução religiosa, se chama Certeza àquilo a que dei o nome de
Assentimento. Não tenho dificuldade em adaptar semelhante uso
das palavras, embora o curso da minha pesquisa a outro me tenha
induzido. Talvez o assentimento religioso se possa convenientemente
chamar, para recorrer a um termo teológico, «certeza material», e o
primeiro ponto de comparação que farei entre os dois estados da
mente servirá para me ajustar ao modo comum de falar.

I. Por isso, das distinções por mim feitas depreende-se, decerto,

que os homens, em grande número, passaram supostamente pela


vida sem qualquer dúvida ou, por outro lado, sem certeza (tal como
usei as palavras) acerca das proposições mais importantes que podem
ocupar as suas mentes, mas apenas com um assentimento simples, a
saber, o assentimento que eles dificilmente reconhecem, ou que cla­
rificam na sua consciência ou sobre ele reflectem, enquanto assenti­
mento. Semelhante assentimento é tudo o que comummente devem
mostrar os Protestantes religiosos que, apesar de tudo, acreditam
com todo o seu coração nos conteúdos da Sagrada Escritura. Tal

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 221


será também o estado da mente de multidões de bons Católicos, tal­
vez a maioria, que vivem e morrem numa crença simples, plena, fir­
me em tudo o que a Igreja ensina, porque ela o ensina - na crença
da verdade irreversível de tudo o que ela define e declara - mas
que, em virtude de estarem muito longe dos Protestantes e de outros
dissidentes e de terem apenas um escasso treino intelectual, nunca
tiveram nem a tentação de duvidar nem a oportunidade de estarem
certos. Houve, na Idade Média, nações inteiras arreigadas na Fé
Católica, que nunca usaram as suas doutrinas como matéria de dis­
cussão ou de investigação, ou mudaram a crença original da sua
infância para as convicções mais científicas da filosofia. Assim como
existe uma condição da mente que é caracterizada pela ignorância
invencível, assim existe outra que se pode dizer estar possuída de
conhecimento invencível. E seria paradoxal em mim negar a seme­
lhante estado mental a qualidade suprema de fé religiosa - quero
dizer, a certeza.
Concedo isto e, por conseguinte, chamarei ao assentimento
simples certeza materia4 ou, para usar um termo mais apropriado,
certeza interpretativa. Chamo-lhe interpretativa, significando assim
que, embora o assentimento nos indivíduos aqui contemplados
não seja um acto reflexo, será suficiente encetar a questão acerca da
verdade dos objectos do seu assentimento para deles suscitar em
resposta um acto de fé que satisfará as condições da certeza, tal
como as elaborei. Quanto ao processo argumentativo para seme­
lhante acto, ele é válido e suficiente, se levado a cabo com serie­
dade e proporcionado às suas diversas capacidades: <<A Religião
Católica é verdadeira, porque os seus objectos, enquanto presentes
à minha mente, guiam e influenciam a minha conduta, como nada
mais consegue»; ou «porque tem à sua volta um odor de verdade e
de santidade sui generis, tão perceptível à minha natureza moral

222 • J o h n H e n ry N e w m a n
como as flores ao meu sentido, pelo que só pode provir do cém>;
ou «porque nunca foi para mim outra coisa excepto paz, alegria,
consolação e força, ao longo da minha perturbada vida» . E se o
argumento particular, empregue em alguns exemplos, precisar de
reforço, então advirta-se que a viveza da apreensão real com que o
assentimento se leva a cabo, embora não possa constituir a base
legítima do assentimento, pode, contudo, actuar legitimamente, e
actuar com força, na confirmação. Tal seria, digo, a prontidão e a
eficácia do raciocínio, a facilidade da transição do assentimento
para a certeza genuína, no caso das multidões em questão, se a
ocasião para a reflexão ocorresse; mas não ocorre; e, por conseguin­
te, por mais genuíno e perfeito que seja o assentimento, pode ape­
nas chamar-se certeza virtual, material ou interpretativa, se acima
expliquei correctamente a certeza.
Naturalmente, estas observações aguentam-se bem em temas
seculares e também religiosos: creio, por exemplo, que vivo numa
ilha que Júlio César outrora invadiu, que foi conquistada por raças
sucessivas, que sofreu grandes mudanças políticas e sociais e que,
nesta época, tem colónias, estabelecimentos e um domínio imperial
sobre toda a terra. Estou habituado a ter tudo isto por garantido,
sem qualquer pensamento; mas, se viesse a ser necessário, não
encontraria grande dificuldade em extrair dos meus recursos mentais
razões suficientes para me justificar a propósito destas crenças.
Sem dúvida, entre as multidões que têm esta certeza implícita,
há quem alteraria os seus assentimentos, se tentasse estabelecê-los
numa base argumentativa; por exemplo, se alguns crentes no Cris­
tianismo examinassem as suas pretensões, talvez acabassem por a ele
renunciar. Mas isto significa apenas que há assentimentos genuínos e
assentimentos que, em última análise, se tornam não genuínos; e
ainda, que há um assentimento que não é uma certeza virtual e se

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 223
esvanece na tentativa de o transformar em certeza. E, claro está,
não somos dotados da capacidade de perscrutar as mentes dos
indivíduos, que nos capacita para determinar, antes do aconteci­
mento, quando é que um assentimento é, ou não, efectivamente
tal, ou quando não é um assentimento profundamente enraizado.
Os homens podem assentir com facilidade, ou em virtude do sim­
ples preconceito, ou sem entender aquilo a que dão assentimento.
Têm, porventura, uma crença autêntica na Revelação até à altura
em que encetam um exame formal - e dispõem também, de fac­
to, de razões implícitas para a sua crença - e então, vencidos pelo
número de concepções que devem enfrentar, abalados pela força
de obj ecções específicas, arrastados pelas suas imaginações ou ate­
morizados por uma compreensão mais profunda das exigências fei­
tas à alma pela religião, podem, não obstante os seus motivos
habituais e latentes subjacentes à crença, recuar e retirar o seu
assentimento. Ou podem, ainda, ter outrora acreditado, mas o seu
assentimento converteu-se gradualmente, sem eles saberem, numa
simples declaração; em seguida, quando por acaso se interrogam a
si mesmos, não descobrem no seu íntimo assentimento algum que
redunde em certeza. A ocorrência, repito, apenas determina se o
que é exteriormente um assentimento se assemelha, de facto, a um
acto da mente de modo a desdobrar-se em certeza, ou se é uma
simples auto-ilusão ou um disfarce para a descrença.

2. Em seguida, advirto que, dos dois modos de apreender proposi­


ções, nocional e real, o assentimento tem, como já afirmei, relações
mais estreitas com o real do que com o nocional. Ora um assenti­
mento simples não precisa de ser nocional; mas o assentimento
reflexo ou confirmativo da certeza é sempre dado a uma proposi-

2 24 • J o h n H e n ry N e w m a n
ção nocional, a saber, à verdade, à necessidade, à obrigação, etc. , do
nosso assentimento ao assentimento simples e à sua proposição. O
seu predicado é um termo geral e não pode ocupar o lugar de um
facto, ao passo que a proposição original, nele incluída, pode, e mui­
tas vezes assim acontece, expressar um facto. Por conseguinte, «A

cólera está no meio de nós» é uma proposição real; mas «Que "a
cólera está no meio de nós" é indubitável» é nocional. Ora o assenti­
mento a uma proposição real é o assentimento a uma imaginação, e
uma imaginação, enquanto fornece objectos à nossa natureza emo­
cional e moral, está destinada a ser um princípio de acção: portanto,
o assentimento simples à proposição «A cólera está no meio de nós»
é mais enfático e operativo do que o assentimento confirmativo,
«Está fora da dúvida razoável que "a cólera está no meio de nós"». A
confirmação realça o acto complexo da mente, mas o assentimento
simples incute-lhe a sua força. O assentimento simples, no seu grau,
ainda seria operativo, embora o assentimento reflexo não seja «É ine­
gável», mas «É provável» que «a cólera esteja no meio de nós»; não
haveria, porém, força operativa alguma no acto mental, embora o
assentimento reflexo visasse a verdade, e não a probabilidade do fac­
to, se o facto, objecto do assentimento simples, fosse apenas «A cóle­
ra existe na China». Por isso, o assentimento reflexo, que é a
característica da certeza, não nos afecta de modo imediato; é pura­
mente intelectual e, olhado em si mesmo, dificilmente tem mais for­
ça do que o registo de uma conclusão.
Lancei mão de um exemplo em que o tema submetido a exa­
me e proposto ao assentimento dificilmente pode deixar de inte­
ressar as mentes a ele aplicadas; mas, em muitos casos, embora o
facto a que se dá o assentimento tenha uma relação com a acção,
não é directamente de molde a influenciar o assentimento ou a
conduta, excepto de pessoas particulares; e nesses exemplos de cer-

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 225
reza, a tarefa prévia de chegar a uma conclusão e à quietude da
mente, que acima descrevi como concomitante do assentimento à
sua verdade, neutraliza, muitas vezes, qualquer sensação viva que o
facto, assim inferido, está em si mesmo destinado a suscitar; pelo
que o que se ganha em profundidade e em exactidão da crença se
perde quanto à frescura e ao vigor. Eis porque os homens de letras
ou de ciência, que porventura investigaram alguma questão difícil
da história, da filosofia ou da física e chegaram a uma conclusão
pessoal a tal respeito, com o pleno direito de a formar, estão muito
mais dispostos a ficar calados quanto às suas convicções e a deixar
sozinhos os outros, do que os partidários dos dois lados da ques­
tão, que a encaram com menos reflexão e seriedade. E, mais uma
vez, no mundo religioso, ninguém - segundo parece - vai à bus­
ca de uma grande devoção ou fervor junto dos polemistas, escrito­
res sobre Provas cristãs, teólogos e quejandos, pois se supõe, com
razão ou sem ela, que tais homens são demasiado intelectuais para
serem espirituais, mais ocupados com a verdade da doutrina do
que com a sua realidade. Se, por outro lado, quisermos vislumbrar
a força possível do assentimento simples, olhada fora da sua confir­
mação reflexa, basta apenas contemplar a energia generosa e incal­
culável da fé como exemplificada nos primitivos Mártires, nos
jovens que desafiaram o tirano pagão ou nas donzelas que perma­
neceram silenciosas no meio das torturas. O assentimento, puro e
simples, é a causa motriz de grandes feitos; é uma confiança, que
brota mais dos instintos do que dos argumentos, alicerçada numa
viva apreensão, animada por uma lógica transcendente, mais con­
centrada na vontade e na acção, pela simples razão de que não foi
sujeita a qualquer desenvolvimento intelectual.
É necessário lembrar que, ao falar assim, não estou a opor entre
si o assentimento simples e o reflexo, que, em conjunto, constituem

226 • J o h n H e n ry N e w m a n
o acto complexo da certeza. Na sua plena manifestação, a intensi­
dade na crença está unida à quietude e à persistência.

3 . Devemos entender a constituição da mente humana como a


descobrimos, e não como podemos julgar que ela deve ser; - sou,
pois, levado a fazer outra advertência que, à primeira vista, é desfa­
vorável à Certeza. O escrutínio das nossas operações intelectuais
não é o melhor meio para nos subtrair às hesitações intelectuais.
Espiar as fontes do pensamento e da acção é, na realidade, enfra­
quecê-las; e, no tocante à argumentação, que é o preliminar da
Certeza, ela pode ser inevitável; mas, como acontece com outros
aliados úteis, uma vez feito o seu trabalho, não é tão fácil dispensá-la
como fácil foi, no primeiro exemplo, obter a sua ajuda. Questionar,
quando encorajado a propósito de qualquer assunto, facilmente se
torna um hábito, e leva a mente a substituir exercícios de inferência
ao assentimento, quer simples quer complexo. As razões para assen­
tir sugerem razões para não assentir; o que eram realidades para a
nossa imaginação, enquanto o nosso assentimento era simples,
podem tornar-se pouco mais do que noções, uma vez alcançada a
certeza. As objecções e as dificuldades impõem-se à mente; ela pode
perder a sua elasticidade e tornar-se incapaz de delas se livrar. E
assim, mesmo em relação a coisas de que será absurdo duvidar,
podemos, em virtude de alguma sugestão passada da possibilidade
de erro, ou de alguma associação casual à sua desvantagem, ser
importunado, de tempos a tempos, e impedidos por questiona­
mentos involuntários, como se não estivéssemos certos quando, de
facto, estamos. Há ainda os que, inclusive, são por eles incessante­
mente visitados, como que por uma espécie de muscae volitantes da
sua visão mental, volteando daqui para ali e atenuando a sua clare-

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 22 7
za e integridade - visitantes, pelos quais eles não são responsáveis,
e que sabem que são irreais; todavia, tão seriamente interferem
com o seu conforto, e até com a sua energia, que eles podem ser
tentados a lamentar que até o preconceito cego tem mais quietude
e durabilidade do que a certeza.
Assim como os Santos podem padecer de imaginações em que
não têm parte alguma, assim os farrapos e os frangalhos de contro­
vérsias antigas, os detritos de um hábito argumentativo, podem asse­
diar e obstruir o intelecto - questões que foram elucidadas sem as
suas soluções, cadeias de raciocínio com elos inexistentes, dificulda­
des que têm as suas raízes na natureza das coisas, que são necessaria­
mente postas de lado numa indagação filosófica porque não podem
ser removidas, e que exigem o exercício do bom senso e a força de
vontade para lhes pôr fim com uma mão firme, como irracionais ou
disparatadas. Donde vem o mal? Porque fomos criados sem o nosso
consentimento? Como pode o Ser Supremo não ter começo? Como
pode Ele necessitar de habilidade, se é omnipotente? E se é omnipo­
tente, porque permite o sofrimento? E se permite o sofrimento,
como pode ser todo amor? Se é todo amor, como pode ser j usto? E
se é infinito, que tem Ele a ver com o finito? Como pode o temporal
ser decisivo em relação ao eterno? - Estas, e um rol de questões
semelhantes, irrompem forçosamente em toda a mente reflexiva e,
após o melhor uso da razão, devem ser deliberadamente postas do
lado como situadas além da razão, como (por assim dizer) de trânsi­
to proibido; por não terem saída, não têm nenhum poder legítimo
para nos desviar da via real e para impedir o curso directo da inquiri­
ção religiosa de alcançar o seu destino. Serão, contudo, de vez em
quando, uma obstrução séria para mentes particulares, enfraquecen­
do a fé que elas não conseguem destruir - comparáveis às associa­
ções incómodas com que, por vezes, contemplamos alguém que nos

228 • J o h n H e n ry N e w m a n
sai ao encontro, conhecido ou estranho, nascidas de alguma palavra
ocasional, de um olhar ou de uma acção sua que testemunhamos, e
que o minimiza na nossa imaginação, embora nos incomodemos
connosco próprios de que assim ela deva fazer.
Mais uma vez, se, na confiança da nossa própria certeza e em
vista da equidade filosófica, tentarmos com êxito arrancar-nos aos
nossos hábitos de crença para uma estrutura puramente desapaixo­
nada da mente, então as vagas probabilidades antecedentes, ou o que
assim se nos afigura - simplesmente o que é estranho ou maravi­
lhoso em certas verdades, o mero facto de que as coisas acontecem
de um modo e não de outro, quando de algum modo têm de acon­
tecer - podem perturbar-nos, como que sugerindo «Será possível?
Quem o teria pensado! Que coincidência!», sem realmente afectar o
assentimento profundo de todo o nosso ser intelectual ao objecto,
seja ele qual for, assim irracionalmente atacado. Talvez, pois, nos
maravilhemos com a Bondade Divina da Encarnação, até que com
ela começamos a ficar impressionados e perguntamos então porque
é que a terra tem uma história teológica tão especial, ou porque é
que somos Cristãos, e outros não, ou como é que Deus pode efecti­
vamente exercer um governo particular, pois não castiga os pecado­
res que somos, parecendo-nos assim duvidar do seu poder ou da sua
equidade, embora, na verdade, de nenhum modo duvidemos.
O ensejo desta obstinação intelectual pode ainda ser mais
insignificante. Estendo o olhar para a Colina do Palatino, para o
Pártenon ou para as Pirâmides, a cujo respeito li desde estudante,
ou para a realidade concreta dos lugares sagrados na Terra Santa, e
tenho de forçar a minha imaginação a seguir a orientação da vista e
da razão. É muito estranho que uma crença vitalícia se deva trans­
formar em visão, que tenham de estar tão perto de mim coisas que,
até agora, foram visões. E assim em tempos, primeiro de suspensão,

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 2 29
depois de alegria; «Quando o Senhor acabou com o cativeiro de
Sião, então» (segundo o texto hebreu) estávamos como que num
sonho». Todavia, era um sonho que eles tinham por verdade, embo­
ra aparentemente dele duvidassem. Assim também de algum modo
aconteceu com os Apóstolos, após a ressurreição do Senhor.
Tais pensamentos vagos, obsidiantes ou evanescentes, não são
de modo algum afins à luta entre a fé e a descrença, que levou o
pobre pai a clamar, «Creio, ajuda a minha descrença!» Além disso,
mesmo o que em algumas mentes parece ser uma corrente subter­
rânea de cepticismo, ou uma fé baseada num perigoso substrato de
dúvida, não precisa de ser mais do que uma tentação, embora rou­
be à Certeza a sua normal serenidade. Em semelhante caso, a fé
pode ainda expressar a firme convicção do intelecto; pode ainda
ser a segurança grave, profunda, calma e prudente da experiência
madura, embora não seja o assentimento pronto e impetuoso do
jovem, do generoso ou do irreflectido.

4. Existe outra característica da Certeza, em contraste com o Assen­


timento, que importa sublinhar; é a sua persistência. Os assentimen­
tos podem mudar e, de facto, mudam; as certezas persistem. Eis
porque a religião exige mais do que um assentimento à sua verdade;
exige uma certeza ou, pelo menos, um assentimento que, sempre
que necessário, se pode converter em certeza. Sem certeza na fé
religiosa, pode haver muita decência de profissão e de observância,
mas não o hábito da oração, não a orientação da devoção, não o tra­
to com o invisível, não a generosidade do sacrifício de si mesmo. A
certeza é, pois, essencial ao Cristão; e se ele há-de perseverar até ao
fim, a sua certeza incluirá em si um princípio de persistência. E ela
tem-no; como explicarei na próxima secção.

23 0 • J o h n H e n r y Newman
2. l n d e fe c t i b i l i dade da c e r teza

A característica da certeza é que o seu objecto é uma verdade, uma


verdade enquanto tal, uma proposição como verdadeira. Há con­
vicções verdadeiras e falsas, e a certeza é uma convicção verdadeira;
se não for verdadeira com uma consciência de ser verdadeira, não é
certeza. Ora a verdade não pode mudar; o que uma vez é verdade é
sempre verdade; e a mente humana é feita para a verdade; repousa
na verdade, já que não pode sossegar na falsidade. Se, pois, alguma
vez for possuída por uma verdade, o que será privá-la dela? Mas tal
é estar certo; por conseguinte, se uma vez é certeza, é sempre certe­
za. Se a certeza em qualquer assunto for o ocaso de toda a dúvida ou
do temor acerca da sua verdade, se for uma adesão consciente e
incondicional a ela, traz consigo uma firmeza íntima, forte embora
implícita, de que nunca há-de enganar. A indefectibilidade quase
entra na sua genuína ideia, entra nela pelo menos até a ponto de a
sua ausência, se fosse uma ocorrência frequente, demonstrar que a
certeza seria, ao fim e ao cabo e de facto, um acto impossível, e que
aquilo que a ela se assemelhasse não passaria de uma simples extrava­
gância do intelecto. A verdade seria ainda verdade, mas o conheci­
mento dela estaria para além de nós e seria inalcançável. É, pois, de
grande importância mostrar que, regra geral, a certeza não falta; os
erros daquilo que se tomou por certeza constituem a excepção; que
o intelecto, feito para a verdade, pode alcançar a verdade e que,
após a sua obtenção, a pode preservar, a pode reconhecer e conser­
var esse reconhecimento.
Tudo isto é muito j usto; todavia, serão as estipulações, assim
obviamente necessárias para um acto ou estado da certeza, sempre
realizadas? Sabemos o que é uma conjectura, uma opinião, um
assentimento; mas poderemos assinalar qualquer estado ou hábito

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n r o • 23 l
específico do pensamento, cuja característica distintiva seja a imu­
tabilidade? Pelo contrário, qualquer convicção, tanto falsa como
verdadeira, pode persistir; e qualquer convicção, verdadeira ou fal­
sa, pode vir a perder-se. Uma convicção em prol de uma proposi­
ção pode ser substituída por uma convicção da sua contraditória; e
cada uma delas pode ser acompanhada, enquanto duram, por
aquele sentimento de segurança e de quietude, que só um objecto
verdadeiro consegue legitimamente comunicar. Nenhuma linha se
pode traçar entre as certezas reais que têm a verdade por objecto
seu e as certezas aparentes. Nenhum teste distinto se pode mencio­
nar, suficiente para discriminar entre o que se pode chamar o falso
profeta e o verdadeiro. O que se afigura como certeza está sempre
exposto ao acaso de se vir a revelar um erro. Se a nossa convicção
íntima, deliberada, pode ser falsificada no caso de uma proposição,
porque não no caso de outra? Se no caso de um só homem, porque
não no caso de uma centena? Será então a certeza alguma vez pos­
sível, sem o dom concomitante da infalibilidade? Poderemos nós
saber o que é verdadeiro num caso, a não ser que estejamos seguros
contra o erro em qualquer outro? Além disso, se um homem é
infalível, porque é que ele será diferente dos seus irmãos? A não
ser, de facto, se for distintamente qualificado para a pr� rrogativa.
Mas não serão, por conseguinte, todos os homens infalíveis, se um
deles se deve considerar como certo?
A dificuldade, assim argumentativamente enunciada, tem ape­
nas uma resposta demasiado precisa naquilo que efectivamente
acontece no mundo. É um facto de ocorrência diária que os homens
alteram as suas certezas, isto é, o que eles consideram ser assim, e
mostram-se tão confiantes e arreigados nas suas novas opiniões
como, outrora, estiveram nas antigas. Acolhem formas de religião só
para deixar as suas contraditórias. Arriscam a sua sorte e as suas vidas

2J 2 • J o h n H e n ry N e w m a n
em aventuras impossíveis. Empenham-se a si mesmos pela palavra e
pela acção, na reputação e na posição, em esquemas de que, porven­
tura, se vêm amargamente a arrepender e a que renunciam; envere­
dam na juventude, com uma confiança intemperada, em perspectivas
que os enganam, em amigos que os traem, antes de chegarem à meia­
-idade; e terminam em qualquer parte os seus dias na descrença cíni­
ca da verdade e da virtude; - muitas vezes, quanto mais absurdos
são os seus meios e os seus fins, durante tanto mais tempo a eles se
arrimam e, em seguida, tanto mais apaixonado é o seu eventual des­
gosto e desprew por eles. Como é que então pode ser sua a certeza,
como é de todo possível a certeza, considerando que ela é tantas vezes
deslocada, tantas vezes versátil e inconsistente, tão deficiente nos cri­
térios disponíveis? E, no tocante ao sentimento de finalidade e de
segurança, deveria ela alguma vez ser acarinhada? Não será uma sim­
ples fraqueza ou extravagância; um engano, que deve ser evitado por
toda a mente clara e prudente? Com os inumeráveis exemplos, à nos­
sa volta, da falibilidade humana, com as constantes exibições de cer­
tezas antagónicas, quem poderá assim pecar contra a modéstia e a.
sobriedade da mente, para não se contentar com a probabilidade
como o verdadeiro guia da vida, renunciando a pensamentos ambi­
ciosos que certamente o iludirão ou hão-de desapontar?
Eis o que se pode objectar: vejamos agora o que se poderá dizer
em resposta, sobretudo no tocante à certeza religiosa.

r.Primeiro, quanto à falibilidade e à infalibilidade. É muito comum,


sem dúvida, especialmente na controvérsia religiosa, confundir a
infalibilidade com a certeza, e argumentar que, visto não termos
uma, também não temos a outra, pois ninguém pode asseverar
estar certo num ponto que não seja infalível acerca de todos; mas

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 23 3
as duas palavras estão no lugar de duas coisas entre si inteiramente
distintas. Por exemplo, recordo como certo o que ontem fiz, mas
ainda assim a minha memória não é infalível; estou inteiramente
certo de que dois e dois são quatro, mas, muitas vezes, cometo
erros nas longas operações de adição. Não tenho qualquer dúvida
de que o João ou o Ricardo seja meu verdadeiro amigo, mas, antes
deste momento, confiei naqueles que me enganaram, e posso de
novo fazê-lo, antes de morrer. Uma certeza dirige-se a esta ou
àquela proposição particular; não é uma faculdade ou um dom,
mas uma disposição da mente relativamente a um caso definido,
que tenho diante de mim. A infalibilidade, pelo contrário, é justa­
mente aquilo que a certeza não é; é uma faculdade ou um dom;
não se refere a alguma verdade em particular, mas a todas as pro­
posições possíveis num dado assunto. Em rigor, deveremos falar,
não de actos infalíveis, mas de actos de infalibilidade. Nem uma
crença ou opinião se pode, sem mais, denominar infalível nem um
feito se pode, correctamente, dizer imortal. Um feito realizou-se e
acabou; pode ser grande, momentoso, eficiente, tudo menos imor­
tal; a sua fama, a obra que o faz acontecer, é que é imortal, não o
próprio feito. E assim como um feito é bom ou mau, mas j amais
imortal, assim uma crença, uma opinião ou uma certeza é verda­
deira ou falsa, mas nunca infalível. Não podemos falar de coisas
que existem ou de coisas que uma vez existiram, como se fossem
algo in posse. As pessoas e as regras é que são infalíveis, não aquilo
que é traduzido em acto ou confiado ao papel. Infalível é um
homem cujas palavras são sempre verdadeiras; infalível é uma
regra, se ela nunca for errónea em todas as suas possíveis aplica­
ções. Uma autoridade infalível é certa em cada caso particular que
possa surgir; mas um homem que é certo num caso definido não é
infalível por isso.

23 4 • John H e n ry Newman
Estou inteiramente certo de que Vitória é o nosso Soberano, e
não o seu pai, o falecido Duque de Kent, sem apresentar qualquer
pretensão ao dom da infalibilidade; tal como posso praticar uma
acção virtuosa, sem ser impecável. Posso estar certo de que a Igreja é
infalível, enquanto eu próprio sou um mortal falível; de outro
modo, não posso estar certo de que o Ser Supremo é infalível, até eu
próprio ser infalível. É, pois, estranha a objecção em que, por vezes,
se insiste contra os Católicos, a saber, que eles não podem demons­
trar e assentir à infalibilidade da Igreja, a não ser que, primeiro, acre­
ditem na sua própria. A certeza, como afirmei, dirige-se a uma ou
outra proposição concreta e definida. Estou certo de uma proposi­
ção, de duas, três, quatro ou cinco, uma a uma, de cada uma por si
mesma. Posso estar certo de uma delas, sem estar certo acerca das
restantes; que eu esteja certo da primeira não torna nem provável
nem improvável que esteja certo da segunda; mas se eu fosse infalí­
vel, então deveria estar certo, não só de uma, mas de todas e, além
disso, de muitas mais, que ainda não se me apresentaram. Por conse­
guinte, podemos estar certos da infalibilidade da Igreja, enquanto
admitimos que em muitas coisas o não estamos e de nenhum modo
o podemos estar.
Causa espanto que um homem de mente clarividente, como
Chillingworth, não consiga ver isto, a exemplo da série dos que,
cada dia, levantam objecções à religião católica; pois, na sua cele­
brada Religião dos Protestantes, escreve o seguinte: «Dizeis-me que
eles não podem ser salvos, a não ser que acreditem nas vossas pro­
postas com uma fé infalível. Devem eles, para tal fim, acreditar tam­
bém que o autor da vossa proposta, a Igreja, seja simplesmente
infalível. Ora, como lhes será possível dar um assentimento racional
à infalibilidade da Igreja, a não ser que tenham algum meio infalível
de saber que ela é infalíveP. Nem podem infalivelmente conhecer a

Uma G r a m á t i c a do Ass e n c i m e n t o • 23 5
infalibilidade deste meio, a não ser graças a outro; e assim para
sempre, excepto se puderem cavar tão fundo que acabem por che­
gar à Rocha, isto é, por estabelecer tudo sobre algo evidente em si
mesmo, que não é tanto como o pretendido» I .
Ora, que é um «meio infalível»? É um meio de chegar a um
facto sem a possibilidade de erro. É uma prova, suficiente para a
certeza no caso particular, ou uma prova que é certa. Quando,
pois, Chillingworth diz que não pode haver «assentimento racional
à infalibilidade da Igreja» sem «algum meio infalível de conhecer
que ela é infalível», nada mais tem em vista do que um meio que é
certo; afirma que, para um assentimento racional à infalibilidade,
tem de existir uma prova absolutamente válida ou certa. Esta é
inteligível; mas veja-se como decorrerá o seu argumento, se se
expressar de acordo com esta interpretação: <<A doutrina da infali­
bilidade da Igreja exige previamente outra prova certa, e esta, por
seu turno, outra, e assim ad infinitum, a menos que, de facto, cave­
mos tão fundo que façamos assentar tudo em algo evidente em si
mesmo. » Mas que é isto senão afirmar que nada neste mundo é
certo, excepto o que é auto-evidente? Que nada pode ser absoluta­
mente demonstrado? Pode ele, efectivamente, ter isto em mente?
Que acontece então à verdade física? Às descobertas na óptica, na
química, na electricidade ou na ciência do movimento? Por si mes­
ma, a intuição levar-nos-á a entrar apenas um pouco no círculo do
conhecimento, que é a vanglória da idade presente.
Posso acreditar, pois, na Igreja infalível, sem a minha própria
infalibilidade pessoal. A certeza, quando muito, nada mais é do
que a infalibilidade pro hac vice, nada promete quanto à verdade de
qualquer proposição, além da sua própria. Que eu esteja certo des-

1 II, n. 154. Vide nota 1, p. 475.

23 6 • John H e n ry Newman
ta proposição, hoje, não é um motivo para pensar que terei o direi­
to de está certo desta proposição, amanhã; e que eu esteja engana­
do nas minhas convicções acerca da proposição de hoje não
impede que tenha uma convicção verdadeira, uma certeza genuína,
acerca da proposição de amanhã. Se, de facto, eu pretendesse ser
infalível, um erro faria em cacos a minha pretensão; mas posso
pretender estar certo da verdade a que já cheguei, embora, enquan­
to viver, não chegue a mais nenhumas verdades novas.

2. Ponhamos de lado a palavra «infalibilidade»; entendamos por cer­


teza, tal como a expliquei, somente uma relação da mente a determi­
nadas proposições: ainda assim, pode insistir-se, isso implica uma
sensação de segurança e de quietude, pelo menos no tocante a estas
em particular. Ora, como pode esta segurança ser minha - sem a
qual não há certeza - se sei, como demasiado bem sei, que, antes
de agora, pensei estar certo quando, ao fim e ao cabo, estava certo de
uma inverdade? Não se terá perdido para mim, e para sempre, por
meio de um erro, a possibilidade genuína da certeza? O que uma vez
aconteceu pode, de novo, acontecer. Todas as minhas certezas, antes
e depois, estão doravante destruídas pela introdução de uma dúvida
razoável, a todas elas subjacente. Deixam, ipso facto, de ser certezas
- ficam aquém dos assentimentos incondicionais pela medida desta
firmeza simulada. Nada mais são para mim do que opiniões ou ante­
cipações, juízos sobre a verosimilhança de concepções intelectuais,
não a posse e a fruição de verdades. E quem é que não foi assim
frustrado, uma centena de vezes, por falsas certezas no curso da sua
experiência? E como pode a certeza ter um lugar legítimo na nossa
constituição mental, quando assim está manifestamente ao serviço
do erro e do cepticismo?

U m a G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n to • 23 7
Eis o que se pode objectar, e não é di°fícil, penso eu, achar uma
resposta. Sem dúvida, a experiência dos erros nos assentimentos
que fizemos prej udicam os subsequentes. Há uma dificuldade
antecedente em reconhecermos estar de tal certos hoje, se ontem
tivemos de abandonar a nossa crença em algo mais, de que até
então asseverámos �star certos. Isto é verdade; mas as objecções
prévias a um acto não são de per si suficientes para proibir o seu
exercício; podem exigir de nós uma circunspecção crescente, antes
de a ela nos confiarmos, mas podem ser enfrentadas com razões
mais do que suficientes para as vencer.
Importa lembrar que a certeza é um assentimento deliberado,
dado expressamente após um raciocínio. Se, pois, a minha certeza
é infundada, a deficiência reside no raciocínio, não no meu assen­
timento a ele. A lei da minha mente é selar as conclusões a que o
raciocínio me levou com este assentimento formal, a que dei o nome
de certeza. Poderia, de facto, ter melhorado o meu assentimento;
mas, então, agiria contra a minha natureza, se assim procedesse,
quando existia aquilo que considerei uma prova; e, ao anuir, fiz
somente o que era adequado, o que para mim era obrigatório, nas
condições existentes. Este é o processo pelo qual o conhecimento
se acumula e se armazena no indivíduo e no mundo. Observou-se
por vezes, quando os homens alardearam o conhecimento dos
tempos modernos, que não é de admirar que vejamos mais do que
os antigos, porque estamos em cima dos seus ombros. As conclu­
sões de uma geração são as verdades da seguinte. Somos capazes, é
nosso dever, ter deliberadamente por garantidas as coisas que os
nossos antepassados se sentiram obrigados a pôr em dúvida; e a
menos que, sem demora, acabemos com a polémica sobre pontos
que já tinham sido demonstrados e decididos, perderemos o nosso
tempo e não faremos avanços. Podem, sem dúvida, surgir circuns-

23 8 • J o h n H e n ry Newman
tâncias em que será legítimo reavivar uma questão que já foi defi­
nitivamente resolvida; mas uma reconsideração de semelhante
questão não precisa de alterar abruptamente a certeza existente dos
que nela se empenharam, ou arrojá-los para o cepticismo acerca
das coisas em geral, mesmo que, no fim de contas, eles descubram
o seu engano passado numa questão particular. Teria sido absurdo
proibir a controvérsia que, recentemente, teve lugar a propósito
das dívidas de Newton para com Pascal; e na suposição de que ela
acabou por ser solucionada, os partidários de Newton não teriam
pensado que fosse necessário renunciar à sua certeza da lei da gra­
vidade, em virtude de terem estado enganados na sua certeza de
que Newton a descobrira.
Se nunca poderemos estar certos, após uma vez termos estado
erroneamente certos, então jamais deveríamos tentar uma demons­
tração, porque antes levámos a cabo uma que era má. Os erros no
raciocínio são lições e advertências, não para abandonar o raciocí­
nio, mas para discorrer com maior cautela. É absurdo demolir a
estrutura integral do nosso conhecimento, que é a glória do inte­
lecto humano, porque o intelecto não é infalível nas suas conclu­
sões. Se num caso particular nos enganámos nas nossas inferências
e nas certezas que delas se seguiram, estamos decerto obrigados a
ter em conta o facto deste erro, a decidir-nos a qualquer nova
questão, antes de avançarmos para uma decisão a seu respeito. Mas
se, ao pesarmos os argumentos de um e de outro lado e ao tirar­
mos a nossa conclusão, esse antigo erro foi já admitido ou, para
usar uma expressão familiar, descontado, não tem, então, nenhu­
ma objecção marcante contra a aceitação de semelhante conclusão,
após ela ter sido efectivamente tirada. Suponhamos que passeio ao
luar e enxergo indistintamente os contornos de uma figura no
meio das árvores: é um homem. Aproximo-me mais - é ainda um

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 23 9
homem; mais ainda, e então toda a hesitàção termina - estou cer­
to de que é um homem. Mas não se move nem fala, quando a ele
me dirijo; e, então, interrogo-me sobre qual possa ser o seu propó­
sito em esconder-se a tal hora no meio das árvores. Acerco­
-me dele, estendo o meu braço. Descubro então, de um modo cer­
to, que aquilo que eu tivera por um homem é apenas uma sombra
singular, formada pela incidência do luar nos interstícios de alguns
ramos da sua folhagem. Não deverei eu acalentar a minha segunda
certeza, porque me enganei na primeira? Não esmorecerá qualquer
objecção, levantada contra a segunda a partir do erro da primeira,
frente à prova em que a segunda se baseia?
Ou ainda: deponho, sob juramento, num tribunal, que, tanto
quanto sei e creio, fui roubado pelo preso sujeito a julgamento.
Mas, quando o verdadeiro delinquente é trazido à minha presença,
sou obrigado, para minha grande vergonha, a retractar-me. Lá por­
que me enganei na minha certeza, não poderei ao menos estar cer­
to de me ter enganado? Além disso, apesar do choque que este erro
me causa, será impossível que a vista do verdadeiro réu suscite em
mim a convicção luminosa de que, por fim, acertei com o verda­
deiro homem, de que, se fosse conveniente para o tribunal ou con­
sistente com o respeito de si, me poderia considerar preparado
para j urar a identidade do segundo, tal como me comprometera
solenemente acerca da identidade do primeiro? É manifesto que
cada uma das duas certezas assenta na sua própria base, e a objec­
ção antecedente ao meu acatamento de uma segunda verdade que
para mim se tornou clara, extraída de uma alucinação que ocorrera
primeiro, é um simples argumento abstracto, impotente quando
dirigido contra a prova boa que reside no concreto.

240 • J o h n H e n ry Newman
3 . Se, no caso criminal por mim suposto, a segunda certeza, senti­
da por uma testemunha, foi um estado legítimo da mente, tam­
bém o foi a primeira. Um acto, em si mesmo, não é errado, só
porque é realizado de modo erróneo. As certezas falsas são erros
porque são falsas, não porque são (supostas) certezas. São, ou
podem ser, as tentativas e os fiascos de um intelecto insuficiente­
mente treinado ou descuidado. O assentimento é um acto da men­
te, congénito à sua natureza; e, como quaisquer outros actos, pode
realizar-se quando se deve, ou não, levar a cabo. É um acto livre,
um acto pessoal, pelo qual o agente é responsável, e os erros efecti­
vos ao fazê-lo, sejam eles muito numerosos ou sérios, não tem for­
ça alguma para impedir o próprio acto. Em tais casos, estamos
acostumados a apelar para a máxima, Usum non tollit abususl ; e é
evidente que, se aquilo que se pode denominar como desordens
funcionais do intelecto se houvesse de considerar como fatal ao
reconhecimento das próprias funções, então a mente não tem nem
leis nem uma constituição normal. Falei, justamente agora, do
aumento do conhecimento; existe também um crescimento no uso
das faculdades pelas quais se adquire o conhecimento. O intelecto
permite uma educação; o homem é um ser de progresso; tem de
aprender o modo de realizar o seu fim, de ser aquilo que os factos
mostram que ele intencionalmente deve ser. A sua mente, no pri­
meiro exemplo, está em desordem e anda à solta; as suas faculda­
des têm o seu estado rudimentar e incipiente e são levadas, pouco
a pouco, pela prática e pela experiência, à sua perfeição. Portanto,
nenhuns exemplos de certeza errónea são suficientes para consti­
tuir uma prova de que a própria certeza é uma perversão ou extra­
vagância da sua natureza.

I «Ü abuso não invalida o uso».

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 241


Não dispensamos os relógios, lá porque eles, de tempos a tem­
pos, funcionam mal e enganam. Um relógio, organicamente conside­
rado, talvez seja perfeito, mas pode exigir uma afinação. Até este
trabalho necessário ser feito, o ponteiro dos segundos indicará por­
ventura o meio minuto quando o ponteiro dos minutos se encontra
no quarto, o ponteiro das horas no meio-dia, a campainha no quarto
toca os três quartos e a campainha na hora bate as quatro, enquanto
o relógio de sol indica precisamente duas horas. O sentido da certeza
pode denominar-se a campainha do intelecto; e que ela toque quan­
do não devia não é uma prova de que relógio está avariado, nem uma
prova de que campainha não merece confiança e é inútil, quando nos
chega concertada e regulada das mãos do relojoeiro.
Pode igualmente dizer-se que a nossa consciência assinala as
horas, e que as indicará de modo erróneo, a menos que seja devi­
damente regulada para a execução da sua função própria. É o
sonoro anúncio do princípio do direito nos pormenores da condu­
ta, tal como o sentido da certeza é a testemunha clara daquilo que
é verdadeiro. A certeza e a consciência têm um lugar na condição
normal da mente. Como ser humano, sou incapaz, se tentasse, de
viver sem alguma espécie de consciência; e sou incapaz de viver
sem as balizas do pensamento que a certeza me garante; no entan­
to, assim como o bater de um relógio pode enganar, assim a minha
consciência e o meu sentido da certeza podem estar associados a
actos mentais, quer de consentimento quer de assentimento, que
não tem pretensões a ser assim sancionados. A sanção moral e a
intelectual estão sujeitas a ser influenciadas por inclinações e moti­
vos pessoais; ambas exigem e acolhem a disciplina; e assim como
não constitui uma refutação da autoridade da consciência a abun­
dância das falsas consciências, assim também ela não destrói a
importância e os usos da certeza, pois até as mentes educadas, que

242 • J o h n H e n r y Newman
são as mais sérias nas suas inquirições da verdade, permanecem em
muitos casos sob o poder do preconceito ou da ilusão.
A esta deficiência no adestramento mental se deve atribuir um
erro mais amplo - confundir a convicção e a certeza com estados e
texturas da mente que não aspiram à condição fundamental em que
a convicção radica, enquanto distinta do assentimento. Os homens,
na sua maioria, confundem o provável, o possível e o certo, aplicam
esses termos a doutrinas e a enunciados, quase ao acaso. Não têm
uma noção clara do que conhecem, do que presumem, do que
supõem, do que apenas afirmam. Mal distinguem entre crédito, opi­
nião e declaração; às vezes, dão a todos eles talvez o nome de certeza;
por conseguinte, quando modificam as suas mentes, imaginam que
abandonaram os pontos a cujo respeito tinham uma convicção ver­
dadeira. Ou, pelo menos, os espectadores assim falam deles, e a
genuína ideia de certeza cai em descrédito.
Hoje, o conteúdo do pensamento e da crença de tal modo se
avolumou e impõe a nós que se exige uma formação mental muito
mais elevada do que era necessária em épocas passadas, e superior à
que efectivamente alcançámos. O mundo inteiro é trazido à nossa
porta todas as manhãs; o nosso j uízo é intimado acerca das preocu­
pações sociais, dos livros, das pessoas, dos partidos e credos, dos
actos nacionais, dos princípios e medidas políticos. Temos de for­
mar a nossa opinião, de fazer declarações pessoais, de alinhar por
uma centena de assuntos, sobre os quais temos somente um direito
restrito de falar. Mas falamos, e temos de falar, deles, embora nem
nós nem os que nos ouvem sejam capazes de determinar qual a
posição real do nosso intelecto relativamente a essas múltiplas ques­
tões, uma a uma, nas quais nos empenhamos; e, em seguida, visto
que muitas destas questões alteram, com o passar das horas, a sua
complexão, e muitas exigem uma consideração elaborada, e inú-

Uma G r a m á r i c a do As s e n t i m e n t o • 243
meras simplesmente nos ultrapassam, não é de admirar se, ao fim
de alguns anos, temos de rever ou de rejeitar as nossas conclusões;
e então afirmar-se-á injustamente que mudámos as nossas certezas,
e confirmaremos a doutrina de que, excepto na verdade abstracta,
nenhum juízo se eleva acima da probabilidade.
Tais são os erros acerca da certeza entre os homens instruídos;
e após a referência a eles, de pouco vale insistir nas absurdidades e
nos excessos do intelecto grosseiro, tal como se vê no vasto mun­
do; e se alguém pudesse ter o sonho de abordar como assentimen­
tos deliberados, como assentimentos sobre assentimentos, como
convicções ou certezas, os preconceitos, as crendices, as tolices, as
superstições, os fanatismos, os caprichos e as fantasias, os súbitos e
irrevogáveis mergulhos no desconhecido, as determinações obsti­
nadas - fruto, como de facto são, da ignorância, da teimosia, da
cupidez e do orgulho - que chegam ao ponto de constituir a his­
tória da humanidade; todavia, estes são, muitas vezes, estabelecidos
como exemplos da certeza e do erro.

4. Falei da certeza enquanto se lhe atribui um lugar definido e fixo


entre os nossos actos mentais; segue-se ao exame e à prova, tal como
a campainha faz soar a hora quando os ponteiros a ela chegam -
pelo que nenhum acto ou estado do intelecto é certeza, embora se
lhe possa assemelhar, que se não conforme com esta lei estabelecida.
Esta reserva diminui em grande parte o catálogo das certezas genuí�
nas. Outra restrição é a seguinte: - as ocasiões ou conteúdos da cer­
teza estão igualmente sujeitos a esta lei. Deixando de lado o exercício
quotidiano dos sentidos, os principais temas no conhecimento secu­
lar, a coisa a cujo respeito podemos estar certos, são as verdades ou
factos, que são a sua base. Quanto a este mundo, estamos certos dos

244 • J o h n H e n ry N e w m a n
elementos do conhecimento, quer dos gerais, científicos e históricos,
quer daqueles que se relacionam com as nossas necessidades e hábi­
tos quotidianos, e se referem a nós mesmos, às nossas casas e famí­
lias, aos amigos, à vizinhança, ao país e ao estado civil. Para lá destes
pontos elementares de conhecimento, existe um vasto assunto de
opinião, de crédito e crença, a saber, o campo dos negócios públicos,
da vida social e profissional, do comércio, das obrigações, da litera­
tura, do gosto e ainda das ciências experimentais. A propósito de
temas como estes, variam os raciocínios e as conclusões da humani­
dade - mundum tradidit disputationi eorum I - e, por isso, os
homens prudentes raramente falam de modo peremptório, a não ser
que o façam assim em nome do génio, da grande experiência ou de
alguma qualificação especial. Determinam os seus juíws por aquilo
que é provável e seguro, que mais promete, que tem verosimilhança,
que os impressiona e faz vacilar. Não podem possuir a certeza, não
precisam dela nem andam à sua busca.
Por isso - uma vez que é tão contraído o âmbito da certeza e
tão vasto o da opinião - é comum chamar à probabilidade o guia
da vida. Esta declaração, quando adequadamente explicada, é verda­
deira; todavia, não devemos permitir-nos levar ao extremo uma
máxima verdadeira; ela está longe de ser verdadeira, se a defender­
mos de modo a esquecer que, sem primeiros princípios, não pode
haver quaisquer conclusões e que assim a probabilidade pressupõe
em certo sentido e exige a existência de verdades que são certas. É
sobretudo falsa a máxima, em relação ao outro grande departamento
do conhecimento, o espiritual, se supostamente apoiar a doutrina,
de que os primeiros princípios e elementos da religião, objecto de
aceitação universal, são simples matéria de opinião; embora hoje se

1 «Deixou o mundo entregue às suas disputas».

Uma Gramática do Assentimento • 24 5


tenha, muitas vezes, por garantido que a religião é um dos temas em
que a verdade não se pode descobrir e em que uma conclusão se
encontra com outras ao mesmo nível. Pelo contrário, as verdades
iniciais do conhecimento divino deveriam olhar-se como compará­
veis às verdades iniciais do conhecimento secular: assim como as
últimas são certas, assim o são também as primeiras. Não posso, sem
dúvida, negar que uma reverência decorosa pelo Ser Supremo, uma
aquiescência às exigências da Revelação, uma profissão geral da dou­
trina cristã, uma espécie de atenção aos decretos sagrados é, de facto,
a religião plena que é habitual mesmo no melhor tipo de homens, e
que para tudo isso se pode encontrar, sem dúvida, uma base suficien­
te em probabilidades; mas se a religião houver de ser devoção, e não
uma simples questão de sentimento, se dela se houver de fazer o
princípio regulativo das nossas vidas, se as nossas acções, uma a uma,
e a nossa conduta diária houverem de se orientar consistentemente
para um Ser Invisível, precisamos de algo mais elevado do que um
mero equilíbrio de argumentos para fixar e controlar as nossas men­
tes. O sacrifício da riqueza, do nome ou daposição, a fé e a esperan­
ça, a conquista de si mesmo, a comunhão com o mundo espiritual
pressupõem uma adesão efectiva e uma intuição habitual dos objec­
tos da Revelação, que é a certeza sob outro nome.
Podemos, de facto, numa perspectiva filosófica, aduzir a este
problema a diferença principal entre Cristianismo nominal, por um
lado, e Cristianismo vital, por outro. Homens racionais, sensatos,
como eles a si mesmos se consideram, homens que não compreen­
dem a noção genuína de amar Deus acima todas as coisas, conten­
tam-se com semelhante medida de probabilidade para as verdades da
religião, tal como ela se lhes oferece nas suas convenções seculares;
mas os que deliberadamente tudo apostam nas esperanças do mun­
do futuro, acham sensato e consideram necessário, antes de iniciar o

246 • J o h n H e n ry Newman
seu novo curso, ter alguns pontos, claros e imutáveis, para deles par­
tirem; de outro modo, nada encetarão. Exigem, como condição pre­
liminar, ter um chão seguro sob os seus pés; demandam algo mais
do que raciocínios e inferências humanas, nada menos do que a
«forte consolação», como diz o Apóstolo, das «coisas imutáveis em
que é impossível que Deus minta», o Seu conselho e o Seu juramen­
to. A seriedade cristã pode ser considerada pelo mundo como uma
perversão ou uma ilusão; mas, enquanto existir, pressuporá a certeza
quanto à verdadeira vida que a deve animar.
Este é o verdadeiro paralelo entre o conhecimento humano e o
divino; cada um deles dá para um vasto campo de opinião, mas
num e noutro os princípios primordiais, as verdades gerais, funda­
mentadas, cardinais, são imutáveis. Nos assuntos humanos, somos
guiados por probabilidades, mas, repito, são probabilidades funda­
das em certezas. Não é na base de uma probabilidade que constan­
temente recebemos as informações e os ditados dos sentidos e da
memória, dos nossos instintos intelectuais, do sentido moral e da
faculdade lógica. Não é na base de uma probabilidade que aceita­
mos as generalizações da ciência e os grandes esboços da história.
São eles verdades certas. E a partir delas cada um de nós forma os
seus próprios j uízos, dirige o seu próprio itinerário, segundo as
probabilidades por elas sugeridas, tal como o navegador aplica as
suas observações e os seus mapas para a determinação da sua rota.
Tal é a concepção principal a ter em conta nas províncias separadas
da probabilidade e da certeza nos assuntos deste mundo; e assim,
no tocante ao mundo invisível e futuro, temos um conhecimento
directo e consciente do nosso Criador, dos Seus atributos, das Suas
providências, actos, obras e vontade, a partir da natureza e da
Revelação; e, mais além deste conhecimento, reside o amplo domí­
nio da teologia, da metafísica e da ética, em que não nos é permiti-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 24 7
do avançar para lá das probabilidades ou chegar mais longe do que
a uma opinião.
Tal é, em geral, a analogia entre o nosso conhecimento dos
negócios deste mundo e o das questões do mundo invisível - cer­
teza indefectível em verdades primárias, múltiplas variações de opi­
nião na sua aplicação e disposição.

5. Afirmei que a certeza, quer no conhecimento humano quer no


divino, é alcançável a respeito de verdades gerais e fundamentais; e
que em nenhum departamento do conhecimento, em geral, é a
certeza desacreditada, perdida ou anulada: pois, em questões de
facto, quer no humano quer no divino, as verdades primordiais
conservaram sempre o seu lugar desde o tempo em que dele, pela
primeira vez, tomaram posse. Há, contudo, uma objecção óbvia
que se pode fazer esta exposição, e vou tomá-la em consideração.
Pode, pois, alegar-se que tempos houve em que as verdades
primordiais da ciência se desconheciam e em que, por isso, se
defendiam diversas teorias entre si opostas. Afirmou-se que o pri­
meiro elemento de todas as coisas era a água, o ar, o fogo; que a
estrutura do universo era eterna ou era a combinação sempre nova
de átomos inumeráveis; que os planetas eram esferas fixas girando
em sólido cristal ou se moviam à volta da terra em epiciclos assen­
tes em órbitas circulares; ou eram transportados girando em torno
do sol, enquanto o sol girava à volta da terra. Acerca de tais doutri­
nas não havia certeza alguma, como também não existe agora cer­
teza quanto à origem das línguas, à idade do homem ou à evolução
das espécies, consideradas como questões filosóficas. Ora a teologia
encontra-se, no presente, no mesmo estado em que se encontrava,
há cinco séculos, a ciência natural; e a prova é esta: em vez de

248 • J o h n H e n ry N e w m a n
haver no mundo uma única ciência teológica aceite, existe uma
multidão de hipóteses. Temos uma ciência confessa do ateísmo,
outra do deísmo, uma panteísta, muitíssimas teologias cristãs, para
nada dizer do judaísmo, do islamismo e das religiões orientais.
Cada um destes credos tem os seus próprios defensores, e todos
estes defensores estão certos de que ele é a verdadeira e única ver­
dade; e pode acontecer que estes mesmos defensores a ele agora
renunciem e aceitem, de seguida, outro, e de novo estão certos, na
sua confissão, de que ele, e só ele, é a verdade, sendo estas diversas
ditas verdades incompatíveis entre si. Não estão os Judeus certos
acerca da sua interpretação da lei? Todavia, tornam-se cristãos; não
estão os Católicos certos a propósito da nova lei? Todavia, tornam­
-se protestantes. Hoje, pois, e até agora, não existe em nenhum
lado uma clara certeza acerca da verdade religiosa; tem ainda de ser
descoberta; e, portanto, para os Católicos, reclamar o direito de
estabelecer os primeiros princípios da ciência teológica à sua
maneira é presumir que o assunto está, de facto, em disputa. Que
as doutrinas sejam, primeiro, universalmente aceites e, em seguida,
eles terão o direito de as situar num nível com a certeza inerente às
leis do movimento ou da refracção. Tal é a objecção que me propo­
nho considerar.
Em primeiro lugar, quanto à falta de aceitação universal, ale­
gada contra os dogmas católicos, esta parte da objecção não exigirá
muitas palavras. Sem dúvida, uma verdade, ou um facto, pode ser
certa, embora não seja geralmente acatada - cada um de nós vai
sempre adquirindo, através dos nossos sentidos, certezas várias,
que ninguém mais connosco partilha; além disso, as certezas das
ciências estão apenas na posse de alguns países e, em quase todos
eles, somente das suas classes educadas; todavia, os filósofos da
Europa e da América terão por certo que a terra girou à volta do

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 249
sol, não obstante a crença indiana de ela ser suportada por um ele­
fante com uma tartaruga debaixo dele. Portanto, a Igreja Católica,
embora não universalmente reconhecida, pode, sem inconsistên­
cia, pretender ensinar as verdades primordiais da religião, tal como
a ciência moderna, embora apenas parcialmente aceite, pretende
ensinar os grandes princípios e as leis que são o fundamento do
conhecimento secular; e fá-lo com um significado a que nenhum
outro sistema religioso pode aspirar, porque a sua verdadeira voca­
ção consiste em falar a toda a humanidade, o seu lema genuíno
será sempre fazer convertidos em toda a terra, ao passo que outras
religiões são mais ou menos variáveis no seu ensinamento, recipro­
camente tolerantes, locais, e confessadamente locais, no seu habitat
e no seu carácter.
Não é este, contudo, o ponto principal da objecção; a dificul­
dade real não reside na variedade das religiões, mas na contradição
no conflito e na mudança das certezas religiosas. A verdade não
precisa de ser universal, mas deve necessariamente ser certa; e a
certeza, para ser certeza, deve persistir; todavia, como é que esta
expectação razoável se pode cumprir no caso da religião? Pelo con­
trário, descobre-se que, às vezes, os que estiveram mais certos nas
suas crenças as perderam, tanto Católicos como outros; e, em
seguida, aceitam novas crenças, talvez antagónicas, mas que acata­
ram como certas, como se jamais tivessem estado certos da antiga.
Ao responder a esta objecção, começo por recorrer à observação
que já fiz, a saber, que o assentimento e a certeza se referem a propo­
sições, uma a uma. Podemos, sem dúvida, assentir a várias proposi­
ções em conjunto, isto é, podemos fazer simultaneamente vários
assentimentos; mas, ao proceder assim, corremos o risco de os colo­
car num só nível, de tratar, como de valor idêntico, actos da mente

que são entre si muito diferentes no carácter e na circunstância. Um

250 • J o h n H e n ry N e w m a n
assentimento é, de facto, sempre um assentimento; mas determi­
nados assentimentos podem ser fortes ou fracos, deliberados ou
impulsivos, duradouros ou efémeros. Ora uma religião não é uma
proposição, mas um sistema; é um rito, um credo, uma filosofia,
uma regra de conduta, tudo ao mesmo tempo; e aceitar uma religião
não é dar-lhe um assentimento simples ou complexo; não é uma
convicção, um preconceito, um assentimento nocional ou real; não
é um simples acto de confissão, de crédito, de opinião e de especula­
ção, mas é um conjunto de todos estes diversos tipos de assentimen­
tos, ao mesmo tempo e conjuntamente, uns de um tipo, outros de
outro; mas, de todos estes diferentes assentimentos, quantos são da
espécie a que chamei certeza? As certezas, de facto, não mudam, mas
quem pretenderá que os assentimentos são indefectíveis?
Por exemplo: o dogma fundamental do Protestantismo é a auto­
ridade exclusiva da Sagrada Escritura; mas, ao asseri-lo, um Protes­
tante aceita, explícita ou implicitamente, um grande número de
proposições e adere a elas com assentimentos de carácter diverso.
Entre estas proposições, assevera que a Escritura é a própria Revela­
ção divina, que ela é inspirada, que nada se conhece na doutrina a
não ser o que ali se encontra; que a Igreja não tem autoridade algu­
ma em matérias de doutrina, que, em semelhante pretensão, ela há
muito a condenou no Apocalipse, que S. João escreveu o Apocalipse,
que a justificação é só pela fé, que Nosso Senhor é Deus, que há
setenta e duas gerações entre Adão e Nosso Senhor. Ora de qual,
entre todas estas proposições, está ele certo? E a quantas delas é o seu
assentimento de um só e mesmo tipo? A sua crença de que a Escri­
tura é co-extensiva à Revelação Divina é talvez implícita, não cons­
ciente; quanto à inspiração, ele não sabe bem o que a palavra
significa, e o seu assentimento pouco mais é do que uma confissão;
presume que nenhuma doutrina é verdadeira a não ser a que pode

Uma Gramática do Assentimento • 25l


ser comprovada pela Escritura, e ao seu assentimento a ela chamei­
-lhe especulativo; sustenta com um assentimento real, ou crença,
que a Igreja não tem autoridade; que a Igreja está condenada no
Apocalipse é um preconceito persistente; que S. João escreveu o
Apocalipse é a sua opinião; reconhece, mas dificilmente se pode
dizer que apreende, que a justificação é só pela fé; está certo de que
Nosso Senhor é Deus; aceita por simples crédito que há setenta e
duas gerações entre Adão e Cristo. Todavia, se a questão se levantas­
se, responderia, com bastante probabilidade, que estava convencido
da verdade do «Protestantismo», embora «Protestantismo» signifi­
que, ao mesmo tempo, estas coisas e muitas mais, embora acredite,
com certeza efectiva, apenas numa delas - sem dúvida, um dogma
da mais sagrada importância, mas não a descoberta de Lutero ou de
Calvino. Teria ele por suficiente afirmar que era um inimigo do
«Romanismo» e do «Socinismo» e proclamar que se gloriava da
Reforma. Encara cada uma destas confissões religiosas, Protestan­
tismo, Romanismo, Socinismo e Teísmo, apenas como unidades,
como se cada uma delas não fosse constituída por muitos elementos,
como se nada tivessem em comum, como se a passagem de uma a
outra implicasse uma simples obliteração de tudo o que, até agora,
esteve registado na sua mente, e fosse a aceitação de uma nova fé.
Quando, pois, nos dizem que um homem transitou de uma
religião para outra, a primeira pergunta a fazer é esta: nada tinham
em comum a primeira e a segunda religião? Se têm doutrinas
comuns, mudou ele apenas uma porção do seu credo, não a totali­
dade: e a questão seguinte é esta: atribuiu ele, alguma vez, grande
importância a quaisquer doutrinas excepto às que, se bem que de
outro modo, são comuns ao seu novo credo e ao antigo?
Assim, de três Protestantes, um torna-se Católico, o segundo
Unitário, e o terceiro descrente: como assim? O primeiro torna-se

252 • J o h n H e n ry N e w m a n
Católico porque, enquanto Protestante, assentiu à doutrina da
divindade de Nosso Senhor, com um assentimento real e uma con­
vicção genuína, e porque esta certeza, apossando-se da sua mente,
o levou a acolher as doutrinas católicas da Presença Real e da Theo­
tokos, até que o seu Protestantismo dele se desprendeu, e ele se
submeteu à Igreja. O segundo tornou-se Unitário porque, ao pros­
seguir no princípio de que a Escritura era a regra da fé e de que o
juízo privado de um homem era a sua regra de interpretação, ao
descobrir que a doutrina dos Credos de Niceia e de S. Atanásio
não brotou, por necessidade lógica, do texto da Escritura, disse
para consigo, «A palavra de Deus foi impedida de ter efeito algum
pelas tradições dos homens»; por conseguinte, nada lhe restou a
não ser professar o que tinha por cristianismo primitivo e tornar-se
um Unitário. O terceiro, pouco a pouco, deixou-se cair na infideli­
dade, porque começou com o dogma protestante, acalentado nas
profundezas da sua natureza, de que um sacerdócio era uma cor­
rupção da simplicidade do Evangelho. Primeiro, protestaria contra
o sacrifício da missa; a seguir, abandonou a regeneração baptismal
e o princípio sacramental; depois, interrogou-se a si mesmo se os
dogmas, tal como os sacramentos, não seriam uma restrição da
liberdade cristã; surgiu interiormente a questão: qual a utilidade
dos mestres de religião? Porque é que deveria haver alguém entre
ele e o seu Criador? Passado algum tempo, ocorreu-lhe que esta
questão óbvia teria sido respondida pelos Apóstolos, ou também
pelo clero anglicano; chegou assim à conclusão de que a revelação
verdadeira e única de Deus ao homem é a que está escrita no cora­
ção. Fez isto por algum tempo e permaneceu Deísta. Mas, em
seguida, veio-lhe à mente que a lei moral interior se encontrava
dentro do peito, quer existisse, ou não, um Deus, e que era um
modo tortuoso, e simplesmente desnecessário, de forçar esta lei a

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 253
dizer que ela veio de Deus, considerando que ela trazia consigo a
sua própria autoridade sagrada e soberana, de acordo com o teste­
munho instintivo dos nossos sentimentos; e quando se virou para
contemplar o mundo físico à sua volta, não deparou efectivamente
com nenhuma prova científica da existência de Deus, antes se lhe
afigurou que todas as coisas continuariam tão bem como agora,
sem esta hipótese ou com ela; pelo que a abandonou e se tornou
um ateu purus, putus.
Ora o mundo dirá que, nestes três casos, se perderam antigas
certezas e se ganharam outras novas; mas não é bem assim: cada
um dos três homens começou com uma certeza, como ele próprio
teria confessado, se houvesse feito um minucioso exame de si mes­
mo; e levou-a a cabo, transportou-a consigo para um novo sistema
de crença. Foi fiel, de princípio ao fim, a uma única convicção; e,
lançando ao passado um olhar retrospectivo, insistiria talvez nisto
e diria que foi, de facto, consistente de um extremo a outro, quan­
do outros realizaram grandes mudanças na opinião religiosa. Na
realidade, fez sérios aditamentos ao seu inicial princípio regulador,
mas não perdeu convicção alguma que originalmente o habitava.
Aduzirei mais um exemplo. Um homem converteu-se à Igreja
Católica em virtude da admiração que sente pelo seu sistema reli­
gioso, e do seu desgosto com o Protestantismo. Esta admiração
persiste; mas, após algum tempo, ele abandona a sua nova fé,
regressando porventura à antiga. A razão, se nos é possível fazer
uma conjectura, será, por vezes, esta: ele nunca acreditou na infali­
bilidade da Igreja; acreditou na sua verdade doutrinal, mas não na
sua infalibilidade. Foi-lhe perguntado, antes de ser acolhido, se ele
professava tudo o que a Igreja ensinava, e respondeu que sim; mas
pensou que a questão queria dizer se ele acatava as doutrinas parti­
culares «que, na altura, a Igreja ensinava formalmente em matéria

2 54 • J o h n H e n ry N e w m a n
de facto», ao passo que ela se referia realmente a «tudo o que a
Igreja ensinaria então ou em qualquer época futura». Por isso, ele
nunca teve a fé indispensável e elementar de um Católico; simples­
mente não estava disposto para ser acolhido no redil da Igreja.
Assim sendo, quando se define a Imaculada Conceição, sente que
esta é algo mais do que aquilo que ele negociara quando se tornou
Católico; e abandona, portanto, a sua confissão religiosa. O mun­
do dirá que ele perdeu a sua certeza acerca da divindade da Fé
Católica, mas jamais o fez.
Portanto, o primeiro ponto a examinar, ao ouvirmos falar de
uma mudança da certeza religiosa em alguém, diz respeito às dou­
trinas com que a sua chamada certeza deparou, até agora e no pre­
sente. Todas as doutrinas, além dessas, eram os acidentes da sua
confissão, e a indefectibilidade da certeza não teria sido rejeitada,
embora ele, todos os anos, as alterasse. Poucas são as religiões que
não têm quaisquer pontos em comum; e estes, sejam verdadeiros ou
falsos, quando aceites como uma convicção absoluta, são os eixos
em que ocorrem as mudanças neste conjunto de créditos, de opi­
niões, de preconceitos e de outros assentimentos, os quais consti­
tuem o que se chama a selecção e a adopção por um homem de uma
forma de religião, de uma congregação ou de uma Igreja. Protestan­
tes houve cuja ideia de Cristianismo esclarecido consistiu num anta­
gonismo enérgico ao que eles consideravam a desumanidade e a
irracionalidade da moralidade Católica, uma antipatia para com os
preceitos da paciência, da mansidão, do perdão das injúrias e da cas­
tidade. Consideraram eles tudo isto como uma religião de mulheres,
como o ornamento dos monges, dos doentes, dos fracos e dos
velhinhos. A concupiscência, a vingança, a ambição, a coragem, o
orgulho, estas coisas, assim pensaram eles, fazem o homem, e a sua
ausência o escravo. Ninguém poderia honestamente acusar tais

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 255
homens de qualquer grande mudança das suas convicções, ou refe­
rir-se a eles na demonstração da defectibilidade da certeza, se algum
dia se descobrisse que adaptaram a confissão do Islão.
E se a intercomunhão das religiões se aguenta bem, mesmo
quando os seus pontos comuns não passam de erros defendidos
em comum, muito mais natural será a transição de uma religião
para outra, sem dano das certezas existentes, quando os pontos
comuns, os objectos dessas certezas, são verdades; e, neste caso,
mais forte e mais constritiva será a simpatia com que as mentes
amantes da verdade, mesmo quando a rodearam de erro, aspirarão
à fé Católica, a qual contém em si, e como sua a reclama, toda a
verdade que se deve encontrar noutros lugares, mais do que tudo e
nada mais senão a verdade. Eis o segredo da influência, pela qual a
Igreja atrai a si convertidos de religiões tão variadas e antagónicas.
Vêm, não para perder o que têm, mas para ganhar o que não têm;
e para que, mediante o que têm, mais lhes possa ser dado. Santo
Agostinho disse-nos que não existe nenhuma doutrina falsa sem
uma mescla de verdade; e é pela luz dessas verdades particulares,
contidas respectivamente nas diversas religiões dos homens, e pelas
nossas certezas a seu respeito, possíveis onde quer que essas verdades
se encontrem, que escolhemos o nosso caminho, talvez devagar, mas
com segurança, para a Única Religião que Deus nos facultou, levan­
do connosco as nossas certezas, não para as perdermos mas, com
maior segurança, as preservarmos, e para entendermos e amarmos
mais perfeitamente os seus objectos.
Nem sequer os idólatras e os pagãos se encontram fora do
âmbito de algumas dessas verdades religiosas e das suas certezas
relativas. Os antigos politeístas gregos e romanos, como mostram
na sua literatura, tinham não só noções claras e fortes, mas tam­
bém imagens mentais vivas, de uma Providência Particular, do

256 • J o h n H e n ry N e w m a n
poder da oração, da regra do Governo divino, da lei da consciên­
cia, do pecado e da culpa, da expiação mediante sacrifícios e da
retribuição: eu até acrescentaria, da Unidade e Personalidade do
ser Supremo. É isto o que arroja uma luz tão magnificente sobre os
poemas homéricos, os coros trágicos e as edes de Píndaro; e tem a
sua contraparte na filosofia de Sócrates e dos Estóicos, em historia­
dores como Heródoto. Seria deslocado falar confiantemente de um
estado de sociedade que se desvaneceu, mas, à primeira vista, não
se lobriga porque é que as verdades por mim enumeradas não rece­
beram um assentimento tão genuíno e deliberado por parte de
Sócrates ou de Cleantes (decerto com a aj uda divina, mas esta não
entra nesta discussão) , como lhes foi dado por S. João ou S. Paulo,
um assentimento que ascende à certeza. Com maior segurança será
possível dizer de um Maometano que ele pode ter uma certeza da
Unidade Divina, tal como igualmente um Cristão; e de um Judeu,
que ele pode acreditar tão verdadeiramente como um Cristão na
ressurreição do corpo; e de um Unitário, que ele pode prestar um
assentimento deliberado e real ao facto de uma revelação sobrena­
tural, aos milagres cristãos, à lei moral eterna e à imortalidade da
alma. Por isso, mais uma vez, um Protestante pode, não só nas
palavras, mas na mente e no coração, aceitar, como se fosse um
Católico, com uma certeza simples, as doutrinas da Trindade San­
ta, da queda do homem, da necessidade de regeneração, da eficácia
da graça divina, da possibilidade e do perigo da perdição. É, pois,
concebível que um homem, na sua confissão religiosa, possa per­
correr todo o caminho desde o paganismo ao Catolicismo, passan­
do pelo Maometismo, Judaísmo, Unitarismo, Protestantismo e
Anglicanismo, sem qualquer perda de certeza, mas com uma inces­
sante acumulação de verdades, que dele exigiram e no seu intelecto
suscitaram certezas cada vez mais vivas.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 257
Ao dizer tudo isto, não esqueço que doutrinas idênticas, defen­
didas nas diferentes religiões, podem ser e, muitas vezes, são adapta­
das de modo diferente enquanto inseridas em diferentes totalidades
ou formas, como elas são designadas, e expostas à influência e à ten­
dência da doutrina, porventura falsa, a que estão associadas. Assim,
por exemplo, seja qual for a semelhança entre a doutrina da pre­
destinação de Santo Agostinho e o princípio de Calvino a ela rela­
tivo, as duas diferem entre si toto caelo no significado e no efeito,
em virtude do lugar que ocupam nos sistemas em que se encon­
tram respectivamente incorporadas, tal como as sombras e os mati­
zes se mostram de modo diferente numa pintura, segundo as
massas da cor a que eles estão ligados. Mas,. apesar de · tudo, um
homem pode, como Calvinista, aderir de tal maneira à doutrina da
eleição pessoal que é ainda capaz de a defender como um Católico.
Todavia, tenho estado a falar de certezas que permanecem
intactas, ou antes, confirmadas, por uma mudança de religião; em
contrapartida, outras há, chamemos-lhes certezas ou convicções,
que morrem na mudança, por exemplo, a convicção de S. Paulo
acerca da suficiência da Lei Judaica esvaneceu-se com a sua conver­
são ao Cristianismo. Ora, como é que semelhante série de factos se
pode reconciliar com a doutrina que tenho estado a realçar? Que
convicção podia ser mais forte do que a fé dos Judeus na perpetui­
dade do sistema moisaico? Pode, então, dizer-se que aqueles que
abandonaram o Judaísmo pelo Evangelho deram decerto, ao fazê­
-lo, o mais enfático dos testemunhos à defectibilidade da certeza.
E, de igual modo, um Maometano pode estar tão profundamente
convencido de que Maomé é o profeta de Deus que só por um
equívoco acerca do significado da palavra «Certeza» seria possível
afirmar que, ao tornar-se Católico, não demonstrou inequivoca­
mente que a certeza é defectível. E talvez se possa argumentar, no

258 • J o h n H e n ry N e w m a n
caso - de alguns membros da Igreja de Inglaterra, que a sua fé na
validade das ordenações anglicanas e na invisibilidade da unidade
da Igreja é tão absoluta, tão deliberada, que a sua renúncia à mes­
ma, se eles se tornassem Católicos ou cépticos, seria equivalente ao
abandono de uma certeza.
Ora, ao enfrentar esta dificuldade, não alegarei (para não ser
acusado de fazer jogos de palavras) que a certeza é uma convicção
sobre o que é verdadeiro, e que as chamadas certezas se tornaram
inúteis porque, devido ao erro e à inverdade dos seus objectos, não
eram efectivamente certezas; nem insistirei, como poderia, em que
elas deveriam, primeiro, ser comprovadas como algo mais do que
meros preconceitos, assentimentos sem razão e juízo, antes de
serem aceites honestamente como exemplos da defectibilidade da
certeza; mas, no tocante ao zelo dos Judeus pela suficiência da sua
lei (embora isso implicasse uma certeza genuína, não um precon­
ceito, não uma simples convicção) , pergunto se tal zelo, tal certeza
professada, existia nos que, ao fim e ao cabo, se converteram ou
naqueles que o não fizeram; pois, se os que não tinham essa certeza
se tornaram cristãos e os que a tinham permaneceram Judeus,
então a perda da certeza nos últimos não está exemplificada no fac­
to da conversão dos primeiros. Paulo é, sem dúvida, uma excep­
ção, mas a sua conversão, como também a sua vida ulterior, foi
miraculosa; em linguagem ordinária, não foram os zelotas que for­
neceram meinbros à Igreja Católica, mas os «homens de boa von­
tade» que, em vez de considerarem a lei como perfeita e eterna,
«esperavam a redenção de Israel» e «O conhecimento da salvação na
remissão dos pecados». E, de igual modo, a propósito dos homens
instruídos e devotos que há hoje entre os Anglicanos, que se apro­
ximaram da Igreja sem reconhecer as suas pretensões, pergunto se
não haverá entre eles duas classes - os que olham para lá do seu

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 259
grupo em busca do caminho perfeito · e os que, por outro lado,
ensinam que a comunhão anglicana é a média dourada entre os
homens que acreditam demasiado e os que acreditam demasiado
pouco, o centro da unidade em torno do qual o Oriente e o Ociden­
te estão destinados a gravitar, o instrumento e o molde, tal como os
Judeus poderiam pensar acerca das suas instituições moribundas,
graças ao qual o Reino de Cristo se deve estabelecer em toda a terra.
Perguntaria, em seguida, qual destas duas classes fornece convertidos
à Igreja; pois, se eles provêm dos que nunca declaram estar inteira­
mente certos da força especial da posição anglicana, então esses
homens não se podem aduzir como exemplos da defectibilidade da
certeza.
Existe, sem dúvida, outra classe de crenças da qual devo tomar
conhecimento, e cujo insucesso se pode tomar, à primeira vista,
como demonstração de que é possível perder uma certeza. Todavia,
é evidente que elas apenas merecem o nome de preconceitos, por­
quanto se baseiam em relatos de factos, ou em argumentos, que
não resistirão a um exame cuidadoso. Tal era a aversão para com os
nossos predecessores na época primitiva, os Cristãos dos primeiros
séculos, como uma sociedade secreta, como uma conspiração con­
tra o poder civil, como um conjunto de fanáticos medíocres, sórdi­
dos, desprezíveis, como monstros que se saciavam de sangue e de
impureza. Assim é também o profundo preconceito, agora existen­
te contra a Igreja entre os Protestantes, que a revestem das mais
hediondas e repugnantes imagens, que a associam justamente, em
descrições proféticas, ao espírito mau, aos seus agentes e instru­
mentos. E o mesmo se diga das inúmeras calúnias dirigidas contra
católicos individuais, contra as nossas instituições religiosas e os
homens de autoridade, que servem para alimentar e sustentar a
suspeita e a antipatia com que, neste país, se olha tudo o que é

260 • J o h n H e n ry N e w m a n
católico. Mas assim como a persistência em tais preconceitos não é
uma prova da sua verdade, assim também o seu abandono não
demonstra que a certeza se possa desvanecer.
Há ainda outra classe de preconceitos contra a Religião Católi­
ca, e que é bastante mais tolerável e inteligível do que aqueles em
que tenho estado a insistir; mas, apesar de tudo, eles não são certe­
zas. De facto, duvido se eles serão considerados mais do que opi­
niões presuntivas pelas pessoas que as acatam. Tal é a ideia, instalada
em certos filósofos, antigos e modernos, de que os milagres são uma
ruptura e uma desfiguração da bela ordem da natureza. Do mesmo
género é também a persuasão, comum entre os homens políticos e
os letrados, de que a Igreja Católica é adversa aos verdadeiros inte­
resses da raça humana, ao progresso social, à liberdade racional, ao
bom governo. Uma renúncia a estas quimeras não é uma alteração
nas certezas.
E basta deste tema. Todas as leis concretas são gerais, e as pes­
soas, enquanto tais, não estão englobadas em leis. Ainda assim,
percorri, segundo creio, um bom caminho para rejeitar as objec­
ções à doutrina da indefectibilidade da certeza em matérias de reli­
gião, embora não lhe possa atribuir um sinal infalível.

6. Pode fazer-se uma ulterior observação. A certeza não permite um


teste interior, imediato, suficiente para a discriminar da falsa certeza.
Semelhante teste é impossibilitado pela circunstância de que, ao
fazermos o acto mental expresso pelo «sei», resumimos a séria inte­
gral de juízos reflexos que, um a um, poderiam sucessivamente exer­
cer uma função crítica frente aos da série que o precedem. Mas,
apesar de tudo, se a regra geral é que a certeza é indefectível, não se
tornará a própria indefectibilidade, pelo menos neste caso, um cri-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 261
tério da genuinidade da certeza? Ou ha�erá algum estado ou hábi­
to rival do intelecto, que também pretende ser indefectível? Umas
quantas palavras bastarão para responder a estas questões.
Supondo que todas as regras são apenas gerais, sobretudo as
que se relacionam com a mente, advirto que a indefectibilidade
pode, ao menos, servir de teste negativo da certeza, ou de condição
sine qua non, pelo que quem perder a sua convicção acerca de um
dado ponto revela assim que não estava certo a seu respeito. A cer­
teza deveria resistir a todos os j ulgamentos, ou então não é certeza.
A sua genuína função é acarinhar e resguardar o seu objecto; a sua
sorte genuína, o seu ofício, é suster os duros choques na sua defesa,
sem por eles ser danificada.
Darei um exemplo. Suponhamos que nos dizem, com uma
autoridade inexpugnável, que um homem que vimos morrer está
agora de novo vivo e a trabalhar, como era seu hábito; suponhamos
que, efectivamente, o vemos e com ele conversamos; que acontecerá
à nossa certeza da sua morte? Não creio que a devamos abandonar;
como é que isso nos seria possível, se efectivamente o vimos morrer?
Deveríamos, primeiro, mergulhar num espanto e numa confusão
tão grandes que o mundo à nossa volta oscilaria, deveríamos estar
prontos a abandonar o uso dos nossos sentidos e da nossa memó­
ria, dos nossos poderes reflexivos, da nossa razão e até a negar o
nosso poder de pensamento e a nossa própria existência. Tal é a con­
fiança que temos na doutrina de que quando a vida acaba, jamais
retorna. Nem a nossa desorientação seria menor, se o primeiro cho­
que tivesse acabado; mas a nossa razão restabelecer-se-ia e, com a
nossa razão, regressaria a nós a nossa certeza. Seja o que for que lhe
tenha acontecido, nunca deixaríamos de saber e de confessar a nós
mesmos os factos contrários, que o vimos morrer e que, após mor­
rer, o vimos de novo com vida. A estranheza avassaladora da nossa

262 • J o h n H e n ry N e w m a n
experiência não teria conseguido abalar a nossa certeza nos factos
que a suscitaram.
Suponhamos, ademais, por mor do argumento, que os etnólo­
gos, os filólogos, os anatomistas e os antiquários concordam em
demonstrações separadas que houve meia dúzia de raças dos
homens, todas elas descendentes dos gorilas, dos chimpanzés, dos
orangotangos ou dos babuínos; além disso, que Adão foi uma per­
sonagem histórica, com o lugar de habitação, o ambiente e a data
bem estabelecidos, num mundo comparativamente moderno. Por
outro lado, seja-me permitido crer que a Palavra de Deus declara
distintamente que não houve homens antes de Adão, que ele foi
imediatamente feito do barro da terra, e que é o primeiro pai de
todos os homens que existem ou alguma vez existiram. Existe aqui
uma contradição de enunciados mais directa do que no primeiro
exemplo; os dois não se podem conjuntamente ajustar; um ou
outro é falso. Mas sejam quais forem os meios a que eu possa dei­
tar a mão para, se possível, tornar tolerável o antagonismo, imagi­
no que nunca abandonaria a minha certeza naquela verdade que,
com motivos suficientes, considerei como vinda do céu. Se eu
assim acreditasse, não pretenderia argumentar ou defender-me
para outros; seria paciente; iria à busca de melhores dias; mas ain­
da acreditaria. Se, de facto, tivesse, até aqui, acreditado apenas a
meias, se acreditasse com um assentimento desprovido de certeza,
com uma aquiescência sem assentimento, à pressa ou com motivos
ligeiros, então o caso mudaria de figura; mas se, após uma plena
consideração e tendo-me munido com as luzes mais favoráveis, eu
pensasse que, para lá de toda a questão, Deus falou como penso
que Ele fez, então os filósofos e os experimentalistas poderiam, em
meu lugar, prosseguir o seu caminho - e deveria considerar que
eles e eu pensámos e raciocinámos com meios diferentes, que a

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 2 63
minha certeza colidiu tão pouco com el�s ou foi por eles tão pouco
danificada como se, numa questão importante qualquer, tentassem
neutralizar a acção química pela força da gravidade ou medir a
influência magnética frente à atracção capilar. Estou a apresentar,
claro está, um caso impossível, porque as descobertas filosóficas
não podem efectivamente contradizer a revelação divina.
Basta da indefectibilidade da certeza; quanto à questão de se,
além dela, qualquer outro assentimento é indefectível, penso que
tal pode ser o preconceito; mas ele não se pode confundir com a
certeza, porque um é um assentimento prévio a motivos racionais,
e a outra um assentimento dado expressamente após um exame
cuidadoso.
Parece, então, que há em geral três condições da certeza: que
ela deriva da investigação e da prova, que é acompanhada por um
sentido específico de satisfação e quietude intelectuais, e que é irre­
versível. Se o assentimento se fizer sem motivos racionais, é um
juízo precipitado, um devaneio ou um preconceito; sem um senti­
do de finalidade, dificilmente é mais do que uma inferência; sem
permanência, é uma mera convicção.

2 64 • J o h n H e n ry N e w m a n
CAPÍTULO 8

I N F E RÊ N C IA

1. I n fe r ê n c i a fo rmal

A inferência é a aceitação condicional de uma proposição, o Assen­


timento é a incondicional; o objecto do Assentimento é uma ver­
dade, o objecto da Inferência é o análogo da verdade ou uma
verosimilhança. O problema que acometi é o de estabelecer como
é que um acto condicional conduz a um incondicional; e, tendo já
demonstrado que o assentimento é efectivamente incondicional,
pretendo mostrar como é que os exercícios inferenciais devem,
enquanto tais, ser sempre condicionais.
Raciocinamos, quando afirmamos isto em virtude daquilo; se
temos isto por evidente, por aproximativo ou por tendencialmente
evidente, em qualquer dos casos afirmamo-lo em virtude de termos
algo mais por evidente ou por tendencialmente evidente. Em segui­
da, o nosso raciocínio apresenta-se habitualmente à nossa mente
como um acto simples, não como um processo ou uma série de
actos. Apreendemos o antecedente e, de seguida, captamos o conse­
quente, sem o reconhecimento explícito do meio que liga os dois,
como que por uma espécie de vinculação directa do primeiro pensa­
mento com o segundo. Avançamos por uma espécie de percepção
instintiva, da premissa para a conclusão. Dou-lhe o nome de instin­
tiva, não como se a faculdade fosse uma só e a mesma para todos os
homens em força e em qualidade (tal como em geral concebemos o
instinto) , mas porque habitualmente ou, pelo menos muitas vezes,

U m a G r a m á r i c a do Ass e n t i m e n t o • 265
ela actua por um impulso espontâneo, tão pronto e inevitável como
o exercício do sentido e da memória. Percepcionamos objectos exter­
nos e recordamos acontecimentos passados, sem saber como assim o
fazemos; e, de igual modo, raciocinamos sem esforço e intenção, ou
sem qualquer consciência necessária da senda que a mente toma, ao
transitar do antecedente para a conclusão.
Tal é o raciocinamento naquilo que se pode chamar um estado
de natureza, como se encontra nos não instruídos - e também
em todos os homens, no seu exercício ordinário; nem existe qual­
quer motivo antecedente para determinar que ele não será tão cor­
recto nas suas informações por ser instintivo, ou tão fidedigno
como a percepção sensível e a memória, embora as suas informa­
ções não sejam tão imediatas e tenham um âmbito mais vasto.
Pelos sentidos adquirimos directamente o conhecimento; por
meio do raciocínio, obtemo-lo de modo indirecto, isto é, em virtude
de um conhecimento prévio. E se, de acordo com o significado da
palavra, podemos olhar o universo como um todo, talvez suponha­
mos também que conhecer uma parte sua é necessariamente conhe­
cer muito mais do que uma só parte. Esta ideia leva-nos a uma
ulterior concepção do raciocínio. Diz o provérbio, Expede HerculemI ;
e temos a experiência efectiva de como o zoólogo hábil consegue
construir uma organização intrincada a partir da visão do seu mais
pequeno osso, evocando o todo como se ele fora uma lembrança;
como, ademais, um antiquário filosófico, graças a uma inscrição,
interpreta as tradições míticas de eras antigas e torna vivo o passado;
e como um Colombo, a partir de considerações que são propriedade
comum, e de fenómenos fortuitos que são sucessivamente trazidos à
sua atenção, é levado a ter uma fé tal num mundo ocidental que se
entrega de bom grado aos terrores de um oceano misterioso, a fim

1 •Pelo pé se vê que é Hércules».

266 • J o h n H e n ry N e w m a n
de lá chegar. O que a mente consegue assim, de modo diverso, trazer
conjuntamente à unidade deve ter alguma conexão intrínseca real de
parte com parte. Mas se a summa rerum constitui um todo, deve ser
construída segundo princípios e leis definidos, cujo conhecimento
alargará a nossa capacidade de raciocinar a seu respeito nos porme­
nores - somos assim elevados a tentar determinar em larga escala e
em sistema aquilo que só os intelectos dotados ou hábeis, graças ao
seu vigor pessoal, conseguem alcançar pouco a pouco e de modo
conveniente, isto é, substituir métodos científicos tais que todos pos­
sam usar, em vez da acção do génio individual.
Há outra razão para tentar descobrir um instrumento do raciocí­
nio (isto é, da obtenção de novas verdades por meio das antigas), que
talvez seja menos vago e arbitrário do que o talento e a experiência de
uns quantos ou o senso comum da maioria. Assim como a memória
nem sempre é exacta e levou, por isso, à invenção da escrita, enquan­
to memoria technica, não afectada pelo fiasco das impressões mentais,
assim os nossos sentidos, por vezes, nos enganam e têm de ser cor­
rigidos uns pelos outros; o mesmo acontece também com a nossa
faculdade de raciocínio. As conclusões de um homem não são as
conclusões de outro; as do mesmo homem nem sempre são entre
si concordantes; as de tantos, que chegam a um acordo conjunto,
podem diferir dos próprios factos, que aquelas conclusões visam esta­
belecer. Torna-se, portanto, imperioso, se possível, analisar o processo
do raciocínio e inventar um método que possa actuar como uma
medida comum entre mente e mente, como um meio de investiga­
ção combinada e como um padrão intelectual reconhecido - um
padrão tal que nos preserve de erros inevitáveis e nos emancipe do
caprichoso ipse dixit da autoridade.
Visto que o ponteiro do mostrador regista o curso do sol nos
céus, tal como uma chave, ao girar através das divisões do mecanis-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 2 67
mo, nos abre uma tesouraria, munamo-rios, se pudermos, de algum
expediente fácil que nos sirva de verdadeiro registo do sistema da
verdade objectiva, de uma regra disponível para interpretar os seus
fenómenos; ou, pelo menos, vamos até onde nos for possível forne­
cê-la. Semelhante chave experimental é a ciência da geometria, que,
num certo departamento da natureza, substitui um complexo de
verdadeiros princípios, fecundos e intermináveis nas consequências,
aos palpites, pro re nata, do nosso intelecto, e poupa ao mesmo tem­
po o trabalho e o risco da conjectura. Outro instrumento muito
mais subtil e eficaz é a ciência algebraica, que actua como uma fór­
mula encantatória ao abrir-nos, sem qualquer mérito ou esforço
individual nosso, os arcana do universo físico concreto. Um instru­
mento mais ambicioso, porque mais amplo, para interpretar o mun­
do concreto é o método da inferência lógica. O que desejamos é algo
que possa suplantar a necessidade de dons pessoais por uma regra de
maior alcance e infalível. Ora, sem símbolos externos para assinalar e
fixar o seu curso, o intelecto anda à solta; mas, com a ajuda de sím­
bolos, como na álgebra, ele avança com precisão e eficácia. Que os
nossos símbolos sejam então as palavras: que todo o pensamento
fique arrestado e incorporado nas palavras. Que a linguagem tenha
um monopólio do pensamento; e que o pensamento chegue apenas
até onde ele merece na linguagem. Ignore-se todo o incitamento do
intelecto, renegue-se todo o momentum da argumentação que seja
desprovido de uma equivalente verbalização, qual bilhete seu para
participar na busca comum da verdade. Que a autoridade da nature­
za, o senso comum, a experiência, o génio de nada sirvam. O racio­

cinamento, assim restringido e posto nos carris, é aquilo que chamei


Inferência, e a ciência, que é o seu princípio regulador, é a Lógica.
O primeiro passo no método inferencial é inserir a questão a
ser decidida na forma de uma proposição; em seguida, insertar a

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própria prova em propos1çoes, já que a força da prova reside na
comparação das proposições entre si. Quando a análise cabalmente
se realiza e se põe em forma, torna-se o silogismo aristotélico. Toda­
via, uma inferência não precisa de ganhar assim uma expressão téc­
nica; um entimema cumpre as exigências do que denomino
Inferência. Assim o faz também qualquer outra forma das palavras
com as simples expressões gramaticais «porque», «por conseguinte»,
«supondo», «pelo que», «de modo semelhante» e quejandos. Raciocí­
nio verbal de qualquer tipo, enquanto oposto ao mental, é aquilo
que entendo por inferência, que difere da lógica só enquanto a lógi­
ca é a sua forma científica. E será mais conveniente usar aqui indis­
criminadamente as duas palavras, pois nada direi acerca da lógica
que, na sua substância, se não aplique também à inferência.
Se, pois, a inferência lógica assim é, e se a sua função é tal
como a descrevi, surge então a questão de até que ponto ela res­
ponde ao propósito para que se usa. Visa facultar um teste e uma
medida comum do raciocínio; e segundo penso, terá em parte êxi­
to e em parte fracasso; terá êxito, na medida em que se podem
encontrar palavras . para representar as inumeráveis variedades e
subtilezas do pensamento humano, e fracassará devido à falácia do
pressuposto original de que tudo o que se pode pensar se consegue
expressar adequadamente em palavras.
Em primeiro lugar, a Inferência, por ser condicional, é restrin­
gida com outras proposições, além do que lhe é peculiar, isto é,
com as premissas, com a conclusão e com as regras que ligam a
última às primeiras. Não se atém a uma proposição por mor dela,
mas enquanto dependente de outras, e sustém estas em vista da
conclusão. Por isso, está praticamente mais preocupada com a
comparação das proposições do que com as próprias proposições.
É obrigada a considerar todas as proposições, com que tem de

Uma Gramática do Assentimenro • 2 69


lidar, não tanto por mor delas próprias ·quanto por causa de umas e
de outras, no tocante à identidade, à semelhança, à independência
ou à dissemelhança, que delas tem de ser mutuamente predicada.
Por conseguinte, quanto mais simples e definidas são as palavras de
uma proposição, quanto mais restrito o seu significado, quanto mais
esse significado em cada proposição está restringido à relação que
tem com as palavras das outros proposições com ela comparadas -
por outras palavras, quanto mais as proposições, contempladas na
inferência, se aproximam de abstracções mentais, quanto menos têm
a ver com a realidade concreta, quanto mais estritamente são levadas
a expressar noções exactas, inteligíveis, compreensíveis e comunicá­
veis, quanto menos estão em vez de coisas objectivas, isto é, quanto
mais são os sujeitos, não de apreensão real, mas nocional - tanto
mais apropriadas elas se tornam para os objectivos da Inferência.
Daí que não haja processo de argumentação tão perfeito como
aquele que é levado a cabo mediante símbolos. Na Aritmética o 1 é
1 e apenas 1 , portanto, nada mais a não ser 1 ; nunca é 2, não tende
a mudar o seu significado e a tornar-se 2; não tem parte, qualidade
ou mescla de 2 no seu significado. E 6, em todas as circunstâncias, é
3 vezes 2, e a soma de 2 e 4; nem o mundo inteiro pode fornecer
seja o que for para lançar dúvidas sobre estas posições elementares.
Não acontece assim com a linguagem. Tomemos, por contraste, a
palavra «inferência», que tenho estado a usar: pode pôr-se em vez do
acto de inferir, tal como a usei; ou em vez do princípio de conexão,
ou inferentia, entre as premissas e as conclusões; ou em vez da pró­
pria conclusão. E, por vezes, será difícil, numa frase particular, dizer
qual destes três sentidos ela tem. E assim igualmente na Álgebra, a
nunca é x, ou nada mais excepto a, onde quer que se encontre; e a e
b são sempre quantidades graduadas, a que x e y se devem sempre
referir e pelos quais devem sempre ser medidas. Igualmente na Geo-

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metria, os sujeitos do argumento, pontos, linhas e superfícies, são
justamente criações da mente, sugeridas decerto por objectos exter­
nos, mais nada significando a não ser o que elas, por definição,
devem significar: não têm cor, movimento e calor, não têm qualida­
des que se dirijam ao ouvido ou ao paladar; pelo que, sejam quais
forem as combinações ou relações em que ocorrem as palavras que
as denotam, e cheguem elas seja a quem for, tais palavras nunca
variam no seu significado, antes são da mesma medida e do mesmo
peso numa e noutra altura.
O que se verifica com a Aritmética, a Álgebra e a Geometria,
verifica-se também com a argumentação aristotélica nos seus típi­
cos modos e figuras. Ela compara duas palavras dadas separada­
mente com uma terceira e, em seguida, determina como se referem
uma à outra, numa identidade de sentido bona fide. Por conse­
guinte, o seu processo formal desenrola-se melhor mediante os
símbolos, A, B e C. Enquanto a estes se atém, está correcta; tem a
precisão do raciocínio matemático e tira as suas conclusões, por
meio de uma regra tão infalível quanto cega.
Como a notação simbólica é, pois, a perfeição do método silo­
gístico, segue-se que, quando as palavras são substituídas por sím­
bolos, será fito seu circunscrever e restringir, tanto quanto possível,
o seu significado, para que A não deixe, por acaso, de significar A,
e B de significar B; e fazer deles, tanto quanto possível, os calculi
de noções, que estão em nosso poder, como significando justamen­
te o que decidimos que elas signifiquem, e tão pouco quanto possí­
vel os indícios das coisas reais, a nós externas, e cujo significado
não conhecemos, mas decerto tanto quanto (em proporção com a
nossa imersão nelas) connosco elas se afastam, para lá do âmbito
da gestão científica. O conteúdo concreto das proposições é uma
constante fonte de perturbação para o raciocínio silogístico, por-

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 27 1
que desfigura a simplicidade e a perfeição do seu processo. As pala­
vras, que denotam coisas, têm inumeráveis implicações; mas, nos
exercícios inferenciais, o autêntico triunfo desta clareza e dureza de
cabeça, que é o talento característico da arte, é tê-las despido de
todos os sentidos conaturais, tê-las drenado da profundeza e da
respiração de associações que constituem a sua poesia, a sua retóri­
ca e a sua vida histórica, ter morto à fome cada termo, até que ele
se converteu no espectro de si próprio, e em toda a parte um só e o
mesmo espectro, omnibus umbra locisI , de modo que este possa
justamente representar um único aspecto irreal da coisa concreta a
que ele adequadamente pertence, uma relação, uma generalização
ou outra abstracção, uma noção nítida fabricada pelo laboratório
da mente, assaz domesticada e submetida, porque existe apenas
numa definição.
É assim que o lógico, em vista dos seus próprios fins, e sobre­
tudo de uma forma útil tanto quanto a esses objectivos concerne,
faz dos rios, cheios, coleantes e belos, canais navegáveis. Para ele, o
cão ou cavalo não é uma coisa que se contempla, mas um simples
nome que sugere ideias; e por um cão ou cavalo universal não
indica ele o agregado de todos os cães ou cavalos individuais reuni­
dos, mas um aspecto comum, esquelético mas preciso, de todos os
cães ou cavalos existentes ou possíveis, que, durante todo esse tem­
po, não correspondem, de facto, a nenhum cão ou cavalo singular
de todo o conjunto. Uma tão diminuta fidelidade na representação
dos indivíduos não é nem necessária nem possível à sua arte; a sua
ocupação não é certificar factos no concreto, mas descobrir e ata­
viar termos médios; e, contanto que estes e os extremos entre os
quais se movem, não sejam equívocos, quer em si mesmos quer no

1 «Sobre todos a sombra do lugar•.

2 72 • J o h n H e n ry N e w m a n
seu uso, contanto que ele capacite os seus pupilos para uma boa
exibição numa disputa viva voce, numa arenga popular ou numa
dissertação escrita, alcançou o objectivo principal da sua profissão.
Tais são as características do raciocínio, olhado como uma
ciência, uma arte científica ou um processo inferencial, e podería­
mos antecipar que, em virtude de o seu campo de visão ser neces­
sariamente estreito, as pretensões que têm de ser demonstrativas
eram incontrovertíveis. Em certo sentido, são realmente assim; ao
expressarmos a lógica, somos incontestáveis; mas, por outro lado,
este universal cenário vivo das coisas não é, ao fim e ao cabo, tanto
um mundo lógico quanto poético; e assim como ele não pode ser,
sem violência, alçado à perfeição poética, também não pode ser
rarefeito numa fórmula lógica. O abstracto só pode levar ao abs­
tracto; mas temos necessidade de, mediante os nossos raciocínios,
chegar ao que é concreto; e ver-se-á que a margem entre as conclu­
sões abstractas da ciência e os factos concretos, que desejamos pre­
cisar, reduzirá a força do método inferencial da demonstração à
simples determinação do provável. Assim, dado que (como já afir­
mei) a Inferência começa com condições, porque parte de premis­
sas, há aqui duas razões por que, quando aplicadas a questões de
facto, ela só pode concluir probabilidades: primeiro, porque as
suas premissas são pressupostas, não provadas; e, em segundo lugar,
porque as suas conclusões são abstractas, e não concretas. Conside­
rarei agora, em separado, estes dois pontos.
1 . A Inferência é uma demonstração insuficiente em assuntos
concretos, pois não tem um domínio pleno dos objectos a que se
refere, mas apenas supõe as suas premissas. Para completar a prova,
somos atirados para algum silogismo ou silogismos prévios, em
que as suposições se podem demonstrar; e, de seguida, recuando
ainda mais, somos novamente remetidos para outros, a fim de

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 2 73
demonstrarmos os novos pressupostos desta segunda ordem de silo­
gismos. Onde se deterá este processo? É que ele deve, em especial,
decorrer em linhas separadas, divergentes e múltiplas de argumento,
quanto mais se retardar a ulterior investigação. Por fim, surge um
grupo de proposições, que devem todas ser demonstradas por pro­
posições mais evidentes do que elas próprias, para se poderem tornar
premissas da série de inferências que termina na conclusão, por nós
originalmente tirada. Mas, mesmo então, a dificuldade não acabou;
seria já qualquer coisa chegar, finalmente, a premissas que são inegá­
veis, por muito que tardemos em conseguir a elas chegar; mas, neste
caso, a longa retrospecção acaba por nos alojar naquilo que recebe o
nome de primeiros princípios, as fontes recônditas de todo o conhe­
cimento, em relação aos quais a lógica não faculta nenhuma medida
comum das mentes - e que são aceites por uns e rejeitados por
outros - nos quais, e não nas exibições silogísticas, reside todo o
problema de alcançar a verdade - e que são chamados auto-eviden­
tes pelos seus respectivos defensores, porque não são evidentes de
qualquer outro modo. Um dos dois usos contemplados no racioci­
namento segundo a regra, ou na argumentação verbal, era, como
afirmei, estabelecer um padrão da verdade e ultrapassar o ipse dixit
da autoridade: como realizará ele este fim, se apenas nos faz remon­
tar a primeiros princípios, acerca dos quais existe uma controvérsia
interminável? Não somos capazes de demonstrar por silogismo que
há quaisquer proposições auto-evidentes; mas, supondo que existem
(como, de facto, afirmo que assim é), quem os poderá determinar
pela lógica? O silogismo, embora tenha um uso próprio, é todavia
apenas uma parte mímina, e a mais fácil, do trabalho, na investiga­
ção da verdade, pois, quando se embate numa dificuldade, esta con­
siste comummente em determinar os primeiros princípios, não na
disposição das provas.

274 • J o h n H e n ry N e w m a n
Mesmo quando o argumento é do tipo mais directo e severo,
haverá necessariamente no processo pressupostos que se diluem
nas condições da natureza humana; mas quão numerosas são ainda
outras suposições que este processo implica nas matérias concretas
habituais, suposições subtis que não derivam directamente dessas
condições primárias, mas acompanham, passo a passo, o curso do
raciocínio e remontam aos sentimentos da época, do país, da reli­
gião, dos hábitos e ideias sociais, dos investigadores ou litigantes
particulares, e passam sem detecção, porque se aceitam igualmente
de todos os lados! E a essas há que acrescentar as suposições feitas a
partir da necessidade do caso, em virtude da prolixidade e da ela­
boração de qualquer argumento que deve registar fielmente todas
as proposições que servem para a sua resolução. Reconhecemos
este tédio, inclusive, no caso dos teoremas de Euclides, embora a
demonstração matemática seja comparativamente simples.
A lógica não proporciona, portanto, uma efectiva demonstra­
ção; capacita-nos para discutir com os outros; sugere ideias; abre
perspectivas; traça-nos as linhas do pensamento; oferece uma veri­
ficação negativa; determina quando as diferenças de opinião são
inúteis; quando, e até que ponto, as conclusões são prováveis; mas,
para uma genuína demonstração em assuntos concretos, exigimos
um organon mais delicado, versátil e elástico do que a argumenta­
ção verbal.

Eu deveria fornecer uma ilustração do que tenho estado a enunciar


em termos gerais; mas, sem uma digressão, é difícil fazê-lo. Contu­
do, se assim tiver de ser, olho em redor no quarto em que, por aca­
so, estou a escrever, pego no primeiro livro que me cai sob os olhos.
É um velho volume de uma revista de grande nomeada; abro-o ao

U m a G r a m á t i c a do A sse n t i m e n t o • 275
acaso e deparo com uma discussão acerca das emendas, recente­
mente descobertas, do texto de Shakespeare. Servirá para o meu
propósito.
No relato da morte de Falstaff, no Henrique V (acto II, cena 1 ) ,
lemos, segundo o texto recebido, as bem conhecidas palavras, «His
nose was as sharp as a pen, and 'a babbled of green fields ». Na pri­
meira edição autêntica, publicada em 1 623, alguns anos após a
morte de Shakespeare, as palavras, creio, tinham esta sequência,
«and a table of green fields », que não faz sentido. Por conseguinte,
um crítico anónimo, referido por Theobald no último século, cor­
rigiu-as para «and 'a talked of green fields». O próprio Theobald
melhorou a leitura para «and 'a babbled of green fields», que, des­
de então, tem sido o texto recebido.
Mas, há precisamente vinte anos, descobriu-se uma cópia da
edição de 1 632, anotada talvez por um contemporâneo que, entre
cerca de 20 000 correcções do texto, substituiu à leitura corrupta
de 1 623 as palavras «on a table of green frieze», que tem um senti­
do suficiente, embora muito menos aceitável para um admirador
de Shakespeare do que o de Theobald. A autenticidade desta cópia
com as suas anotações, tal como nos é apresentada, tê-la-ei aqui
por garantida.
Entendo agora, ou pelo menos suporei, que o argumento,
defendido no artigo da revista em causa, reza assim: «A leitura de
Theobald, tal como presentemente é recebida, deve reter-se, com
exclusão do texto de 1 623 e da correcção feita na cópia da edição
de 1 632 - com exclusão do texto de 1 623, porque este texto é
corrupto; com exclusão da anotação de 1 632, porque esta é anóni­
ma». Oxalá, pois, se advertisse quantas questões amplas se paten­
teiam na discussão que se segue, quantos princípios recônditos e
difíceis se têm de estabelecer e quão impotente é a lógica, ou quais-

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quer raciocm1os que se possam verter na linguagem, para lidar
com estes primeiros princípios indispensáveis.
A primeira posição é «A leitura autoritarizada de 1 623 não se
deve introduzir de novo no texto recebido, porque é corrupta».
Ora, deveremos ter por garantido, como um primeiro princípio
sem necessidade de prova, que um texto pode ser falsificado, por­
que tem corruptelas? Por mais corrupto que um texto tenha surgi­
do, tem autoridade. Encontra-se numa edição, publicada por
pessoas conhecidas, apenas seis anos após a morte de Shakespeare,
a partir do seu próprio manuscrito, como parece, e com as suas
correcções de anteriores edições defeituosas. A autoridade não
pode sancionar o contra-senso, mas pode proibir que os críticos
façam experiências a seu respeito. Se o texto de Shakespeare está
corrupto, deveria ser publicado como corrupto.
Creio que os melhores editores dos trágicos gregos abandona­
ram a impertinência de introduzir as suas conjecturas no texto; e um
clássico como Shakespeare tem um direito a ser tratado com o mes­
mo respeito que Ésquilo. A isto replicar-se-á que Shakespeare é para
o público geral e Ésquilo para os estudiosos de uma língua morta;
que a maioria dos homens lê para lazer ou como uma recriação; que,
se as edições de Shakespeare fossem feitas segundo princípios críti­
cos, ficaria por vender. Aqui somos, de seguida, levados à questão de
se haverá vantagem alguma em ler Shakespeare, excepto com o cui­
dado e com o esforço que um clássico exige, e se ele é, de facto, lido
por aqueles a quem semelhante exactidão crítica ofenderia; e, deste
modo, somos induzidos a ulteriores questões sobre o cultivo da
mente e a educação das massas. Surge, ademais, a questão de se a
geral admiração por Shakespeare será genuína, se ela não será uma
simples moda, se a multidão dos homens, de facto, o compreenderá,
se não será verdade que cada um lhe dá muita importância, porque

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 2 77
todos os outros lhe atribuem também importância. Conseguiremos
nós, por acaso, facilitar a leitura de Shakespeare, sobretudo nestes
dias de novelas baratas, graças a tanta correcção do seu texto?
Uma vez estabelecido, por hipótese, este ponto, e posto fora
de causa o texto de 1 623, surge então a pretensão do anotador de
introduzir no texto de Shakespeare a emenda feita na sua cópia da
edição de 1 632; porque é que ele não tem maior autoridade do
que Theobald, o inventor da leitura recebida, e porque não tem a
sua emenda maior autoridade do que a de Theobald? Se importa,
de qualquer modo, rejeitar a leitura corrupta, porque não deveria o
anotador, mais do que Theobald, determinar o seu substituto? Pelo
que sabemos, a autoridade do anotador anónimo pode ser muito
grande. Nada há que mostre que ele não foi contemporâneo do
poeta; se assim for, surge a questão, qual o carácter das suas emen­
das? Serão elas as suas conjecturas privadas e arbitrárias, informa­
ções dos que conheceram Shakespeare, tradições do teatro, dos
actores ou espectadores das suas peças? Eis-nos, pois, enredados
aqui em questões intrincadas, que só podem ser decididas por um
exame minucioso das 20 000 emendas tão cuidadosamente reunidas
por esse crítico anónimo. Mas é óbvio que uma argumentação ver­
bal sobre 20 000 correcções é impossível: tem de haver, primeiro,
processos cuidadosos de leitura, de classificação, de discriminação e
selecção, que são sobretudo actos da mente sem a intervenção da
linguagem. Tem de haver uma acumulação de argumentos de um e
de outro lado, dos quais só os títulos ou os resultados se podem
registar no papel. Em seguida, surgem questões de crítica e de gos­
to, com as suas premissas recônditas e discutíveis, com as subse­
quentes e habituais deduções, subtis e difíceis de seguir. Feitas estas
considerações, estarei enganado ao dizer que, embora a controvér­
sia seja possível e útil em todos os tempos, não é todavia adequada

278 • J o h n H e n ry Newman
para esta ocasião; que a soma do argumento (pró ou contra o anota­
dor) , fornecida pelas suas numerosas emendas - ou o que se pode
chamar o facto multiforme, probatório, em que o exame das emen­
das se converte - requer mais ser fotografado na mente individual
como que por uma impressão do que admitir um esboço para a
satisfação de muitos em qualquer língua conhecida ou possível, por
mais rica que seja no vocabulário e flexível na estrutura?
E, agora, quanto ao terceiro ponto que se apresenta a exame, a
reivindicação da emenda de Theobald para reter o seu lugar no tex­
tus receptus. Espanta-me que um argumento em sua defesa pudesse
ter sido proposto para o efeito seguinte, a saber, que embora seja
verdade que os editores de 1 623 têm uma autoridade muito maior
do que Theobald, e que a leitura do Anotador na passagem em
questão seja provavelmente mais correcta do que a de Theobald,
contudo, a de Theobald adquiriu agora um direito prescritivo ao
seu lugar ali, a prescrição de mais de cem anos; - que a usurpação
se tornou legitimidade; que as palavras de Theobald penetraram
fundo nos corações de milhares; que, de facto, se tornaram as de
Shakespeare; que seria uma inovação perigosa e um mau preceden­
te nelas tocar. Se iniciarmos uma agitação da mente popular, onde
deveremos deter-nos?
Afigura-se assim que, para fazermos justiça à presente questão,
temos de nos dedicar à consideração de mitos, de fraudes piedosas
e de outros assuntos graves, que nos embrenham numa sylva, den­
sa e intrincada, de primeiros princípios e de fenómenos elementa­
res, próprios dos domínios da arqueologia e da teologia. Nem isto
é tudo; a proposta destas noções do dever de truncar um clássico
faz que elas nos abram uma vasta perspectiva de interrogações cép­
ticas que chegam a denegrir as exigências a nós feitas, o génio e a
existência genuína do grande poeta, cuja honra essas noções pre-

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 2 79
tendiam servir. Pois, ao fim e ao cabo, .talvez Shakespeare sej a ape­
nas um amontoado de muitos Theobalds, cada um dos quais com
o direito a ter nele o seu lote. Houve, no seu tempo, uma grande
escola dramática; foi um dos vários artistas de primeira grandeza, -
talvez tenham escrito em comum. Como haveremos de conhecer o
que é seu, ou quanto? São suas as melhores partes ou as piores? Afir­
mou-se que os actores introduziram o que é vulgar e ofensivo nos
seus escritos; inseriram talvez os floreados. Ouvi com insistência, há
já alguns anos, como objecção à autoria de Sheridan das peças que
têm o seu nome, que elas eram entre si muito desiguais; não será
esta a verdadeira peculiaridade das atribuídas a Shakespeare? Seriam
alguma vez os escritos de um só homem tão díspares, tão impes­
soais? Conseguiremos formar, por meio delas, uma ideia verdadeira
do que ele foi na história, no carácter? Não será ele, em suma, vox et
praetera nihi/1 ? Além disso, haverá então, para reforço e apoio, uma
vida de autor tão deficiente em notícias biográficas como a sua?
Sabemos de Hooker, Spenser, Spelman, Raleigh e Harvey, seus con­
temporâneos; que sabemos acerca de Shakespeare? Será ele muito
mais do que um nome? Não será o objecto tradicional da idolatria
de um inglês, ao fim e ao cabo, uma neblina de génio, destinada,
como Homero, a dissolver-se nas suas luminárias isoladas e indepen­
dentes, logo que dispusermos de uma crítica assaz poderosa para o
efeito? Não se pense, nem sequer por um instante, que eu próprio
aprove semelhante cepticislno - embora seja um tema digno da
atenção de uma época céptica: mencionei-o aqui apenas para sugerir
como um rol de palavras chega a constituir um argumento perfeita­
mente válido; como a lógica do bom senso é um caminho curto e
fácil para uma conclusão verdadeira; quão pouco os silogismos têm a

1 «Uma voz e nada mais».

280 • John Henry Newman


ver com a formação da opinião; quão pouco esta depende das provas
inferenciais e muito das crenças e concepções preexistentes em que
os homens entre si ou já concordam ou irremediavelmente discor­
dam, antes do início da discussão, e que estão profundamente ocul­
tas na nossa natureza ou, talvez, nas nossas peculiaridades pessoais.

2. Basta da multiplicidade de pressupostos, que, apesar da exacti­


dão formal, o raciocínio lógico é, em questões concretas, obrigado
a aceitar; basta da incerteza consequente que diz respeito às suas
conclusões. Abordo, agora, a segunda razão por que as suas con­
clusões carecem de precisão.
No mundo dos sentidos, lidamos mais com coisas do que com
noções. Não estamos solitários, abandonados à contemplação dos
nossos próprios pensamentos e aos seus desenvolvimentos legíti­
mos. Estamos rodeados de seres externos, e as nossas enunciações
dirigem-se ao concreto. Raciocinamos a fim de alargar o nosso
conhecimento de matérias que não dependem de nós para serem o
que são. Mas como é que um exercício da mente, que quase sem­
pre se ocupa de noções, não de coisas, é competente para lidar
com coisas, a não ser de um modo parcial e indirecto? Eis a princi­
pal razão por que uma inferência, embora plenamente verbalizada
(excepto, talvez, em certos casos peculiares, que aqui estão fora de
lugar) , nunca pode chegar a estabelecer um facto. Como já afirmei,
os argumentos acerca do abstracto não podem lidar com e deter­
minar o concreto. Podem acercar-se de uma prova, mas apenas
atingem o provável, porque não conseguem chegar ao particular.
Até na física matemática se deixa uma margem para a possível
imperfeição presente na pesquisa. Quando se descobriu o planeta
Neptuno, viu-se, com razão, como um triunfo da ciência que os

U m a G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 28!
raciocínios abstractos tanto tenham feito para determinar o plane­
ta e a sua órbita. Não teria havido triunfo no êxito, se não tivesse
existido o risco do fiasco; não é um triunfo de Euclides, na mate­
mática pura, que as conclusões geométricas do seu segundo livro
possam ser elaboradas e verificadas pela álgebra.
Os movimentos dos corpos celestes são quase matemáticos na
sua precisão; mas há uma multidão de assuntos, a que se aplica a
ciência matemática, que na sua natureza são intrincados e obscuros e
exigem que o raciocínio, de acordo com a regra, seja completado
pela mente viva. Quem se satisfaria com um navegador ou um enge­
nheiro, sem prática ou experiência para levar a cabo as suas conclu­
sões científicas no concreto e no real, a partir do seu abstracto
congénito? Qual o significado da desconfiança, que habitualmente
se sente, frente aos especuladores e aos teóricos a não ser porque eles
estão mortos para a necessidade da prudência pessoal e do juízo na
qualificação e no adimplemerito da sua lógica? A ciência, trabalhan­
do por si mesma, alcança a verdade no abstracto e a probabilidade
no concreto; mas o que intentamos é a verdade no concreto.
Isto verifica-se noutras inferências, além das matemáticas. Elas
só chegam a conclusões definidas acerca de questões de facto, se
forem eficientes no seu propósito, graças à inteligência viva que
delas se serve. «Todos os homens têm o seu preço; Fabricius é um
homem: logo, tem o seu preço»; mas ele não teve o seu preço;
como assim? Porque é mais do que um universal; porque se inclui
noutros universais; porque os universais estão sempre em guerra
uns com os outros; porque o que se chama universal é apenas um
geral; porque o que é somente geral não induz a uma conclusão
necessária. Façamos dele um juízo mediante outro universal. «Üs
homens têm consciência; Fabricius é um homem; logo, tem cons­
ciência». Até dispormos da experiência efectiva de Fabricius, pode-

282 • J o h n H e n ry N e w m a n
mos apenas dizer que, visto ser ele um homem, talvez venha, ou
não, a aceitar um suborno. Latet dolus in generalibusI ; os gerais são
arbitrários e falaciosos, se os tomarmos por mais do que perspecti­
vas e aspectos amplos das coisas, servindo-nos de notas e de indica­
ções para julgar do particular, mas não afectando e determinando
absolutamente os factos.
Surjam, primeiro, as unidades e, depois, os (chamados) univer­
sais; estejam os universais ao serviço das unidades, não se sacrifi­
quem as unidades aos universais. João, Ricardo e Roberto são coisas
individuais, independentes, incomunicáveis. É possível entre eles
encontrar um tipo de medida comum, dar-lhe o nome de homem, o
homem enquanto tal, o homem típico, o auto-anthropos. Contenta­
mo-nos com isto, com revesti-lo de atributos gerais, com outorgar­
lhe o que consideramos uma definição. Pensamos, porém, que
podemos ir em frente e impor a nossa definição a toda a raça, a
todos os seus membros, a milhares de Joões, Ricardos e Robertos
que nela estão incluídos. Não; cada um deles é, apesar de tudo, o
que é. Nenhum deles é o homem enquanto tal, nem coincide com o
auto-anthropos. Outro João qualquer não é necessariamente racional
porque «todos os homens são racionais», pois pode ser um idiota;
nem porque «O homem é um ser de progresso» progride o segundo
Ricardo, pois pode ser um imbecil; nem porque «o homem é feito
para a sociedade», deveremos negar que o segundo Roberto é um
cigano ou um bandido, como se vem a descobrir que é. Não existe
algo como a humanidade estereotipada; ela será sempre uma ideia
vaga, incorpórea, porque as unidades concretas que a constituem
são realidades independentes. As leis gerais não são verdades inviolá­
veis; muito menos são causas necessárias. Visto que, regra geral, os

1 «Há sempre dolo nas generalidades».

U m a G r a m á t i c a do Ass e n d m e n t o • 283
homens são racionais, progressivos e sodais, existe uma elevada pro­
babilidade de esta regra ser verdadeira no caso de uma pessoa par­
ticular; mas temos de conhecê-la, para de tal estarmos certos.
Cada coisa tem a sua própria natureza e a sua própria história.
Quando a natureza e a história de muitas coisas são similares, dize­
mos que têm a mesma natureza; mas não existe algo como uma só e a
mesma natureza; cada uma delas é ela própria, não são idênticas, mas
semelhantes. Uma lei não é um facto, mas uma noção. «Todos os
homens morrem; por conseguinte, Elias morreu»; mas, de facto, não
morreu. Foi uma excepção à lei geral da humanidade; pelo menos,
não foi abrangido por esta lei, mas pela lei (por assim dizer) de Elias.
A peculiaridade da sua individualidade foi ter deixado o mundo, sem
morrer: que direito temos para sujeitar a pessoa de Elias à noção cien­
tífica de uma humanidade abstracta, que elaborámos, sem pedir a sua
autorização? Porque é que a maioria tirana tem de criar uma regra
para a sua história individual? «Mas todos os homens são mortais?»
Não é bem assim; o que realmente se pretende dizer com este univer­
sal é que «O homem, enquanto tal, é mortal», isto é, o auto-anthropos
abstracto, típico; frente a esta premissa maior, a menor, se Elias é
comprovadamente mortal, deveria ser, «Elias era o homem abstrac­
to»; mas não era, e não poderia ser, nem ninguém mais poderia ser,
da mesma forma que o homem médio de uma Companhia de Segu­
ros não é cada homem individual que nela faz um seguro de vida.
Semelhante silogismo nada demonstra acerca do verdadeiro Elias,
excepto no modo da probabilidade antecedente. Se se disser que Elias
foi isento da morte, não por natureza, mas por milagre, que tem isto
a ver com o caso, em si inegável? Contudo, gozar desta isenção mira­
culosa foi a prerrogativa pessoal de Elias. Chamamos-lhe milagre,
porque Deus, habitualmente, actua de outro modo. Ele, que em geral
faz os homens morrer, concedeu a Elias não morrer. Este dom mira-

284 • J o h n Henry Newman


culoso faz parte da individualidade de Elias. Na sua individualidade é
que devemos fixar os nossos pensamentos, e não encetar a noção que
dele temos, ignorando-o. Ele foi um homem, e algo mais do que
«homem»; se não tivermos isto em conta, caímos num erro inicial
nos nossos pensamentos a seu respeito.
O que se verifica com Elias verifica-se com cada um, no seu
lugar e no seu grau. Chamamos racionalidade à distinção do ho­
mem, quando comparado com os outros animais. Isto é verdade na
lógica; mas, de facto, um homem difere de um animal, não só na
racionalidade, mas em tudo o que ele é, inclusive nos aspectos em
que mais se assemelha a um animal; pelo que todo o seu Si mesmo,
os seus ossos, os seus membros, a sua aparência, a sua vida, a sua
razão, o seu sentimento moral, a sua mortalidade, tudo o que ade­
mais ele é constitui a sua differentia real, em contraste com um cava­
lo ou um cão. E, de igual modo, no tocante a João e a Ricardo,
quando entre si comparados; cada um é ele próprio, e nada mais;
embora, olhados abstractamente, se possa dizer que os dois têm algo
em comum (a saber, a identidade abstracta que não existe), todavia,
falando com rigor, nada têm em comum, porque cada um deles tem
um interesse especial em tudo o que ele próprio é; ademais, o que
em ambos parece ser comum torna-se, de facto, tão incomum, tão
sui simile, nas suas individualidades respectivas - a estrutura corpo­
ral de cada um é tão discriminada de todos os outros corpos pela sua
constituição especial, forte ou fraca, pela sua vitalidade, pela activi­
dade, pela história patológica e pelas mudanças e, ainda, a mente de
cada um é tão distinta de todas as outras mentes na disposição, nos
poderes e nos hábitos - que, em vez de dizer, como fazem os lógi­
cos, os dois homens diferem somente no número, devemos, repito,
dizer antes que diferem entre si em tudo aquilo que eles são, na
identidade, na incomunicabilidade, na personalidade.

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 28 5
Nenhuma coisa real suporta, mediante o cálculo da lógica, ser
dissecada em todas as noções gerais possíveis que admite nem, portan­
to, ser a partir delas recomposta; embora a tentativa de assim a tratar
seja menos prometedora em proporção à complexidade e à integrali­
dade da sua maneira de ser. Não conseguimos enxergar através de
qualquer um dos inumeráveis seres que constituem o universo ou for­
necem o catálogo completo das suas posses. De facto, estamos, e com
razão, acostumados a falar do próprio Criador como incompreensível;
e, na verdade, Ele é assim por um atributo incomunicável; mas, de
cena maneira, também cada uma das suas criaturas nos é incom­
preensível, no sentido de que ninguém tem delas uma compreensão
perfeita, a não ser Ele. Reconhecemos e apropriamo-nos de aspectos
seus, e a lógica é-nos útil para registar esses aspectos e o que eles
implicam; mas não nos concede conhecer sequer um ser individual.
O mesmo se diga da argumentação lógica; ao falar assim do
silogismo, refiro-rne a quaisquer processos inferenciais, enquanto
expressos na linguagem (se forem de molde a que se possam redu­
zir à ciência) , porque todos requerem noções gerais como condi­
ções para obter uma conclusão.
Assim, no argumento dedutivo, <<A Europa não tem nenhuma
garantia de paz, enquanto os seus grandes exércitos permanentes
não forem reduzidos em cada Estado isolado; logo, um grande
exército permanente é, na sua própria ideia, uma provocação à
guerra», a conclusão é apenas provável, pois pode acontecer que
em nenhum país se tenha realizado esta pura ideia, antes, em cada
país, no facto concreto, pode haver circunstâncias, políticas ou
sociais, que eliminam a perigosidade abstracta.
Assim também, no tocante à Indução e à Analogia, enquanto
modos de Inferência; pois, se argumento, «Este lugar terá a cólera, a
não ser que seja drenado; pois há muitos casos certificados que apon-

28 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
tam para esta conclusão»; ou «Ü sol levantar-se-á amanhã, porque se
levantou hoje»; em ambos os métodos de raciocínio apelo, em vista
da demonstração de um caso particular, para um princípio ou lei
geral, que não tem força suficiente para garantir mais do que uma
conclusão provável. Quanto à cólera, o lugar em questão pode ter
certas vantagens antagónicas, que antecipam ou neutralizam o mias­
ma, que é o princípio do veneno; e quanto ao nascer do sol amanhã,
houve um primeiro dia do nascer do sol e, por conseguinte, pode
haver um último.

Eis o que tenho a dizer sobre a Inferência formal, quando suposta­


mente representa o Raciocinamento. A ciência, em todos os seus
departamentos, tem uma simplicidade e uma exactidão excessiva, a
partir da natureza do caso, para ser a medida do facto. Na sua
genuína perfeição reside a sua incompetência para estabelecer as
particularidades e os pormenores. Quanto à Lógica, a sua cadeia de
conclusões é frouxa nos dois extremos; o ponto onde deveria começar
a demonstração e os pontos a que deveria chegar estão fora do seu
alcance; carece de primeiros princípios e de resultados concretos.
Até mesmo as suas exibições mais elaboradas não conseguem repre­
sentar adequadamente a soma total das considerações pelas quais
uma mente individual é determinada no seu juízo das coisas; inclusi­
ve, as suas combinações mais cuidadosas, feitas para se apoiar numa
conclusão, carecem da firmeza de objectivo, que é necessária para o
alcançar. Como afirmei no início, o pensamento é demasiado vivo
e múltiplo, as suas fontes são demasiado remotas e ocultas, a sua
senda demasiado pessoal, delicada e tortuosa, o seu tema demasia­
do díspar e intrincado, para aceitar os empecilhos de qualquer lin­
guagem, seja qual for a sua subtileza ou o seu limite.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 28 7
Nem constitui qualquer depreciação do valor peculiar dos racio­
cínios formais falar assim deles. Que não podem ir além das probabi­
lidades é aceite, com a máxima prontidão, por aqueles que mais os
empregam. Filósofos, experimentalistas, advogados, nos seus diversos
modos, têm em comum a reputação de resistirem à crença, pelo
menos em temas morais e religiosos; pois, ao lançarem mão, na inves­
tigação necessária, ao método analítico da inferência verbal, não
encontram, dentro dos seus limites, recursos suficientes para chegar a
uma conclusão. Além disso, nem sempre, cada qual por si, acha isso
possível no seu campo especial; pois, mesmo quando nos seus cora­
ções não têm dúvida acerca de uma conclusão, ainda então, muitas
vezes, em virtude do hábito das suas mentes, são relutantes em acatá­
-la, e insistem nas deficiências da prova ou na possibilidade de erro,
porque falam segundo o regulamento e de acordo com o código,
embora julguem e determinem de harmonia com o senso comum.
Todo o exercício da natureza ou da arte é bom no seu lugar; e
são múltiplos os usos desta inferência lógica. É o grande princípio
da ordem no nosso pensamento; reduz um caos à harmonia; cata­
loga as acumulações do conhecimento; organiza para nós as rela­
ções dos seus departamentos separados; põe-nos no caminho para
corrigir os seus erros. Capacita os intelectos independentes de mui­
tos, agindo e reagindo reciprocamente, para a sua força colectiva
num só e mesmo assunto ou na mesma questão. Se a linguagem é
um dom inestimável do homem, a faculdade lógica prepara-a para
o nosso uso. Embora não chegue a estabelecer a verdade, ensina­
-nos, contudo, a direcção em que reside a verdade, e como as pro­
posições se apoiam umas às outras. Nem é benefício pequeno
conhecer o que é, ou não, provável, o que é necessário para a prova
de um determinado ponto, qual a deficiência de uma teoria, qual a
sua consistência, o que se seguirá, se ela for aceite. Embora ela não

288 • J o h n Henry Newman


descubra por si mesma o desconhecido, é um caminho fundamen­
tal para fazer descobertas. Além disso, o decurso do argumento,
simplesmente condicional, indicará quando e onde se deverá apli­
car o experimento e a observação, onde se deverá buscar um teste­
munho, como muitas vezes acontece nas questões físicas e legais.
Uma hipótese lógica é o meio de associar factos, de explicar dificul­
dades e de reconciliar a imaginação com aquilo que é estranho. E,
ainda, os processos da lógica são úteis, porque nos ajudam a saltar,
com rapidez e segurança, os estádios particulares de uma investiga­
ção, tal como numa jornada, de vez em quando, poupamos tempo
ao viajarmos de noite, vamos por atalhos quando o caminho ser­
penteia ou optamos pela navegação, a fim de evitarmos o cansaço.
Mas raciocinar segundo o regulamento e com palavras é-nos
demasiado natural para ser suficiente olhá-lo só à luz da utilidade.
As nossas indagações enveredam espontaneamente pela sequência
científica, pensamos em lógica, como falamos em prosa, sem prestar
atenção ao que fazemos. Por mais seguros que estejamos da exacti­
dão das nossas conclusões instintivas, pomo-las espontaneamente
em palavras, tanto quanto podemos; como que preferindo, se pos­
sível, tê-las numa estrutura objectiva à qual podemos recorrer -
primeiro, para nossa própria satisfação, em seguida, para a nossa
justificação frente aos outros. Esta defesa tangível do que afirmamos,
embora necessariamente inadequada, considerada como uma análise
do nosso raciocínio na sua extensão e amplitude, está, contudo, de
tal maneira associada às nossas crenças, e de tal maneira as fortifica e
ilustra, que actua como uma apreensão viva, dando-lhes luminosida­
de e força. A inferência torna-se assim uma espécie de símbolo do
assentimento e influencia, inclusive, a acção.
Alarguei-me a propósito destas considerações óbvias, para não
suscitar a aparência de um paradoxo; mas elas não enfraquecem a

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 28 9
posição nuclear desta secção, a saber, qüe a Inferência, considerada
no sentido de argumentação verbal, não determina nem os nossos
princípios nem os nossos juízos últimos - que ela não é nem o
teste da verdade nem a base adequada do assentimento! .

2 . I n fe r ê n c i a i n fo r m al

É evidente que a sequência lógica formal não é, de facto, o método


pelo qual conseguimos certificar-nos do que é concreto; claro é
também, a partir das sugestões já feitas, o que é o método real e
necessário. É a acumulação de probabilidades, entre si indepen­
dentes, que emergem da natureza e das circunstâncias do caso par­
ticular sujeito a exame; probabilidades demasiado finas para avaliar
em separado, demasiado subtis e tortuosas para se converterem em
silogismos, demasiado numerosas e díspares para semelhante con-

1 Pressupus, nesta secção, que toda a argumentação verbal é, em úlcima análise, silogíscica;

que, por conseguinte, nunca exige proposições universais e, ademais, carece de factos concretos. Um
amigo remete-me para a disputa entre Descartes e Gassendi; este reivindica contra o primeiro que o
Cogito ergo sum implica o universal «Todos os que pensam existem». Negarei que cal aconteça com
Descartes; mas diria (como, de facto, disse) que este dictum não era um argumento, antes a expres­
são de um instinto raciocinante, como explico à frente sob o título «Lógica Natural».
Quanto ao exemplo «Üs animais não são homens; logo, os homens não são animais», parece­
-me não haver aqui consequência alguma, nem um praeter nem um propter, mas uma tautologia. E o
exemplo «Foi o Tomás ou o Diogo que fez isco; não foi o Diogo, erg0» refere-se, porventura, a um
grande princípio em que assenta todo o raciocínio lógico, mas, na realidade, não se deve ter por uma
inferência, como também não se trata de uma inferência, se eu partir um biscoito, deitar fora a
metade e, em seguida, disser acerca da outra metade, «Eis o que resta•. Ele enuncia somente um fac­
to. Por isso, quandó a primeira, a segunda ou a terceira proposição de Euclides se apresentam num
diagrama, um estudante, ainda antes de ter aprendido a raciocinar, vê com os seus olhos o facto da
tese, e este ver coma-lhe mais difícil dominar a prova matemática. Aqui, pois, enuncia-se um facto
na forma de um argumento.
Todavia, inseri um parêntesis nas páginas 2 8 1 e 287, a fim de dizer transeat à questão.

290 • J o h n H e n ry N e w m a n
versão, mesmo que fossem convertíveis. Assim como o retrato de
um homem difere de um esboço seu, por ter um traçado contínuo e,
ademais, todos os seus pormenores preenchidos, matizes e pormeno­
res aplicados e harmonizados em conjunto, assim é igualmente o
multiforme e intrincado processo de raciocinação, necessário para a
apreensão que dele temos como um facto concreto, comparado com
a rude operação do tratamento silogístico.
Suponhamos que pretendo converter um Protestante educado
e ponderado; apresento, por conseguinte, em vista da sua aceita­
ção, um silogismo do tipo seguinte: «Todos os Protestantes estão
obrigados a entrar na Igreja; és Protestante: ergo-». Responderá ele,
diremos, negando ambas as premissas; e fá-lo mediante argumen­
tos que se ramificam noutros argumentos, e estes noutros, e todos
exigindo diversamente ser por ele considerados de acordo com os
seus próprios méritos, antes de o silogismo o afectar; por conse­
guinte, tomados em conjunto, avolumam-se até formar um grupo
de exercícios inferenciais, longo e diferenciado, para lá de todo o
cálculo. Além disso, ele está obrigado a sujeitar-se a este complica­
do processo em virtude da natureza do caso; agiria temerariamente,
se assim não procedesse; pois é uma unidade individual concreta e,
enquanto tal, encontra-se sob tantas leis, e é o sujeito de tantas
predicações simultâneas, que não consegue determinar, de repente,
a sua posição e a sua conduta pela lei e pela predicação de um só
silogismo em particular. Poderá, julgo eu, dizer honestamente Dis­
tinguo a cada uma das suas premissas: dirá «Üs Protestantes estão
obrigados a aderir à Igreja - sob certas circunstâncias» e «Sou Pro­
testante - num certo sentido»; portanto, o silogismo, à primeira
vista, de nenhum modo o afecta.
Em seguida, antes de conceder a maior, pergunta se todos os
Protestantes estarão realmente obrigados a aderir à Igreja - esta-

U m a G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n c o • 29 l
rão obrigados, no caso de não se sentirem obrigados; se estiverem
convencidos de que a sua religião presente é correcta; se estiverem
seguros de que é verdadeira; e se, por outro lado, tiverem graves
dúvidas a propósito da fidelidade e da pureza doutrinais da Igreja; se
estiverem persuadidos de que a Igreja é corrupta; se a sua consciên­
cia rejeitar instintivamente algumas das suas doutrinas; se a história
os convencer de que o poder do Papa não é jure divino, mas somente
da ordem da Providência? E se, de novo, se encontrarem num país
pagão onde não há sacerdotes? Ou onde o único sacerdote existente
exigir deles, como condição da sua aceitação, uma confissão, a cujo
respeito nada diz o Credo de Papa N; por exemplo, que a Santa Sé é
falível, mesmo quando ensina, ou que o Poder Temporal é uma cor­
rupção anti-cristã? Na base de qualquer destas razões, não verá como
necessário mudar a sua religião; mas, presentemente interroga-se:
poderá um Protestante encontrar-se numa situação tal que esteja
realmente satisfeito com a sua religião, como justamente até agora
professou? Poderá ele, possivelmente, acreditar que o Protestantismo
dimanou de cima, como um todo? Em que medida poderá acreditar
que ele veio do alto? E, relativamente à parte que, na sua opinião,
veio do alto, não proveio ela toda da Igreja, quando investigou a sua
origem? Não será o Protestantismo em si mesmo uma negação? Não
existiu a Igreja, antes dele? E, por outro lado, poderá ele estar certo
de que qualquer uma das doutrinas da Igreja não veio do alto? Des­
cobrirá, ademais, que tem de assestar a sua mente sobre o que é uma
corrupção, e sobre quais são os seus testes; sobre o que ele entende
por uma religião; se será obrigatório professar alguma religião em
particular; sobre quais os padrões da verdade e da falsidade na reli­
gião, e quais as pretensões especiais da Igreja.
E assim também, quanto à premissa menor, responderá talvez
que ele não é Protestante; que é um Católico da primitiva Igreja

29 2 • J o h n H e n ry N e w m a n
não dividida; que é Católico, mas não papista. Em seguida, terá de
determinar questões acerca da divisão, do cisma, da unidade visí­
vel, do que é essencial, do que é desejável; acerca de estados provi­
sórios; acerca do ajustamento das pretensões da Igreja com as do
juízo e responsabilidade pessoais. E a propósito da alma da Igreja
comparada com o corpo; acerca dos graus da prova e do grau
necessário para a sua conversão; em relação àquilo que se denomi­
na a sua posição providencial e à responsabilidade da mudança;
acerca da sinceridade do seu propósito de seguir a vontade divina,
leve ela onde levar; acerca da sua capacidade intelectual de investi­
gar tais questões.
Nenhuma dessas questões, tal como se lhe apresentam, admite
uma demonstração simples; mas cada uma traz consigo um número
de argumentos prováveis independentes, suficientes, quando unidos,
para uma conclusão razoável a seu respeito. E, primeiro, determinará
ele que as questões são de tal jaez que, pessoalmente, com os seus
talentos ou predicados, as consegue considerar com honestidade;
em seguida, encaminhar-se-á, após deliberações, para formar um
juízo definitivo acerca delas; e determiná-las-á, de uma ou de outra
maneira, na sua relação com o árido silogismo que, originariamente,
foi proposto à sua aceitação. E, diremos, ele chegará à conclusão de
que, no seu caso, o deveria aceitar como verdadeiro; que ele é, neste
sentido, um Protestante, de tal compleição, de tal conhecimento,
sob tais circunstâncias, que poderá ser intimado pelo dever a aderir à
Igreja; que esta é uma conclusão de que ele poderá, e deveria, estar
certo, e que incorreria numa grave responsabilidade, se não o aceitar
como certo e agir na base da certeza a seu respeito. E, como é evi­
dente, não chegará a esta conclusão em virtude de uma enumeração
verbal possível de todas as considerações, pequenas mas abundantes,
delicadas mas eficazes, que se unem para a ela o levar; mas graças a

U m a G r a m á t i c a do Ass e n c i m e n c o • 29 3
uma compreensão mental de todo o caso, de um discernimento do
seu resultado, às vezes após muitas deliberações; porventura, me­
diante um acto claro e súbito do intelecto, sempre, todavia, em vir­
tude de um resumo não-escrito, de algo semelhante à soma dos
termos, plus ou minus de uma série algébrica.
Tal é, creio eu, o método real do raciocínio em questões con­
cretas. E tem as características seguintes: primeiro, não substitui a
forma lógica da inferência, antes é uma só e a mesma coisa com
ela; simplesmente, já não é uma abstracção, mas penetrou nas rea­
lidades da vida, já que as suas premissas são o instinto com a subs­
tância e o momento da massa de probabilidades que, actuando
umas sobre as outras como correcção e confirmação, clarificam
definitivamente o caso individual, que é o seu escopo original.
Em seguida, a partir do que se afirmou, é claro que semelhan­
te processo de raciocínio é mais ou menos implícito, sem a adver­
tência directa e plena da mente que o executa. Assim como pelo
uso da nossa visão reconhecemos dois irmãos, sem contudo conse­
guirmos expressar aquilo por que os distinguimos; assim como, à
primeira vista, talvez os confundamos, mas, com um conhecimen­
to mais apurado, acabamos por não vislumbrar entre eles seme­
lhança alguma; assim como se necessita do olho de um artista para
determinar que linhas e cambiantes fazem uma feição parecer
jovem ou velha, amistosa, pensativa, irada ou vaidosa, já que o
princípio da discriminação é em cada caso real, mas implícito; assim
também a mente é inadequada para uma análise completa dos
motivos que a induzem a uma conclusão particular, e é influencia­
da e determinada por um corpo de provas, que ela reconhece ape­
nas como um corpo, e não nas suas partes constitutivas.
Em terceiro lugar, é claro que, na investigação do método da
inferência concreta, não avançámos um passo para destituir a infe-

294 • J o h n H e n ry N e w m a n
rência do seu carácter condicional; pois ela é ainda tão dependente
das premissas como o é na sua ideia elementar. Pelo contrário,
aumentámos até a obscuridade do problema; um silogismo é, pelo
menos, uma demonstração, quando se aceitam as premissas, mas
uma acumulação de probabilidades, para lá e acima do seu carácter
implícito, variará no seu número e no seu valor estimado isolado,
em conformidade com o intelecto particular que a ela se aplica.
Por conseguinte, aquilo que para um intelecto é uma prova não o é
para outro, e a certeza de uma proposição não consiste, em rigor,
na certeza da mente que a considera. E isto pode, naturalmente,
dizer-se sem dano da verdade ou falsidade objectivas das proposi­
ções; de facto, não se segue que estas proposições não sejam verda­
deiras e baseadas na recta razão, e aquelas não sejam falsas e
baseadas na falsa razão, porque nem todos os homens as discrimi­
nam da mesma maneira.
Uma vez explicada a concepção que eu teria do raciocínio no
concreto, a saber, que, a partir da natureza do caso e da constitui­
ção da mente humana, a certeza é o resultado de argumentos que,
tomados à letra, e não no seu pleno sentido implícito, são apenas
probabilidades, continuarei ainda a insistir em alguns exemplos e
nas circunstâncias de um fenómeno que se me afigura tão inegável
como, para muitos, poderá ser uma fonte de perplexidade.

I. Tomemos três exemplos que se inscrevem respectivamente no

presente, no passado e no futuro.


1 . Estamos todos absolutamente certos, para lá da possibilida­
de de dúvida, de que a Grã-Bretanha é uma ilha. Damos a esta
proposição a nossa decisão deliberada e incondicional. Não há segu­
rança a cujo respeito poderíamos estar mais contentes para delimi-

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 29 5
tar os nossos interesses, a nossa propriedade, o nosso bem-estar, do
que no facto de vivermos numa ilha. Não receamos nenhuma des­
coberta geográfica que possa destruir a nossa certeza. Acharíamos
graça ou agastar-nos-íamos com a asserção, qual piada de mau gos­
to, se alguém dissesse que estávamos agora unidos ao continente
na Noruega ou na França, embora com um canal ao longo do
istmo. Estamos tão pouco expostos à dúvida, «Talvez não habite­
mos, ao fim e ao cabo, numa ilha» como à questão «Será certo que
o ângulo num semi-círculo é um ângulo recto?» É para nós uma
verdade simples e primária, se é que uma verdade é assim; crer é
um exercício de assentimento tão legítimo como legítimos são os
exercícios da dúvida ou da opinião. Esta é a posição das nossas
mentes em relação à nossa insularidade; todavia, serão os argumen­
tos que a ela se podem apresentar a preto e branco (para usar uma
expressão comum) ajustados a esta certeza poderosa a seu respeito?
As nossas razões para crer que somos circum-navegáveis são
como estas: primeiro, ensinaram-nos assim na nossa infância e
assim é em todos os mapas; em seguida, nunca ouvimos qualquer
afirmação contrária ou impugnação; pelo contrário, todos os que
ouvimos a falar da Grã-Bretanha, cada livro que lemos, asseriram
invariavelmente o mesmo a tal respeito; toda a nossa história
nacional, as transacções de rotina e os acontecimentos correntes do
país, o nosso sistema social e as nossas relações políticas com os
estrangeiros se fundam, de uma ou de outra forma, neste pressu­
posto. Factos inumeráveis, ou o que temos por factos, assentam em
semelhante verdade. E nenhum facto recebido se baseia no seu
contrário. Se há alguma ligação entre nós e o continente, onde se
encontra? E como a conhecemos? É no norte ou no sul? Existe
uma manifesta reductio ad absurdum associada à noção de que
podemos, num ponto como este, estar enganados.

29 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
Todavia, argumentos negativos e provas circunstanc1a1s não
são, em semelhante assunto, tudo o que temos o direito a exigir.
Não são o tipo mais elevado de prova possível. Os que circum­
-navegaram a ilha têm um direito a estar certos: alguma vez encon­
trámos alguém que o tenha feito? E quanto à crença comum, qual
é a prova de que nem todos acreditamos nela, na base do crédito
recíproco? E, em seguida, quando se diz que todos nela crêem, e
tudo a implica, até que ponto esclareço pessoalmente este «todos»
e «tudo»? A questão é, Porque é que eu próprio nela acredito? Diz­
-se de um estadista vivo que imaginou Demerara como uma ilha; a
sua crença era uma impressão; teremos, pessoalmente, mais do que
uma impressão, se virmos a questão argumentativamente, uma
impressão vitalícia acerca da Grã-Bretanha, como a crença, recebi­
da durante tanto tempo e de modo tão amplo, de que a terra era
imóvel e o sol girava à volta dela? Não estou de modo algum a
insinuar que não somos racionais na nossa certeza; quero apenas
dizer que não podemos analisar satisfatoriamente uma prova, cujo
resultado o bom senso efectivamente nos garante.
2. O padre Hardouin afirmou que as peças de Terêncio, a «Enei­
da» de Virgílio, as Odes de Horácio e as Histórias de Lívio e de Táci­
to eram falsificações dos monges do século XIII. Que ele conseguisse
argumentar em prol de semelhante posição mostra, naturalmente,
que a prova a favor da opinião recebida não é esmagadora. Ou seja,
não temos meio algum de inferir absolutamente que o episódio de
Dido de Virgílio, ou o Te quoque mensorem e o Quem tu Melpomene
de Horácio, pertencem à era de Augusto, a qual deve a sua celebri­
dade sobretudo àqueles poetas. Todavia, o nosso senso comum acre­
dita na sua genuinidade sem qualquer hesitação ou reserva, como
se tivesse sido demonstrado, e não em proporção aos dados dispo­
níveis a seu favor, ou ao equilíbrio dos argumentos.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n to • 29 7
À primeira vista, isto basta - mas' quais as nossas razões para
assim rejeitar sumariamente, como talvez devamos fazer, uma teo­
ria como a de Hardouin? Advirta-se, primeiro, que todo o conhe­
cimento dos clássicos latinos nos vem das suas transcrições
medievais, e que aqueles que os transcreveram tiveram a oportuni­
dade de os forjar ou alterar. Estamos simplesmente à sua mercê;
pois não foi por transmissão oral, nem por inscrições monumen­
tais, nem por manuscritos contemporâneos que as obras de Virgí­
lio, Horácio, Terêncio, Lívio e Tácito chegaram ao nosso
conhecimento. As cópias existentes, sempre que feitas, são para
nós os originais autográficos. Em seguida, importa considerar que
os numerosos corpos religiosos, er:itão existindo na Europa, tinham
assaz tempo livre, no decurso de um século, para compor não só
todos os clássicos, mas também os Padres da Igreja. A questão é se
teriam capacidade para tal. Este é o ponto principal à volta do qual
gira a investigação ou, pelo menos, o mais óbvio; e constitui um
dos argumentos que, a partir da natureza do caso, são mais senti­
dos do que convertíveis em silogismos. Hardouin admite que as
Geórgicas, as Sdtiras e as Cartas de Horácio, a totalidade de Cícero,
são genuínas: temos, assim, um padrão nestas composições indis­
cutíveis da era de Augusto. Dispomos, portanto, nas obras medie­
vais, de um padrão daquilo que o século XIII poderia fazer; e
vemos de imediato em que ampla medida as obras discutidas dife­
rem das medievais. Ora bem, poderia o século XIII simular melhor
os escritores augustanos do que estes conseguiriam forjar escritores
como os do século XIII? Não. Talvez a questão, quando o assunto
se submete a um exame crítico, se possa encaminhar para um des­
fecho mais simples; mas, quanto às nossas razões pessoais para
aceitar como genuína a totalidade de Virgílio, de Horácio, de Táci­
to e Terêncio, elas resumem-se na nossa convicção de que os mon-

29 8 • J o h n H e n ry N e w m a n
ges não tinham a capacidade de as escrever. Isto é, temos por
garantido que dispomos de informação suficiente acerca das capa­
cidades da mente humana e das condições do génio para estarmos
inteiramente certos de que uma idade, fértil em grandes ideias e
em elementos momentosos do futuro, robusta no pensamento,
esperançosa nas suas antecipações, de singular curiosidade e acú­
men intelectuais e de génio elevado em, pelo menos, uma das
Belas Artes, não poderia, pela genuína razão da sua preeminência
na sua linha própria, possuir uma preeminência análoga noutra
orientação contrária. Não temos a pretensão de ser capazes de tra­
çar a linha divisória entre o que o intelecto medieval conseguiria,
ou não, fazer; mas sentimo-nos seguros de que, pelo menos, ele
não poderia escrever os clássicos. Um sentido instintivo a tal res­
peito e uma fé no testemunho são o argumento suficiente, mas
não desentranhado, em que é possível fundar a nossa certeza.
Acrescentarei que, se lidarmos apenas com argumentos à letra,
a questão da autoria das obras apresenta, de qualquer modo, uma
grande dificuldade. Fi-lo notar no exemplo de Shakespeare e de
Newton. Todos estamos certos de que Johnson escreveu a prosa de
Johnson, e Pope a poesia de Pope; mas que existe aí além da mera
prescrição, pelo menos após a morte dos contemporâneos, de asso­
ciar o autor da obra e o detentor do nome? Os nossos advogados .
preferem o exame das testemunhas presenciais aos depoimentos
escritos no papel; mas a tradição dos testimonia, tal como estão
prefixados aos clássicos e aos Padres da Igreja, juntamente com a
ausência de vozes dissidentes, é o fundamento adequado da nossa
crença na história da literatura.
3 . Mais uma vez: quais as minhas razões para pensar que eu,
no meu próprio caso, hei-de morrer? Estou disso tão certo, no
mais íntimo da minha mente, como estou consciente de que agora

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 29 9
vivo; mas qual a prova distinta em cuja base aceito eu próprio estar
certo? Que diria ela num tribunal? Como me sairia eu num inter­
rogatório acerca dos motivos da minha certeza? Não posso, decer­
to, ter uma demonstração de um evento futuro, a não ser por meio
de uma Voz Divina; mas que defesa lógica posso fazer a favor desta
sua antecipação indubitável, obstinada, da qual me não consegui­
ria libertar, se tentasse?
Antes de mais, o futuro não se pode demonstrar a posteriori;
somos, pois, compelidos pela natureza do caso a apresentar argu­
mentos a priori, isto é, com probabilidade antecedente, que por si
mesma não é uma demonstração lógica. Dizem-me os homens que
há uma lei da morte, e por lei querem dizer necessidade; e respondo
que eles lançam poeira nos meus olhos, oferecendo-me palavras em
vez de coisas. Que é uma lei, a não ser um facto generalizado? E que
poder tem o passado sobre o futuro? E que poder tem o caso dos
outros sobre o meu próprio caso? E a quantas mortes assisti eu?
Quantas testemunhas oculares me participaram a sua experiência de
mortes, suficientes para estabelecer o que se tem por uma lei?
Mas admitamos que há uma lei da morte; existe uma lei,
dizem-nos, de que os planetas, abandonados a si mesmos, se preci­
pitariam diversamente no sol - a lei centrífuga é que tal impede;
e, por isso, a lei centrípta nunca é levada a cabo. De igual modo,
não estou apenas sob a lei da morte, estou sujeito a milhares de
leis, se me encontro exposto ao império de uma delas; contrariam­
-se elas, opõem-se entre si e conjuntamente determinam a linha
irregular, ao longo da qual decorre a minha história concreta,
divergindo da direcção especial de qualquer uma delas. Nenhuma
lei é levada a cabo, excepto nos casos em que ela livremente actua:
como sei eu que à lei da morte será permitida a sua livre acção, no
meu caso particular? Muitas vezes, conseguimos afastar a morte

3 00 • J o h n H e n ry N e w m a n
por tratamento médico: porque é que a morte deverá ter o seu
efeito, mais cedo ou mais tarde, em cada caso concebível?
É verdade que a estrutura humana, em todos os exemplos que
se me apresentam, primeiro cresce e, em seguida, declina e cai,
numa visível preparação para a dissolução. Raramente vemos a
morte, mas somos diariamente testemunhas deste declínio; contu­
do, é um facto que a maior parte dos homens que morre não mor­
re em virtude de qualquer lei da morte, mas pela lei da doença; e
alguns escritores interrogaram-se se, em rigor, a morte será, alguma
vez, natural. Serão, porventura, necessárias as doenças? Existirá a
lei de que cada um, mais cedo ou mais tarde, deve morrer sob o
poder da doença? E que aconteceria, em vasta escala, se não hou­
vesse doenças? Será o que chamamos a lei da morte algo mais do
que a oportunidade da doença? Será o prospecto da minha morte,
na sua prova lógica - como desta prova me certifico -, muito
mais do que uma elevada probabilidade?
A prova mais forte que tenho a favor da minha inevitável mor­
talidade é a reductio ad absurdum. Poderei eu indicar um homem,
nos tempos históricos, que viveu duzentos anos? Que aconteceu às
gerações passadas dos homens, a não ser que é verdade que eles
sofreram a dissolução? Mas trata-se aqui de um argumento em cír­
culo para garantir uma conclusão a que, na questão de facto, adiro
de modo inflexível. Seja como for, existe um considerável «exces­
so», como o denominaria Locke, da crença sobre a prova, quando
determino que individualmente tenho de morrer. Mas o que a
lógica não consegue fá-lo o meu próprio raciocínio pessoal, o meu
bom senso, que é a condição sadia de semelhante raciocínio pes­
soal, mas que não se pode expressar adequadamente em palavras, e
sou invadido, com a certeza mais precisa, absoluta, imperiosa, de
que algum dia hei-de morrer.

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 301
Sou levado por estas reflexões a fazer outra observação. Se é
difícil explicar como é que um homem sabe que há-de morrer, não
lhe é mais difícil convencer-se de como sabe que nasceu. O seu
conhecimento acerca de si não assenta na memória, em testemu­
nhos distintos ou em provas circunstanciais. Poderá ele concentrar
num foco da prova as razões que tão seguro o tornam? Não me
refiro a homens de ciência, que têm canais diferentes de conheci­
mento, mas a um indivíduo ordinário, como nós.
Pode, sem dúvida, responder-se a algumas destas questões;
mas, em geral, penso que, de facto, muitas das nossas mais obsti­
nadas e mais razoáveis certezas dependem de provas informais e
pessoais, que frustram os nossos poderes de análise e não se podem
sujeitar à regra lógica, porque também não se podem submeter à
estatística lógica. Se houvermos de falar de lei, então o reconheci­
mento de uma correlação entre certeza e prova implícita afigura-se­
-me ser uma lei das nossas mentes.

2. Acabei agora de dizer que um objecto dos sentidos se apresenta


à nossa visão como um todo, e não nos seus pormenores isolados:
acatamo-lo, reconhecemo-lo e discriminamo-lo de outros objectos,
tudo ao mesmo tempo. Assim é também a visão intelectual que
temos dos momenta da prova para uma verdade concreta; apreen­
demos a série completa das premissas e da conclusão per modum
unius - por uma espécie de percepção instintiva da conclusão
legítima nas e através das premissas, não por uma justaposição for­
mal das proposições; embora, claro está, semelhante justaposição
seja útil e natural para dirigir e verificar, tal como nos objectos da
visão a nossa apreensão das peculiaridades corporais, ou as obser­
vações de outros, nos podem ajudar a estabelecer um caso de iden-

J02 • J o h n H e n ry Newman
tidade discutida. E assim como este homem, ou esta vontade, rece­
berá a sua impressão própria de uma só e mesma pessoa e j ulgará a
partir de outras acerca da sua face, da sua expressão, do seu signifi­
cado moral, do seu contorno e compleição físicos, assim também
uma questão intelectual pode afectar duas mentes de modo muito
distinto, pode nelas despertar associações díspares, pode ser por
elas investida de características diferentes e levá-las a conclusões
opostas - e assim, mais uma vez, um corpo de prova, ou uma
linha de argumento, pode suscitar um efeito distinto, ou até disse­
melhante, quando endereçado a um ou a outro.
Por isso, nos raciocínios concretos, somos em grande medida
remetidos para a condição de que a lógica se propunha resgatar­
-nos. Julgamos por nós mesmos, pelas nossas próprias luzes e na
base nos nossos próprios princípios; o nosso critério de verdade
não é tanto a manipulação de proposições quanto o carácter inte­
lectual e moral da pessoa que as assere, e o derradeiro efeito tácito
dos seus argumentos ou conclusões sobre as nossas mentes.
Esta distinção entre o raciocinamento, como exercício de uma
faculdade viva no intelecto individual, e a mera habilidade na ciên­
cia argumentativa é que constitui a verdadeira interpretação do pre­
conceito que contra a lógica existe na mente popular, e das censuras
que contra ela se levantam, a saber: que as suas fórmulas suscitam o
pedante e o doctrinaire, que nunca faz convertidos; que leva ao
racionalismo; que os Ingleses são demasiado práticos para serem
lógicos; que uma onça de senso comum vai mais longe do que mui­
tas carradas de lógica; que Laputa é a terra dos lógicos, e quejandos.
Tais máximas, quando analisadas, significam que os processos de
raciocínio, os quais legitimamente induzem ao assentimento, à
acção, à certeza, são de facto demasiado multiformes, subtis, omní­
genos, demasiado implícitos, para permitirem ser medidos pela

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 3 03
regra; que, ao fim e ao cabo, são pessoais - a argumentação verbal
seria superior só na subordinação a uma lógica superior. Tal é o
que pretendia dizer o Juiz que, ao ser instado por um amigo a dar­
-lhe o seu conselho, na sua convocação para funções importantes
que para ele eram novas, lhe ordenou que cumprisse ousadamente
a lei, mas nunca fornecesse as suas razões, porque a sua decisão
seria provavelmente correcta, mas as suas razões seriam decerto
insatisfatórias. Eis o ponto que irei ilustrar.
1 . Trarei à baila uma questão do momento presente. «Iremos
ter uma guerra europeia, porque a Grécia desafia audaciosamente a
Turquia». Como testaremos a validade da razão, implicada, não
expressa, na palavra «porque»? Só o juízo dos diplomatas, dos
homens de Estado, dos capitalistas e outros que tais, baseado na
experiência, reforçado pelo conhecimento prático e histórico, con­
trolado pelo interesse, pode decidir do valor deste «porque», em
relação à aceitação, ou à recusa, da conclusão que dele depende. O
argumento vai de um facto concreto para outro facto concreto.
Como é que simples inferências lógicas, que não podem avançar
sem proposições gerais e abstractas, nos ajudam a determinar este
caso particular? Não se trata de a Suíça atacar a Áustria, ou de Por­
tugal atacar a Espanha, ou de a Bélgica atacar a Prússia, mas de um
caso sem paralelos. Para extrair uma conclusão científica, o argu­
mento desenrolar-se-á mais ou menos assim: «Todos os desafios
audaciosos feitos à Turquia pela Grécia devem acabar numa guerra
europeia; os actos presentes da Grécia são assim: ergo», no qual a
premissa maior é mais difícil de aceitar do que conclusão, e a prova
torna-se um obscurum per obscurius. Mas, na verdade, não recorre­
rei a uma proposição universal para defender a minha própria
visão do assunto; determinarei o caso particular pelas suas circuns­
tâncias particulares, pela combinação de muitas experiências não

3 04 • J o h n H e n ry N e w m a n
catalogadas que flutuam na minha memória, de muitas reflexões,
diversamente produzidas, mais sentidas do que susceptíveis de
enunciação; e se não as tivesse, deveria ir ao encontro daqueles que
as possuíssem. Dou o assentimento em virtude de semelhante
complexo acto de juízo, ou a partir da fé naqueles que são capazes
de o fazer; e, na prática, o silogismo não tem parte alguma, mesmo
aferidora, na acção da minha mente.
Pego neste exemplo ao acaso, para ilustração; seja-me agora
permitido segui-lo com casos mais sérios.
2. Diz Leighton: «Que plena confissão fazemos da nossa insa­
tisfação com os objectos dos sentidos corporais, que, nas nossas
tentativas para expressar o que julgamos ser o melhor dos seres e a
maior das felicidades, descrevemos, mediante os exactos contrários
de tudo o que aqui experimentámos - um, como infinito, incom­
preensível, imutável, etc. ; o outro, como incorruptível, impoluto e
que não se desvaneceu. De qualquer modo, esta coincidência,
digamos antes, esta identidade de atributos, é suficiente para nos
fazer saber que, a fim de sermos herdeiros da beatitude, nos deve­
mos tornar filhos de Deus». Coleridge cita esta passagem e acres­
centa: «Üutra inferência mais frutífera, e talvez mais sólida, a
partir dos factos seria esta: existe na mente humana algo que nos
leva a conhecer que, em toda a quantidade finita há uma infinita,
em todas as medidas de tempo uma eterna; que as últimas são a
base, a substância, das primeiras; e que, assim como verdadeira­
mente só existimos enquanto Deus está connosco, assim também
não podemos verdadeiramente ter a posse, isto é, fruir do nosso ser
ou de qualquer outro bem real, excepto vivendo no sentido da Sua
santa presença» l .

l Aids to Rejlection, p. 59, ed. 1 839.

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 3O 5
Para que serve este argumento? Quão raros são os leitores que
conseguem captar as suas premissas ou a sua conclusão! E dos que
entendem o que ele significa, não confessarão, pelo menos alguns,
que o entendem de forma irregular, e não em todas as ocasiões?
Poderemos clarificar a sua força pelo estado emocional e pela figu­
ra? Haverá algum caminho real pelo qual possamos, com indolên­
cia, ser levados à sua aceitação? Não o inclui, com razão, o autor
entre as suas «ajudas» para a nossa «reflexão», e não instrumentos
para a nossa compulsão? É claro que, se a passagem tem algum
valor, devemos garantir este valor para o nosso próprio uso
mediante a acção pessoal das nossas mentes, ou então estaremos a
professar e a afirmar somente a sua doutrina, sem ter qualquer fi.m­
damento ou direito de a asserir. E a nossa preparação para a com­
preender e utilizar será o estado geral da nossa disciplina e cultivo
mentais, as nossas próprias experiências, a nossa apreciação das
ideias religiosas, a perspicácia e a firmeza da nossa visão intelectual.
3. Hume, em oposição à ocorrência efectiva dos milagres judeus
e cristãos, argumenta assim: «Só a experiência confere autoridade ao
testemunho humano, e é a mesma experiência que nos certifica das
leis da natureza»; por conseguinte, «quando estes dois tipos de expe­
riência são entre si contrários, somos obrigados a separar uma da
outra»; portanto, visto que não temos experiência de uma violação
das leis naturais, e muita experiência da violação da verdade, «pode­
mos estabelecer como uma máxima que nenhum testemunho
humano pode ter uma força tal que demonstre um milagre e fazer
dela um justo fundamento para qualquer sistema de religião»! .
Aceitarei a proposição geral, mas resisto à sua aplicação. Sem
dúvida, de um ponto de vista abstracto, é mais provável que os

1 Wórks, vol. III, p. 1 78, ed. 1 770.

306 • J o h n H e n ry N e w m a n
homens mintam do que seja infringida a ordem de natureza; mas
que é que o raciocínio abstracto tem a ver com uma questão do
facto concreto? Para chegar ao facto de qualquer matéria, temos de
evitar as generalidades e aceitar as coisas como estão, com todas as
suas circunstâncias. A priori, naturalmente, os actos dos homens
não são tão fidedignos como a ordem da natureza, e a simulação
de milagres é, efectivamente, mais comum do que a sua ocorrên­
cia. Mas a questão não versa sobre os milagres em geral, ou os
homens em geral, mas, de uma maneira precisa, sobre se estes
milagres particulares, atribuídos a Pedro, Tiago e João particulares,
terão, ou não, maior probabilidade de ter acontecido; se serão
improváveis, supondo que existe um Poder, exterior ao mundo,
que os pode suscitar; supondo que são os únicos meios pelos quais
Ele se pode revelar a Si mesmo àqueles que precisam de uma reve­
lação; supondo que é provável que Ele se revele; que tem um gran­
de desígnio em fazê-lo; que os milagres em questão, objecto de
proclamação, são como as suas obras naturais, e tais como ele pro­
vavelmente opera, no caso de ter feito milagres; que grandes efei­
tos, aliás incontáveis, se seguiram, neste caso, a actos tidos por
milagrosos; que eles foram, desde início, aceites como verdadeiros
por grandes números de homens contra os seus interesses naturais;
que a recepção deles como verdadeiros deixou a sua marca no
mundo, como nenhum outro acontecimento alguma vez fez; que,
olhados nos seus efeitos, têm - isto é, a crença neles tem - servi­
do para elevar a natureza humana a um elevado padrão moral,
inalcançável de qualquer outro modo: estas e outras considerações
semelhantes são partes de um grande e complexo argumento, sus­
ceptível de se pôr em proposições, mas que, inclusive entre elas, à
sua volta e por trás delas, ainda está implícito e secreto, e não se
pode, mediante habilidade alguma, aprisionar numa fórmula e

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 3 07
resumir. Estas várias condições podem decidir na afirmativa ou na
negativa. É este um ponto ulterior; aqui, insisto apenas na nature­
za do argumento, se é que ele pretende ser filosófico. Não deve ser
uma antítese hábil para se ver no papel, mas a acção viva da mente
em torno de um grande problema de facto; e devemos chamar em
nossa ajuda todos os nossos poderes e recursos, se houvermos de o
encarar como válido, e não como se fosse um ensaio literário.
4. «Veja-se a instituição da religião cristã», diz Pascal nos seus
Pensamentos. «Eis uma religião contrária à nossa natureza, que se
estabelece nos espíritos dos homens com tanta brandura que não
usa a força externa; com tanta energia que nenhuma tortura pode
calar os seus mártires e confessores; e veja-se a santidade, a devo­
ção, a humildade dos seus verdadeiros discípulos; os seus livros
sagrados, a sua grandeza sobre-humana, a sua admirável simplici­
dade. Veja-se o carácter do seu Fundador; os Seus colaboradores e
discípulos, homens ignorantes, no entanto, possuídos de uma
sabedoria suficiente para confundir o mais habilidoso filósofo; o
êxito admirável dos profetas que O anunciaram; a situação, no seu
tempo, do povo judeu, que rejeitou a sua religião; a sua perpetui­
dade e a sua santidade; a luz que as suas doutrinas arrojaram sobre
as contrariedades da nossa natureza - após a consideração destas
coisas, que qualquer homem julgue se é possível duvidar acerca de
ela ser a única verdadeira» 1 .
É este um argumento comparável, no seu carácter, àquele pelo
qual atribuímos os clássicos à era de Augusto. Insistimos em que,
embora não possamos traçar uma linha clara entre o que os mon­
ges poderiam, ou não, fazer na literatura, de qualquer modo a
Eneida de Virgílio e as Odes de Horácio estão muito além da mais

I Tradução de Taylor.

308 • J o h n H e n ry N e w m a n
elevada capacidade da mente medieval que, embora grande, é dife­
rente na índole dos seus dons. E, de igual modo, concedendo
embora que não podemos decidir até onde, sem ajuda, pelos seus
próprios poderes nas ideias e sentimentos religiosos e na prática
religiosa, pode chegar a mente humana, afirmamos, apesar de
tudo, que os factos do cristianismo, tal como se nos deparam,
estão para lá do que é possível ao homem e indiciam a presença de
uma inteligência, de um desígnio e de um poder superiores.
Muitos converteram-se e foram robustecidos na sua fé por este
argumento, susceptível de uma expressão poderosa; mas semelhan­
te enunciado é ainda, ao fim e ao cabo, intentado apenas para ser
um veículo do pensamento, para abrir a mente à apreensão dos
factos do caso, para deles e das suas implicações traçar um esboço,
não para convencer mediante a lógica das suas simples palavras.
Não pensamos e meditamos ao lê-lo, não tentamos conhecê-lo a
fundo enquanto avançamos, não pousamos o livro em que com ele
deparamos, não colmatamos os seus pormenores com os nossos
próprios recursos e, em seguida, retomamos o seu estudo? E, se
temos de o expor a outros, deveremos usar a sua linguagem, inclu­
sive os seus pensamentos, e não antes a sua inclinação, o seu espíri­
to? Nunca nos surpreendeu que mentes distintas arrojem luzes tão
diferentes sobre a mesma teoria, o mesmo argumento, e também
como aparentemente diferem no pormenor quando a professam e,
na realidade, mostram nela uma concorrência? Nunca descobrimos
que, quando um amigo assume a defesa do que escrevemos ou dis­
semos, a princípio, somos incapazes de reconhecer na sua exposi­
ção o que pretendemos comunicar? A nossa sabedoria consistirá
em servir-nos da linguagem, tanto quanto possível, para tentar
apenas, por seu intermédio, estimular naqueles a quem nos dirigi­
mos um modo de pensar e séries de pensamento semelhantes ao

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 3 09
nosso, guiando-os pela sua própria acção independente, não por
qualquer compulsão silogística. Por isso, uma escola intelectual
terá sempre algo de carácter esotérico; é uma assembleia de mentes
que pensam; o seu vínculo é a unidade de pensamento, e as suas
palavras tornam-se uma espécie de tessera, que não expressa o pen­
samento, mas o simboliza.
Voltando ao argumento de Pascal, faço a seguinte observação:
como a sua força depende do pressuposto de que os factos do Cris­
tianismo estão para lá da natureza humana, então ela será maior
ou menor, conforme os poderes da natureza se situam num padrão
superior ou inferior; e este padrão variará segundo as respectivas
disposições, opiniões e experiências daqueles a quem o argumento
é dirigido. Por isso, o seu valor é uma questão pessoal; não, decer­
to, como se não houvesse uma verdade objectiva e o cristianismo
enquanto todo não fosse sobrenatural, antes, ao indagarmos onde
se encontra a presença sobrenatural, pode haver justas diferenças
de opinião, quanto ao facto e à prova do que é sobrenatural. Existe
uma multidão de factos que, tomados em separado, talvez possam
ser naturais, mas, na sua conjunção, devem provir de uma fonte
acima da natureza; e o que estes são, quantos são necessários, será
determinado de modo diferente. E embora cada inquiridor tenha
um direito a determinar a questão segundo o melhor exercício do
seu juízo, contudo, quer ele a determine por si mesmo quer confie
em parte ou totalmente no juízo dos que têm o melhor direito a
julgar, é, nos dois casos, guiado pelos processos implícitos da facul­
dade raciocinante, e não por qualquer manufactura de argumentos
que force o seu caminho para uma conclusão irrefragável.
5 . Pascal escreve noutro lugar: «Quem duvida, mas não tenta
remover as suas dúvidas, é ao mesmo o mais criminoso e o mais
infeliz dos mortais. Se, além disso, está tranquilo e satisfeito consi-

310 • J o h n H e n ry N e w m a n
go, se tem presunção na sua tranquilidade ou faz do seu estado um
tópico de divertimento e de autogratulação, não tenho palavras
para descrever criatura tão insensata. É verdadeiramente uma hon­
ra para a religião ter por adversários seus homens tão desprovidos
de razão; a sua oposição, longe de ser temível, dá testemunho das
suas verdades mais distintivas; pois o grande objectivo da religião
cristã é provar a corrupção da nossa natureza e a redenção por
Jesus Cristo» ! . Noutro lugar, diz acerca de Montaigne: «Envolve
tudo num cepticismo tão universal e puro que duvida das suas
genuínas dúvidas. Foi um verdadeiro seguidor de Pirro. Ridiculari­
za todas as tentativas de certeza acerca de qualquer coisa. Deliciado
com a exibição, na sua própria pessoa, das contradições que exis­
tem na mente de um livre-pensador, é-lhe de todo indiferente se
será, ou não, bem sucedido no seu argumento. A virtude que apre­
ciava era simples, sociável, alegre, jovial e jocosa; para usar uma das
suas expressões, ''A ignorância e a indiferença são dois travesseiros
encantadores para uma cabeça sadià'»2.
Temos aqui dois celebrados escritores em directa oposição
recíproca na sua visão fundamental da verdade e do dever. Dire­
mos, então, que não existe algo como verdade e erro, mas que,
para um homem, é verdade tudo o que ele cismou? E não antes,
como a solução de um grande mistério, que a verdade existe e se
pode alcançar, mas que os seus raios jorram sobre nós através do
meio do nosso ser moral e intelectual; e que, por consequência, a
percepção dos seus primeiros princípios, que nos é natural, está
debilitada, obstruída, pervertida pelas seduções dos sentidos e pela
supremacia do Si mesmo e, por outro lado, estimulada por aspira-

1 lbid. pp. 1 0 8- 1 1 0.
2 lbid. pp. 429-436.

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 311


ções ao sobrenatural; pelo que, no fim, se moldam assim dois tipos
de mente, dois padrões e sistemas de pensamento - ambos lógi­
cos, quando analisados, e todavia contraditórios entre si, só não
antagónicos porque não têm um solo em que possam estar em
conflito?
6. Montaigne tinha bens de fortuna, saúde, lazer, um tempera­
mento suave, gostos literários e uma quantidade razoável de livros;
dispunha, pois, de meios para jogar com a vida e com os abismos a
que ela nos leva. Tomemos, por contraste, o caso seguinte.
«Penso», diz, na história, a jovem operária moribunda, «Se este
há-de ser o fim de tudo, se tudo aquilo para que nasci é justamente
esgotar no trabalho o meu coração e a minha vida, adoecer neste
lugar de sofrimento, com as mós do moinho para sempre nos
meus ouvidos, até que eu lhes possa gritar que parem e me deixem
ter um pouco de descanso, com a lanugem a encher os meus pul­
mões, até eu morrer de sede por uma longa e funda respiração de
ar puro, já sem mãe, e nunca mais lhe poder dizer como a amava
ou falar-lhe dos meus dissabores - penso, se esta vida fosse o fim,
e que não há Deus para limpar todas as lágrimas de todos os olhos,
daria em maluca!» l
Eis aqui um argumento em prol d a imortalidade d a alma.
Quanto à sua força, grande ou pequena, faria ele figura numa dis­
puta lógica, levada a cabo secundum artem? Poderá alguma medida
comum científica obrigar os intelectos do Rico e de Lázaro a ter
dele a mesma estimativa? Haverá algum teste da sua validade
melhor do que o ipse dixit do juízo privado, isto é, o juízo daqueles
que têm um direito a julgar e, em seguida, o acordo de muitos juí­
zos privados numa só e mesma visão dele?

1 North and South.

JI2 • J o h n H e n ry N e w m a n
7. «Para demonstrar de um modo simples e inteligível», diz o
Dr. Samuel Clarke, «que Deus é um Ser, necessariamente dotado de
perfeito conhecimento, advertir-se-á que o conhecimento é uma
perfeição, sem a qual os atributos precedentes não são perfeições e os
subsequentes carecem de fundamento. Onde não há Conhecimento,
a Eternidade e a Imensidade são como nada, e a Justiça, a Bondade,
a Misericórdia e a Sabedoria não podem ter lugar. Sem conhecimen­
to, a ideia de eternidade e de omnipresença é como a noção de obs­
curidade comparada com a da luz. É como uma noção do mundo
sem o sol para o iluminar; como a noção da matéria inanimada (que
é a causa suprema do ateu) comparada com a da luz e do espírito. E,
quanto aos atributos seguintes da Justiça, da Bondade, da Misericór­
dia e da sabedoria, é evidente que, sem conhecimento, nenhuma
dessas coisas poderia possivelmente existir» ! .
O argumento aqui utilizado em prol do Atributo Divino do
conhecimento subsume-se na proposição geral de que os Atributos
se implicam reciprocamente, pois a negação de um é a negação dos
restantes. Para algumas mentes, esta tese é evidente por si mesma;
outras são de todo insensíveis à sua força. Aguentará ele expressar
plenamente em palavras toda a série dos seus elos argumentativos?
Pois, se tal conseguir, então ou aqueles que o defendem ou os que
o rejeitam serão, uns ou outros, compelidos pela necessidade lógica
a confessar que estão enganados. «Deus é sábio, se é eterno; é bom,
se é sábio; é j usto, se é bom». Que habilidade, poder assim dispor
estas proposições, fazer-lhes acrescentos, combiná-las, de modo
que possam, pela força da sua justaposição, derivar-se umas das
outras e converter-se numa só e mesma, por uma correlação inevi­
tável! Não é este o método mediante o qual o argumento se trans-

1 Serm. XI. inir.

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 313
muta numa demonstração. Semelhante método, empregue por um
Teísta na controvérsia contra homens que não estão pessoalmente
preparados para a questão, desembocará apenas no seu recuo, ao
longo de uma série de proposições maiores, cada vez mais para
trás, até que ele e eles se encontrem numa região de sombras,
«onde a luz é como a escuridão».
Para sentir a verdadeira força de um argumento como este,
não devemos restringir-nos a abstracções e comparar apenas noção
com noção, mas temos de contemplar o Deus da nossa consciência
como um Ser vivo, como um Objecto e uma Realidade, sob o
aspecto deste ou daquele atributo. Devemos pacientemente persis­
tir no pensamento do Eterno, do Omnipotente e Omnisciente
mais do que da Eternidade, da Omnipresença e da Omnisciência;
não nos devemos apressar e excogitar à força uma série de dedu­
ções que, a ser realizadas, cairão como orvalho nas nossas mentes e
aí se formarão espontaneamente a si mesmas, graças a uma calma
contemplação e a uma gradual compreensão das suas premissas.
Em linguagem chã, tais deduções só afluem segundo o modo
como a lmageml , a nós presente através da consciência, de que
elas dependem, é acalentada dentro de nós com o sentimento que
ela, na suposição de ser, como sabemos que é, a verdade, necessa­
riamente exige de nós e, graças ao hábito do nosso intelecto, se
contempla reflectida nos equipamentos e nos acontecimentos do
mundo externo. E elas, na sua manifestação ao nosso sentido inte­
rior, são análogas ao conhecimento que, por fim, obtemos dos por­
menores de uma paisagem, após termos seleccionado o correcto
ponto de vista e aprendido a acomodar a pupila do nosso olho ao
foco variável, necessário para os vislumbrarmos; após a termos acos-

I Vide supra cap. V. !., pp. 1 00, 1 03.

3 14 • J o h n H e n ry N e w m a n
tumado ao brilho da luz, após termos agrupado ou discriminado
mentalmente linhas e sombras e lhes havermos dado o seu devido
significado, com o consequente domínio da perspectiva do todo.
Ou podem comparar-se a uma paisagem como desenhada a lápis
(a não ser que a ilustração pareça forçada) em que pela habilidade
do artista, entre as silhuetas ousadas das árvores e das rochas,
quando o olho aprendeu a captar os seus aspectos invertidos, são
discerníveis as formas ou as faces das personagens históricas, que
apreendemos e de novo perdemos e, em seguida, recuperamos, e
que alguns que connosco olham nunca são capazes de perceber.
Análogo a semelhante exercício de visão será o nosso modo de
lidar com as exposições verbais de um argumento, como o de Clar­
ke. As suas palavras falam aos que entendem o discurso. Para o inte­
lecto estéril, não passam de pálidos espectros de noções; mas a
imaginação treinada lê nelas as representações de coisas. Quem, uma
vez, detectou na sua consciência o perfil de um Legislador e Juiz não
precisa da Sua definição; ali O contempla, ténue mas seguramente, e
rejeita o mecanismo da lógica que, na sua apreensão, não pode con­
ter questões tão reais e tão recônditas. Esse, segundo a força e a
perspicácia da sua mente, de harmonia com a força dos seus pressen­
timentos e o seu poder de atenção prolongada, é capaz de se pro­
nunciar acerca da grande Visão que o abarca, como acerca de um
objecto visível; e, na sua investigação dos Atributos Divinos, não
deduz abstracção de abstracção, mas regista os aspectos e as fases
desta coisa única em que ele tem os olhos sempre fixos. Nem é pos­
sível limitar a profundeza do significado que, por fim, ele associará
às palavras, as quais, para muitos, são apenas definições e ideias.
Aqui, pois, mais uma vez, como nos outros exemplos, parece
claro que os processos metódicos da inferência, úteis como são, na
medida do possível, não passam de instrumentos da mente e, em

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • JI5
vista do seu exercício adequado, precisam da raciocinação real e da
imaginação presente, que lhes confere um sentido para lá da sua
letra; ao actuar através deles, a mente chega a conclusões que os
ultrapassa. Semelhante órganon vivo é um dom pessoal, e não um
simples método ou cálculo.

3. Que há casos em que os dados, não suficientes para uma prova


científica, são todavia suficientes para o assentimento e a certeza, é
a doutrina de Locke, como também da maioria dos homens. Diz­
-nos ele que a crença, baseada em probabilidades suficientes, «se
alça à certeza»; e também, quanto à questão da suficiência, que
onde as proposições «confinam com a certeza» «lhes damos então o
assentimento com tanta firmeza como se elas estivessem infalivel­
mente demonstradas». A única questão é esta: que são estas propo­
sições? A tal respeito ele nada refere, mas parece pensar que são
poucas em número, e que serão imediatamente reconhecidas, sem
qualquer perturbação, pelo senso comum; todavia, a não ser que
eu esteja enganado, elas encontrar-se-ão em todo o âmbito de
matéria concreta, e este juízo supralógico, que é a garantia da nossa
certeza a seu respeito, não é simples senso comum, mas a verdadei­
ra acção salubre dos nossos poderes de raciocínio, uma acção mais
subtil e mais englobante do que a simples apreciação de um argu­
mento silogístico. Dá-se-lhe, muitas vezes, o nome de judicium pru­
dentis virz1 , um padrão de certeza que se aguenta bem em todas as
questões concretas, não só nos casos de prática e de ofício, em que
com ele estamos mais familiarizados, mas também nas questões de
verdade e falsidade em geral, ou naquilo a que se dá o nome de

I «Ü juízo do homem prudente».

316 • J o h n H e n ry N e w m a n
questões «especulativas», e tal, não para a exclusão, antes como
suplemento da lógica. Assim uma prova, excepto na demonstração
abstracta, tem sempre em si, mais ou menos, um elemento pessoal,
porque «a prudência» não é uma parte constitutiva da nossa nature­
za, mas uma dotação pessoal.
No uso comum, a linguagem, quando conclusões concretas es­
tão em questão, implica a presença deste elemento pessoal na sua
demonstração. Supostamente sentimos, mais do que vivemos, a sua
força; e não decidimos que a conclusão deve existir - antes que ela
não pode ser de outro modo. Dizemos que não vislumbramos o nos­
so modo de dela duvidar, que é impossível duvidar, que estamos obri­
gados a nela acreditar, que seríamos idiotas, se não acreditássemos.
Na ciência abstracta, jamais deveríamos dizer que não conseguimos
subtrair-nos à conclusão de que 25 era uma média proporcional entre
5 e 1 25; ou que um homem não tinha o direito a dizer que uma tan­
gente a um círculo, na extremidade do raio, faz com ela um ângulo
agudo. Todavia, embora a nossa certeza seja, de facto, assim tão clara,
não deveremos pensar como inatural dizer que a insularidade da Grã­
-Bretanha é tão boa como demonstrada, ou que ninguém, excepto
um tolo, jamais espera morrer. De facto, às vezes, usam-se frases
como estas para expressar uma sombra de dúvida; mas, para o meu
propósito, basta que elas se utilizem também quando a dúvida de
todo está ausente. O que elas, pois, significam é aquilo em que tanto
insisti, que chegámos a estas conclusões - não ex opere operato, por
uma necessidade científica independente de nós mesmos - mas pela
acção das nossas próprias mentes, pela nossa própria percepção indi­
vidual da verdade em questão, sob um sentido de dever para com
essas conclusões e com uma consciência intelectual.
Esta certeza e esta evidência dizem-se, com frequência, morais;
uma palavra que evito, porque tem um significado muito vago.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 317
Mas, ao utilizá-la aqui por uma vez, advirto que a evidência e a
certeza morais são tudo o que podemos alcançar, não só no caso
dos temas éticos e espirituais, como a religião, mas também das
questões terrestres e cósmicas. Até certo ponto, a Astronomia física
e a Revelação estão no mesmo pé. Vince, no seu tratado sobre
Astronomia, não usa a linguagem da sobriedade filosófica, quando,
após falar das demonstrações do movimento rotativo da terra, diz:
«Quando se consideram estas razões, todas baseadas em diferentes
princípios, equivalem a uma prova da rotação da terra em torno do
seu eixo, que é tão satisfatória para a mente como o poderia ser a
mais directa demonstração»; ou, como antes ele justamente afirma­
ra, «a mente aquieta-se satisfeita, como se a questão tivesse sido
estritamente demonstrada» ! . Isto é, primeiro, não há demonstra­
ção alguma de que a Terra gira; em seguida, existe um cacho de
«razões fundadas em diferentes princípios», isto é, probabilidades
independentes em acumulação; em terceiro lugar, estas «equivalem
a uma demonstração», e «a mente» sente « como se a questão tivesse
sido estritamente demonstrada», a saber, existe o equivalente da
prova; por fim, «a mente aquieta-se satisfeita», ou seja, está certa
sobre a questão. E embora disponhamos agora dos dados do facto,
inexistentes há cinquenta anos, estes dados, no seu todo, não alte­
raram o seu carácter.
Comparemos com este testemunho a linguagem de Butler, ao
discutir a prova da Revelação. «Demonstrações prováveis», diz ele,
«quando acrescentadas, não só aumentam, mas multiplicam a evi­
dência. A verdade da nossa religião, como a verdade das questões
comuns, deve julgar-se pelos dados totais conjuntamente conside­
rados . . . da mesma maneira que, se num caso comum qualquer

1 Pp. 84, 85.

318 • J o h n H e n ry N e w m a n
numerosos eventos reconhecidos tivessem de se alegar na prova de
qualquer outro acontecimento em disputa, a verdade do evento
discutido seria demonstrada, não só se qualquer dos eventos reco­
nhecidos claramente a implicasse por si, mas, ainda que nenhum
por si apenas o fizesse, se também a totalidade dos acontecimentos
reconhecidos, em conjunto, não pudesse, com razão, supostamen­
te ter acontecido, a não ser que aquele que está em causa fosse ver­
dadeiro» l . Aqui, como na Astronomia, existe a mesma ausência de
demonstração da tese, a mesma acumulação, a mesma convergên­
cia dos seus indícios, o mesmo carácter indirecto na demonstração,
como per impossibile, o mesmo reconhecimento, todavia, de que a
conclusão é não só provável, mas verdadeira. Fornece-se outra
característica do processo argumentativo, que é desnecessária
numa matéria tão clara e simples como a ciência astronómica, a
saber, o estado moral dos participantes que investigam ou discu­
tem. Devem eles, «em afazeres sérios acerca da religião ou em afa­
zeres temporais, ser susceptíveis da convicção, na base de dados
reais, de que existe um Deus que governa o mundo e sentir-se a si
mesmos como criaturas de natureza moral e responsável»2.
Se tal é o estado do caso, surge a questão de se, admitindo que
a personalidade {por assim dizer) dos participantes que raciocinam
é um elemento importante na demonstração de proposições numa
matéria concreta, será possível fornecer uma descrição do método
de raciocínio em tais provas, além da análise do silogismo, possível
em cada um dos seus passos em pormenor. Penso que sim; embora
receie que tal possa a algumas mentes parecer rebuscado ou fanta­
sista; contudo, aventurar-me-ei a esta imputação. Suponho, pois,

1 Analogy, pp. 329, 330, ed. 1836.


2 lbid. p. 278.

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • JI9
que o princípio do raciocínio concreto é comparável ao método da
demonstração, fundamento da moderna ciência matemática, como
contido no célebre mote com que Newton abre os seus Principia.
Sabemos que um polígono regular, inscrito num círculo, à medida
que se encurtam continuamente os lados, tende a tornar-se esse
círculo, como seu limite; mas esvanece-se antes de ter coincidido
com o círculo, pelo que a sua tendência para ser o círculo, embora
cada vez mais próxima da efectuação, nunca, de facto, vai além de
uma tendência. De igual modo, a conclusão numa questão real ou
concreta é prevista e prognosticada mais do que efectivamente alcan­
çada; prevista no número e na direcção das premissas acumuladas,
que para ela convergem todas e, enquanto resultado da sua combi­
nação, se aproximam muito mais do que qualquer diferença assina­
lável, sem todavia a tocarem logicamente {e não apenas a toquem) ,
em virtude da natureza da questão e do carácter delicado e implícito
de, pelo menos, parte dos raciocínios, de que ela depende. É pela
força, pela variedade ou multiplicidade das premissas, que são ape­
nas prováveis, não por silogismos invencíveis - pelas objecções ven­
cidas, pelas teorias contrárias neutralizadas, pelas dificuldades
gradualmente clarificadas, pelas excepções que provam a regra, pelas
correlações desvendadas descobertas com as verdades recebidas, pela
suspensão e pela detença no processo que desemboca em reacções
triunfantes - por todas estas vias, e muitas outras, é que a mente
hábil e experimentada consegue fazer um alvitre seguro de que uma
conclusão é inevitável, cujas linhas de raciocínio lhe não facultam
efectivamente a posse. Eis o que se pretende significar por uma pro­
posição que é «tão boa como demonstrada», por uma conclusão tão
inegável «como se estivesse demonstrada» e pelas razões a seu favor
«que equivalem a uma demonstração», pois uma prova é o limite de
probabilidades convergentes.

3 20 • J o h n Henry Newman
Pode acrescentar-se o seguinte: visto que a forma lógica deste
argumento é, como já observei, indirecta, a saber, «a conclusão não
pode ser de outro modo»; visto que Butler afirma que um aconte­
cimento é demonstrado se os seus antecedentes «não puderem,
com razão, ter supostamente acontecido a não ser que ele fosse ver­
dadeiro», e os livros de direito nos dizem também que o princípio
da prova circunstancial é a reductio ad absurdum, então também
Newton é compelido ao mesmo modo de prova para o estabeleci­
mento do seu mote acerca de proporções primeiras e últimas. «Se
negares que elas se tornam ultimamente iguais», diz ele, «que
sejam, em última análise, desiguais»; e segue-se a consequência,
«que vai contra semelhante suposição».
Se tal é o carácter do processo mental no raciocínio concreto, é
desejo meu aduzir, para ilustração, alguns bons exemplos seus,
exemplos em que a pessoa que raciocina confessa que raciocina
segundo o genuíno processo, por mim descrito; mas é difícil encon­
trá-los, em virtude da circunstância singela de o processo, de princí­
pio ao fim, ser levado a cabo tanto sem palavras como com elas.
Apesar de tudo, apresentarei três.
1 . Em primeiro lugar, um exemplo da física. Wood, ao abor­
dar as leis do movimento, descreve assim a linha de raciocínio pela
qual a mente as aprova. «Não são, de facto, auto-evidentes, nem
admitem uma prova exacta mediante a experimentação, em virtu­
de dos efeitos da fricção e da resistência do ar, que não se podem
de todo remover. São, todavia, constante e invariavelmente sugeri­
das aos novos sentidos e concordam com a experimentação, até
onde esta pode ir; e quanto mais exactas são essas experiências,
quanto maior é o cuidado que temos em eliminar todos os obstá­
culos que tendem a tornar erróneas as conclusões, tanto mais inti­
mamente as experiências coincidem com estas leis.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 3 21
«Portanto, a sua verdade estabelece-se numa base diferente:
destes princípios gerais deduziram-se inumeráveis conclusões parti­
culares; umas vezes, as deduções são simples e · imediatas, outras,
são feitas mediante operações aborrecidas e intrincadas; contudo,
todas, sem excepção, são consistentes entre si e com a experimen­
tação. Segue-se, portanto, que os princípios em que se baseiam os
cálculos são verdadeiros» l .
O raciocínio desta passagem (em que se pressupõe a uniformi­
dade das leis da natureza) parece-me uma boa ilustração do que se
deve considerar como o princípio ou a forma de uma indução. A
conclusão, que é a sua meta, não está, como ele reconhece, demons­
trada; mas deveria ser demonstrada, ou é tão boa como demonstrada,
e irracional seria o homem que a não a aceitasse como virtualmente
demonstrada; primeiro, porque as imperfeições da prova brotam da
sua matéria e da natureza do caso, pelo que ele está interpretative
demonstrado; em seguida, porque no mesmo grau em que são aqui
ou além superadas as deficiências na matéria, remediadas estão tam­
bém as imperfeições da prova, aqui ou além implicadas; e, ademais,
porque, quando a conclusão se acata como uma hipótese, arroja
luz sobre uma multidão de factos colaterais, explicando-os e unin­
do-os conjuntamente num todo. A consistência nem sempre é a
garantia da verdade; mas talvez exista uma consistência numa teo­
ria tão diversamente testada e exemplificada que induza à crença
nela, tal como uma testemunha num tribunal, após um severo
interrogatório, pode razoavelmente satisfazer e certificar o juiz, o
j úri e todo o tribunal, da sua simples veracidade.
2. Irei agora aos tribunais buscar a minha segunda ilustração.
Diz um escritor culto, «Nos processos criminais, a prova circuns­
tancial deve ser tal que suscite um grau de certeza quase idêntico ao

l Mechanics, p. 3 1 .

3 22 • J o h n H e n ry N e w m a n
que provém do testemunho directo, e exclua uma probabilidade
racional de inocência» 1 . Por graus de certeza parece ele indicar,
com muitos outros escritores, graus de prova ou aproximações à
prova, e não a certeza, como um estado da mente; e diz que nin­
guém deveria ser declarado culpado na base de dados que, em peso,
não sejam equivalentes ao testemunho directo. Até aqui, é claro; mas
o que se pretende dizer com a expressão «probabilidade racional:»?
Pois, não pode haver probabilidade excepto a que é racional. Penso
que a «exclusão de uma probabilidade racional» significa a «exclusão
de qualquer argumento a favor do homem que tenha uma pretensão
racional a denominar-se provável», ou antes, «a exclusão racional de
toda a suposição de que ele é inocente»; «racional» usa-se em contra­
posição a argumentativo e significa «baseado em razões implícitas»
como as que, de facto, sentimos, mas que, por um ou outro motivo,
por serem demasiado subtis ou sinuosas, não conseguimos pôr em
palavras, de modo a satisfazer a lógica. Se esta for uma explicação
correcta do seu significado, afirma ele que a prova contra um crimi­
noso, a fim de determinar a sua culpa, e para descargo da nossa
consciência, deve, ademais, juntamente com os argumentos palpá­
veis a favor da culpa, suscitar uma tal razoabilidade, ou corpo de
razões implícitas a seu favor, que consiga excluir qualquer probabi­
lidade real de ele não ser culpado - isto é, deve ser uma prova
isenta de algo obscuro, suspeito, inatural ou deficiente, que (no
juízo de um homem prudente) impeça a soma e a coalescência dos
dados numa prova, que eu, no caso das proporções matemáticas,
comparei ao movimento para um limite. Assim como uma série
algébrica pode ser de índole tal que nunca termine ou admita a
valoração, como o equivalente de uma quantidade ou número irra-

1 Phillipps, Law ofEvidence, vol. 1. p. 456.

U m a G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 3 23
cional, assim também pode haver imperfeições graves num corpo
de razões, explícitas ou implícitas, que se encaminha para uma
prova, suficiente para interferir com o seu desfecho bem sucedido
ou a sua resolução, e nos desaponte com uma conclusão irracional,
isto é, indeterminada.
Basta do princípio das conclusões feitas a partir da prova nos
casos criminais; abordemos agora um caso da sua aplicação num
exemplo particular. Há alguns anos, cometeu-se um assassínio que
agitou de modo inabitual a mente popular, e os dados contra o réu
eram necessariamente circunstanciais. No julgamento, o Juiz, ao
dirigir-se ao Júri, instruiu-o sobre o tipo de prova necessária para
um veredicto de culpado. Naturalmente, de nenhum modo podia ter
a intenção de dizer que os jurados devem condenar um homem, de
cuja culpa não estavam certos, sobretudo num caso que dois países
estrangeiros, a Alemanha e os Estados Americanos, seguiam com
atenção. Se o Júri tivesse alguma dúvida, isto é, uma dúvida razoá­
vel, acerca da culpa do homem, dar-lhe-ia, claro está, o benefício da
dúvida. Nem a certeza, necessária para o veredicto contrário, pode­
ria ser apenas aquela que, às vezes, se denomina uma «certeza prá­
tica», isto é, uma certeza, não há dúvida, mas uma certeza, que era
um «dever», «expediente», «prudente», para se conseguir um vere­
dicto de culpado. O Juiz, naturalmente, referia-se àquilo que se
chama uma «certeza especulativa», isto é, uma certeza do facto de
que o homem era culpado; a única questão centrava-se nos dados
que eram necessários para a prova, para a certeza desse facto. Era
isso o que Juiz tinha em mente; eis algumas das observações que,
com esta tenção, fez na altura:
Após advertir que por prova circunstancial ele queria significar
um caso em que «os factos não provam directamente o crime real,
mas insinuam a conclusão de que o prisioneiro cometeu esse crime»,

3 24 • J o h n H e n ry N e w m a n
rejeitou, de seguida, a sugestão, feita por consulta no caso, de que o
Júri só podia pronunciar um veredicto de culpado, se os seus mem­
bros estivessem tão convencidos da realização do acto pelo prisionei­
ro, como se a ele houvessem assistido. «Esta não é a certeza»,
afirmou, «que de vós se exige para cumprirdes o dever para com o
réu, cuja salvação está nas vossas mãos». Explicou, depois, qual o
«grau de certeza», isto é, da certeza ou perfeição da prova, necessário
para a questão, «que implicava, de facto, a vida do réu no tribunal»
- assemelhava-se, afirmou, àquele «com que decidis e levais a cabo
as transacções mais importantes da vossa vida. Encarai os factos que
vos foram apresentados, separai aqueles em que credes daqueles em
que não credes; podereis, então, em todas as conclusões que, natu­
ralmente e quase de modo necessário, dimanam dos factos, confiar
tanto nelas como nos próprios factos. O caso, por parte do processo,
é a história do assassínio, contada por diferentes testemunhas, que
desvendam as circunstâncias uma após outra, segundo a sua ocorrên­
cia, juntamente com a descoberta gradual de uma aparente conexão
entre a propriedade que se perdeu e a sua posse pelo réu».
Faço, agora aqui, o seguinte comentário: embora a conclusão,
ponderada pelo Juiz, seja o que se pode declarar (em geral, conside­
rando todas as coisas e fazendo um juíw sensato) uma conclusão
demonstrada ou certa, a saber, uma conclusão da verdade da alegação
contra o preso, ou do facto da sua culpa, por outro lado, os motiva
que constituem esta prova rawável, racional, e esta certeza satisfató­
ria, não precisavam, segundo ele, de ser mais fortes do que aquelas
em que agimos com prudência em assuntos de interesse importante
para nós mesmos, isto é, razões prováveis olhadas na sua convergência
e combinação. E embora a certeza seja encarada pelo Juiz como deri­
vada de probabilidades convergentes, que constituem uma prova real,
mas apenas razoável, não argumentativa, advertir-se-á neste exemplo

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 325
particular que, para a ilustração da doutrina geral que estabeleci, o
processo é de «linha a linha e letra a letra», de pormenores diversos
que se acumulam e de deduções que entre si se ajustam; pois, nas
palavras do Juiz, havia um relato - e este não directamente expresso
e por uma só testemunha, mas aceite e passado de testemunha a tes­
temunha - gradualmente desdobrado, e tendendo para uma prova
que, naturalmente, poderia ter sido dez vezes mais forte do que era,
mas que, apesar de tudo, era ainda uma prova, e suficiente para a sua
conclusão - tal como vemos que duas linhas rectas convergem, e
estamos certos de que elas se hão-de encontrar a uma dada distância,
embora efectivamente não vejamos a junção.
3 . O terceiro exemplo a que recorrerei é de índole literária, a
adivinhação da autoria de uma certa publicação anónima, enquan­
to sugerida sobretudo pelos dados internos, tal como a descubro
numa crítica escrita há vinte anos. No extracto que dela faço,
podemos observar o mesmo andamento firme de uma demonstra­
ção para a conclusão, que está (por assim dizer) fora da vista; -
um cálculo, ou um juízo sensato, de que a conclusão está realmen­
te provada, e uma certeza pessoal assente neste juízo, unidos à
declaração de que não era possível extrair para ela um argumento
lógico, e que os vários pormenores em que a prova consistia esta­
vam, em não pequena medida, implícitos e impalpáveis.
«De modo uniforme e bastante claro fala o rumor em atribuí­
-lo à pena de um indivíduo particular. E, embora um leitor apres­
sado possa ler superficialmente o livro sem nele encontrar qualquer
sugestão, etc. , [ . . . ] tal não se afigurará improvável ao mais atento
estudante dos seus dados internos; e a improbabilidade diminuirá
cada vez mais, conforme o leitor for capaz de j ulgar e apreciar os
toques delicados e, à primeira vista, invisíveis que, para aqueles que os
compreendem, limitam os indivíduos, seus possíveis autores, a um

3 26 • J o h n H e n ry N e w m a n
número deveras pequeno. O cept1c1smo extremo quanto à sua
autoria (que nós não sentimos) já não o consegue afastar mais de si
do que de algum dos seus mais íntimos amigos; pelo que, deixan­
do outros discutir probabilidades antecedentes», etc.
Eis um escritor que confessa não ter dúvidas acerca da autoria
de um livro - que ele, ao mesmo tempo, não consegue provar por
simples argumentação expressa em palavras. As razões da sua convic­
ção são demasiado delicadas, demasiado intrincadas, também em
parte invisíveis; invisíveis, excepto para aqueles que, a partir das cir­
cunstâncias, têm uma percepção intelectual daquilo que não aparece
à maioria. São pessoais para o indivíduo. Eis, de novo, um exemplo,
claramente posto diante de nós, do modo particular como a mente
progride num tema concreto, a saber, de antecedentes simplesmente
prováveis para a prova suficiente de um facto ou de uma verdade e,
após a prova, para um acto de certeza a seu respeito.
Espero que as observações anteriores não mereçam a censura
de um refinamento inútil. Pensei que me cabia a mim ilustrar o
processo intelectual pelo qual passamos da inferência condicional
ao assentimento incondicional; e tive apenas a alternativa de me
ser imputado um paradoxo ou uma subtileza.

3 . I n fe r ê n c i a n a t u r al

Iniciei as minhas observações sobre a Inferência dizendo que o


raciocínio se mostra habitualmente como um acto simples, não
como um processo, como se não houvesse meio algum interposto
entre o antecedente e o consequente, e a transição de um para o
outro revestisse a natureza de um instinto - isto é, o processo é de

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 3 27
todo inconsciente e implícito. É necessário, pois, fazer nota desta
Inferência natural ou material, como de um fenómeno inerente à
mente; tanto mais, porque irei ilustrar e defender o que referi acerca
da característica dos processos inferenciais como levados a cabo num
assunto concreto, sobretudo a propósito de eles serem a acção da
própria mente, isto é, pela sua faculdade raciocinadora ou ilativa, e
não por uma simples operação, como nas regras de aritmética.
Afirmo, pois, que o nosso modo mais natural de raciocínio não
é a partir de proposições para proposições, mas de coisas para coisas,
do concreto para o concreto, de totalidades para totalidades. Quer
os consequentes a que chegamos a partir dos antecedentes com que
começamos nos levem ao assentimento, quer só em direcção ao
assentimento, esses antecedentes não são, comummente, reconheci­
dos por nós como temas de análise; ou antes, muitas vezes, são
apenas indirectamente reconhecidos como antecedentes. Passa-se
por alto não só a inferência com os seus processos, mas também o
an-tecedente. O raciocínio é, para a própria mente, uma simples
adi-vinhação ou predição; tal como, à letra, ela é no exemplo dos
entusiastas, que confundem os seus pensamentos com aspirações.
Este é o modo como habitualmente raciocinamos, lidando
directamente com coisas, tais como elas se nos deparam, uma a uma,
no concreto, com um poder intrínseco e pessoal, e não a adopção
consciente de um instrumento ou expediente artificial; e encontra-se
sobretudo exemplificado nos homens sem formação, nos homens de
génio - nos que nada sabem de ajudas e regras intelectuais, nos que
delas não fazem caso algum - nos que carecem de disciplina men­
tal ou estão acima dela. Assim como a verdadeira poesia é um fluxo
espontâneo de pensamento e, por conseguinte, pertence tanto às
mentes rudes como às dotadas, porquanto ninguém se torna poeta
só pelos cânones da crítica, assim também este raciocínio acientífico,

3 28 • John Henry Newman


umas vezes faculdade natural, não cultivada, outras aproximando-se
de um dom, e ainda outras vezes hábito adquirido ou segunda natu­
reza, tem uma fonte mais elevada do que a regra lógica nascitur,-

non jitI . Quando é caracterizado pela precisão, pela subtileza, pela


prontidão e pela verdade, é decerto um dom e uma rareza: nas men­
tes ordinárias, é influenciado e degradado pelo preconceito, pela pai­
xão e pelo interesse próprio; mas, ao fim e ao cabo, esta adivinhação
surge por natureza e a todos nos pertence em certa medida, mais às
mulheres mais do que aos homens, certeiro ou errado conforme o
caso, mas com um êxito geralmente suficiente para mostrar que nele
existe um método, embora esteja implícito.
Um camponês que saiba prever as condições atmosféricas pode,
todavia, ser totalmente incapaz de indicar razões inteligíveis por que
pensa ele que amanhã fará bom tempo e, se tentar fazê-lo, aduzirá
talvez razões inadequadas; mas isso não esmorece a sua confiança no
seu prognóstico. A sua mente não avança passo a passo, mas sente,
de repente e conjuntamente, a força dos diversos fenómenos combi­
nados, embora deles não seja consciente. Além disso, há médicos
que são excelentes no diagnóstico das dores, embora de tal não se
deduza que eles, num caso particular, conseguirão defender a sua
decisão contra um colega, que levantou objecções. São guiados pela
agudeza natural e pela experiência variada; têm os seus próprios
modos idiossincráticos de observar, de generalizar e tirar conclusões;
quando interrogados, podem apenas basear-se na sua própria autori­
dade ou apelar para o evento futuro. Numa novela popular2, aparece
um advogado que «saberia, quase por instinto, se uma pessoa acusa­
da era, ou não, culpada; e tinha já percebido por instinto» que a

I «Nasce-se [p.e., poeta] , não se faz,,.


2 Orley Farm.

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o •
3 29
heroína era culpada. «Não tenho dúvidas de que ela é uma mulher
esperta», afirmou e, de súbito, mencionou um advogado que exercia
no Old Bayley. Portanto, peritos e detectives, quando votados à
investigação de enigmas, em casos do direito civil ou penal, discer­
nem e seguem indícios que prometem uma solução com uma saga­
cidade incompreensível para os homens ordinários. Um dom
comparável é a percepção intuitiva do carácter, presente em certos
homens, enquanto outros dela estão destituídos, tal como outros têm
também ouvido para a música. Que medida comum existe entre os
juíws dos que têm esta intuição e os daqueles que não a possuem?
Que outra coisa, a não ser o evento, pode estabelecer uma diferença
de opinião, que ocorre na sua estimativa de uma terceira pessoa? São
exemplos de uma capacidade natural, ou da natureza melhorada pela
prática e pelo hábito, que possibilita à mente passar prontamente de
um conjunto de factos para outro, não só, repito, sem meios cons­
cientes, mas até sem antecedentes conscientes.
Por vezes, afirmo, esta faculdade ilativa não é desprovida de
génio. Assim parece ter sido a percepção que Newton tinha das ver­
dades matemáticas e físicas, embora a prova não existisse. Pelo
menos, esta é a impressão deixada na minha mente por várias histó­
rias contadas a seu respeito, uma das quais foi apresentada em comu­
nicações públicas, há alguns anos. «Ü professor Sylvester», afirmou-se,
«acabou de descobrir a demonstração da regra de Sir Isaac Newton,
para descobrir as raízes imaginárias das equações . . . . Esta regra fora,
durante o último século e meio, um nó górdio entre os algebristas.
Como a prova era inexistente, os autores envergonhavam-se em geral
de apresentar uma proposição, cuja evidência não assentava em qual­
quer outro fundamento a não ser a fé na sagacidade de Newton»l .

I Guardian, Junho 28, 1 865.

33O • J o h n H e n ry N e w m a n
Tal é o dom dos jovens calculadores que, de vez em quando,
emergem; aparentemente, dispõem de certos atalhos para as con­
clusões, que nem a si mesmos conseguem explicar. Afirmou-se que
alguns conseguiram determinar de improviso que números são pri­
mos - números, penso eu, até sete casas.
Num assunto muito diferente, Napoleão oferece-nos o exemplo
de um génio comparável no raciocínio, graças ao qual era capaz de
considerar coisas no seu domínio, de as interpretar com verdade,
aparentemente sem quaisquer meios de raciocinação. «Pela longa
experiência», diz Alison, «associada a uma grande presteza e precisão
natural do olhar, adquiriu o poder de avaliar, com extraordinária
exactidão, o conjunto da força do inimigo a ele oposta no campo, e
o provável resultado dos movimentos, inclusive dos mais complica­
dos, que tinham lugar nos exércitos contrários . . . . Olhava em redor,
durante algum tempo, com o seu telescópio e imediatamente forma­
va uma ideia clara da posição, das forças e da intenção de todas as
fileiras do inimigo. Pôde assim, com surpreendente rigor, calcular
em poucos minutos, segundo aquilo que ele conseguia ver da sua
formação e da extensão do terreno que ocupavam, a força numérica
dos exércitos de 60 ou 80,000 homens; e se as suas tropas estavam
de todo dispersas, sabia imediatamente de que tempo necessitaria
para as reunir, quantas horas deveriam passar antes de poderem fazer
o seu ataque»l .
É difícil não designar tais pressentimentos claros com o nome
de instinto; e penso que assim se pode chamar, se por instinto se
entender, não um sentido natural, único e idêntico em todos, inca­
paz de cultivo, mas uma percepção de factos sem meios assinalá­
veis de percepção. Há quem consiga dizer de imediato o que é que

1 History. vol. X pp. 286, 287.

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n d m e n co • 331
favorece ou prejudica o seu bem-estar, quais os seus amigos ou ini­
migos, o que lhe acontecerá e como o deverá enfrentar. A presença
de espírito, a investigação dos motivos, o talento para a réplica, são
exemplos deste dom. Quanto à adivinhação do perigo pessoal que
se encontra no jovem e no inocente, deparamos com uma descri­
ção sua num dos romances de Scott, em que a heroína, «sem con­
seguir descobrir . o que havia de errado nas cenas de luxo inabitual
que a rodeavam, ou nos modos da sua hospedeira», terá, contudo,
sentido «Uma apreensão instintiva de que nem tudo batia certo -
um sentimento da mente humana», chega o autor a dizer, «aliado
talvez à sensação do perigo, de que os animais dão provas, quando
muito próximos dos inimigos naturais da sua raça, e que leva as
aves a aninhar-se, quando o gavião se encontra no ar, e as feras a
tremer, quando o tigre ronda o deserto» l .
Uma biografia religiosa, publicada não há muito, fornece-nos
um exemplo desta percepção espontânea da verdade, no campo da
doutrina revelado. <<A sua fé sólida», diz o autor do prefácio, «era tão
viva no seu carácter que quase se assemelhava a uma intuição da pers­
pectiva integral da verdade revelada. Que um erro contra a fé se ocul­
te sob expressões mesmo abstrusas, e o seu seguro instinto logo o
encontrava. Fiz esta experiência, várias vezes. Ela não conseguia isolar
a heresia pela análise, mas via, sentia e sofria com a sua presença»2.
O mesmo se diga das grandes verdades fundamentais da reli­
gião, natural e revelada, e no tocante à massa dos homens religiosos:
.
estas verdades podem, sem dúvida, ser demonstradas e defendidas
por uma quantidade de argumentos lógicos invencíveis, mas esse
não é, habitualmente, o método pelo qual esses mesmos argumentos

1 Peveril ofthe Peak.


2 Life ofMother Margareth M Hallahan, p. VII.

332 • J o h n H e n ry N e w m a n
lógicos se insinuam nas nossas mentes. As razões, em cuja base afir­
mamos a origem divina da Igreja e as verdades anteriores que nos
são ensinadas pela natureza - a existência de Deus, a imortalidade
da alma - são sentidas pela maioria dos homens como recônditas e
impalpáveis, em proporção à sua profundidade e realidade. Assim
como não conseguimos ver-nos a nós mesmos, assim também não
podemos divisar bem os motivos intelectuais que tão intimamente
são nossos, e que brotam da genuína constituição das nossas mentes;
e embora recusemos aceitar a noção de que a religião não tem argu­
mentos irrefutáveis a seu favor, contudo, as tentativas de argumen­
tar, em relação a um hic et nunc individual, apenas confundirão, às
vezes, a sua apreensão dos objectos sagrados e roubarão à sua devo­
ção quase tanto quanto acrescentam ao seu conhecimento.
Depara-se com isto no caso de outras percepções, além do da fé.
É o caso da natureza contra a arte: se possível, a natureza e a arte
deveriam, sem dúvida, combinar-se, mas, por vezes, são incompatí­
veis. Assim, no caso dos jovens calculadores, afirma-se, não sei com
que verdade, que ensinar-lhes as regras habituais da aritmética é pôr
em perigo ou destruir o dote extraordinário. E homens que têm o
dom de tocar um instrumento de ouvido receiam, por vezes, apren­
der segundo as regras, para que não o venham a perder.
Há uma analogia, a este respeito, entre Raciocinação e Memó­
ria, embora a última se possa exercer sem antecedentes ou meios,
enquanto a primeira os exige, na sua genuína ideia. Ao mesmo
tempo, a associação tem tanto a ver com a memória que talvez não
consigamos, sem isenção, considerar a memória, e também o
raciocínio, como dependentes de certas condições prévias. Escre­
ver, como já observei, é uma memoria technica, ou uma lógica da
memória. Ora bem, talvez se venha a descobrir, penso eu, que, por
indispensável que seja o uso das letras, na realidade enfraquecemos a

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 333
nossa memória em proporção ao nosso · hábito de confiar a memo­
randos tudo o que desejamos lembrar. Naturalmente, na medida em
que a nossa memória é fraca ou sobrecarregada e, por isso, traiçoeira,
não podemos agir de outro modo; mas, no caso de homens de gran­
de memória em qualquer assunto particular, como no das datas,
todos os expedientes artificiais, desde os «Trinta dias tem Setembro»,
etc., até às mais temíveis fórmulas, oferecidas para seu uso, são tão
difíceis e repulsivas como sadio e fácil é para eles o exercício natural
da memória. E tal como o argumentador perspicaz e prático, que de
repente lobriga as conclusões, se sente incomodado sob a verruma
de um lógico, ao ser oprimido e impedido, como David na armadu­
ra de Saúl, por aquilo que se intenta como um benefício.
Não tenho necessidade de dissertar mais sobre esta parte do
tema. O que se chama raciocínio é, muitas vezes, apenas um modo
peculiar e pessoal de abstracção, e então, como a memória, pode
dizer-se que existe sem antecedentes. É um poder de olhar para as
coisas sob um aspecto particular, de especificar assim as suas relações
internas e externas. E de harmonia com a subtileza e a versatilidade
do seu dom, os homens conseguem ler com justeza, variedade e
fecundidade, o que se lhes põe diante. Por isso também, no nosso
intercâmbio com os outros, no comércio e em questões familiares,
nas transacções sociais e políticas, uma palavra ou um acto, da parte
de outrem, é às vezes uma revelação súbita; invade-nos a luz, altera­
-se todo o nosso juízo sobre um certo curso dos acontecimentos, ou
um empreendimento. Determinamos correctamente ou de outro
modo, como calhar; mas, em qualquer dos casos, é por um sentido
que nos é peculiar, pois outro pode ver os objectos que usamos e
dar-lhes uma interpretação de todo diferente, porquanto abstrai
outro conjunto de noções gerais a partir dos mesmos fenómenos que
também a nós se apresentam.

334 • J o h n H e n ry N e w m a n
O que tenho estado a dizer do Raciocinamento pode afirmar­
-se do Gosto, e é confirmado pela óbvia analogia que entre ambos
existe. Gosto, habilidade, invenção nas Belas Artes - e assim,
também, discrição ou juízo na conduta - são exercidos esponta­
neamente, uma vez adquiridos, e poderiam não fornecer uma
explicação clara deles próprios ou do seu modo de procedimento.
Não seguem a regra, embora até certo ponto seu exercício se possa
analisar e possa assumir a feição de uma arte ou de um método.
Mas estes paralelos apresentar-se-nos-ão sem demora.
Irei abordar, agora, uma ulterior peculiaridade desta raciocinação
natural e espontânea. Esta faculdade, tal como efectivamente em nós
se encontra, que caminha do concreto para o concreto, está ligada a
um assunto definido, de acordo com o indivíduo. Pese a Aristóteles,
recuso-me a admitir que o raciocínio genuíno seja uma arte instru­
mental; e pese ao Dr. Johnson, afirmarei que o génio, na medida em
que se manifesta na raciocinação, não se ajusta a todos os empreendi­
mentos, mas tem a sua matéria peculiar e é circunscrito no seu âmbi­
to. Ninguém, por um momento, esperaria que, lá por Newton e
Napoleão terem ambos génio para a raciocinação, poderia Napoleão
ter generalizado o princípio da gravitação, ou Newton vislumbrado
como concentrar cem mil homens em Austerlitz. A faculdade racioci­
nadora, pois, tal como se encontra nos indivíduos, não é um instru­
mento geral de conhecimento, mas tem a sua província, ou é o que se
poderia chamar departamental. Não é tanto uma faculdade quanto
uma colecção de faculdades similares ou análogas sob um mesmo
nome; há nela realmente tantas faculdades quantos os assuntos dis­
tintos, embora na mesma pessoa alguns deles possam, porventura,
estar unidos - ou antes, embora alguns homens tenham uma espé­
cie de poder literário em argumentar em todos os temas, de omini sci­
bili, um poder amplo, mas não profundo ou efectivo.

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o •
335
Esta é, sem dúvida, a conclusão a qi:te somos levados pela nossa
experiência ordinária dos homens. É quase proverbial que um mate­
mático obstinado possa não ter cabeça alguma para aquilo que se
chama a prova histórica. Experimentalistas bem sucedidos não preci­
sam de ter talento para a investigação ou a defesa legal. Um homem
de negócios sagaz pode ser um mau argumentador em questões filo­
sóficas. Homens de Estado e políticos capazes foram, até agora,
excêntricos ou supersticiosos nas suas concepções religiosas. É notó­
rio até que ponto se pode tornar ridículo um homem inteligente que
se atreva a argumentar com teólogos, críticos ou geólogos profissio­
nais, embora sem deficiências positivas no conhecimento da sua
matéria. Priestley, grande na electricidade e na química, não passou
de um pobre historiador eclesiástico. O autor do Minute Philosopher
é também o autor de The Analyst. Newton escreveu não só os seus
Principia, mas também os seus comentários sobre o Apocalipse;
Cromwell, cujas acções tinham o sabor da mais ousada lógica, foi
um orador confuso. Nestes e em vários exemplos similares, a defi­
ciência não residia tanto na ignorância dos factos quanto na incapa­
cidade de lidar adequadamente com esses factos; em modos débeis
ou obstinados de abstracção, de observação, de comparação, de aná­
lise e inferência, que nada poderia ter impedido excepto o que estava
ausente - um talento específico e o seu lesto exercício.
Já referi, como exemplo, a faculdade da memória; também aqui
ela me será de ajuda. Posso formar uma ideia abstracta da memória,
chamar-lhe uma faculdade que tem por objecto seu todos os factos
passados da nossa experiência pessoal; mas, na realidade, isto não
passa de uma ilusão; pois não existe semelhante dom de memória
universal. Todos decerto recordamos de algum modo, ao racioci­
narmos, em todos os campos; mas refiro-me ao recordar correcta­
mente, tal como mencionei o raciocinar correcto. Na realidade, a

336 • J o h n H e n ry N e w m a n
memoria, enquanto talento, não é uma faculdade indivisível, mas
um poder de reter e de evocar o passado neste ou naquele departa­

mento da nossa experiência, e não em qualquer um. Duas memórias,


ambas especialmente retentivas, podem também ser incomensuráveis.
Alguns homens podem recitar o canto de um poema, ou uma boa
parte de um discurso, depois de o terem lido só uma vez, mas não
têm cabeça para as datas. Outros têm grande capacidade para o
vocabulário das línguas, mas nada conservam das pequenas ocorrên­
cias do dia-a-dia ou do ano. Outros nunca esquecem qualquer
enunciado que tenham lido e podem indicar o volume e a página,
mas não têm memória para rostos. Conheci gente que podia, sem
esforço, percorrer a sucessão dos dias em que a Páscoa calhou, ao
longo dos últimos anos; ou dizer onde estava ou o que fazia, num
dado dia, num dado ano; ou recordar com exactidão os nomes de
baptismo de amigos e estranhos; ou enumerar numa ordem exacta
os nomes de todas as lojas desde o Hyde Park Comer até ao Bank;
ou que tinha um tal domínio do calendário da Universidade que era
capaz de confirmar, ao acaso, um exame na história académica de
qualquer M.A. e creio que, na maior parte destes casos, o talento, no
seu carácter excepcional, não se estendia além de vários tipos de
assuntos. Há centenas de memórias, como há centenas de virtudes.
A virtude é, sem dúvida, uma só em abstracto; mas, na realidade, as
naturezas gentis e afáveis não têm de ser heróicas, e as mentes pru­
dentes e autocontroladas não precisam de ser generosas. Quando
muito, semelhante virtude é uma só in posse, como desenvolvida no
concreto, toma a forma de espécies que de nenhuma forma se impli­
cam umas às outras.
O mesmo se passa com a Raciocinação; assim como nos en­
tregaremos a Newton para conclusões físicas, e não teológicas, a
Wellington para a sua experiência militar, não para a qualidade de

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o •
337
homem de Estado, assim também se revela justa em geral a máxi­
ma, Cuique in arte sua credendum est. ou, para usar as grandes pala­
vras de Aristóteles, «Somos forçados a prestar atenção às sentenças
e às opiniões indemonstradas das pessoas experimentadas e de ida­
de, não menos do que às demonstrações; pois, em virtude de
terem o olho da experiência, detêm elas também os princípios das
coisas» l . Mais do que confiar na ciência lógica, devemos confiar
nas pessoas, a saber, naquelas que pelo longo trato com a sua maté­
ria tem um direito a julgar. E se pessoalmente desejarmos partilhar
as suas convicções e os fundamentos delas, devemos seguir a sua
história, aprender como elas aprenderam. Temos de encarar o seu
assunto particular como elas o encararam, começar pelo começo,
entregar-nos a ele, depender mais da prática e da experiência do
que do raciocínio e, assim, alcançar o discernimento mental da
verdade, seja qual for o seu tema, que os nossos mestres, antes de
nós, alcançaram. Seguindo este curso, talvez possamos fazer parte
do seu número e, então, apoiamo-nos correctamente em nós mes­
mos, deixando-nos guiar pelo nosso próprio juízo moral ou inte­
lectual, e não pela nossa habilidade na argumentação.
Esta doutrina, enunciada acima no essencial pelo grande filó­
sofo da antiguidade, é exposta mais plenamente numa passagem
de Hesíodo, por ele citada noutro lugar: «Ü melhor de todos», diz
o poeta, «é aquele que é sábio pela sua própria compreensão; em
seguida, o melhor é aquele- que é sábio pela perspicácia de outros;
mas quem não é capaz nem de ver, nem de ouvir, para nada é
bom». Por conseguinte, o juízo em todos os assuntos concretos é a
faculdade arquitectónica; e o que se pode chamar o Sentido Ilati­
vo, ou juízo recto no raciocinamento, é um ramo seu.

I Eth. Nicam. VI. 1 1 , fin.

338 • J o h n H e n r y Newman
CAPÍTULO 9

Ü S E N T I D O I LAT IVO

O meu objectivo, nas páginas precedentes, não foi instituir uma


teoria que possa explicar os fenómenos do intelecto de que elas tra­
tam, a saber, os que caracterizam a inferência e o assentimento,
mas clarificar qual a questão de facto a seu respeito, isto é, quando
é que o assentimento se dá a proposições que são inferidas, e sob
que circunstâncias. Nunca tive em mente uma tentativa que em
mim seria ambiciosa e que, nas mãos de outros, falhou - se é que
se pode dizer mais ou menos infrutífera a tentativa que, feita
embora pelas mentes mais brilhantes, não conseguiu convencer os
adversários.
Achei-me, em especial, incapaz de raciocínios antecedentes no
exemplo de uma questão de facto. Há quem, argumentando a
priori, afirme que, em virtude de a experiência, pelo silogismo,
levar só a probabilidades, a certeza é sempre um erro. Outros há
que, embora rejeitem esta conclusão, aceitam o princípio a priori
suposto no argumento e, por conseguinte, a fim de reivindicar a
certeza do nosso crescimento, são obrigados a recorrer à hipótese
de intuições, de formas intelectuais e quejandos, que nos perten­
cem por natureza e que, supostamente, elevam a nossa experiência
a algo mais do que ela é em si própria. Preservando seriamente,
como farei, com esta última escola de filósofos, a certeza do conhe­
cimento, penso que, em vista da sua demonstração, é suficiente
apelar para a voz comum da humanidade. Deve tal considerar-se
uma operação normal da nossa natureza, que os homens, no con-

Uma G r a m á t i c a do Ass c n t i m c: n t o • 339


ereto e em geral, exemplificam. É uma lei das nossas mentes,
exemplificada em grande escala na acção, quer a priori ela deva, ou
não, ser uma lei. O nosso acto de esperar é uma prova de que a
esperança, enquanto tal, não é uma extravagância; e a nossa posse
da certeza é uma prova de que não é uma fraqueza ou uma absur­
didade estar certo. Não é incumbência minha determinar como é
que poderemos estar certos; basta-me que a certeza seja sentida. A
isto chamam os académicos, penso eu, abordar um assunto in
facto, em contraste com in fteri. Se me aventurasse ao último, esta­
ria a cair na metafísica; mas o meu objectivo tem um carácter prá­
tico, tal como o de Butler na sua Analogy, com esta diferença: ele
trata da probabilidade, da dúvida, da conveniência e do dever,
enquanto nestas páginas, sem excluir, longe disso, a questão do
dever, me restringiria à verdade das coisas, e à certeza da mente
acerca desta verdade.
A certeza [subjectiva- certitude] é um estado mental: a certe­
za [objectiva - certainry] é uma qualidade das proposições. Cha­
marei certas àquelas proposições que são tais que delas estou certo.
A certeza [subjectiva] não é uma impressão passiva suscitada na
mente a partir de fora, por compulsão argumentativa; em todas as
questões concretas (também nas abstractas, pois embora o raciocí­
nio seja abstracto, a mente que delas julga é concreta) é um reco­
nhecimento activo das proposições como verdadeiras, tal como o
dever de cada indivíduo é actuar sob um mandamento da razão e,
quando esta proíbe, refrear-se. E a razão nunca nos manda estar
certos, excepto acerca de uma prova absoluta; e semelhante prova
nunca nos pode ser facultada pela lógica das palavras, pois, se a
certeza é da mente, também o é o acto de inferência, que a ela
conduz. Todo aquele que raciocina é o seu próprio centro; e
nenhum expediente para alcançar uma medida comum das mentes

3 40 • J o h n H e n ry N e w m a n
pode anular esta verdade; mas, então, prossegue a questão, haverá
algum critério da exactidão de uma inferência tal que possa ser o
nosso garante de que a certeza é correctamente suscitada a favor da
proposição inferida, já que, como afirmei, o nosso garante não
pode ser científico? Afirmei já que o único e definitivo juízo sobre
a validade de uma inferência em questões concretas é confiado à
acção pessoal da faculdade de raciocinar, a cuja perfeição ou virtu­
de dei o nome de Sentido Ilativo, um uso da palavra «Sentido»
comparável ao que dele fazemos em «bom senso», «senso comum»,
um «sentido da beleza», etc. - e eu próprio não vejo qualquer
outro modo de ir mais longe do que isto, na resposta à questão.
Todavia, posso ao menos explicar, com maior amplidão, o signifi­
cado que lhe atribuo; por conseguinte, falarei agora, primeiro, da
sanção do Sentido Ilativo, em seguida, da sua natureza e, por fim,
do seu âmbito.

1. A s a n ç ã o do s e n t i d o i l a t ivo

Estamos num mundo de factos, e deles fazemos uso; pois nada


mais há para usar. Não discutimos com eles, mas tomamo-los
como são, servimo-nos do que eles por nós podem fazer. Seria des­
locado pedir ao fogo, à água, à terra e ao ar as suas credenciais, por
assim dizer, para agirem sobre nós ou nos servirem. Damos-lhes o
nome de elementos, temo-los em conta, fazemos com eles o
melhor que podemos. Especulamos a seu respeito, no nosso lazer.
Mas aquilo a cujo respeito somos ainda menos capazes de duvidar
ou abstrair, no nosso ócio ou não, é aquilo que é ao mesmo tempo
o seu complemento e o seu testemunho, quer dizer, nós próprios.

Uma Gramática do Assen timento • 3 41


Somos conscientes dos objectos da natureza externa, reflectimos e
agimos sobre eles, e a esta consciência, reflexão e acção chamamos
a nossa racionalidade. E assim como usamos os (chamados) ele­
mentos, sem primeiro criticarmos aquilo que não dominamos,
assim também é muito mais estulto em nós criticar ou minorar a
nossa própria natureza, que nada mais é do que nós próprios, em
vez de a empregarmos de harmonia com o uso que ela habitual­
mente tolera. O nosso ser, com as suas faculdades, mente e corpo,
é um facto que não se discute, pois todas as coisas lhe estão neces­
sariamente referidas, e não ela às outras coisas.
Se eu não puder pressupor que existo, e de um modo particu­
lar, isto é, com uma constituição mental particular, nada tenho
sobre que especular, e seria melhor deixar sozinha a especulação.
Tal como sou, é o meu tudo; este é o meu ponto de vista essencial,
e deve tomar-se como garantido; de outro modo, o pensamento é
apenas um divertimento ocioso, com o qual não vale a pena preo­
cupar-se. Não existe um meio entre usar as minhas faculdades, tal
como as tenho, e arrojar-me ao mundo externo segundo o impulso
aleatório do momento, como chuvisco sobre a superfície das
ondas, e esquecer simplesmente o que sou.
Sou o que sou, ou nada sou. Não posso pensar, reflectir ou jul­
gar acerca do meu ser, sem partir do verdadeiro ponto que tenho
em mira, ao inferir. Todas as minhas ideias são pressupostos, movo­
-me sempre num círculo. Não posso evitar ser suficiente para mim
próprio, pois não consigo fazer de mim qualquer outra coisa, e
alterar-me é destruir-me. Se não fizer uso de mim próprio, não
tenho mais nenhum Si mesmo para usar. O meu único ofício é
clarificar o que sou, a fim de o pôr em uso. Para a demonstração
do valor e da autoridade de qualquer função que possuo basta ser
capaz de asserir que ela é natural. Tenho de descobrir as leis sob as

3 42 • J o h n H e n ry Newman
quais vivo. A minha primeira lição elementar do dever é a da resig­
nação às leis da minha natureza, sejam elas quais forem; a minha
primeira desobediência é ser impaciente com aquilo que sou, satis­
fazer uma aspiração ambiciosa àquilo que não posso ser, acalentar
uma desconfiança dos meus poderes, desejar mudar as leis que a
mim próprio são idênticas.
Verdades como estas, demasiado óbvias para se dizerem irresistí­
veis, são ilustradas por aquilo que contemplamos na natureza uni­
versal. Cada ser é, num sentido verdadeiro, suficiente por si mesmo,
capaz, portanto, de satisfazer as suas necessidades particulares. É
uma lei geral que, seja o que for que se encontre como função ou
atributo de qualquer classe de seres, ou a ela natural, se ajusta a ele,
na sua substância, e está ao serviço da sua existência, e não se pode
olhar correctamente como uma deficiência ou uma monstruosida­
de. Nenhum ser, cujas partes constitutivas estivessem entre si em
guerra, poderia durar. Mais ainda, existe em cada ser o princípio
da vitalidade, que tem um carácter salutar e curativo, que congrega
todas as suas partes e funções num só todo e continuamente rejeita
e corrige os danos que lhe advêm, quer de dentro quer de fora,
embora não mostre tendência alguma para remover os seus atribu­
tos, como se fossem estranhos à sua natureza. Há animais com
membros e órgãos, hábitos, instintos, apetites, ambientes, que
actuam conjuntamente em prol da segurança e do bem-estar do
todo; e, após todas as excepções, pode dizer-se que cada um deles
tem, segundo a sua própria espécie, uma perfeição da natureza. O
homem é o mais elevado dos animais e, na realidade, mais do que
um animal, porquanto tem uma mente; isto é, tem uma natureza
complexa diferente da deles, com um objectivo superior e uma
perfeição específica; mas, apesar de tudo, o facto de outros seres
encontrarem o seu bem no uso da sua natureza particular é uma

Uma G r a m á r i c a d o A s s e n t i m e n t o •
3 43
razão para pressagiar que usar devidamente a nossa é, ao mesmo
tempo, o nosso interesse e a nossa necessidade.
Qual a peculiaridade da nossa natureza, em contraste com os
animais inferiores, à nossa volta? Consiste ela em que o homem,
embora não consiga mudar aquilo com que nasceu, é um ser de
progresso em relação à sua perfeição e ao seu bem característico.
Outros seres são completos a partir da sua primeira existência, na
linha da excelência que lhes coube em sorte; mas o homem, de iní­
cio, nada tem de realizado (para usar a palavra) , deve para si pro­
duzir mais capital mediante o exercício daquelas faculdades que
são a sua herança natural. Por isso, avança gradualmente até à ple­
nitude do seu destino original. Tal progresso não é nem mecânico
nem necessário; está confiado aos esforços pessoais de cada indiví­
duo da espécie; cada um de nós tem a prerrogativa de completar a
sua natureza imperfeita e rudimentar, de desenvolver a sua própria
perfeição a partir dos elementos vivos com que a sua mente come­
çou a existir. Dom seu é ser o criador da sua própria suficiência; ser
enfaticamente o criador de si mesmo. Tal é a lei do seu ser, a que
não se pode subtrair; e ele está obrigado, ou antes é levado, a reali­
zar seja o que for que esteja implicado nesta lei.
E aqui sou remetido para a relação destas observações com o
meu tema. Pois a lei do progresso é levada a cabo mediante a aqui­
sição do conhecimento, cujos instrumentos imediatos são a infe­
rência e o assentimento. Supondo, então, que o avanço da nossa
nan�reza, em nós próprios individualmente e no tocante à família
humana, é, para cada qual no seu lugar, um dever sagrado, segue­
-se que este dever está intimamente unido ao uso correcto dos dois
instrumentos principais do seu cumprimento. E assim como não
adquirimos o conhecimento da lei do progresso graças a qualquer
visão a priori do homem, mas encarando-o como a interpretação

3 44 • J o h n H e n ry N e w m a n
que por ele mesmo é fornecida, em larga escala, na acção ordinária
da sua natureza intelectual, assim também devemos recorrer a ele
próprio, como um facto, e não a qualquer teoria antecedente, a
fim de descobrir qual a lei da sua mente, em relação às duas facul­
dades em questão. Se, pois, semelhante apelo me confirma no juí­
zo, por mim feito, de que o decurso da inferência é sempre, mais
ou menos, obscuro, enquanto o assentimento é sempre distinto e
definido; se, todavia, aquilo que é absoluto na sua natureza se
segue assim, de facto, ao que na manifestação exterior é complexo,
indirecto e recôndito, que nos resta senão tomar as coisas como
elas são e resignar-nos ao que encontramos? Ou seja, em vez de
inventarmos o que não pode ser, uma ciência suficiente do raciocí­
nio que consiga compulsar a certeza em conclusões concretas, pro­
clamar que não existe nenhum teste derradeiro da verdade, além
do testemunho dado à verdade pela própria mente e que este fenó­
meno, por mais perplexo que o possamos achar, é uma característi­
ca normal e inevitável da constituição mental de um ser como o
homem, num cenário como o mundo. O seu progresso é um cresci­
mento vivo, não um mecanismo; e os seus instrumentos são actos
mentais, e não as fórmulas e os arranjos da linguagem.
Estamos, hoje, acostumados a realçar a harmonia do universo;
e todos aprendemos a máxima, tão poderosamente inculcada pelo
nosso filósofo inglês, de que, nas nossas inquirições das suas leis,
devemos destruir, sem dó nem piedade, todos os ídolos do intelec­
to, sujeitar a natureza, colaborando com ela. O conhecimento é
poder, pois nos dá a possibilidade de usar princípios eternos, que
não podemos alterar. Também assim ele é neste microcosmo, a
mente humana. Acompanhemos, então, Bacon mais de perto, sem
distorcer as faculdades da mente, de acordo com as exigências de
um optimismo ideal, em vez de nos preocuparmos com modos de

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o •
345
pensamento peculiares à nossa natureza e, conscienciosamente, os
examinarmos nos nossos exercícios intelectuais.
Naturalmente, não me detenho aqui. Assim como a estrutura
do universo nos fala de Quem o fez, assim também as leis da mente
são a expressão, não da mera ordem constituída, mas da Sua vonta­
de. Encontrar-me-ia a elas sujeito, mesmo se não fossem leis Suas;
mas, visto que uma das suas funções genuínas é falar-me dEle, elas
arrojam uma luz reflexa sobre si mesmas, e eu substituo a resignação
ao meu destino por uma ridente cooperação com uma Providência
que tudo governa. Podemos aceitar alegremente as dificuldades que
hão-de surgir na nossa constituição mental e na interacção das nos­
sas faculdades, se conseguirmos aperceber-nos de que Ele no-las deu,
e para nós as pode governar. Podemos seguramente acatá-las como
são, usá-las como as encontramos. É Ele que nos ensina todo o
conhecimento; e o modo como o adquirimos é o Seu modo. Ele
modifica-o, de harmonia com o assunto; mas quer tenha posto,
diante de nós, na nossa ocupação particular, o caminho da observa­
ção ou do experimento, da especulação ou da pesquisa, da demons­
tração ou da probabilidade, quer sondemos o sistema do universo ou
os elementos da matéria e da vida ou da história da sociedade huma­
na e das épocas passadas, se empreendermos o caminho adequado ao
nosso tema, paira sobre nós a Sua bênção e descobriremos, além de
abundantes temas de simples opinião, os materiais na devida medida
da prova e do assentimento.
E, sobretudo, graças a esta disposição das coisas, aprendere­
mos, no tocante às inquirições religiosas e éticas, quão pouco con­
seguimos levar a cabo, por muito que nos esforcemos, sem essa
Bênção; pois, como que por um propósito estabelecido, Ele tornou
esta senda do pensamento mais áspera e tortuosa do que outras
indagações, para que a genuína disciplina imposta às nossas men-

346 • John Henry Newman


tes na descoberta d'Ele, as possa moldar na devoção que Lhe é devi­
da, uma vez encontrado. «Verdadeiramente, és um Deus escondi­
do, o Deus de Israel, o Salvador» - eis a verdadeira lei da Sua
conduta connosco. Precisamos, sem dúvida, de uma chave para o
labirinto que a Ele nos levará; e quem de nós pode esperar apossar­
-se dos verdadeiros pontos de partida do pensamento para este
empreendimento, quem, na base de todos eles, captará a sua cor­
recta direcção, para os seguir até aos seus justos limites, para ava­
liar, ajustar e combinar devidamente os vários raciocínios em que
eles terminam, de modo a chegar com segurança àquilo que vale a
pena assegurar com qualquer trabalho, sem uma especial ilumina­
ção Sua? Tal é a conduta da Sabedoria em relação à alma eleita.
«Ela infundirá nele o amor, o tremor e o juízo; torturá-lo-á com a
tribulação da Sua disciplina, até o pôr à prova com as Suas leis e
confiar na sua alma. Então, fortalecê-lo-á, virá direita a ele e dar­
-lhe-á a alegria».

2. A n at u re z a do s e n t i d o i l ativo

É a mente que raciocina e supervisiona os seus próprios raciocínios,


não qualquer aparelho técnico de palavras e de proposições. A este
poder de julgar e de inferir, quando na sua perfeição, chamo o Senti­
do Ilativo; e ilustrá-lo-ei da melhor maneira, referindo-me a faculda­
des paralelas que, comummente, sem dificuldade reconhecemos.
Por exemplo, como é que a mente cumpre a sua função de
orientação e de controlo supremos em questões de dever, de trato
social e de gosto? Em todas estas acções isoladas do intelecto, o
indivíduo é supremo e responsável para consigo mesmo; mas pode

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 3 47
também, sob certas circunstâncias, estar j ustificado a opor-se ao
juízo do mundo inteiro, embora se sirva das regras para sua vanta­
gem própria, de acordo com o seu alcance, e esteja portanto obri­
gado a usá-las. No tocante ao dever moral, o sujeito é plenamente
analisado nos conhecidos tratados éticos de Aristótelesl . À faculda­
de que guia a mente em questões de conduta dá-lhe ele o nome de
phronesis ou juízo. Este é o princípio orientador, controlador e
determinante nas questões pessoais e sociais. Que é ser virtuoso,
como adquirir a justa ideia e o padrão da virtude, como nos have­
mos de aproximar, na prática, do nosso próprio padrão, o que é
recto e mau num caso particular - para as respostas completas e
exactas a estas e semelhantes questões, o filósofo não nos remete
para nenhum código de leis, para nenhum tratado moral, porque
nenhuma ciência da vida, aplicável ao caso de um indivíduo, foi,
ou pode alguma vez ser, escrita. Tal é a doutrina de Aristóteles, e é
indubitavelmente verdadeira. Um sistema ético pode fornecer leis,
regras gerais, princípios de orientação, exemplos numerosos, suges­
tões, marcos, restrições, cautelas, distinções, soluções de dificulda­
des críticas ou árduas; mas quem as aplicará a um caso particular?
Aonde podemos ir, excepto ao intelecto vivo, nosso ou de outrem?
O que está escrito é demasiado vago, demasiado negativo para as
nossas necessidades. Manda-nos evitar os extremos; mas não pode
descobrir para nós, segundo a nossa necessidade pessoal, a média
dourada. O oráculo autorizado, que decidirá a nossa senda, é algo
mais inquisitivo e multiforme do que as generalizações áridas que

I Aristóteles, na sua Etica a Nicómaco, menciona a phrónêsis como a virtude do doxastikón em

geral, a qual se ocupa geralmente da matéria contingente (VI 4) ou do que eu chamei o concreto;
menciona também a sua função que, quanto à matéria, é alêtheuein tô kataphdnai hê apophdnai
(ibid. 3); todavia, nesta obra, não se ocupa dela na sua relação geral com a verdade e com a afirma­
ção da verdade, mas só enquanto tem a ver com tà praktà.

348 • J o h n H e n ry N e w m a n
os tratados nos podem fornecer, que são tanto mais distintas e da­
ras quanto menos delas precisamos. Tem ele a sua sede na mente
do indivíduo, que é assim a sua própria lei, o seu próprio mestre, o
seu próprio juiz nos casos especiais do dever, que lhe são pessoais.
Dimana de um hábito adquirido, embora tenha a sua primeira
origem na própria natureza, é formado e amadurecido pela prática e
pela experiência; não se manifesta em qualquer largueza de vistas,
em qualquer compreensão filosófica das relações mútuas de dever
com dever ou em qualquer consistência nos seus ensinamentos, mas
é uma capacidade suficiente para a ocasião, decidindo o que deve ser
feito, aqui e agora, por esta determinada pessoa, sob estas determina­
das circunstâncias. Nada decide de hipotético, não determina o que
um homem deve fazer daqui a dez anos, ou o que outro deve fazer
nesta altura. Pode, de facto, acontecer que ele, como agora, decida
daqui a dez anos, e decidir agora um segundo caso como também
agora decidiu um primeiro; todavia, o seu acto presente é para o pre­
sente, não para o que está distante ou para o futuro.
A lei estatal ou pública é inflexível; porém, esta regra mental é
não só circunstancial e particular, como também tem uma elastici­
dade que, na sua aplicação a casos individuais, não intenta, como
afirmei, preservar a aparência de consistência. Nos tempos antigos,
a régua do pedreiro, utilizada em Lesbos, não era, segundo Aristó­
teles, de madeira ou de ferro, mas de chumbo, de modo a permitir
o seu ajustamento à superfície irregular das pedras reunidas na
obra. É assim que o filósofo ilustra a natureza da equidade em con­
traste com o direito, e tal é a phronesis, a partir da qual a ciência da
moral elabora as suas regras e recebe o seu complemento.
A este respeito, claro está, a lei da verdade difere da lei do
dever, porque os deveres mudam, as verdades nunca; embora a ver­
dade seja sempre uma só e a mesma, e o assentimento da certeza

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n to • 3 49
seja imutável, contudo, os raciocínios que nos levam à verdade e à
certeza são muitos e distintos e variam com o investigador; e não é
com o assentimento, mas com o princípio controlador nas inferên­
cias, que estou a comparar a phronesis. Com esta tenção, advirto que
a regra de conduta para um homem nem sempre é a regra para
outro, embora em abstracto seja sempre uma só e a mesma, no seu
princípio e no seu fim. Para aprender o seu dever no seu caso pecu­
liar, cada indivíduo tem de recorrer à sua própria regra; e se esta não
está suficientemente desenvolvida no seu intelecto para a sua necessi­
dade, então dirige-se a outra autoridade viva, presente, para a forne­
cer, e não à letra morta de um tratado ou de um código. Uma
autoridade viva, presente, ele próprio ou outrem, é o seu guia ime­
diato em questões de carácter pessoal, social ou político. Ao comprar
e vender, em contratos, no trato com os outros, ao dar e receber, ao
pensar, ao falar, no fazer e no trabalho, na fadiga, no perigo, nos seus
divertimentos e prazeres, cada um dos seus actos, para ser louvável,
deve ser consonante com este sentido prático. É assim, e não pela
ciência, que ele aperfeiçoa as virtudes da justiça, do autodomínio, da
magnanimidade, da generosidade, da gentileza e todas as outras. A
phronesis é o princípio regulador de cada uma delas.
Estas últimas palavras levam-me a fazer outra observação. Duvi­
do se será correcto, falando estritamente, considerar a phronesis como
uma faculdade geral, que orienta e aperfeiçoa ao mesmo tempo todas
as virtudes. Assim entendida, pouco melhor é do que um termo abs­
tracto, incluindo nele um leque de faculdades análogas diversamente
ajustadas a virtudes isoladas. Falando com propriedade, há tantas
espécies de phronesis quantas as virtudes; pois o juízo, o bom senso ou
o tacto, que é conspícuo na conduta de um homem num só tema,
não é noutro necessariamente indiciável. Como nos casos paralelos
da memória e do raciocínio, ele pode ser grande num aspecto do seu

3 50 • J o h n H e n ry N e w m a n
carácter, e mesquinho noutro. Pode ser exemplar na sua família e,
todavia, cometer uma fraude nos rendimentos; pode ser justo e cruel,
corajoso e sensual, indiscreto e paciente. E se tal acontece com as vir­
tudes morais, verifica-se ainda mais plenamente quando estabelece­
mos uma comparação entre o seu carácter privado e o seu público.
Um homem bom pode ser um mau rei; pessoas perdulárias foram
grandes homens de Estado ou líderes políticos magnânimos.
Posso, pois, continuar ainda a falar das diversas vocações e
profissões que abrem possibilidades ao exercício dos grandes talen­
tos, já que também estes não amadurecem em virtude da simples
regra, mas pela habilidade e sagacidade pessoais. São tão diversos
como a perícia em fazer alegações e interrogatórios, a capacidade de
orientar um debate no Parlamento, de intervir numa reunião públi­
ca, de comandar um exército; e também aqui advirto que, embora o
princípio director em cada caso seja denominado pelo mesmo nome
- sagacidade, habilidade, tacto ou prudência - contudo, não exis­
te uma só faculdade directora que chegue à eminência em todas as
suas diversas linhas de acção em comum, mas os homens serão exce­
lentes numa delas, sem qualquer talento para as restantes.
A comparação pode prosseguir-se no caso das Belas-Artes; em­
bora aqui se possam fornecer regras verdadeiras e científicas, nin­
guém, pois, negará que Fídias, ou Rafael, tinha um padrão muito
mais subtil do gosto e um poder mais versátil de o incorporar nas
suas obras do que qualquer outro que ele transmitisse aos demais,
inclusive numa série de tratados. E aqui, mais uma vez, o génio está
indissoluvelmente unido a uma matéria definida; um poeta não é,
portanto, um pintor, ou um arquitecto um compositor musical.
E assim, também, a propósito das artes utilitárias e das realiza­
ções pessoais, usamos a mesma palavra «habilidade», mas o progresso
na engenharia ou na construção de barcos, ou também na gravura,

U m a G r a m á c i c a do Asse n t i m e n t o •
3 51
ou ainda no canto, no tocar instrumentos, na representação teatral
ou nos exercícios de ginástica, constitui apenas uma só coisa com a
sua matéria particular, tal como a alma humana com o seu corpo
particular; é, no seu próprio departamento, uma espécie de instin­
to ou de inspiração, e não uma obediência a regras externas da crí­
tica ou da ciência.
É natural, pois, perguntar: porque é que a raciocinação haveria
de ser uma excepção a uma lei geral, adstrita aos exercícios intelec­
tuais da mente; porque é que se diz ser ela comensurável à ciência
lógica; porque é que a lógica constitui uma arte instrumental sufi­
ciente para determinar todo o tipo de verdade, embora ninguém
sonhe com inventar qualquer fórmula, por generalizada que seja,
uma regra adequada ao mesmo tempo para a poesia, a arte da
medicina e a competição política?
Eis o que tenho a observar acerca do Sentido Ilativo, e na expli­
cação da sua natureza e das suas exigências; e, em geral, falei dele em
quatro aspectos - como olhado em si mesmo, na sua matéria, no
processo dos seus usos e na sua função e finalidade.
Primeiro, olhado no seu exercício, é um só e o mesmo em
todas as questões concretas, embora nelas empregue em medidas
diferentes. Não raciocinamos de um modo na química ou no
direito, e de outro na moral ou na religião; mas, ao raciocinarmos
sobre qualquer tema concreto, progredimos, tanto quanto pode­
mos, pela lógica da linguagem, mas somos obrigados a suplemen­
tá-la com a lógica mais subtil e elástica do pensamento; pois as
formas por si mesmas nada demonstram.
Em segundo lugar, ele está, de facto, associado a matérias defi­
nidas, pelo que um dado indivíduo o pode possuir num departa­
mento do pensamento, por exemplo na história, e não noutro, por
exemplo na filosofia.

3 52 • J o h n H e n ry Newman
Em terceiro lugar, ao chegar à sua conclusão, prossegue sem­
pre, de modo idêntico, por um método do raciocínio que, cOmo
acima observei, é o princípio elementar do cálculo matemático da
era moderna, o qual tão admiravelmente alargou os limites da ciên­
cia abstracta.
Em quarto lugar, em nenhuma classe de raciocínios concretos,
na ciência experimental, na investigação histórica ou na teologia,
existe qualquer teste derradeiro da verdade e do erro nas nossas infe­
rências, além da fiabilidade do Sentido Ilativo, que lhes dá a sua san­
ção; tal como não existe um teste suficiente da excelência poética, da
acção heróica ou da conduta de um cavalheiro, a não ser o particular
sentido mental, seja ele o génio, o gosto, o sentido do decoro ou o
sentido moral, a que estas matérias estão devidamente confiadas. O
nosso dever em cada um deles é fortalecer e aperfeiçoar a faculdade
especial que é a sua regra viva, e fazer em cada caso, à medida que se
apresente, o nosso melhor. E tal é, pois, o nosso dever e a nossa
necessidade, no que respeita ao Sentido Ilativo.

3 . O â m b i t o do s e n t i d o i l at ivo

Embora sejam grandes os serviços da linguagem em nos tornar


capazes de alargar o recinto das nossas inferências, em testar a sua
validade e em comunicá-las a outros, contudo, a própria mente é
mais versátil e rigorosa do que qualquer das suas obras, das quais
uma é a linguagem; e só sob a sua penetrante e subtil acção é que
se desvanece a margem, por mim descrita, entreposta entre a argu­
mentação verbal e as conclusões no concreto. Ela determina o que
a ciência não pode determinar, o limite das probabilidades conver-

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o •
3 53
gentes e as razões suficientes para uma: demonstração. É pela pró­
pria mente que raciocina, e não por um truque da arte, por simples
que seja na sua forma e segura na operação, que conseguimos deter­
minar, e portanto estar certos, de que um corpo em movimento,
deixado a si próprio, nunca se deterá, e que nenhum homem pode
viver sem comer.
Além disso, não é graças a qualquer diagrama que somos capa­
zes de examinar, classificar e combinar as muitas premissas que,
primeiro, temos de percorrer conjuntamente antes de responder­
mos, como deve ser, a uma dada questão. Devemos atender à men­
te viva em busca dos meios de usar correctamente os princípios de
qualquer tipo, factos ou doutrinas, experiências ou testemunhos,
verdadeiros ou prováveis, e de discernir que experiência, a partir
destes, é necessária, adequada ou vantajosa, quando eles se têm por
garantidos; e tal, mediante um dom natural ou em virtude de uma
formação e prática mentais, de uma longa familiaridade com esses
diversos pontos de partida. Assim, quando Laud afirmou que não
atinava com o seu caminho para chegar a um acordo com a Santa
Sé, «até Roma ser diferente do que era», nenhum católico aceitaria
tal opinião; mas qualquer católico pode compreender que este é
precisamente o juízo consistente com a presente condição de pen­
samento e o conjunto de opiniões de Laud, com a sua posição
eclesiástica e com o estado presente da Inglaterra.
Nem, por último, é menos necessária uma acção da própria
mente em relação aos primeiros elementos de pensamento que, em
todo o raciocínio, são suposições, os princípios, os gostos e as opi­
niões, muitas vezes de carácter pessoal, que são metade do combate
na inferência em que o raciocínio deve terminar. É a própria men­
te que os detecta nos seus obscuros recessos, os ilustra, os estabele­
ce, os elimina, os desmembra em ideias mais simples, conforme o

3 54 • J o h n H e n ry N e w m a n
caso. A mente contempla-os sem o uso das palavras, por um pro­
cesso que não se pode analisar. Foi assim que Bacon levou a cabo
uma separação entre o sistema físico do mundo e o teológico; que
Butler jungiu o sistema moral e o religioso. As fórmulas lógicas
nunca poderiam confirmar os raciocínios implicados em seme­
lhantes investigações.
Por isso, o Sentido Ilativo, a saber, a faculdade raciocinante,
enquanto exercida por mentes dotadas, educadas ou diversamente
preparadas, tem a sua função no início, no meio e no termo de
toda a discussão verbal e de toda a indagação, e em cada passo do
processo. É uma regra para si próprio, não apela a nenhum juízo
além do seu; e atende a todo o curso do pensamento, desde os
antecedentes aos consequentes, com uma diligência minuciosa e
uma presença incansável, que é impossível a um aparelho pesado
de raciocínio verbal, embora, na comunicação com os outros, as
palavras sejam o único instrumento que possuímos, e um instru­
mento útil, se bem que imperfeito.
Existe, de facto, uma função da Lógica, a que me referi na fra­
se precedente, que o Sentido Ilativo não possui nem pode desem­
penhar. Ele não fornece nenhuma medida comum entre mente e
mente, pois nada mais é do que um dom ou uma aquisição pes­
soal. São raros, como acima afirmei, os que raciocinam bem em
todas as matérias. Dois homens, que raciocinem bem cada qual na
sua própria província de pensamento, podem, um ou ambos, falhar
e proferir juíws opostos sobre uma questão que pertence a um ter­
ceiro domínio. Além disso, visto que todo o raciocínio parte de pre­
missas, e estas, nos seus primeiros elementos, derivam (se tal
acontecer) de características pessoais, em que os homens apresen­
tam, de facto, entre si divergências essenciais e irremediáveis, o
talento raciocinante nada mais consegue fazer do que assinalar onde

U m a G r a m á t i c a do Assen t i m e n t o •
355
reside a diferença entre elas, em que medida é ela imaterial, quan­
do vale a pena, ou não, prosseguir entre eles uma discussão.
Ora, das três principais ocasiões do exercício do Sentido Ilati­
vo, em que tenho estado a insistir, e que são a medida do seu
âmbito, o começo, o decurso e o resultado de uma investigação,
indiquei já, ao abordar a Inferência Informal, o lugar que ele ocu­
pa na resolução final das questões concretas. Cabe-me, pois, ilus­
trar aqui a sua presença e a sua acção relativamente às premissas
elementares e, além disso, à gestão de um argumento. Abordemos,
antes de mais, a primeira.

I.Muito se escreveu, nos últimos anos, sobre o tema da situação da


Grécia e de Roma durante o período pré-histórico; ou seja, antes
das Olímpiadas na Grécia e da guerra com Pirro nos anais de
Roma. Ora, numa questão como esta, é evidente que o investiga­
dor tem, primeiro, de decidir qual o seu ponto de partida em face
dos relatos recebidos; por outro lado, a partir de que quadrante os
deve abordar; sobre que princípios orientará a sua discussão; que
pressupostos terá, que opiniões ou objecções deve, sumariamente,
pôr de lado como triviais, que argumentos, e quando, deverá con­
siderar como apropriados, que falsos resultados se devem evitar,
quando é que o estado dos seus argumentos está maduro para uma
conclusão. Começará ele por rejeitar inteiramente tudo o que, até
agora, foi aceite; ou reter um esboço; ou dele fazer uma selecção;
ou considerá-lo e interpretá-lo como mítico ou alegórico; ou acei­
tar muito como fidedigno ou, ao menos, como prima facie revesti­
do de autoridade, já que efectivamente o não pode rejeitar; ou
nunca destruir excepto na proporção em que pode construir? Pois,
quanto ao tipo de argumentos adequados ou admissíveis, até que

356 • J o h n H e n ry N e w m a n
ponto servirão de prova na pesquisa a tradição, a analogia, os monu­
mentos e registos isolados, as ruínas, as narrativas vagas, as lendas, os
factos ou os dizeres de épocas ulteriores, a linguagem, os provérbios
populares? Quais os indícios da verdade e da falsidade, o que é pro­
vável, o que é suspeito, que promessas surgem para discriminar os
factos das ficções? Em seguida, há que harmonizar entre si os argu­
mentos e, por fim, importa tomar a decisão, se é que se pode tirar
qualquer conclusão, ou alguma antes de se examinarem e resolve­
rem certas questões, ou se é possível uma conclusão provável ou
certa. É evidente quão incessante será, aqui ou ali, o apelo ao exer­
cício de um juízo definitivo, quão pouco este juízo será ajudado
pela lógica e quão intimamente ele dependerá da compleição inte­
lectual do escritor.
Isto poderia ilustrar-se em grande extensão, se necessário fosse,
a partir dos escritos de quaisquer homens capazes, cujos nomes são
bem conhecidos em ligação com o tema por mim exemplificado;
como Niebuhr, Mr. Clinton, Sir George Lewis, Mr. Grote e o Coro­
nel Mure. Estes autores têm concepções pessoais muito diferentes
sobre o período da história que seleccionaram para investigação, e
são demasiado instruídos e lógicos para não conhecerem e utiliza­
rem ao máximo os testemunhos pelos quais os factos que investi­
gam se devem certificar. Então, porque é que diferem tanto entre
si, quer na avaliação desses testemunhos ou desses factos? Porque
tal estimativa é apenas a sua própria, provindo do seu próprio juí­
zo; e este juízo deriva de pressupostos pessoais, explícitos ou implí­
citos; e estes pressupostos brotam espontaneamente do estado de
pensamento que, respectivamente, pertence a cada um deles; e
todos estes sucessivos processos de raciocínio minúsculo são supe­
rintendidos e dirigidos por um instrumento intelectual demasiado
subtil e espiritual para ser científico.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o •
3 57
Que ideia tinha Niebuhr do ofício que empreendeu? Foi, supo­
nho, aceitar o que encontrou nos historiadores de Roma, para o
questionar, o reduzir a fragmentos, o reunir de novo, o reordenar e
interpretar. Prescrição, juntamente com a consistência interna, era
para ele a evidência do facto, e se demoliu, sentiu-se também obriga­
do a construir. Muito diferente é o espírito de outra escola de escri­
tores, para os quais a prescrição nada é, e que não acatam dado
algum que, primeiramente, não tenha demonstrado o seu direito a
ser aceite. «Podemos», diz Niebuhr, «seguir a história da constituição
romana até ao início do Império, com o rigor que desejarmos, e até
mais perfeitamente do que a história de muitas partes da Idade
Média». «Talvez nos alegremos», diz Sir George Lewis, «por a capaci­
dade inventiva ou o saber de Niebuhr lhe ter possibilitado aventar
muitas hipóteses e conjecturas nobres em relação à forma da consti­
tuição primitiva de Roma, mas, a menos que possa alicerçar essas
hipóteses com dados suficientes, elas não se prestam à nossa cren­
ça». «Niebuhr», diz um escritor intimamente relacionado comigo,
«muitas vezes, mostra grande desprezo pela simples crítica céptica
e pelas conclusões negativas; [ . . . ] todavia, a atitude sábia de rejei­
tar a crença é o nosso primeiro grande requisito, ao lidarmos com
materiais de valor heterogéneo». E, mais uma vez, Sir George
Lewis: «Poderia dizer-se que dificilmente haverá uma só das conclu­
sões principais da obra de Niebuhr que não tenha sido impugnada
por algum escritor subsequente».
Ou ainda: «É verdade», diz Niebuhr, «que a guerra de Tróia
pertence ao domínio da fábula; apesar de tudo, tem inegavelmente
uma base histórica». Mas Mr. Grove escreve, «Se nos perguntassem
se a guerra de Tróia não terá sido uma lenda [ . . ] assente numa
.

base de verdade [ . . . ] a nossa resposta seria esta: assim como não se


pode negar a sua possibilidade, também não se pode afirmar a sua

3 58 • J o h n H e n ry Newman
realidade». Por outro lado, Mr. Clinton estabelece a regra geral,
«Reconheceremos como pessoas reais todos aqueles para cuja rejei­
ção não temos razão alguma. A presunção é a favor da tradição
primitiva, se não for possível aduzir argumento algum para a demo­
lir». Desloca ele assim o onus probandi para aqueles que impugnam
os relatos recebidos; mas Mr. Grote e Sir George Lewis arrojam-no
de novo para aqueles que os defendem. «A evidência histórica»,
afirma o último» funda-se na atestação de testemunhas credíveis».
E ainda, «Pressupõe-se incessantemente na prática que os dados
históricos são diferentes, na sua natureza, de outros tipos de dados.
Esta laxidão parece justificar-se pela doutrina de se aceitarem os
melhores dados que obter se podem. O objecto da minha inquiri­
ção será aplicar à primitiva história romana as mesmas regras de
evidência que pelo consenso comum são aplicadas à história
moderna». Muito menos severo é o juízo do Coronel Mure: «Onde
se não pode confirmar nenhuma prova histórica positiva, o equilí­
brio da probabilidade histórica deve reduzir-se a uma indulgência
razoável para com o peso da convicção nacional e a uma deferência
frente ao testemunho das mais antigas autoridades autóctones.»
«Indulgência razoável» para com a crença popular e «deferência»
frente à tradição antiga são princípios da historiografia detestável
para o temperamento j udicial de Sir George Lewis. Considera ele
que as palavras «indulgência razoável» são «ambíguas», e adverte
que «O ponto genuíno, não afiançável, e em que os escritores dife­
rem é, tanto quanto a atestação contemporânea se pode presumir
sem uma prova directa e positiva [ . ] a medida em que a existên­ . .

cia de uma crença popular acerca de uma suposta matéria de facto


autoriza a inferência de que ela teve origem num testemunho
autêntico». E Mr. Grote adverte com o mesmo fim: «A palavra tra­
dição é uma palavra equívoca, e ignora aquilo de que se trata. Faz-

U m a G r a m á r i c a do As s e n c i m e n c o •
3 59
-se a conjectura tácita de que ela implica uma narrativa descritiva
de uma real matéria de facto, exacta na origem, mas corrompida
pela transmissão oral». E Lewis, que cita a passagem, acrescenta,
«Esta conjectura tdcita é a pedra angular de todo o argumento».
Não oponho entre si as várias opiniões de homens capazes, que
se dedicaram à investigação histórica, como se de uma reflexão sobre
eles se tratasse, pelo facto de entre si diferirem. Desejo insistir é na
causa da sua diferença. Se os factos se considerassem só em si, prova­
velmente estes autores não chegariam a qualquer conclusão; as «con­
jecturas tácitas» de que Mr. Grote fala, as noções vagas e impalpáveis
da «razoabilidade», tanto do seu lado como do dos outros, é que
possibilitam as conclusões, e são o sinal do seu carácter antagónico.
As conclusões variam com o escritor particular, pois cada qual escre­
ve a partir do seu ponto de vista e com os seus princípios próprios, e
estes não possuem nenhuma medida comum.
De facto, esta é a descrição que eles fazem da matéria: «Üs
resultados da investigação histórica especulativa», diz o Coronel
Mure, «raramente vão além de simples presunção da realidade dos
acontecimentos em questão, enquanto restringida à sua substância
geral, e não se estendem aos seus pormenores. Nem, por conse­
guinte, é de esperar nas mentes de investigadores diferentes uma
unidade a propósito do grau preciso de realidade, como, muitas
vezes, pode existir relativamente aos acontecimentos atestados por
dados documentais». Mr. Grote corrobora esta decisão com o
exemplo impressionante da diversidade de opiniões existentes acer­
ca dos Poemas Homéricos. «Üs nossos meios de conhecimento»,
afirma ele, «são tão limitados que ninguém consegue elaborar ar­
gumentos assaz fortes para combater as concepções opostas; despon­
ta assim uma sensação incómoda de desconfiança, quando lemos
as expressões de uma persuasão igual e absoluta com que foram

3 60 • John Henry Newman


aventadas as duas conclusões opostas». E também, «Há uma dife­
rença de opinião entre os melhores críticos, a qual, provavelmente,
não está fadada para se harmonizar, porque depende, em parte, do
sentimento crítico e, em parte, dos raciocínios gerais em relação à
unidade épica antiga, com que um homem se senta para o estudo».
É mesmo assim; cada qual tem o seu próprio «sentimento crítico»,
os seus «raciocínios» antecedentes e, por conseguinte, a sua própria
«persuasão absoluta», que emerge cada vez mais fresca em cada
giro da discussão; e quem, estranho ou amigo, deverá alcançar e
alterar o que tão intimamente está unido à constituição mental de
cada um?
Daí, as abundantes contradições categóricas entre os vários
escritores. O coronel Mure, na defesa de uma tese histórica, apela
para o «facto da confederação helénica levada a efeito em vista da
adopção de um sistema nacional comum de cronologia em 776
a.C.» O Sr. Grote replica: «Nada diverge mais da minha concep­
ção» - acabara ele justamente de falar das preconcepções de
outros - «do estado do mundo helénico em 776 a.C. do que a
ideia de uma combinação entre todos os membros da raça para
uma finalidade, e mais ainda para o propósito de adaptar um sis­
tema nacional comum de cronologia». O coronel Mure fala do
«público ateniense intolerante»; responde o Sr. Grote que «nenhum
público mereceu alguma vez menos o epíteto de "intolerante" do
que o ateniense». O coronel Mure refere igualmente a «hipótese
arbitrária» do Sr. Grote; e também (nas palavras do Sr. Grote) do
seu «cepticismo injustificável». Não consegue refutar mediante um
simples argumento as conclusões do Sr. Grote; pode apenas recor­
rer a uma crítica pessoal. Chega quase a dizer, «Diferimos na nossa
visão pessoal das coisas». Quando a lógica falha, os homens tor­
nam-se pessoais; é o seu modo de apelar para os seus elementos

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 3 6I
primários do pensamento, para o seu sentido ilativo, contra os prin­
cípios e o juízo de outrem.
Delineei já o método de investigação de Niebuhr e a discor­
dância de Sir George Lewis a seu respeito: faculta-nos, como rele­
vante, o exemplo de uma diferença nos primeiros princípios, tal
como é fornecida pelo Sr. Grote e pelo Coronel Mure. «A princi­
pal característica da sua história», diz Lewis, «é a medida em que
ele confia na evidência interna e nas indicações proporcionadas
pela própria narrativa, independentemente do testemunho da sua
verdade» . «Ü carácter inventivo e o trabalho apenas podem susci­
tar hipóteses e conjecturas, que talvez sejam apoiadas por analo­
gias, mas nunca assentar no sólido fundamento da prova». E é
inegável que, bem ou mal, ao desprezar o cepticismo do simples
crítico, Niebuhr envereda conscientemente pela senda entusiasta
da adivinhação. «Quanto a mim», afirma ele, «adivinho, em virtu­
de de o cargo de censor de Fabius e Decius calhar no mesmo ano,
em que Cn. Flavius se tornou mediador entre a sua própria classe e
as ordens superiores». Lewis vê nisto um processo de palpite e diz:
«Em vez de utilizar esses testes de credibilidade que se aplicam
consistentemente à história moderna», Niebuhr, os seus seguidores
e a maior parte dos seus adversários «tentam orientar o seu juízo
pela indicação da evidência interna, e pressupõem que a verdade é
descoberta por uma faculdade oculta de adivinhação histórica».
Niebuhr defende-se assim: «Ü verdadeiro geógrafo possui um tac­
to que determina o seu juízo e a sua escolha entre enunciados dife­
rentes. Consegue, de afirmações isoladas, fazer ilações em relação a
coisas que são desconhecidas, que se aproximam muito de resulta­
dos obtidos a partir da observação de factos, e pode indicar o seu
lugar. Com dados limitados, consegue formar uma imagem de coi­
sas que nenhuma testemunha ocular descreveu». Aplica isto a s1

3 62 • John H e n ry N e w m a n
mesmo. O princípio proposto nesta passagem é, claro está, o mes­
mo que eu defenderia; mas Sir George Lewis, embora sem o negar
simplesmente como princípio, não lhe atribui grande importância,
quando aplicado à investigação histórica. «Não basta», diz ele, «a
um historiador reivindicar a posse de uma clarividência retrospec­
tiva, que é negada ao resto do mundo - de uma doutrina miste­
riosa, revelada somente aos iniciados». E assevera que «a história de
Niebuhr levantou mais questões do que resolveu, e pôs em movi­
mento um vasto corpo de combatentes, cujos desacordos recípro­
cos não é muito provável, presentemente, que se resolvam em
consideração de um princípio comum» l .
Vemos, a partir dos extractos acima mencionados, como uma
controvérsia, idêntica àquela em que eles se inserem, se desdobra
desde pontos de partida, e com subsídios colaterais, não formalmen­
te demonstrados, mas mais ou menos pressupostos, já que o proces­
so de conjectura reside na acção do Sentido Ilativo, enquanto
aplicado aos elementos primordiais do pensamento respectivamente
congénitos aos litigantes. Não é que, por vezes, não seja possível, em
certa medida, a argumentação explícita sobre estes pontos irrelevan­
tes ou menores, embora importantes; mas, como afirmei, é um
expediente demasiado incómodo para uma necessidade constante­
mente recorrente, mesmo quando é comummente exacta.

2. E agora, em segundo lugar, quanto aos próprios primeiros prin­


cípios. Para ilustração, mencionarei em títulos separados algumas

I Niebuhr, Roman History. vol. I, p. 177; vol. III, pp. 262, 3 1 8, 322; Lectures, vol. III, App.,

p. XXII. - Lewis, Roman History. vol. I, pp. 1 1- 1 7 ; vol. II, pp. 489-492. - F. W: Newman, Regai
Rume, p. V. - Grote, Greece, vol. II, pp. 67, 68, 630-639. - Mure, Greece, vol. III, p. 503; vol. IV,
p. 3 1 8. - Clinton, ap. Grote, supra.

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o •
3 63
das oposições elementares de opinião, ein cuja base o Sentido Ilati­
vo tem de operar, descobrindo-os, seguindo-os, defendendo-os ou
oferecendo-lhes resistência, conforme os casos.
1 . Quanto à apresentação do caso. Depende este do aspecto par­
ticular com que contemplamos um tema, isto é, da abstracção que a
nossa noção representativa forma acerca do que ele é. As ciências são
apenas outros tantos aspectos distintos da natureza; umas vezes,
sugeridos pela própria natureza, outras vezes, criados pela mente.
( 1 .) Um dos aspectos mais simples e mais amplos sob os quais
vemos o mundo físico é o de um sistema de causas finais ou, por
outro lado, de causas iniciais ou eficientes. Bacon, no intento de
alargar o nosso poder sobre a natureza, adoptou o último. Agar­
rou-se firmemente à ideia de causação (no sentido comum da pala­
vra) como oposta à de desígnio, recusando-se a mesclar as duas
ideias numa investigação e denunciando as interpretações tradicio­
nais dos factos, que apenas obscureceram a simplicidade do aspec­
to necessário ao seu propósito. Ele viu o que outros, antes dele,
poderiam ter vislumbrado naquilo que viram, mas que não viram
como ele viu. Nesta realização do intelecto, tão frutífera em resul­
tados, reside o seu génio e a sua fama.
(2.) E ainda, para nos referimos a uma matéria muito diferen­
te, ouvimos, muitas vezes, falar dos feitos de algum grande juris­
consulto, juiz ou advogado, que, em casos complicados, quando as
mentes comuns apenas divisam um montão desesperante de fac­
tos, entre si estranhos ou opostos, consegue detectar o princípio
que correctamente interpreta o enigma e, para admiração de todos
os ouvintes, transforma um caos num todo ordenado e luminoso.
Eis o que se pretende indicar por originalidade no pensamento: é a
descoberta de um . aspecto de uma matéria, mais simples, porven­
tura, e mais inteligível do que até então se supunha.

3 64 • J o h n H e n ry N e w m a n
(3.) Por outro lado, tais aspectos são, muitas vezes, irreais,
como se fossem simples exibições da invenção, e não da verdadeira
originalidade da mente. Tal é, sobretudo, o caso naquilo a que se
dá o nome de concepções filosóficas da história. Assim se me afigu­
ra a teoria defendida numa obra de grande erudição, vigor e pene­
tração, a saber, Divine L egation ofMoses de Warburton. Não digo
que Gibbon é meramente inventivo; todavia, a sua exposição das
origens do cristianismo é a simples visão subjectiva de alguém que
não conseguiu mergulhar na sua profundidade e no seu poder.
(4.) O aspecto sob o qual vemos as coisas é, muitas vezes,
intensamente pessoal; mais ainda, é pavorosamente assim, conside­
rando que, a partir da natureza do caso, isso não clarifica a sua
idiossincrasia nem para nós nem para os outros. Cada um de nós
olha o mundo à sua própria maneira, e não sabe que talvez se trate
de uma característica muito sua. Assim acontece justamente no
tocante aos sentidos. Homens há que têm uma escassa percepção
das cores; outros reconhecem uma ou duas; para alguns, duas cores
contrárias, como o vermelho e o verde, são uma só e a mesma.
Quão pobremente podemos apreciar as belezas da natureza, se os
nossos olhos, no rosto das coisas, discernem apenas uma criação a
preto intenso ou a cinzento!
(5.) Assim também, pois, quanto à forma: cada um de nós
abstrai a relação de linha a linha de um modo muito pessoal - já
que um homem poderia apreender uma curva como convexa,
outro como côncava. Pode decerto, como no caso de uma curva,
haver um limite para possíveis aspectos; mas, ainda assim, mesmo
quando concordamos, tal não acontece porventura porque apren­
demos uns dos outros ou porque estamos sujeitos a uma lei de
consenso, antes porque, casualmente, as nossas idiossincrasias con­
fluem. Receio parecer trivial, se aludir a uma ilustração que, para

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o •
3 65
mim, sempre teve uma grande força, e· pela justa razão de ela ser
tão trivial e irrelevante. Às crianças que aprendem a ler apresentam­
-se, às vezes, as letras do alfabeto convertidas em figuras de homens
em posições várias. É curioso observar, a partir de tais representa­
ções, de que modo diferente o feitio das letras afecta mentes diferen­
tes. Por conseguinte, sempre perguntei, numa companhia de ocasião,
para que lado se mostram certas maiúsculas, se para a direita ou para
a esquerda; e embora quase todos os presentes tivessem tido a sua
visão dara, tão dara que não conseguiam suportar a visão oposta,
ainda assim descobri em geral que metade do grupo considerava
que as letras em questão apontavam para a esquerda, enquanto a
outra metade pensava que para a direita.
(6.) Esta variedade de interpretação j ustamente nos elementos
dos contornos parece arrojar luz sobre outras diferenças afins entre
um homem e outro homem. Se eles encaram de modo tão diverso
as simples letras do alfabeto, podemos compreender como elabo­
ram juízos tão distintos sobre a caligrafia; e também como alguns
homens têm, porventura, um talento para nela decifrar o carácter
intelectual e moral do escritor, que outros não têm. Outra ideia
que ocorre é que talvez resida aqui a explicação de porque é que
essas semelhanças de família são tão diversamente reconhecidas, e
quão perigosamente frequentes podem ser os erros na identidade.
(7.) Se de modo tão diverso apreendemos os objectos familia­
res dos sentidos, então muito mais díspares, podemos supor, serão
entre si os aspectos e as associações ligadas por nós aos objectos
intelectuais. Não afirmo que diferimos nos próprios objectos, mas
que podemos ter diferenças intermináveis quanto às suas relações e
circunstâncias. Ouvi dizer {para, de novo, recorrer a um assunto
trivial) que, no início deste século, foi um tema de controvérsia
séria, e também inflamada, se ele começou em Janeiro de 1 800, ou

3 66 • J o h n H e n ry N e w m a n
Janeiro de 1 80 1 . O argumento, que, de qualquer modo, deveria
ter facilmente encaminhado a questão para uma conclusão, consis­
tiu apenas em deitar água na chama. Não sei ao certo se ele, caso
fosse agora reiniciado, não levaria a resultados semelhantes; conhe­
ço, sem dúvida, os que empenhadamente se recusam a dar uma
opinião a tal respeito, quando o argumento por acaso vem à baila,
em virtude da sua experiência do sentimento patético que, decerto,
ele suscitará num ou noutro dos presentes. Esta impaciência pode
apenas nascer de um sentimento poderoso de que a verdade do
tema reside numa só alternativa, e não na outra.
Estes exemplos, de tão casuais, insinuam como tem lugar entre
os homens uma tão ampla diferença nas percepções religiosas e
morais. Não prova isto aqui, repito, que não haja verdade objecti­
va, porque nem todos os homens estão na sua posse; ou que não
sejamos responsáveis pelas associações que anexamos, e pelas rela­
ções que atribuímos, aos objectos do intelecto. Mas sugere-nos, de
facto, que há algo de mais profundo nas nossas diferenças do que o
acidente das circunstâncias externas; e que necessitamos da inter­
posição de um Poder, maior do que o ensinamento e o argumento
humanos, para tornar verdadeiras as nossas crenças e uma só as
nossas mentes.
2. Abordarei, de seguida, o pressuposto implícito de proposi­
ções definidas no primeiro início de uma sequência de raciocínio,
e a exclusão arbitrária de outras, seja qual for a sua espécie. A não
ser que tenhamos o direito, quando nos aprouver, de decidir que
proposições eram irrelevantes ou absurdas, não vejo como podería­
mos levar a cabo um argumento; o nosso caminho seria simples­
mente bloqueado por princípios e teorias extravagantes, por
hipóteses gratuitas, por falsos problemas, por enunciados serri fun­
damento e factos inverosímeis. Há quem tenha tratado a história

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 3 67
de Abraão como um registo astronómiCo, e falou do nosso Adorá­
vel Salvador como o sol em Aries. A mitologia árabe transformou
Salomão num poderoso feiticeiro. Noé foi considerado como o
patriarca do povo chinês. As dez tribos viveriam ainda, afirmou-se,
nos seus descendentes, os Índios peles-vermelhas; ou seriam os
antepassados dos Godos e dos Vândalos e, por conseguinte, das
actuais raças europeias. Alguns conjecturaram que o Apolo dos
Actos dos Apóstolos era Apolónio de Tiana. Homens competentes
raciocinaram, quase contra a sua vontade, que Adão era negro.
Estas proposições, e muitas outras de espécies várias, deveriam ser
por nós justamente deixadas de lado, se nos aplicássemos a um tra­
balho sobre a história sagrada; e há outras, pelo contrário, que
deveríamos pressupor como verdadeiras de seu próprio direito e
sem aviso, e sem as quais não poderíamos encetar ou levar a cabo o
nosso trabalho.
( 1 .) Impugnou-se, contudo, o direito de fazer pressupostos;
mas, quando as objecções são sujeitas a exame, penso que elas ape­
nas mostram que não temos o direito na argumentação de fazer
qualquer pressuposto que nos agrade. Por isso, nas investigações
históricas que justamente agora se nos apresentaram, parece legíti­
mo dizer que nenhum testemunho se deveria acatar, excepto aque­
le que deriva de testemunhas competentes; porém, não é injusto
insistir, por outro lado, em que a tradição, embora não autentica­
da, por ser (como se diz) objecto de posse, tem uma prescrição a
seu favor e pode, prima facie ou de modo provisório, ser recebida.
Deparamos aqui com os materiais de uma discussão séria; mas há
escritores que, aparentemente, foram além deste cepticismo razoá­
vel, enunciando como uma proposição geral que, na filosofia, não
temos o direito de fazer qualquer pressuposto, e que devemos
começar com uma dúvida universal. Este é, todavia, o maior de

3 68 • J o h n H e n ry N e w m a n
todos pressupostos, e proibir universalmente os pressupostos é
proibir, em particular, este. A própria dúvida é um estado positivo
e implica um hábito definido da mente; implica, portanto, neces­
sariamente um sistema de princípios e de doutrinas próprios. Mais
uma vez, se nada se deve pressupor, o que será o nosso genuíno
método de raciocinar senão um pressuposto? E o que será a nossa
própria natureza? O sentido do prazer e da dor, que é uma das
mais íntimas partes de nós mesmos, traduz-se inevitavelmente em
pressupostos intelectuais.
A propósito dos dois, é melhor afirmar que devemos começar
por crer em tudo aquilo que é oferecido à nossa aceitação do que ter
por um dever nosso duvidar de tudo. O primeiro parece-me, de fac­
to, ser o verdadeiro caminho da aprendizagem. Neste caso, depressa
descobrimos e abandonamos o que em si é contraditório; e como o
erro tem sempre em si alguma parcela de verdade, e a verdade tem
uma realidade que o erro não possui, podemos esperar, que quando
há um objectivo honesto e talentos justos, conseguiremos de algum
modo abrir o nosso caminho; o erro ausentar-se-á então da mente, e
a verdade virá desenvolvê-la e ocupá-la. Por isso é que a religião cató­
lica é alcançada, como vemos, por inquiridores a partir de todos os
pontos cardeais, como se não importasse onde um homem come­
çou, desde que ele tenha olhos e um coração para a verdade.
(2.) Um argumento, muitas vezes proposto por descrentes,
penso que por Paine, com esta finalidade, é o seguinte: «Uma reve­
lação, para ser aceite como verdadeira, devia estar escrita no sol».
Isto apela com grande força para o senso comum de muitos e
implica o pressuposto de um princípio que Butler decerto não afian­
çaria, antes o teria por afilosófico; e, todavia, penso que algo se pode
dizer a seu favor. Seja ele abstractamente defensável ou não, as popu­
lações católicas não seriam avessas, mutatis mutandis, à sua aceitação.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n c i m e n t o • 3 69
Até aos últimos séculos, a Igreja Visível toi, pelo menos para os seus
filhos, a luz do mundo, tão conspícua como o sol nos céus; e o Cre­
do foi escrito na sua fonte, proclamado pela sua voz, por um ensina­
mento tão preciso quanto enfático; de harmonia com o texto,
«Quem é ela que surgiu com a aurora, bela como a lua, brilhante
como o sol, terrível como um exército em ordem de batalha?» Não
foi decerto, em termos estritos, um milagre; mas no seu efeito, e
também nas suas circunstâncias, pouco menos foi. Não aceitarei,
sem dúvida, que a Igreja falhe agora nesta manifestação da verdade,
como também não em épocas anteriores, embora as nuvens tenham
encoberto o sol; pois o que ela perdeu no seu apelo à imaginação,
ganhou-o na pertinência filosófica, pela atestação da sua persistente
vitalidade. É, pois, claro que se o aforismo de Paine tem uma força
prima facie contra o cristianismo, deve tal vantagem aos miseráveis
acontecimentos dos séculos XV e XVI.
(3.) Outro conflito dos primeiros princípios ou pressupostos
que, muitas vezes, estiveram implícitos em ambos os lados persistiu
até aos nossos dias e relaciona-se com o fim e o escopo da sociedade
civil, isto é, se a governação e a legislação deviam, ou não, ter um
carácter religioso; se o Estado tem uma consciência; se o cristianismo
é a lei do território; se o magistrado, ao punir os transgressores, exer­
ce uma função retributiva ou um correctivo; ou se a estrutura total
da sociedade assenta na base da expediência secular. A relação da
filosofia e das ciências com a teologia é posta em causa. A antiga teo­
ria, honrada pelo tempo, esteve, nos últimos quarenta anos, em coli­
são com a nova; e a nova está em ascensão.
(4.) Outro grande conflito existe dos primeiros princípios, e tal
entre os cristãos, que ocupou um amplo espaço na nossa história
doméstica, durante os últimos trinta ou quarenta anos, a saber, a
controvérsia acerca da Regra de Fé. Assinalo-a como fornecendo o

370 • J o h n H e n ry N e w m a n
exemplo de um pressuposto tão profundamente radicado na mente
popular que é deveras difícil obter dos seus defensores um reco­
nhecimento de que ele é apenas um pressuposto. Que a Escritura é
a Regra da Fé é, de facto, um pressuposto tão congénito ao estado
mental e ao trajecto do pensamento habitual entre os protestantes
que se lhes afigura mais como um truísmo do que como uma ver­
dade. Se discutem com os católicos a propósito de qualquer ponto
da fé, imediatamente perguntam «Onde o encontrais na Escritu­
ra?» E se os católicos respondem, como de facto devem, que não se
encontra necessariamente na Escritura para ser verdadeiro, então
nada os consegue persuadir de que semelhante resposta não é um
subterfúgio e um triunfo para eles próprios. Todavia, de nenhum
modo é evidente que toda a verdade religiosa se tem de encontrar
numas quantas obras, ainda que sagradas, que foram escritas em
épocas diferentes, e que nem sempre formam um livro; e, de facto,
é uma doutrina muito difícil de demonstrar. De tal modo é assim
que, há anos, quando eu a considerava de um ponto de vista protes­
tante e pretendia defendê-la o melhor que podia, fui incapaz de lhe
dar uma melhor explicação do que a seguinte, que aqui cito em vir­
tude da sua consonância com o meu presente tema.
«Não interessa», afirmei, ao falar dos primeiros protestantes,
«se, lhes aconteceu ou não, estarem apenas certos acerca daquilo
que, de um ponto de vista lógico, são premissas falsas. Eles não
tinham tempo para quaisquer teorias; e exigir teorias ao alcance da
mão revela uma ignorância da natureza humana e dos modos como
a verdade se descobre no decurso da vida. O senso comum, a sorte,
a percepção moral, o génio, os grandes descobridores de princípios
não raciocinam. Não têm argumentos, não têm fundamentos, vis­
lumbram a verdade, mas não sabem como a vislumbram. E se, em
qualquer altura, tentam demonstrá-la, é como fazer uma experiên-

Uma G r a m á t i c a d o Asse n t i m e n t o • J71


eia com eles, como se tivessem de encÓntrar o caminho para uma
montanha distante, que enxergam com os olhos; e ensarilham-se,
embaraçam-se e, possivelmente, são derrotados neste esforço
supérfluo. Os homens de segunda categoria, embora muito úteis
no seu lugar, é que demonstram, reconciliam, ultimam e explicam.
Provavelmente, o sentimento popular do século XVI viu na Bíblia
a Palavra de Deus, como nada mais do que a Sua Palavra, pelo
poder de um sentimento forte, por uma espécie de instinto moral
ou por um feliz augúrio» l .
Isto é, considerei o pressuposto como um acto do Sentido Ila­
tivo; deverei agora acrescentar, do Sentido Ilativo operando em ele­
mentos erróneos do pensamento.
3. Depois dos aspectos em que uma questão se deve abordar, e
dos princípios em que ela se deve examinar, vêm os argumentos
pelos quais ela é decidida; entre estes encontram-se as razões ante­
cedentes, que aqui em especial são relevantes, porque são, em
grande medida, feitas por nós próprios e pertencem ao nosso
carácter pessoal; a elas me irei restringir.
O raciocínio antecedente, quando negativo, é inócuo. Por isso,
ninguém dirá que, em virtude de o heroísmo aventureiro de Alexan­
dre ser uma das características centrais da sua história, estamos justi­
ficados, excepto na escrita de um romance, a afirmar que, num
determinado tempo e lugar, ele se distinguiu por um certo feito a
cujo respeito a história guardou silêncio; mas, por outro lado, a sua
bravura notória seria quase decisiva contra qualquer ataque a ele di­
rigido por, em determinado ocasião, ter agido como um cobarde.
De igual modo, o carácter bom consegue destruir a força de
censuras mesmo plausíveis. Existe, de facto, um grau de evidência

I Prophetical Ofjice ofthe Church, pp. 347, 348, ed. 1 837.

3 72 • J o h n H e n ry N e w m a n
em apoio de uma alegação, contra a qual a reputação não é defesa;
mas tem de ser singularmente forte para vencer uma probabilidade
antecedente estabelecida que a ela se opõe. Por isso, as personagens
históricas ou os grandes autores, homens de carácter elevado e
puro, têm sido objecto de imputações, fáceis de fazer, difíceis ou
impossíveis de enfrentar, que são calcadas, com indignação, por
todos os homens justos e sensatos, como sendo tão anti-sociais
quanto inumanas. Não tenho necessidade de acrescentar que papel
cruel e desprezível desempenharia um esposo ou um filho que
ouvisse de bom grado uma acusação contra a sua esposa ou o seu
pai. Todavia, admitindo tudo isto, persiste um grande número de
casos, que são intrigantes, e a cujo respeito não podemos harmoni­
zar os reptos de argumentos antagónicos e heterogéneos, excepto
mediante a operação penetrante e subtil do Sentido Ilativo.
O argumento de Butler na sua obra Analogy é uma requisição
deste tipo, usada de modo negativo. Como a objecção é feita contra
certas características do cristianismo, ele confronta-a com a presun­
ção a seu favor, derivada das suas comparações como descortináveis
na ordem da natureza, argumentando que elas se não dirigem contra
a origem divina do cristianismo, a não ser que contradigam também
a origem divina do sistema natural. Mas não podia aduzi-la como
uma prova positiva e directa da origem divina das doutrinas cristãs
de que tinham os seus paralelos na natureza ou, quando muito,
como mais do que uma recomendação deles ao inquiridor religioso.
Os descrentes servem-se do argumento antecedente tirado da
ordem de natureza contra a nossa crença em milagres. Se, neste pon­
to, eles pretendem dizer apenas que o facto deste sistema de leis,
pelo qual é governada a natureza, torna antecedentemente imprová­
vel que nele ocorra uma excepção, não há nenhuma objecção a
fazer ao argumento; mas se, como é habitual, pretendem dizer que

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o •
3 73
o facto de uma ordem estabelecida é absolutamente fatal para a
genuína noção de uma excepção, servem-se de uma presunção
como se ela fosse uma prova. Dizem: o que aconteceu 999 vezes de
uma forma não pode, possivelmente, acontecer na milésima vez de
outro modo, porque o que aconteceu 999 vezes de um modo deve,
provavelmente, acontecer da mesma maneira na milésima. Mas, às
vezes, ocorrem coisas dissemelhantes. Se, porém, eles pretendem
dizer que a ordem existente da natureza constitui uma necessidade
física, que uma lei é um facto inalterável, isso é pressupor j usta­
mente o ponto em debate, e é muito mais do que asserir a sua pro­
babilidade antecedente.
Os factos não podem ser demonstrados por presunções; toda­
via, é notável que em casos onde nada mais forte do que uma pre­
sunção se expressou, os homens de ciência actuaram, por vezes,
como se considerassem este tipo de argumento, tomado em si mes­
mo, como decisivo de um facto que estava em discussão. Assim, na
controvérsia sobre a pluralidade dos mundos, considerou-se, na
base de razões puramente antecedentes, tanto quanto consigo ver,
ser tão necessário que o Criador enchesse de seres vivos os luzeiros
que vemos no céu, e os outros corpos cósmicos que ali imagina­
mos, que duvidar de tal quase equivale a uma blasfémia.
As conclusões teológicas, é verdade, foram muitas vezes realiza­
das na base de raciocínios antecedentes; mas, então, importa lembrar
que o raciocínio teológico declara ser apoiado por um poder sobre­
-humano, e ser garantido por uma autoridade sobre-humana. É,
pois, verdade que as conversões ao cristianismo se realizaram, muitas
vezes, na base de razões antecedentes; todavia, mesmo admitindo
o facto, que não é de todo claro, várias probabilidades anteceden­
tes, confirmando-se umas às outras, podem transformar em dever
no j uízo de um homem prudente não só agir como se o enunciado

3 74 • J o h n H e n ry N e w m a n
fosse verdadeiro, mas, na realidade, aceitá-lo e nele acreditar. Isto en­
contra-se, com muita frequência, exemplificado no nosso trato com
os outros, quando consideramos correcto, apesar das nossas suspei­
tas, obrigar-nos a acreditar na sua honestidade. E, em todas estas
questões delicadas, existe um apelo constante ao exercício do Sen­
tido Ilativo.

Uma G r a m á t i c a do Assen t i m e n t o • 375


C A P ÍT U L O 10

I N F E RÊ N C I A E A S S E N T I M E N T O
E M MAT É R I A D E RE L I G I Ã O

Completei, agora, a revisão do segundo tema a que dediquei a mi­


nha atenção neste ensaio, a saber, o nexo que existe entre os actos
intelectuais de Assentimento e de Inferência; o primeiro era a cone­
xão do Assentimento com a Apreensão. E como encerrei as minhas
observações acerca do Assentimento e da Apreensão, aplicando as
conclusões a que cheguei à nossa crença nas Verdades da Religião,
devo agora falar das suas Evidências, antes de abandonar a conside­
ração da dependência do Assentimento em relação à Inferência. Ten­
tarei proceder assim neste capítulo, não sem muita ansiedade, para
que, devido a um tratamento necessariamente breve e superficial,
não cause dano a um assunto tão vasto, importante e sagrado.
Começo por expressar um sentimento, que se encontra habi­
tualmente nos meus pensamentos, sempre que eles se voltam para
o tema da ciência mental ou moral, e que aqui desejo aplicar às
Evidências da Religião, tal como adequadamente se aplica à Meta­
física ou à Ética, a saber, que nestas províncias da inquirição, o
egotismo é verdadeira modéstia. Na indagação religiosa, cada um
de nós pode falar só por si, tem por si um direito de falar. Bastam­
-lhe as suas experiências próprias, não pode falar por outros: não
pode estabelecer a lei; pode apenas trazer as suas experiências pes­
soais ao fundo comum dos factos psicológicos. Conhece aquilo
que a si o satisfez e satisfaz; se o satisfaz, é provável que também a
outros cause satisfação; se, como ele crê e está seguro, for verdadei­
ro, também a outros se demonstrará assim, pois existe apenas uma

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 3 77
única verdade. E, sem dúvida, descobre efectivamente que, ao acatar
a diferença das mentes e dos modos de discurso, aquilo que o con­
vence também a outros convencerá. Haverá muitíssimas excepções,
mas estas receberão uma explicação. Inúmeros homens recusam-se
de todo a indagar; põem inteiramente de lado o tema da religião;
outros não são assaz sérios para se preocupar com as questões da
verdade e do dever e as cultivar; e a muitos, quer por causa da sua
disposição mental, ou da ausência de dúvida, quer devido a um
intelecto letárgico, não lhes ocorre inquirir porquê e aquilo em que
acreditam; muitos, embora tentassem, não conseguiriam fazê-lo de
um modo satisfatório. Se assim é, não causa incómodo a quem quer
que seja que honestamente tente ordenar a sua própria visão das Evi­
dências da Religião que, à primeira vista, ele não passe, aparente­
mente, de um entre muitos que se encontram todos em oposição
recíproca. Mas, seja como for, ele junta as suas razões, conta com
elas, porque são suas, e esta é a sua evidência primeira; e possui uma
segunda base de evidência no testemunho daqueles que com ele
concordam. Mas a sua melhor evidência é a primeira, que dimana
dos seus próprios pensamentos; e é aquela que o mundo tem um
direito a dele exigir; por conseguinte, a sua verdadeira sobriedade, a
sua modéstia não consiste em reclamar para as suas conclusões uma
aceitação ou uma aprovação científica que em nenhum lado se
encontrará, mas em expressar o que constitui os seus motivos pes­
soais para a sua crença na Religião Natural e Revelada. Considera ele
estes motivos de tal modo suficientes que pensa que os outros os
aceitam implicitamente ou no essencial, ou aos mesmos deveriam
aderir, se indagassem de um modo justo, ou hão-de aderir se o escu­
tarem, ou não aderem em virtude de obstáculos, invencíveis ou não,
cuja pesquisa ele não está intimado a fazer. Todavia, o seu ofício é
falar por si. Usa as palavras dos samaritanos à sua conterrânea, quan-

378 • J o h n H e n ry N e w m a n
do o Senhor ficou com eles durante dois dias, «Já não é pelas tuas
palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que ele é
verdadeiramente o Salvador do mundo».
Declara-se nestas palavras que a Revelação do Evangelho é divi­
na, que traz consigo a evidência da sua divindade; e esta é, decerto, a
questão de facto. No entanto, estes dois atributos não precisam de
estar unidos; uma revelação poderia ter sido realmente dada, mas
dada sem credenciais. O nosso Mestre supremo poderia ter-nos
comunicado verdades que a natureza nos não pode ensinar, sem nos
dizer que Ele as deu - como acontece agora efectivamente no
tocante às nações gentias, em que partes da verdade revelada se
difundem e penetram, sem que as suas populações saibam donde
essas verdades vieram. Mas a genuína ideia do cristianismo, na sua
confissão e na sua história, é algo mais do que isso; é uma Revelatio
revelata:, é uma mensagem definida de Deus ao homem, transmitida
distintamente pelos seus instrumentos escolhidos, e que deve ser
acolhida como tal mensagem; portanto, ser positivamente reconhe­
cida, abraçada e afirmada como verdadeira, só por ser divina, não
como verdadeira por razões intrínsecas, não como provável ou par­
cialmente verdadeira, mas como conhecimento absolutamente certo,
certo num sentido em que nada mais · pode ser certo, pois ela pro­
vém d'Aquele que não pode enganar nem ser enganado.
E todo o teor da Escritura, desde o início ao fim, visa este efei­
to: a matéria da revelação não é uma mera colecção de verdades,
não é uma visão filosófica, não é um sentimento ou espírito reli­
gioso, não é uma moralidade especial - derramada na humanida­
de, tal como uma torrente se poderia verter no mar, misturando-se
com o pensamento do mundo, modificando-o, purificando-o,
revigorando-o; - mas é um ensinamento dotado de autoridade,
que dá testemunho de si mesmo e se preserva a si como um só, em

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 3 79
contraste com o conjunto de opiniões a toda a sua volta; fala a todos
os homens, como sendo sempre e em toda a parte uma só e a mes­
ma, exigindo ser aceite, de modo inteligente, por todos aqueles a
que ela se dirige como uma só doutrina, disciplina e devoção direc­
tamente dada do alto. Por conseguinte, a exibição de credenciais,
isto é, da evidência, de que ela é o que professa ser, é essencial ao
cristianismo, tal como se nos apresenta; pois não temos a liberdade
de respigar e de escolher os seus conteúdos segundo o nosso juíw,
mas devemos recebê-lo todo, tal como se nos depara, se é que de
todo o aceitamos. Ele é uma religião acrescentada à religião da
natureza; e assim como a natureza tem sobre nós uma exigência
intrínseca a ser obedecida e usada, assim o que está além e acima
da natureza, ou o sobrenatural, deve igualmente trazer consigo teste­
munhos válidos do seu direito a exigir a nossa homenagem.
Em seguida quanto à relação com a natureza. Como afirmei, o
cristianismo é apenas um acrescento a ela; não a substitui nem a
contradiz; reconhece-a, depende dela, e tal necessariamente: pois,
como é que possivelmente conseguirá ele demonstrar as suas pre­
tensões excepto por um apelo àquilo que os homens já têm? Por
miraculoso que seja, não pode dispensar a natureza; isso seria tirar
o chão debaixo dos seus pés; pois, que valor teriam as evidências a
favor de uma revelação que negasse a autoridade daquele sistema
de pensamento e os trajectos do raciocínio, de que dimanaram
necessariamente essas evidências?
E, em consonância com esta conclusão óbvia, vemos na Escri­
tura que o Senhor e os Seus Apóstolos tratam sempre o cristianis­
mo como a realização e o suplemento da Religião Natural e das
revelações anteriores; como quando Ele diz que o Pai deu dele tes­
temunho; que não o conhecer a Ele é não conhecer o Pai; e como
S. Paulo, em Atenas, se refere ao «Deus desconhecido» e afirma

380 • J o h n H e n ry N e w m a n
que «Aquele que criou o mundo» «intimou agora todos os homens
a fazer penitência, porque determinou um dia para j ulgar o mun­
do pelo homem que Ele escolhem> . Se, pois, o Senhor e os Seus
Apóstolos se referem ao Deus da natureza, então devemos segui-los
neste apelo; e, para tal levarmos a cabo com o melhor efeito, deve­
mos, primeiro, indagar as doutrinas e os motivos principais da
Religião Natural.

1. A r e l i g i ã o da n a t u reza

Por Religião entendo o conhecimento de Deus, da Sua Vontade e


dos nossos deveres para com Ele; e há três canais principais que a
natureza nos fornece para a aquisição desse conhecimento, a saber,
as nossas mentes, a voz da humanidade e o curso do mundo, isto é,
da vida humana e dos afazeres humanos. As informações que os três
nos transmitem ilustram-nos acerca do Ser e dos Atributos de Deus,
da nossa responsabilidade para com Ele, da nossa dependência a seu
respeito, da nossa perspectiva de recompensa ou de castigo, que é
algo que terá lugar, segundo a Ele obedecermos ou não. E o mais
autorizado dos três meios de conhecimento, como sendo especial­
mente nosso, é a nossa mente, cujas informações nos facultam a
regra com que testamos, interpretamos e corrigimos o que nos é
proposto para a crença, seja mediante o testemunho universal da
humanidade ou através da história da sociedade e do mundo.
O nosso grande mestre interior da religião é, como afirmei na
primeira parte deste Ensaio, a nossa Consciência I . A Consciência é

I Supra, p. 1 27- 1 29, etc. Vide também Univ. Serm. II, 7- 1 3 .

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n c i m e n t o •
38!
um guia pessoal, e uso-a porque me devo usar a mim mesmo; sou
tão pouco capaz de pensar com outra mente qualquer excepto a
minha como respirar com os pulmões de outrem. A Consciência
está mais perto de mim do que qualquer outro meio de conheci­
mento. E assim como ela me é dada, assim também é dada aos
outros; e como é transportada por cada indivíduo no seu próprio
peito, e nada exige além de si mesma, assim está preparada para a
comunicação a cada um em separado daquele conhecimento que,
individualmente, lhe é mais importante - talhada para o uso de
todas as classes e condições de homens, para os altos e baixos,
jovens e velhinhos, homens e mulheres, independentemente dos
livros, do raciocínio educado, do conhecimento físico ou da filoso­
fia. A Consciência ensina-nos também não só que Deus existe, mas
o que Ele é; faculta à mente uma imagem real Sua, como um meio
de culto; dá-nos uma regra do bem e do mal, como a Sua regra e
um código de deveres morais. Além disso, está de tal modo consti­
tuída que, se for obedecida, se torna mais dara nas suas admoesta­
ções, mais ampla no seu âmbito, corrige e completa a fraqueza
acidental dos seus ensinamentos iniciais. A Consciência, pois, con­
siderada como o nosso guia, está plenamente apetrechada para o
seu ofício. Digo tudo isto sem entrar na questão de até que ponto
serão necessários, em todos os casos, auxílios externos para a acção
da mente porque, efectivamente, o homem não vive isolado, antes
se descobre em toda a parte como um membro da sociedade; não
me ocupo aqui de questões abstractas.
Muitas coisas nos sugere a Consciência acerca deste Mestre,
que por meio dela percepcionamos, mas o seu ensinamento mais
proeminente, a sua verdade cardeal e mais distintiva, é que ele é o
nosso Juiz. Por conseguinte, o Atributo especial sob o qual ela no­
-lo apresenta, ao qual subordina todos os outros Atributos, é o da

382 • J o h n H e n ry Newman
j ustiça - justiça retributiva. Aprendemos primeiro, a partir das
suas informações, a conceber o Omnipotente, não como um Deus
de Sabedoria, de Conhecimento, de Poder, de Benevolência, mas
como um Deus de Juízo e de Justiça; como Alguém que, não ape­
nas para o bem do ofensor, mas como um fim em si mesmo e
como um princípio do Governo, ordena que o ofensor deve sofrer
pela sua ofensa. Se ela nos diz algo acerca das características da
Mente Divina certamente que nos diz isto; e, considerando que as
nossas deficiências são muito mais frequentes e importantes do
que o nosso cumprimento dos deveres a nós impostos, e que nós
próprios estamos plenamente conscientes deste ponto, segue-se
que o aspecto sob o qual o Deus omnipotente nos é apresentado
pela Natureza é (para usar uma imagem) o de Alguém que está ira­
do connosco e nos ameaça com males. Portanto, o seu efeito é
sobrecarregar e entristecer a mente religiosa, e contrasta com o pra­
zer que se pode tirar do exercício dos afectos, da percepção da
beleza, quer no universo material quer nas criações do intelecto.
Tal é o temível antagonismo salientado com uma realidade acuti­
lante por Lucrécio, ao falar de modo tão afrontoso do que ele con­
sidera ser o jugo pesado da religião e das aeternas poenas in morte
timenduml ; e, por outro lado, alegra-se com a sua Alma Venus, quae
rerum naturam sola gubernas2. E podemos recorrer a ele para este
facto, embora repudiemos a concepção que dele tem.
Se é este o aspecto prima facie da religião que os ensinamentos
da Consciência põem diante cada um de nós, consideremos, em
seguida, quais as doutrinas, quais as influências da religião, tal como
as encontramos encarnadas nos diversos ritos e devoções que lan-

i ccNa morre devem temer-se as penas eternas».


2 «Deusa Vénus, que sozinha governas a natureza das coisas».

U m a Gramática d o Assen c i m e n c o • 383


çaram raízes em muitas raças da humanidade, desde o começo da
história, e antes da história, em toda a terra. Também destes nos
oferece Lucrécio um espécime; e eles harmonizam-se na forma e na
compleição com a doutrina acerca do dever e da responsabilidade,
que o poeta tão amargamente odeia e detesta. Dificilmente é neces­
sário realçar que sempre que a religião existe numa forma popular
mostrou, no exterior, quase invariavelmente o seu lado obscuro.
Funda-se, de um ou de outro modo, no sentido do pecado; sem este
sentido vivo, dificilmente teria quaisquer preceitos ou observâncias.
Todas suas múltiplas variedades proclamam ou implicam que o
homem existe numa condição degradada, servil, e exige expiação,
reconciliação, alguma grande mudança de natureza. Isto é-nos suge­
rido de muitos modos, em que se nos fala de um reino de luz e de
um reino das trevas, de um povo eleito e de uma condição regene­
rada. É sugerido na instituição quase ubíqua e sempre recorrente
de um Sacerdócio; pois, onde existe um sacerdote existe a noção de
pecado, de impureza, de retribuição, mas também, por outro lado,
de intercessão e mediação. Por isso, de modo ainda mais directo, a
noção da nossa culpa é impressa em nós pela doutrina do castigo
futuro, mas eterno, que se encontra nas mitologias e nos credos de
tão heterogénea linhagem.
Dos diversos ritos e doutrinas que encarnam a vertente severa
da Religião Natural, o mais notável é o de propiciação, isto é, «a
substituição de algo oferecido, ou um sofrimento pessoal, por uma
pena que, de outro modo, seria imposta; notável sobretudo, digo,
pela sua íntima ligação com a noção de satisfação vicária e, por
outro lado, pela sua universalidade. <<A prática da propiciação», diz
o autor cuja definição da palavra acabei de mencionar «é notável
pela sua antiguidade e universalidade, atestada pelos registos mais
antigos que nos chegaram de todas as nações, e pelo testemunho

384 • J o h n H e n ry N e w m a n
de viajantes antigos e modernos. Nos livros mais antigos das Escri­
turas Hebraicas, temos numerosos exemplos de ritos expiatórios,
onde a propiciação é a característica saliente. Na data mais antiga,
a que podem remontar as nossas inquirições mediante os registos
gentios, deparamos com a mesma noção de propiciação. Se persis­
tirmos nas nossas indagações através dos relatos que os escritores
gregos e romanos nos deixaram das nações bárbaras com que eles
estavam familiarizados, desde a Í ndia à Bretanha, encontramos as
mesmas noções e práticas similares de propiciação. Na parte mais
popular da nossa literatura, nas nossas narrativas de jornadas e de
viagens, todo aquele que lê conseguirá, provavelmente, descobrir
por si mesmo provas abundantes de que a noção foi tão permanen­
te quanto universal. Exibe-se a si mesma entre as diversas tribos de
África, nos habitantes das ilhas dos Mares do Sul, e até nessa raça
muito peculiar, os indígenas da Austrália, quer na forma de algu­
ma oferta quer de alguma mutilação da pessoa» l .
Estas constatações cerimoniais, em tantas e diversas formas de
culto, da degradação efectiva da raça humana, implicam, natural­
mente, um aspecto mais brilhante, e também ameaçador, da Reli­
gião Natural; de facto, porque é que os homens haveriam de
adoptar ritos de lamentação ou de purificação, a não ser porque
tinham alguma esperança de alcançar uma melhor condição do que
a sua presente? Falarei, agora, desta vertente mais jocosa da religião;
aqui, porém, levanta-se uma questão de outro tipo, a saber, se a
noção de propiciação se deverá incluir nas doutrinas da Religião
Natural - digo isto porque ela é inconsistente com os ensinamen­
tos da Consciência, que acima reconheci como regra e correctivo
de qualquer outra informação a tal respeito. Se existe alguma ver-

I Penny Cyclopaedia, art. «A.tonement» (resumido).

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 385
dade que nos é eminentemente clarificada pela consciência é esta,
que somos pessoalmente responsáveis por aquilo que fazemos, que
não temos meio algum de remover a nossa responsabilidade, que o
abandono do dever implica castigo; como é que então, perguntar­
-se-á, podem actos nossos de qualquer tipo - como poderá, inclu­
sive, a emenda da vida - desfazer o passado? E se até os nossos
actos subsequentes de obediência não trazem consigo nenhuma
promessa de anular o que outrora foi cometido, como poderão
ritos externos, ou as acções de outrem (por exemplo, de um sacer­
dote) , ser substitutos do castigo, que é o fruto conatural e o desen­
volvimento intrínseco da violação do sentido de dever? Penso que
esta objecção resulta no seguinte: que a emenda não é a reparação,
que nenhumas cerimónias ou penitências podem em si mesmas
exercer qualquer virtude vicária a nosso favor; que, se forem úteis,
têm préstimo apenas no período intermédio da provação; que de
algum modo devemos fazê-las nossas; e que, se chegar o tempo,
augurado pela consciência, de sermos chamados a juízo, teremos
então ao menos de nos apoiar em nós e por nós mesmos, seja o
que for em que nessa altura nos tenhamos tornado, e devemos
transportar a nossa própria carga. Mas é evidente que, neste côm­
puto afinal, tal como se apresenta entre nós e o nosso Mestre, só
Ele, nosso Criador e nosso Juiz, pode decidir como é que o passa­
do e o presente se aglutinam.
Ao considerar assim como um pormenor necessário aj ustar as
religiões do mundo às intimações da nossa consciência, mostro a
razão por que me restringi às religiões que nasceram em épocas
bárbaras e não reconhecem a religião do que se chama a civiliza­
ção, como tendo legitimamente uma parte no delineamento da
Religião Natural. Pode, à primeira vista, afigurar-se estranho que,
em virtude de eu ter realçado a natureza progressiva do homem,

386 • John H e n ry N e w m a n
tivesse de ir buscar as minhas ideias da sua religião ao seu testemu­
nho inicial, e não ao seu testemunho final acerca das doutrinas da
mesma; e pode insistir-se em que a religião das épocas civilizadas é
de todo oposta no seu carácter aos ritos e às tradições dos bárbaros, e
nada tem da dejecção e do carácter implacável, que eu repisei como
características suas. Assim, a mitologia grega foi, na sua maioria, ale­
gre e graciosa, e os seus deuses recentes decerto mais simpáticos e
indulgentes do que os antigos. E, de igual modo, a religião da filoso­
fia é mais nobre e mais humana do que as concepções primitivas,
que eram suficientes para os antigos reis e guerreiros. Mas a minha
resposta a esta objecção é óbvia: o progresso de que a natureza do
homem é capaz constitui um desenvolvimento, não uma destruição,
do seu estado original; deve servir de instrumento aos elementos de
que dimana a fim de ser um verdadeiro desenvolvimento, e não uma
perversão I . E os rituais populares, na realidade, fomentam e comple­
tam a natureza com que o homem nasceu. As coisas são diferentes
com a religião da chamada civilização; semelhante religião opõe-se
apenas à religião da barbárie; e visto que esta civilização não é um
desenvolvimento da natureza integral do homem, mas sobretudo do
intelecto, reconhecendo decerto o sentido moral, mas ignorando a
consciência, não admira que a religião em que ela desemboca não
tenha simpatia para com as esperanças e os temores da alma desperta
ou para com os pressentimentos temerosos que se expressam no cul­
to e nas tradições dos gentios. Esta religião artificial não tem, pois,
lugar na indagação; primeiro, porque deriva de um progresso unila­
teral da mente e, em seguida, pela razão genuína de que contradiz os
informadores que falam com maior autoridade do que ela própria.

I Sobre estes temas escrevi nos University Sermons (Oxford), N° VI; Idea of the University,

�isc. VIII; History ofTurks, cap. IV; Development ofDoctrine, cap. l, sect. 3.

Uma Gramática do Assen timento • 387


Chegamos agora ao terceiro informador natural a propósito da
religião; ou seja, o sistema e o curso do mundo. Se esta ordem
estabelecida das coisas, em que nos encontramos, tem um Criador,
deve decerto expressar a Sua vontade nos seus contornos amplos e
nos seus principais resultados. Visto que este princípio se estabelece
como certo, quando o aplicamos às coisas como elas são, o nosso
primeiro sentimento é de surpresa e (posso dizer) de desapontamen­
to, por ser tão indirecto o Seu controlo deste mundo vivo e tão obs­
cura a sua acção. Eis a primeira lição que aprendemos a partir do
curso dos humanos afazeres. O que perturba a mente de modo tão
intenso e doloroso é a Sua ausência (se assim posso falar) do Seu
próprio mundol . É um silêncio que fala. É como se outros se tives­
sem apossado da Sua obra. Porque é que Ele, o nosso Criador e
Governante, não nos dá um conhecimento imediato de Si mesmo?
Porque é que não escreve a Sua Natureza Moral em grandes letras
no rosto da história, e integra o ímpeto cego, tumultuoso, dos seus
acontecimentos numa ordem celeste e hierárquica? Porque é que
não nos foi facultada, na estrutura da sociedade, pelo menos tanta
revelação de Si mesmo como as religiões dos gentios tentam forne­
cer? Porque é que, desde o começo do tempo, nenhuma luz contí­
nua e uniforme guiou todas as famílias da terra, todos os homens
individuais, sobre o modo de Lhe agradar? Porque é que é possível,
sem absurdo, negar a Sua vontade, os Seus atributos, a Sua existên­
cia? Porque não caminha Ele com cada um de nós, como dEle se
diz que caminhou antigamente com os seus eleitos? Vemo-nos e
conhecemo-nos uns aos outros; porque é que, se não O podemos
ver, não temos ao menos o conhecimento? Pelo contrário, Ele é
sobretudo «um Deus Escondido»; e com os nossos melhores esfor-

1 Cf. Apologia, p. 24 1 .

388 • J o h n H e n ry N e w m a n
ços conseguimos apenas respigar da superfície do mundo umas
quantas imagens Suas, desmaiadas e fragmentárias. Diviso apenas
uma escolha de alternativas na explicação de um facto tão crítico:
ou não existe Criador algum ou Ele deixou de reconhecer como
suas as criaturas. Serão, então, as sombras obscuras da Sua Presen­
ça nos afazeres dos homens apenas uma ficção nossa ou, por outro
lado, ocultou Ele a sua face e a luz do seu rosto porque, de algum
modo especial, O ofendemos? O meu verdadeiro informador, a
minha consciência pesada, dá-me de repente a verdadeira resposta
a cada uma destas questões antagónicas: assevera, sem qualquer
suspeita, que Deus existe; afirma com igual segurança que estou
dEle alienado; que «a Sua mão não foi encurtada, mas que as nos­
sas iniquidades criam uma divisão entre nós e o nosso Deus». Ela
resolve assim o mistério do mundo, vê neste mistério apenas uma
confirmação do seu próprio ensinamento originário.
Passemos a outro grande facto da experiência, relativo à Reli­
gião, que confirma este testemunho da consciência e das formas de
culto que prevalecem na humanidade - quero dizer, a quantidade
de sofrimento, corporal e mental, que é o nosso lote nesta vida.
Não só o Criador está longe, mas algum ser de natureza maligna
parece, como afirmei, ter-se de nós apossado e fazer de nós o seu
joguete. Digamos que há, hoje, mil milhões de homens sobre a
terra; quem pode pesar e medir a mole de dor que esta geração
suportou e suportará, desde o nascimento à morte? Em seguida,
acrescentemos a tudo isto a dor que coube e caberá à nossa raça, ao
longo dos séculos passados e futuros. Não haverá então um grande
hiato entre nós e Deus? Aqui, de novo, o testemunho do sistema
da natureza é mais do que corroborado pelas tradições populares
acerca do estado invisível, que se encontram nas mitologias e nas
superstições, antigas e modernas; pois, essas tradições falam não só

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 389
da miséria presente, mas da dor e do mal futuros, e até sem fim.
Mas esta adição terrível não é necessária para a conclusão que aqui
desejo tirar. O mistério real não é que o mal nunca deveria ter um
fim, mas que ele houvesse alguma vez de ter um começo. Inclusive,
uma restituição universal não poderia desfazer o que foi feito, ou
explicar o mal como a condição necessária do bem. Como havere­
mos de explicá-lo, se se tiver por garantida a existência de Deus,
excepto dizendo que outra vontade, além da Sua, teve uma parte
na disposição da Sua obra, que existe uma discórdia sem remédio,
uma alienação crónica, entre Deus e o homem?
Sugeri que as leis segundo as quais este mundo é governado
não chegam ao ponto de provar que o mal nunca se esvanecerá da
criação; apontam, contudo, para essa direcção. Nenhuma expe­
riência da vida nos pode, de facto, assegurar acerca do futuro, mas
pode fornecer e fornece-nos efectivamente meios de conjecturar o
que talvez virá a acontecer; e essas conjecturas coincidem com as
nossas naturais predições. A experiência capacita-nos para desco­
brir com certeza a constituição moral do homem e, deste modo,
prognosticar o seu futuro a partir do seu presente. Ensina-nos, pri­
meiro, que ele não está à altura da sua própria felicidade, antes
depende dos objectos sensíveis que o rodeiam, e que não pode
levar estes consigo, ao deixar o mundo; em segundo lugar, que a
desobediência ao seu sentido do bem é já por si uma miséria, e que
ele carrega consigo esta miséria, onde quer que esteja, mesmo se
nenhuma retribuição divina se seguisse; e, em terceiro lugar, que
ele não consegue mudar a sua natureza e os seus hábitos só pelo
desejo, mas é simplesmente ele próprio, e será sempre ele próprio e
o que agora é, onde quer que esteja, enquanto continuar a existir
- ou, pelo menos, que a dor não tem nenhuma tendência natural
a torná-lo diferente do que é, e que quanto mais longamente ele

J90 • John Henry Newman


viver tanto mais dificilmente se modificará. Como poderemos en­
frentar estas perspectivas não irracionais, excepto fechando os nossos
olhos, desviando-nos delas e dizendo que não temos nenhuma exi­
gência, nenhum direito, a pensá-las no presente, ou a tornar-nos mi­
seráveis acerca do que não é certo e, porventura, não verdadeiro l ?
Tal é o aspecto opressivo d a Religião Natural: é , portanto, o
aspecto mais proeminente, porque a multidão dos homens segue
os seus próprios gostos e caprichos, e não as decisões do seu sentido
do bem e do mal. Para eles, a Religião é um simples jugo, como
Lucrécio o descreve; não uma satisfação ou um refúgio, mas .um ter­
ror e uma superstição. Todavia, nem por um instante se deve pressu­
por que eu pretendo dizer que este é o seu único, principal ou
legítimo aspecto. Toda a Religião, na medida em que é genuína, é
uma bênção, tanto a Natural como a Revelada. Insisti, em primeiro
lugar, no seu aspecto opressivo porque, em virtude das circunstân­
cias da natureza humana, não porém por defeito da Religião, esse é
o molde em que primeiro com ela deparamos. O seu fundamento
amplo e profundo é o sentido do pecado e da culpa, e sem este sen­
tido não existe para homem, tal como é, nenhuma religião genuína.
De outro modo, ela é somente simulada e oca; e esta é a razão por
que a chamada religião da civilização e da filosofia é uma irrisão tão
grande. Todavia, embora seja verdadeiro o j uízo que faço a propó­
sito da religião filosófica, embora sejam confusas as relações exis­
tentes entre Deus e o homem, como atestam a voz da humanidade
e os factos do Governo Divino, são igualmente verdadeiras outras
leis gerais que regulam essas relações, falam outra língua e com­
pensam o que há de inexorável no ensinamento da natureza, sem
tenderem a negar tal inflexibilidade.

1 CE Callista, cap. XIX.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 39l
A primeira destas leis, mitigando o aspecto da Religião Natu­
ral, é o facto genuíno de que as crenças e as instituições religiosas,
de qualquer tipo, são objecto de aceitação geral em todas as épocas
e lugares. Porque é que haveriam os homens de se sujeitar à tirania
que Lucrécio denuncia, a não ser que tivessem a experiência ou a
esperança de benefícios para si mesmos, ao fazê-lo? Embora seja
uma simples esperança de benefícios, isso só é um grande alívio do
pesadume e da miséria que os seus ritos religiosos pressupõem ou
ocasionam; pois, têm assim uma perspectiva, mais ou menos dara,
de um estado mais feliz para eles reservado ou, pelo menos, as pos­
sibilidades dele. Se simplesmente desesperassem da sua sorte, não
se preocupariam com a religião. E a esperança do bem futuro,
como sabemos, suaviza todo o sofrimento.
Além disso, têm um penhor deste futuro nas bênçãos reais e
recorrentes da vida, na fruição dos dons da terra, do afecto domés­
tico e do trato social, que é suficiente para tocar e vencer mesmo
os homens mais culpados nos seus melhores momentos, lembran­
do que eles não foram inteiramente rejeitados por Aquele que,
contudo, lhes não foi dado conhecer. Ora, nas palavras do Apósto­
lo, embora o Criador tenha outrora «suportado que todas as
nações seguissem os seus próprios caminhos», contudo «não dei­
xou de fornecer um testemunho Seu, fazendo bem a partir dos
céus, facultando a chuva e as estações frutíferas, enchendo os nos­
sos corações com alimento e alegria» .
Nem as bênçãos de natureza física são os únicos indícios no
Sistema Divino, que na época pagã e, efectivamente, em todas as
épocas, tornam de todo claro para a nossa experiência o facto de
um Deus Bom, não obstante o tumulto e a confusão do mundo. É
possível fornecer uma interpretação do curso das coisas, pela qual
cada evento ou ocorrência na sua ordem se torne providencial: e

392 • J o h n H e n ry N e w m a n
embora esta interpretação não se aguente bem, a não ser que o
mundo se contemple a partir de um ponto de vista particular,
num único aspecto dado, e com certas experiências íntimas, com
primeiros princípios e juízos pessoais, pode todavia dizer-se com
justeza que eles são as condições comuns do pensamento humano,
isto é, até que eles sejam perdidos de modo voluntário ou aciden­
tal; e, na realidade, acabam por levar a grande maioria dos homens
a reconhecer a Mão de um poder invisível, que guia no perdão ou
no j uízo o sistema físico e moral. Nos acontecimentos importantes
do mundo, passados e contemporâneos, o destino, mau ou feliz,
dos grandes homens, a ascensão e o colapso dos Estados, as revolu­
ções populares, as batalhas decisivas, a migração das raças, o
povoamento de toda a terra, os terramotos e as pestilências, as des­
cobertas e invenções críticas, a história da filosofia, o avanço do
conhecimento, a piedade espontânea da mente humana discerne
uma Supervisão Divina. Além disso, existe um sentimento geral,
que nasce directamente da operação da consciência, de que um
governo semelhante se estende às pessoas dos indivíduos, que
assim realizam os desígnios e recebem as justas recompensas de
uma Providência Omnipotente. Conforme instintivamente se sen­
te, bem por bem, mal por mal é, inclusive a partir daquilo que
vemos, no meio de toda a obscuridade e confusão, a regra univer­
sal do trato de Deus connosco. Daí nascem os grandes provérbios,
congénitos às nações cristãs e pagãs, de que o castigo é seguro
embora lento, de que o assassínio acabará e a traição nunca pros­
pera, de que o orgulho será humilhado e a honestidade é o melhor
procedimento, de que as maldições caem sobre as cabeças daqueles
que as proferem. Para a apreensão simples de muitos, as sucessivas
transições da vida, social ou política, são outros tantos milagres, se
se tiver por milagroso o que diante deles põe a imediata Presença

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o • 393
Divina; e se se objectar que este é um exercício ilógico da razão,
respondo o seguinte: se ele leva efectivamente a uma conclusão
correcta, e era intentado para a tal os levar, se a lógica acha isso
incorrecto, tanto pior para a lógica.
Também a oração é essencial à religião; e onde existe oração
existe um alívio e uma consolação natural em todas as perturba­
ções, grandes ou habituais: ora a oração não é menos geral em toda
a humanidade do que o é a fé na Providência. Foi sempre utilizada
como uma prática pessoal e social. Se, para determinar o que é a
Religião da Natureza, pudermos recorrer aos actos espontâneos e
aos acontecimentos da nossa raça, enquanto vislumbrados num
campo vasto, também aqui podemos seguramente dizer que a ora­
ção, tal como a esperança, é uma componente da religião do
homem. Nem é uma objecção j usta a este argumento dizer que tais
orações e ritos, como tiveram lugar em diversos lugares e tempos,
são, no seu carácter, no seu objecto e escopo, entre si inconsisten­
tes; porque as suas oposições não se insinuam na ideia da religião
enquanto tal, e o facto genuíno da sua discordância elimina o seu
direito a serem tidas em conta, na medida em que são discordan­
tes; pois o que não é universal não pode pretender ser considerado
natural, correcto ou de origem divina. Podemos, portanto, deter­
minar a oração como parte da Religião Natural, a partir dos exem­
plos do uso fornecidos pelos sacerdotes de Baal e pelos Derviches
dançarinos sem, portanto, incluir nas nossas noções de oração os
excessos frenéticos de uns ou o giro artístico dos outros, ou sancio­
nar os seus respectivos objectos de crença, Baal ou Maomé.
Assim como a oração é a voz do homem a Deus, assim a Reve­
lação é a voz de Deus dirigida ao homem. Por conseguinte, outro
alívio da escuridão e da miséria que pesam sobre as religiões do
mundo é que, de um ou de outro modo, tais religiões se baseiam

394 • J o h n H e n ry N e w m a n
em alguma ideia de revelação explícita que dimana de agentes invi­
síveis, cuja ira elas tentam desviar; ademais, que os ritos e as obser­
vâncias especiais, pelos quais elas esperam ganhar o favor desses
seres, são por estes mesmos comunicados e estabelecidos. A Reli­
gião da Natureza não foi uma dedução da razão, ou o manifesto
conjunto, voluntário, de uma multidão que se reuniu e reciproca­
mente se obrigou a tal, como os homens tomam agora resoluções
para um objectivo político ou social, mas foi uma tradição ou uma
interposição concedida a partir do alto. A semelhante interposição
os homens atribuíram, inclusive, a sua política ou cidadania civil,
que não se originou em qualquer plebiscito, mas em dii minores ou
heróis, e foi inaugurada com prodígios ou salvaguardas, protegida
e fomentada por oráculos e augúrios. Existe aqui também uma evi­
dência de quão congénita é à mente humana a noção de uma reve­
lação, de maneira que a expectação dela se pode verdadeiramente
considerar uma parte integral da Religião Natural.
Entre as observâncias impostas por estas revelações abertamen­
te reconhecidas, nenhuma é mais notável, ou mais geral, do que o
rito do sacrifício em que a culpa foi removida ou a bênção alcança­
da por uma oferta, que era usada em vez dos méritos de quem o
oferecia. Também isto, como ainda a noção de intervenções divi­
nas, se pode considerar quase uma parte integral da Religião da
Natureza e um alívio do seu pesadume. Mas não vale por si mes­
mo; já me referi à doutrina da propiciação em que ele se integra, a
qual, se o universal corresponder ao natural, se insinua na ideia do
serviço religioso. E aquilo que a natureza do homem sugere sancio­
na-o por imposição o sistema providencial do mundo. É a lei, ou a
permissão, dada a roda a nossa raça, para usar as palavras do Após­
tolo, de «carregarmos com o fardo uns dos outros»; e isto, como
afirmei a propósito do tema da propiciação, é de todo consistente

Uma G r a m á t i c a d o A s s e n t i m e n t o •
395
com a sua antítese de que «cada um deve levar o seu próprio far­
do». O peso final da responsabilidade, quando somos chamados a
juízo, é só nosso; mas entre os meios pelos quais nos preparamos
para o juízo encontram-se os esforços e as penas suportadas pelos
outros a nosso favor. Sobre este princípio vicário, pelo qual nos
apropriamos do que outros por nós fazem, se erige a estrutura inte­
gral da sociedade. Os pais trabalham e suportam a dor, para que os
seus filhos possam prosperar; os filhos sofrem pelo pecado dos seus
pais, que morreram antes de ele dar fruto. Delirant reges, plectuntur
Achivzl . Umas vezes, é uma mediação compulsiva, outras, vo -lun­
tária. O castigo que é merecido pelo marido cai sobre a esposa; os
benefícios que todas as classes partilham são elaborados pela labuta
insalubre e perigosa de uns quantos. Os soldados suportam as feri­
das e a morte por aqueles que ficam na pátria; e os ministros do
Estado são vítimas do seu zelo pelos seus compatriotas, que pouco
mais fazem do que criticar as suas acções. E assim, em certa medi­
da ou de algum modo, esta lei a todos nos abrange. Todos sofre­
mos uns pelos outros, todos ganhamos pelos nossos sofrimentos
recíprocos; pois o homem nunca aqui está sozinho, embora tenha
um dia, no futuro, de a si mesmo se defender; mas aqui ele é um
ser social, encaminha-se para a sua longa pátria como um no meio
de uma ampla companhia.
Butler, quase não é preciso dizer, é o grande mestre desta dou­
trina, tal como ela emerge no sistema da natureza. Em resposta à
objecção à doutrina cristã da satisfação, a saber, que esta «represen­
ta Deus como indiferente quer castigue os inocentes ou os culpa­
dos», observa ele que «O mundo é uma constituição ou um sistema,
cujas partes têm entre si uma referência mútua; e que existe um

1 •Üs delírios (erros) dos reis pagam-nos os gregos».

396 • J o h n H e n ry N e w m a n
esquema das coisas em contínua operação, chamado o curso da
natureza, até à execução daquilo para que Deus nos ordenou, de
vários modos, contribuir. E, no curso quotidiano da providência
natural, está determinado que as pessoas inocentes devem sofrer
pelas faltas dos culpados. Por fim cada um, de facto e em geral,
receberá segundo a sua excelência pessoal; mas ao longo do cami­
nho e, tanto quanto sabemos, inclusive em vista do cumprimento
deste esquema moral, os castigos vicários podem ser adequados e
absolutamente necessários. Vemos de que diversos modos os sofri­
mentos de uma pessoa contribuem para o alívio de outra; e, por
estarem com isso familiarizados, os homens não se escandalizam.
Pelo que a razão da sua insistência nas objecções contra a [doutrina
da] satisfação é ou porque não consideram as indicações uniformes
e estabelecidas de Deus como determinações Suas ou, então, por­
que esquecem que o castigo vicário é uma determinação providen­
cial da experiência de cada dia» l . Acrescentarei apenas que, em
virtude de todo o sofrimento humano ser, na sua última resolução,
o castigo do pecado, e de o castigo implicar um Juiz e uma regra
da Justiça, se pode de certo modo dizer que quem sofre o castigo
de outrem em seu lugar satisfaz, na sua própria pessoa, as exigên­
cias da Justiça para com o outro.
Há que fazer aqui uma observação conclusiva. Em todos os
sacrifícios se exigia em especial que a coisa oferecida fosse algo raro e
puro; e, de igual modo, em todas as propiciações e satisfações, não
só era aceite o inocente em vez do culpado, mas era um ponto de
peculiar importância que a vítima fosse sem mancha, e quanto mais
manifesta fosse essa pureza tanto mais eficaz seria o sacrifício. Isto
leva-me a um último princípio que apontarei como adequado à

1 Analogy, Pt. II, cap. 5 (resumido).

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 397
Religião Natural, e como iluminando as profecias do mal em que ele
se baseia; quero dizer, a doutrina da intercessão meritória. No Evan­
gelho, o homem falou apenas por toda a raça humana em toda a
parte, ao dizer, «Deus não ouve os pecadores; mas se um homem
prestar culto a Deus e fizer a Sua vontade, Ele escutá-lo-á». Por isso,
toda a religião teve os seus devotos eminentes, exaltados acima da
comunidade do povo, homens mortificados, que se acercaram mais
da Fonte do bem por meio de austeridades, de autopunições e da
oração, com crédito junto de Deus, e que ofereceram um abrigo e
alcançaram bênçãos para aqueles que se tornaram seus clientes. Uma
crença como esta foi, naturalmente, acompanhada de inúmeras
superstições; mas tais superstições variam com os tempos e os luga­
res, e a própria crença no poder medianeiro do bom e do santo foi
uma só e a mesma em toda a parte. Nem esta crença é uma ideia só
das épocas passadas ou das nações pagãs. É um dos devaneios mais
naturais dos jovens e dos inocentes. E todos nós, quanto mais arden­
temente captamos a nossa própria distância em relação às pessoas
santas, tanto mais somos levados a aproximar-nos delas, como que
esquecendo essa distância; orgulhamo-nos delas por serem tão dife­
rentes de nós, como espécimes do que a nossa natureza pode ser, e
com uma vaga esperança de que nós, seus parentes pelo sangue,
poderemos lucrar nas nossas próprias pessoas com a sua santidade.
Tal é, pois, em esboço o sistema de crenças e de sentimentos
naturais que, embora verdadeiros e divinos, nos é ainda possível a
nós, independentemente da Revelação, e é a preparação para ela;
conquanto nos próprios cristãos não possa realmente estar separa­
do do seu cristianismo e nunca seja possuído nas suas formas supe­
riores em qualquer povo sem alguma parte das ajudas interiores
que o cristianismo nos comunica, e nas tradições endémicas que
têm a sua primeira origem numa iluminação paradisíaca.

398 • J o h n H e n ry N e w m a n
2. A r e l i g i ã o reve l a d a

Ao determinar, como antes fiz , as características principais da Reli­


gião Natural, e ao distingui-la da religião da filosofia ou da civiliza­
ção, talvez seja acusado de ter enveredado por um caminho pessoal,
para o qual não tenho nenhuma garantia suficiente. Semelhante acu­
sação não me causa grande preocupação. Todo aquele que pensa acer­
ca destes sistemas toma um caminho muito seu, embora venha
também a acontecer que ele é o rumo que muitos outros tomaram
além de si. As mentes de muitos, separadamente, fazem que eles
avancem na mesma direcção, e nela se confirmam uns aos outros.
Penso que este é o meu próprio caso; se na minha exposição da Reli­
gião Natural enunciei mal ou omiti factos notórios, se contradisse ou
deixei de lado algo que Ele, que fala através da minha consciência,
nos disse a todos directamente a partir dos Céus, então actuei de um
modo injustificado e tenho algo a retractar; mas se, no recinto das
minhas experiências mentais primigénias, e com a ajuda do meu
melhor sentido ilativo, nada mais fiz do que perspectivar os factos
patentes do caso sobre os aspectos que elas espontaneamente me
apresentam, apenas faço numa vertente da questão aquilo que na
outra fazem os que pensam de maneira diferente. Assim como eles
partem de um conjunto de primeiros princípios, assim eu tomo
outro por começo. Advirto justamente agora que oferecerei o meu
próprio testemunho na matéria em questão; embora, naturalmente,
não valesse a pena apresentá-lo, a não ser que aquilo que eu próprio
senti concordasse com aquilo que é sentido por centenas e milhares
além de mim, como estou certo de que assim acontece, seja qual for a
medida, maior ou menor, do explícito reconhecimento que dela têm.
Ao falar assim da Religião Natural como, em certo sentido,
uma questão de juízo privado, e tendo em vista transitar dele para

Uma G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 399


a prova do cristianismo, aparentemente abandono a intenção de
fazer uma demonstração de ambos. Sem dúvida, assim faço; mas
não nego que a demonstração seja possível. A verdade, enquanto
tal, assenta decerto em motivos intrínseca, objectiva e abstracta­
mente demonstrativos, mas disto não se segue que os argumentos a
apresentar a seu favor sejam irrefutáveis e irresistíveis. Estes últimos
epítetos são relativos, e aplicam-se a matérias de facto; os argumen­
tos em si mesmos devem fazer o que talvez, no caso particular, não
conseguem. O facto da revelação é em si mesmo demonstravelmente
verdadeiro, mas nem por isso é irresistivelmente verdadeiro; além
disso, como é que ele pode ser objecto de resistência? Existe uma lar­
ga distância entre o que ele é em si mesmo e o que é para nós. A luz
é uma qualidade da matéria, como a verdade é do cristianismo; mas
a luz não era reconhecida pelo cego e há quem não reconheça a ver­
dade, em virtude da deficiência, não da verdade, mas deles próprios.
Não posso converter os homens, quando exijo os pressupostos que
eles se recusam a garantir-me; e, sem pressupostos, ninguém conse­
gue provar nada acerca de nada.
Sou, pois, suspeito de demonstrações científicas numa questão
de facto concreto, numa discussão entre homens falíveis. Demons­
trem, todavia, aqueles que têm esse dom; unusquisque in suo sensu
abundetI . Quanto a · mim, é mais congénito ao meu próprio j uízo
tentar demonstrar o cristianismo da mesma maneira informal
como posso demonstrar como certo que nasci neste mundo, e que
dele sairei pela morte. É agradável aos meus próprios sentimentos
seguir um escritor teológico, como Amort, que dedicou ao grande
Papa, Bento XlY, o que ele chama «Um novo, modesto e fácil modo
de demonstrar a religião católica>>. Nesta obra, adopta o argumento

I «Cada um abunde no seu próprio discernimento».

400 • J o h n H e n ry N e w m a n
apenas de maior probabilidadel ; eu prefiro apoiar-me no de uma
acumulação de diversas probabilidades; mas ambos afirmamos (isto
é, afirmo com ele) que, a partir de probabilidades, podemos cons­
truir uma prova legítima, suficiente para a certeza. Sigo-o na afir­
mação de que, em virtude de uma Providência Boa olhar por nós,
Ele abençoa os meios de argumentação que Lhe aprouve conceder­
-nos, na natureza do homem e do mundo, se os utilizarmos devida­
mente para os fins em vista dos quais Ele os facultou; e que, assim
como na matemática somos autorizados pelo ditado da natureza
em reter o nosso assentimento frente a uma conclusão da qual ain-

I «Scopus operis est, planiorem Protestantibus aperire viam ad veram Ecclesiam. Cum enim hacte­

nus Polemici nostri insudarint toti in demonstrandis singulis Religionis Catholicae articulis, in id ego
unum incumbo, ut haec tria evincam. Primo: Artículos fandamentales, Religionis Catholicae esse eviden­
ter credibiliores oppositis, &e. &e. . . Demonstratio autem hujus novae modestae, ac focilis viae, qua ex
articulis fandamentalibus solum probabilioribus adstruitur summa Religionis certitudo, haec est: Deus,
cum sit sapiens ac providus, tenetur, Religionem a se revelatam reddere evidenter credibiliorem religioni­
bus folsis. lmprudenter enim vellet, suam Religionem ab hominibus recipi, nisi eam redderet evidenter
credibiliorem religionibus caeteris. Ergo ilia religio, quae est evidenter credibilior caeteris, est ipsissima
religio a Deo revelata, adeoque certissime vera, seu demonstrata. Atqui, &e. . . Motivum aggrediendi
novam hanc, modestam, ac focilem viam illud praecipuum est, quod observem, Protestantium plurimos
post innumeros concertationum jluctus, in iis tandem comedisse syrtibus, ut credant, nu/Iam dari religio­
nem undequaque demonstratam, &e. . . Ratiociniis denique opponunt ratiocinia; praejudiciis praejudicia
ex majoribus sua [ . ] &e.» («O objectivo da obra é abrir aos Protestantes uma via mais ampla para a
. . .

verdadeira Igreja. Como, até aqui, os nossos polemistas penaram todos em demonstrar os artigos
particulares da religião católica, vou apenas aplicar-me a um só, para superar estes três. Primeiro: os
artigos fundamentais da religião católica são, de modo evidente, mais credíveis do que os contrários,
etc. etc. . A demonstração, porém, desta nova via, modesta e fácil, pela qual, a partir de artigos fun­
.

damentais apenas mais prováveis se constrói a suma certeza da religião, é esta: Deus, por ser sábio e
providente, obriga-se a tornar a religião por si revelada mais plena de evidência e credibilidade do
que as religiões falsas. Seria imprudente querer que a sua religião fosse recebida, pelos homens se não
a tornasse mais evidentemente credível do que as restantes regiões. Portanto, aquela religião, que é
evidentemente mais credível do que as restantes, é a própria religião revelada por Deus, logo de todo
verdadeira, ou demonstrada.
Mas, etc . . . o principal motivo para ingressar nesta via nova, modesta e fácil, é a minha observa­
ção de que a maior parte dos Protestantes, após inúmeras ondas de lutas e discussões, se detiveram
finalmente naqueles escolhos, de modo a crerem que não existe nenhuma religião demonstrada, etc . . .
Por fim, opõem raciocínios a raciocínios; os seus preconceitos a preconceitos dos antepassados» etc.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 40 l
da não temos uma estrita demonstração lógica, assim, graças a
semelhante ditado, não estamos autorizados, no caso do raciocínio
concreto e, sobretudo, da inquirição religiosa, a esperar até que
semelhante demonstração lógica seja nossa, mas, pelo contrário,
somos obrigados em consciência a buscar a verdade e a demandar
a certeza mediante modos de prova que, quando reduzidos ao
modelo de proposições formais, não conseguem satisfazer as seve­
ras requisições da ciêncial .
Existe aqui, pois, de imediato uma doutrina ou um princípio
importante, que ingressa no meu próprio raciocínio, e que outro
ignora, a saber, a providência e a intenção de Deus; e, claro está,
há outros princípios, explícitos ou implícitos, que existem em cir­
cunstâncias semelhantes. Portanto, não admira que, embora eu
possa demonstrar o cristianismo como divino para minha própria
satisfação, não o consiga impor a quem quer que seja. Deveria eu,

I «Docet natura/is ratio, Deum, ex ipsa natura bonitatis ac providentiae suae, si velit in mundo

habere religionem puram, eamque imtituere ac comervare usque in finem mundi, teneri ad eam religio­
nem reddendam evidenter credibiliorem ac verisimiliorem caeteris, &e. &e . . . . Ex hoc sequitur ulterius;
certitudinem mora/em de vera Ecclesia elevari posse ad certitudinem metaphysicam, si homo advertat,
certitudinem mora/em absolute fallibilem substare in materia religionis circa ejus comtitutiva fondamen­
talia speciali providentiae divinae, praeservatrici ab omni errore. . . . Itaque homo semel ex serie historica
actorum perductus ad mora/em certitudinem de auctore, fondatione, propagatione, et continuatione
Ecclesiae Christianae, per reflexionem ad existentiam certissimam providentiae divinae in materia reli­
gionis, a priori lumine naturae certitudine metaphysica notam, eo ipso eadem infallibili certitudine intel­
liget, argumenta de auctore [ . . . ] » &c. (<IA razão natural ensina que Deus, pela própria natureza da sua
bondade e providência, se quisesse ter no ºmundo uma religião pura, e a quisesse fundar e conservar até
ao fim do mundo, seria obrigado a dar a essa religião um carácter deceno mais credível e verosímil do
que o das restantes, etc. etc. . . Segue-se daqui: que a ceneza moral acerca da verdadeira Igreja se pode
elevar a ceneza metafisica, se o homem advenir que a ceneza moral absolutamente falível persiste em
matéria de religião acerca dos seus fundamentos constitutivos por uma especial providência divina,
preservadora de todo o erro. . . Por isso, o homem, levado, de uma vez, a panir da série histórica dos
actos, à ceneza moral acerca do autor, da fundação, propagação e continuação da Igreja cristã, e pela
reflexão à existência certíssima da providência divina em matéria de religião, conhecida a priori com
ceneza metafisica pela luz da natureza, entende, por isso mesmo, com a mesma e infàlível ceneza, os
argumentos acerca do autor [ . . . ] etc.•). -Amort. Ethica Christiana, p. 252.

402 • J o h n H e n ry N e w m a n
de facto, conseguir convencer multidões da sua verdade sem qual­
quer violência, porque elas e eu partimos dos mesmos princípios, e
o que para mim é uma prova também para elas o é; mas se alguém
partir de quaisquer outros princípios excepto os nossos, não tenho
o poder de alterar os seus princípios, ou a conclusão que deles tira,
do mesmo modo que de um homem desonesto também não posso
fazer um honesto. Se a sua mente alguma vez crescer em honesti­
dade, se eu conseguir algo em relação ao seu tornar-se honesto, se
ele não for responsável, responsável perante o seu Criador, por ser
mentalmente desonesto, é outra questão; todavia, permanece o
facto de que, em qualquer indagação acerca de coisas no concreto,
os homens diferem entre si, não tanto na firmeza do seu raciocínio
quanto nos princípios que governam o seu exercício, que estes
princípios são de carácter pessoal, que onde não existe uma medi­
da comum das mentes também não existe uma medida comum
dos argumentos, e que a validade da prova não é determinada por
qualquer teste científico, mas pelo sentido ilativo.
Por conseguinte, em vez de dizer que as verdades da Revelação
dependem das da Religião Natural, é mais pertinente dizer que a
crença nas verdades reveladas depende da crença nas naturais. A
crença é um estado da mente; a crença gera a crença; os estados da
mente têm uma correspondência recíproca; os hábitos de pensa­
mento e os raciocínios que nos levam a um estado de crença mais
elevado do que o nosso presente são os mesmos que já possuímos
em ligação com o estado inferior. Tornaram-se cristãos nos tempos
apostólicos os j udeus que já eram o que se poderia chamar cripta­
-cristãos; e, hoje, permanecem cristãos só de nome e (porventura)
acabarão por renunciar à fé os cristãos que não são nem mais pro­
fundos nem melhores do que os homens do mundo, os savants, os
literatos ou os políticos.

U m a Gramática d o As s e n t i m e n t o • 40 3
Em passagens muito conhecidas da ·Ética a Nicómaco, insiste­
-se com força em que é necessária uma preparação especial da
mente para cada departamento separado da inquirição e da discus­
são (excepto, claro está, o da ciência abstracta) . Ao falar das varia­
ções que se encontram na perfeição lógica da demonstração em
várias matérias, diz Aristóteles: «Um homem educado espera exac­
tidão em cada classe de assunto, segundo a natureza da coisa; pois
trata-se do mesmo erro tolerar um matemático que emprega pro­
babilidades e exigir uma demonstração a um orador. Cada homem
julga competentemente nas coisas a cujo respeito está bem infor­
mado; e é nestas que ele é um bom juiz; a saber, é juiz, em cada
tema, aquele que é culto nesse tema, e é juiz, num sentido absolu­
to, aquele que em todos tem uma boa preparação». E ainda: «Üs
jovens chegam a matemáticos e coisas semelhantes, mas não
podem possuir j uízo prático; pois este talento emprega-se em fac­
tos individuais, e estes só se aprendem pela experiência; e um
jovem não tem experiência, porque a experiência só se ganha com
o passar dos anos. E assim, mais uma vez, afigurar-se-ia que um
jovem pode ser matemático, mas não filósofo, ou competente na
física, e por esta razão - um dos ramos de investigação lida com
abstracções, enquanto os outros obtêm os seus princípios a partir
da experiência; e nestas últimas questões os jovens não dão assenti­
mento, antes fazem asserções, ao passo que no primeiro sabem
aquilo com que lidam».
Estas palavras de um filósofo pagão, estabelecendo princípios
amplos acerca de todo o conhecimento, expressam uma regra geral
que, na Escritura, se aplica com autoridade ao caso do conhecimen­
to revelado em particular - e tal não apenas uma ou duas vezes,
mas continuamente, como bem se sabe. Por exemplo: «Compreen­
di», diz o salmista, «mais do que os meus mestres, porque os teus

404 • J o h n H e n ry N e w m a n
testemunhos são a minha meditação». E assim também o Senhor:
«Quem tem ouvidos para ouvir que oiça». «Se algum homem fizer
a Sua vontade, conhecerá a doutrina» . E «Aquele que é de Deus
ouve as palavras de Deus». Assim também os anjos na Natividade
anunciam «Paz aos homens de boa vontade». E lemos nos Actos
dos Apóstolos acerca de «Lídia, cujo coração o Senhor abriu para
ouvir as coisas que eram ditas por Paulo». E é-nos dito, noutra oca­
sião, que «múitos que estavam destinados», ou dispostos por Deus,
«à vida eterna, acreditaram». E S. João afirma, «Quem conhece
Deus, escuta-nos; quem não é de Deus, não nos escuta; nisto conhe­
cemos o espírito da verdade e o espírito do erro».

I. Apoiado nestas autoridades, humanas e divinas, não tenho escrú­


pulos em começar o exame que farei do cristianismo, declarando
ter em conta só aqueles cujas mentes estão para ele adequadamente
preparadas; e por preparadas quero indicar aqueles que estão
imbuídos das opiniões e dos sentimentos religiosos que identifico
com a Religião Natural. Não me dirijo aos que, no mal moral e
físico, vêem apenas imperfeições de uma natureza similar; que
consideram que a diferença em gravidade entre os dois é somente
de grau, não de espécie; que o mal moral é apenas o produto do
físico, e que logo que removemos o último eliminamos inevitavel­
mente o primeiro; que existe um progresso da raça humana que
tende para a aniquilação do mal moral; que o conhecimento é vir­
tude e o vício ignorância; que o pecado é uma ficção, não uma rea­
lidade; que o Criador não castiga excepto no sentido de correcção;
que a retaliação seria n'Ele necessariamente uma vingança; que
tudo o que d'Ele sabemos, muito ou pouco, é através das leis da
natureza; que os milagres são impossíveis; que a oração a Ele dirigida

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 40 5
é uma superstição; que o temor dEle é covardia; que a dor pelo peca­
do é servil e abjecta; que o único culto inteligível a Ele é fazer bem a
nossa parte no mundo, e o único arrependimento sensato é fazer
melhor no futuro; que se fizermos os nossos deveres nesta vida,
poderemos alcançar a nossa sorte no seguinte; e que não vale a pena
perturbar as nossas mentes acerca do estado futuro, pois tudo isso é
uma questão de palpite. Estas opiniões caracterizam uma época civi­
lizada; e se eu disser que não argumentarei acerca do cristianismo
com os homens que as defendem, faço-o, não pretendendo ter direi­
to algum a ser impaciente ou peremptório com quem quer que seja,
mas porque é de todo absurdo tentar demonstrar uma segunda pro­
posição àqueles que não admitem a primeira.
Presumo, pois, que o sistema de opinião, acima proposto, é sim­
plesmente falso, porquanto contradiz os ensinamentos primários da
natureza na raça humana, onde quer que a religião se encontre e as
suas operações se possam determinar. Presumo a presença de Deus
na nossa consciência, e a experiência universal, tão intensa como a
nossa experiência da dor corporal, daquilo que chamamos um sen­
tido do pecado ou da culpa. Este sentido do pecado, como de algo
não só mau em si, mas ofensa ao Deus bom, capta-se sobretudo
em relação a uma ou outra das três violações da sua lei. Ele próprio
é Santidade, Verdade e Amor; e as três ofensas contra a Sua Majes­
tade são a impureza, a falta de veracidade e a crueldade. Nem
todos os homens são igualmente atormentados por estas ofensas;
mas a dor acutilante e o remorso intenso que uma ou outra inflige
à mente, mesmo a elas habituada, torna-lhe irrecusavelmente clara
a noção do que é o pecado, e é o tipo vivo e representativo da sua
intrínseca malignidade.
A partir destes elementos, podemos, sem dificuldade, determi­
nar a classe de sentimentos, intelectuais e morais, que constituem a

40 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
preparação formal para ingressar naquilo a que chamámos as Evi­
dências do Cristianismo. Pressupõem estas, portanto, uma crença e
uma apreensão da Presença Divina, um reconhecimento dos Seus
atributos e uma admiração da Sua Pessoa nelas vislumbrada; uma
convicção do valor da alma, da realidade e da importância do mun­
do invisível, uma compreensão de que, na proporção em que, nas
nossas próprias pessoas, partilhamos os atributos que n'Ele admira­
mos, somos por Ele amados; uma consciência, em contrapartida, de
que estamos muito longe de as exemplificar, um discernimento con­
sequente da nossa culpa e da nossa miséria, uma esperança viva de
com Ele nos reconciliarmos, um desejo de O conhecer e amar, uma
procura intensa em tudo aquilo que acontece, no curso da natureza
ou da vida humana, de indícios, se tais houver, de Ele nos dar aquilo
de que tanto necessitamos. Eis outros tantos espécimes do estado
da mente que estipulo naqueles que indagariam a verdade do cris­
tianismo; e a minha garantia para uma estipulação tão definida
reside no ensinamento, por mim descrito, da consciência e do sen­
tido moral, no testemunho dos ritos religiosos que sempre prevale­
ceram em todas as partes do mundo, no carácter e na conduta dos
que foram comummente seleccionados pelo instinto popular
como favoritos especiais do Céu.

2. Apelei para as ideias populares a respeito da religião, para os


objectos da admiração e do louvor populares, como ilustrando a
minha exposição da preparação da mente que é necessária ao inqui­
ridor do cristianismo. Surge aqui uma objecção óbvia, em cuja
advertência avançarei um passo mais no trabalho que empreendi.
Insistir-se-á, porventura, em que de pouco me servirá apelar
para religiões tão notoriamente imorais como as do paganismo;

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m c: n t o • 407


nem decerto tal se pode fazer sem uma explicação. Sem dúvida, no
tocante ao ensinamento moral, diversas religiões, que foram popu­
lares no mundo, não forneceram nenhum; e no estado corrupto
em que surgem na história, pouco melhor são do que escolas da
impostura, da crueldade e da impureza. Os seus objectos de culto
são imorais e falsos, e os seus fundadores e heróis acompanharam
os seus deuses. Tudo isto é inegável, mas não destrói o uso que se
pode fazer do seu testemunho. Existe uma vertente mais positiva
do seu ensinamento; a pureza foi muitas vezes objecto de reverên­
cia, se não praticada; apreciou-se a ascese; a hospitalidade era um
dever sagrado; a desonestidade e a inj ustiça foram banidas. Como
antes, vou aqui buscar, pois, a nossa percepção natural do bem e
do mal como o padrão para determinar as características da Reli­
gião Natural, uso os ritos religiosos e as tradições com que se depa­
ra efectivamente no mundo, apenas na medida em que concordam
com o nosso sentido moral.
Isto leva-me a estabelecer o princípio geral, que sempre insi­
nuei: de Deus não dimana religião alguma que contradiga o nosso
sentido do bem e do mal. Sem dúvida; mas, ao mesmo tempo,
devemos estar de todo certos de que, num caso particular que se
nos apresenta, descobrimos satisfatoriamente o que são os ditames
da nossa natureza moral, que os aplicamos bem, e se a sua aplicação,
ou não, é posta em questão. Os preceitos de uma religião podem,
decerto, ser absolutamente ·imorais; uma religião que simplesmente
nos ordena mentir, ou ter uma comunidade de mulheres, perderia
ipso facto toda a pretensão a uma origem divina. Júpiter e Neptuno,
como representados na mitologia clássica, são espíritos maus, e nada
pode deles fazer outra coisa. E de igual modo repudiaria eu uma
teologia que ensinasse que os homens foram criados para serem
maus e pérfidos.

40 8 • J o h n H e n ry N e w m a n
Aludi, j ustamente agora, àqueles que têm a doutrina do casti­
go retributivo, ou da vingança divina, por incompatíveis com a reli- ·

gião verdadeira; mas não vejo como podem eles manter-se nessa
base. Para tal conseguir, devem, primeiro, demonstrar que um acto
de vingança, enquanto tal, deve ser um pecado no nosso próprio
exemplo; mas mesmo isto está longe de ser claro. A ira e a indigna­
ção contra a crueldade e a injustiça, a animosidade frente às injúrias,
o desejo de que o falso, o ingrato e o depravado sejam castigados, se
não são em si mesmos sentimentos virtuosos, também não são, pelo
menos, viciosos; antes de mais, em virtude da certeza de que ela, se
for habitual, cairá em excesso e se tornará pecado, em seguida, por­
que o ofício do castigo nos não foi confiado, além disso, porque é
um sentimento inadequado aos que em si mesmos estão sobrecarre­
gados de imperfeição e culpa, por isso mesmo, a vingança, em si
mesma permitida, é-nos proibida. Estas excepções não se verificam
no caso de um ser perfeito, e decerto não no exemplo do Juiz Su­
premo. Veremos, ademais, que até os homens sobre a terra têm
deveres diferentes, segundo as suas qualificações pessoais e as suas
posições na comunidade. A regra da moral é a mesma para todos;
e, no entanto, aquilo que num é bom não é noutro necessariamen­
te correcto. O que seria um crime fazer num homem particular é
um crime não o ter feito num magistrado: maior ainda é a diferen­
ça entre o homem e o seu Criador. Nem se deve esquecer que,
como acima observei, a j ustiça retributiva é o atributo genuíno sob
o qual Deus primariamente se nos apresenta nos ensinamentos da
nossa consciência natural.
E, além disso, não podemos determinar o carácter das acções
particulares, enquanto não tivermos diante de nós a totalidade do
caso de que elas dimanam; a não ser, de facto, que elas sejam em si
mesmas claramente viciosas. Todos captamos a força da máxima,

Uma G r a m á c i c a do Ass e n t i m e n to • 409


Audi alteram partem! . É difícil traçar a senda e determinar o objecti­
vo da Providência Divina. Lemos que há-de chegar um dia em que o
Todo-poderoso descerá para completar as Suas acções na presença
das suas criaturas e «vencerá quando Ele for julgado». Se, até então,
soubermos que é um dever suspender o nosso juízo acerca de algu­
mas das suas acções ou preceitos, não fazemos mais do que fazemos,
todos os dias, no caso de um amigo ou inimigo terreno, cuja condu­
ta exige em determinado ponto uma explicação. Não é, sem dúvida,
excessivo esperar de nós que devamos agir com cautela semelhante, e
sejamos «memores conditionis nostrae»2 no tocante aos actos do nosso
Criador. Há um poema de Parnell que, com viveza, nos elucida
sobre quão diferentemente as disposições divinas aparecerão à luz do
dia, em relação ao modo como elas parecem ser no nosso presente
crepúsculo. Um anjo, no disfarce de um homem, rouba uma taça de
ouro, estrangula uma criança, atira um guia à corrente e, em segui­
da, explica ao seu companheiro aterrorizado que actos que seriam
enormidades num homem são nele, como ministro de Deus, obras
de correcção compassiva ou de retribuição.
Além disso, quando estivermos prestes a fazer um juízo sobre
as acções da Providência relativamente aos outros homens, faremos
bem em considerar, primeiro, as Suas acções connosco próprios.
Dos outros não podemos saber, de nós mesmos sabemos algo; e
sabemos que Ele foi sempre bom, e não severo, para connosco.
Não será prudente argumentar a partir do que efectivamente sabe­
mos para aquilo que não conhecemos? Talvez, no dia de contas, se
revele que almas ressentidas, embora acusando as Suas leis de
injustiça no caso dos outros, sejam incapazes de descobrir falta
alguma nas Suas acções severas para com elas próprias.
1 «Dá ouvidos à outra parte)>.
2 «Lembrados da nossa condição».

41 O • J o h n H e n ry Newman
Quanto às diversas religiões que, juntamente com o cristianis­
mo, ensinam a doutrina do castigo eterno, devemos aqui igual­
mente, antes de j ulgar, compreender não só o estado total do caso,
mas o que se entende pela própria doutrina. A eternidade, ou a
ausência de fim, é em si sobretudo uma ideia negativa, embora a
ideia de sofrimento seja positiva. A sua força temível, como ele­
mento da punição futura, reside no que ela exclui; nunca indica
uma mudança de estado, uma aniquilação ou réstauração; mas o
que, em termos positivos, ela acrescenta ao sofrimento, não sabe­
mos. Tanto quanto compreendemos, o sofrimento de um momen­
to pode em si não ter uma relação, ou somente uma relação
parcial, com o sofrimento do seguinte; deste modo, no tocante à
sua intensidade, ela pode variar com cada alma perdida. Talvez seja
assim, a não ser que suponhamos que o sofrimento é necessaria­
mente acompanhado de uma consciência da duração e da suces­
são, de uma imaginação presente do seu passado e do seu futuro,
de um poder duradouro para realizar a sua continuidade! . Como
já afirmei, o grande mistério não é que o mal não tenha fim, mas
que tenha tido um começo. Mas deixo todo este tema para a
Faculdade Teológica.

3. Um dos efeitos mais importantes que a Religião Natural tem na


mente, na preparação para a Revelada, é a expectativa que ela cria

' «De hac damnatorum saltem hominum respiratione, nihil adhuc certi decretum est ab
Ecdesia Catholica: ut propterea non temere, tanquam absurda, sit explodenda sanctissimorum
Patrum haec opinio: quamvis a communi sensu Catholicorum hoc tempore sit aliena.» («A propósi­
to desta restauração pelo menos dos homens condenados nada ainda de certo foi decretado pela
Igreja Católica: para que assim não seja reprovada temerariamente, como absurda, esta opinião dos
Santos Padres, embora seja hoje estranha ao sentido comum dos católicos.») - Petavius, De Angelis,
fin. Vide nota III, p. 483.

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n to • 41 1
de que uma Revelação será concedida. Este desejo mais sério dela,
que as mentes religiosas acarinham, induz a esperá-la. Os que nada
sabem das feridas da alma não são levados a lidar com a questão ou
a considerar as suas circunstâncias; mas quando a nossa atenção é
despertada, então, quanto mais constantemente nela insistimos
tanto mais provavelmente se afigurará que uma revelação nos foi,
ou será, dada. Este pressentimento funda-se no nosso sentido, por
um lado, da infinita bondade de Deus e, por outro, da nossa extre­
ma miséria e necessidade - duas doutrinas que são as componen­
tes primordiais da Religião Natural. É difícil traçar um limite à
força legítima desta probabilidade antecedente. Algumas mentes
descobriram que ela é tão poderosa que reconhecem nela quase
uma prova, sem evidência directa, do carácter divino de uma reli­
gião que pretende ser a verdadeira, na suposição de que a sua his­
tória e a sua doutrina se eximem a uma objecção positiva, e de que
não há nenhuma religião rival com pretensões plausíveis da sua
parte. Nem esta confiança numa presunção deveria parecer absur­
da àqueles que esperam deveras, com razões a priori, que a lua seja
habitada por seres racionais, e que o curso da natureza nunca sofra a
intervenção de uma acção miraculosa. Seja como for, muito poucos
dados positivos se afiguram necessários, quando a mente está incrus­
tada numa expectação forte, que é objecto da minha suposição. Foi
esta apreensão instintiva, como podemos conjecturar, que em Atenas
levou Dionísio e Dámaris à fé no cristianismo, embora S. Paulo não
tivesse feito nenhum milagre, e apenas anunciasse as doutrinas da
Unidade Divina, da Ressurreição e do Juízo Universal, enquanto ela,
por outro lado, não os inclinou a aderir a qualquer dos ritos mitoló­
gicos em que a localidade abundava.
Aqui, o meu método de argumentação difere do adoptado por
Paley na sua obra, Evidences of Christianúy. Este argumentador de

412 • John H e n ry N e w m a n
cabeça clara e quase matemática limita-se a postular, para a sua
demonstração dos milagres cristãos, que, nas circunstâncias do
caso, uma revelação não é improvável. Afirma ele, «Não pressupo­
mos os atributos da Divindade ou a existência de um estado futu­
ro». «Não é necessário, para o nosso propósito, que estas proposições
(a saber, que uma existência futura seria destinada por Deus à Sua
criação humana, e que, feita tal deliberação, Ele deveria ter com ela
um trato familiar) sejam susceptíveis de demonstração, ou até que,
mediante argumentos extraídos da natureza, possam ser propostas
como prováveis; basta que delas possamos dizer que não são tão
violentamente improváveis, tão contraditórias com aquilo que já
acreditamos acerca do poder e do carácter divinos, que elas devem
ser rejeitadas à primeira vista, e rejeitadas por qualquer força ou
dificuldade de evidência com que são atestadas». Paley mostra uma
tal confiança na força do testemunho que consegue apresentar a
favor dos milagres cristãos que apenas pede licença para os propor
ao tribunal.
Reconheço ter muita suspeita dos processos e dos argumentos
legais, quando usados em questões de história ou de filosofia. As
regras do tribunal são ditadas por aquilo que, em geral e a longo
prazo, é conveniente; mas correm o risco de serem injustas para
com as pretensões dos casos particulares. Porque é que hei-de
começar por tomar uma posição que não é minha, por despir a
minha mente deste amplo equipamento de pensamentos, princí­
pios, gostos, desejos e esperanças existentes, que fazem de mim o
que sou? Se eu for solicitado a usar o argumento de Paley em vista
da minha própria conversão, então, afirmo simplesmente que não
quero ser convertido por um silogismo subtil I ; se for instado a

1 Vide supra, pp. 302-303.

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 41 3
converter outros por meio dele, digo apenas que não me interessa
vencer a sua razão, sem tocar os seus corações. Desejo lidar, não
com polemistas, mas com inquiridores.
Considero claro, inteligente e poderoso o argumento de Paley; e
haverá algo que se assemelha à caridade em ir para as vias públicas e
para os pátios, e obrigar os homens a entrar; mas, nesta matéria,
algum esforço da parte das pessoas que pretendo converter é uma
condição da verdadeira conversão. Os que não têm seriedade religio­
sa estão à mercê, dia após dia, de qualquer argumento ou facto
novo, que talvez deles se aposse, a favor de uma conclusão ou de
outra. E, ao fim e ao cabo, como é que será melhor para o cristianis­
mo um homem que dele nunca sentiu necessidade ou desejo? Por
outro lado, se teve o anelo de uma revelação a fim de ser esclarecido
e de purificar o seu coração, porque é que, nas suas indagações a seu
respeito, não poderá usar esta justa e sensata expectação da sua pro­
babilidade, para cujo fomento tal anseio lhe abriu o caminho?
Os homens são demasiado propensos a ficar em casa, em vez
de se moverem para inquirir se teve lugar alguma revelação; espe­
ram que as suas evidências venham até eles, sem incómodo da sua
parte; actuam, não como suplicantes, mas como juízes I . Modos de
argumentação como os de Paley encorajam este estado da mente;
permitem aos homens esquecer que a revelação é um benefício,
não uma dívida, por parte do Doador; tratam-na como um sim­
ples fenómeno histórico. Se me dissessem que um grande homem,
um estrangeiro, que eu não conhecia, chegara à cidade e vinha
para me interrogar e ir a minha casa, mandaria certificar-me do
facto e, entretanto, faria o meu melhor para pôr a casa em ordem a
fim de o receber. Ele não ficaria muito contente se eu deixasse as

I Cf. Occasional Sermons do autor, n. 0 5.

414 • J o h n H e n ry N e w m a n
coisas ao acaso e agisse segundo a máxima de que ver era crer.
Semelhante a esta é a conduta dos que decidem tratar o Todo­
-poderoso de modo frio, com um temperamento j udicial, cabeça
clara e sem preconceitos. É o modo (decerto, não muito acertado)
como alguns homens dizem que, sem estas qualificações quase
legais, a conversão é imoral. É o seu modo, um modo lamentável,
de afirmar que não existe um amor religioso da verdade, onde exis­
te o medo do erro. Pelo contrário, eu sustentaria que o medo do
erro é simplesmente necessário ao amor genuíno da verdade. Não
terá êxito inquirição alguma que não seja levada a cabo sob um
profundo sentido de responsabilidade e dos problemas que depen­
dem da sua determinação. Inclusive, os assuntos normais da vida
são um exercício de consciência; e onde existe a consciência, deve
estar presente o temor. De tal modo isto é agora reconhecido que
existe quase uma pretensão, na literatura popular, no caso das críti­
cas das Belas Artes, da poesia e da música, de realçar a consciência
na escrita, na pintura ou no canto; a seriedade e a simplicidade
da mente, que leva os homens a recear cometer erros nestas ques­
tões menores, têm decerto um lugar nos mais sérios de todos os
empreendimentos.
É nesta base que, ao considerar o cristianismo, parto de condi­
ções diferentes das de Paley; não, porém, como minimizando a
força e a utilidade do seu argumento, mas como preferindo a
inquirição à disputa, numa questão acerca da verdade.

4. Há outro ponto em que a minha base de argumentação difere da


de Paley. Arrazoa ele acerca do princípio de que as credenciais, que
nos certificam de uma mensagem que vem do alto, são necessaria­
mente miraculosas na sua natureza; nem eu pensei em aventurar-me

Uma G r a m á t i c a d o Assen c i m e n c o • 41 5
a falar de outro modo. De facto, todas as revelações abertamente
reconhecidas foram acompanhadas, de uma ou de outra maneira, de
um anúncio de milagres; e sabemos quão directos e inequívocos são
os milagres da Aliança judaica e da nossa. Todavia, o meu fito, aqui,
é pressupor o menos possível no tocante aos factos e insistir apenas
naquilo que é patente e notório; e, por conseguinte, insistirei
somente nas coincidências e nas suas acumulações que, embora não
miraculosas em si mesmas, nos impõem irresistivelmente, quase pela
lei da nossa natureza, a presença da acção extraordinária de Deus,
cujo ser já reconhecemos. Embora as coincidências brotem de uma
combinação de leis gerais, não existe nenhuma lei dessas coincidên­
cias ! ; têm um carácter muito seu, parecem deixadas pela Providência
nas Suas próprias mãos como o canal, a nós imperscrutável, pelo
qual Ele nos pode fazer conhecer a sua vontade.
Por exemplo, se sou um crente num Deus da Verdade e Vinga­
dor da desonestidade, se tenho por certo que uma mulher da praça,
depois de a Ele apelar para lhe dar a morte se ela tivesse na sua posse
uma moeda que não fosse sua, caísse ali morta naquele mesmo lugar,
e que o dinheiro fosse encontrado na sua mão, como posso chamar a
isto uma coincidência cega e não discernir aí um acto da Providên­
cia, para lá das suas leis gerais? Assim, decerto, pensaram os habitan­
tes de uma cidade inglesa, quando erigiram uma coluna como
registo de semelhante acontecimento no lugar onde ele ocorreu. E se
um Papa excomunga um grande conquistador e este, ao ouvir a
ameaça, diz a um dos seus amigos, «Pensa ele que o mundo recuou
mil anos? Supõe, por acaso, que as armas hão-de cair das mãos dos
meus soldados?» e, no espaço de dois anos, na retirada através das
neves da Rússia, como relatam dois historiadores contemporâneos,

I Vide supra, p. 1 1 4- 1 1 5 .

41 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
«a fome e o frio arrancaram as armas aos seus soldados», «estas caí­
ram das mãos dos mais bravos e mais robustos» e «incapazes de as
levantar do chão, os soldados deixaram-nas na neve» - não será
isto, embora não um milagre, também uma coincidência tão espe­
cial que, correctamente, se pode chamar um juíw divino? Assim
pensa Alison; com honestidade religiosa, confessa que «existe nestas
coincidências maravilhosas algo para lá da acção do acaso, e que até
um historiador protestante se sente obrigado a assinalar, para a
observação dos anos futuros» I . E assim também a partir de uma acu­
mulação de coincidências, individualmente menos chamativas; se
Spelman decide estabelecer o facto da má sorte que, em muitos
exemplos, se seguiu a actos de sacrilégio no meio de nós, então, mes­
mo se em muitos exemplos ela não se seguiu, e em muitos outros ele
exagera, pode, apesar de tudo, existir um largo resíduo de casos que
não se podem adequadamente resolver no mero acidente de causas
concorrentes, mas que importa, com razão, considerar como a voz
admoestadora de Deus. Assim, pelo menos, pensou Gibson, bispo
de Londres, quando escreveu, «Muitos dos exemplos, e esses dema­
siado bem atestados, são tão terríveis, e nas circunstâncias tão sur­
preendentes, que nenhuma pessoa reflexiva os pode passar por alto».
Penso, portanto, que as circunstâncias em que uma revelação
proclamada nos chega podem ser tais que se imprimem na nossa
razão e na nossa imaginação com um sentido da sua verdade, embo­
ra nenhum apelo se faça a uma intervenção estritamente miraculosa
- ao dizer isto, não pretendo decerto sugerir que essas circunstân­
cias, quan�o rastreadas nas suas primeiras origens, não resultem de
semelhante intervenção, mas que a intervenção miraculosa se dirige
a nós, neste dia, sob o semblante destas circunstâncias; isto é, de

1 History, vol. VlII .

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 41 7
coincidências, que são indicações, para o sentido ilativo daqueles
que acreditam num Governador moral, da Sua Presença imediata,
sobretudo para aqueles que, ademais, defendem comigo a forte pro­
babilidade antecedente de que, na Sua misericórdia, Ele se apresen­
tará assim sobrenaturalmente à nossa apreensão.

5. Agora, quanto ao facto; ter-nos-á sido realmente garantido o que


é tão provável na expectação, ou teremos ainda de o procurar? É
muito fácil saber, na suposição de que tal garantia foi concedida,
qual a religião que, entre todas as existentes no mundo, dimana de
Deus: e se não for assim, não nos foi ainda dada uma revelação e
devemos aguardá-la para o futuro. Há somente uma Religião no
mundo que tende a satisfazer as aspirações, as necessidades e os
prenúncios da fé e da devoção naturais. Dir-se-á porventura que,
educado no cristianismo, eu apenas faço sobre ele um juízo
mediante os seus próprios princípios; mas não é este o caso. Pois,
em primeiro lugar, fui buscar a minha ideia do que uma revelação
deve ser, em boa medida, às religiões concretas do mundo; e, no
tocante à sua ética, as ideias com que a ela chego são derivadas não
só do Evangelho, mas também de moralistas pagãos a ele anterio­
res, que os Padres da Igreja e os escritores eclesiásticos imitaram ou
sancionaram; e quanto à posição intelectual a partir da qual abor­
dei o tema, Aristóteles foi o meu mestre. Não selecciono aqui o
cristianismo em virtude da referência exclusiva às suas doutrinas e
aos seus preceitos particulares, mas por uma razão que paira sobre
a superfície da sua história. Só ele tem uma mensagem definida
dirigida a toda a humanidade. Tanto quanto sei, a religião de Mao­
mé não trouxe ao mundo nenhuma doutrina nova excepto, de fac­
to, a da sua própria origem divina; e a índole do seu ensinamento

41 8 • J o h n H e n ry N e w m a n
é um reflexo, mais do que exacto, da raça, da época, do lugar e do
clima em que surgiu, para se aceitar a sua universalidade possível. A
mesma dependência de circunstâncias externas é característica, tanto
quanto sei, das religiões do Extremo Oriente; nem estou convencido
de qualquer mensagem definida de Deus ao homem nelas contida e
salvaguardada, embora possam ter livros sagrados. O cristianismo,
por outro lado, é na sua ideia um anúncio, uma proclamação; é o
depósito de verdades que ultrapassam a descoberta humana, impor­
tantes, práticas, que permaneceu um só e o mesmo na substância em
cada época desde o seu começo, e se dirige a toda a humanidade. E,
de facto, foi abraçado e encontra-se em todas as partes do mundo,
em todos os climas, no meio de todas as raças, em todas as classes
da sociedade, em todos os estádios de civilização, desde a barbárie
ao mais elevado cultivo da mente. Vindo para estabelecer o direito
e governar o mundo, esteve sempre, como deveria estar, em confli­
to com amplas massas de homens, com o poder civil, com a força
física, com filosofias antagónicas; teve êxitos, teve fracassos; mas
teve uma grandiosa história, levou a cabo grandes coisas, e é tão
vigoroso na sua idade madura como na sua j uventude. Ostenta em
todos estes aspectos uma distinção no mundo e uma preeminência
muito sua; tem em si prima facie os sinais da divindade; não
conheço o que é que poderá ser proposto pelas religiões rivais que
corresponda a prerrogativas tão especiais; pelo que me sinto justifi­
cado a dizer ou que o cristianismo vem de Deus ou que uma reve­
lação ainda nos não foi dada.
Não me objectarão decerto como um ponto a favor de alguma
das religiões orientais, que elas são vários séculos mais antigas do
que o cristianismo; todavia, se tal houvesse assim de se dizer,
importa recordar que o cristianismo é apenas a continuação e a
conclusão daquilo que declara ser uma revelação mais antiga, que

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 41 9
se pode fazer remontar aos tempos pré-históricos, até se perder nas
trevas que sobre eles pairam. Tanto quanto sei, nunca existiu época
alguma em que não houvesse revelação - uma revelação contínua
e sistemática, com representantes distintos e uma sucessão regular.
E isto, suponho, é muito mais do que aquilo que se pode dizer em
prol das religiões do Oriente.

6. Sou, pois, aqui levado à consideração da nação hebraica e da


religião mosaica, como o primeiro passo na evidência directa em
prol do cristianismo.
Os Judeus são uma das poucas nações orientais conhecidas na
história como um povo de progresso, e a sua linha de progresso é o
desenvolvimento da verdade religiosa. Nesta sua linha peculiar,
estão presentes no meio de todas as populações, não só do Oriente,
mas também do Ocidente. Ao seu país pode dar-se o nome de
pátria clássica do princípio religioso, tal como a Grécia é a pátria
do poder intelectual e Roma a pátria da sabedoria política e prática.
O teísmo é a sua vida; é de modo enfático a sua religião natural,
porque eles nunca existiram sem ele e tornaram-se um povo graças a
ele. Eis um fenómeno singular e único na história, e deve ter um sig­
nificado. Se existe um Deus e uma Providência, o teísmo, imediata
ou indirectamente, dimanará dEle; e sempre as pessoas afirmaram
que ele foi uma obra directa Sua, e foi por Ele reconhecido como tal.
Estamos aptos a abordar as pretensões a uma divina missão ou a
poderes sobrenaturais como de ocorrência frequente e, por esta
razão, a desalojá-las dos nossos pensamentos; mas não podemos lidar
assim com o judaísmo. Se a humanidade rejeitou universalmente a
primeira lição da sua consciência caindo no politeísmo, será uma
coisa de pouca monta ter havido justamente uma só excepção à

420 • John Henry Newman


regra, ter existido apenas um único povo que, primeiro nos seus
governantes e sacerdotes e, em seguida, no seu zelo unânime, profes­
sou, como sua doutrina distintiva, a Unidade Divina e o Governo
do mundo, e que ademais, não só como uma verdade natural, mas
como a eles revelada pelo próprio Deus de quem falavam, a incorpo­
rou de tal modo na sua própria política nacional que o único nome
com que ele se poderia designar era Teocracia? Foi um povo baseado
e erigido no Teísmo, alicerçado pelo Teísmo, e preservou o Teísmo
por um período inteiro de 2000 anos, até à dissolução do seu corpo
político; e, desde então, o preservou no seu estado de exílio e na sua
errância, ao longo de mais 2000 anos. Os Judeus começam com o
início da história, e a proclamação deste dogma venerando com eles
se inicia. São as suas testemunhas e os seus confessores, inclusive até à
tortura e à morte; por ele e pela sua revelação são moldadas as suas
leis e o seu governo; nele se baseia a sua política, a sua filosofia e a sua
literatura; desta verdade é voz a sua poesia, vertida em composições
funcionais com que o cristianismo, ao longo dos seus muitos séculos
e épocas, foi incapaz de rivalizar; nesta verdade autóctone, com a pas­
sagem do tempo, profeta após profeta, se baseiam as suas ulteriores
revelações, numa referência contínua a uma época em que, segundo
os desígnios secretos do seu Objecto e Autor divinos, receberá o cum­
primento e a perfeição - até ao advento final dessa época.
Esta última idade da sua história é tão estranha como a pri­
meira. Quando essa predeterminada época de bênção chegou, por
eles assinalada com tamanha exactidão e com tanto cuidado aguar­
dada - época que os encontrou, de facto, mais zelosos pela sua
Lei, pelo dogma nela contido, do que alguma vez antes tinham
sido - então, em vez de qualquer favor final vindo do alto, foram
submetidos ao poder dos seus inimigos, foram vencidos, foi arrasa­
da a sua cidade santa, destruída a sua política e expulso o resto do

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 421
seu povo, para longe vaguear em todos os territórios menos no seu,
como até hoje os encontramos; persistindo sempre, século após
século, nunca absorvidos noutras populações, nunca aniquilados,
votados tão provavelmente a durar como inverosimilmente a ser
restaurados, tanto quanto as aparências externas sugerem, agora
como há mil anos. Que nação teve uma história tão grandiosa, tão
romântica, tão terrível? Não realiza ela a ideia de um povo eleito
- como a nação a si mesma se denomina - eleito para o bem e
para o mal? Não é ela, no curso da história, uma exibição da decla­
ração primária da consciência, tal como a determinei, «Com o fir­
me, estarás firme e, com o infortunado, serás infortunado»? Isto
deve ter um sentido, se Deus existir. Conhecemos a sua testemu­
nha do tempo antigo; qual é, agora, a sua testemunha?
Porque é que, digo, após tão memorável carreira, quando os
seus pecados e sofrimentos estavam agora prestes a chegar ao fim,
quando eles aguardavam uma libertação e um Libertador, de repente
tudo ruiu, de uma vez por todas? Eram os servos favoritos de Deus
e, no entanto, está colada ao seu nome uma peculiar reprovação e
uma nota de infâmia. Acreditavam que a Sua protecção era imutá­
vel, e que a sua Lei duraria para sempre - a sua consolação era ser
ensinados por uma tradição ininterrupta, de que ela não podia mor­
rer, excepto transformando-se num nova identidade, mais admirável
do que antes; - sua era a expectativa fiel de que havia de vir um rei
prometido, o Messias, que estenderia o domínio de Israel a todos os
povos; - condição da sua aliança era que, como recompensa a
Abraão, o seu primeiro pai, despontaria por fim o dia em que os
portões do seu estreito território se abririam, e eles se disseminariam
para a conquista e a ocupação de toda a Terra - e, repito, quando
esse dia chegou, eles partiram, espalharam-se por todas as regiões,
mas como exilados sem esperança, como eternos vagabundos.

422 • John H e n ry Newman


Diremos que este fracasso é uma prova de que, ao fim e ao
cabo, nada há de providencial na sua história? Quanto a mim, não
vejo como é que um segundo prodígio obliterará um primeiro; e,
na verdade, o seu próprio testemunho e os seus livros sagrados
induzem-nos a uma melhor solução da dificuldade. Afirmei que
eles estavam, por favor de Deus, sob uma aliança - porventura,
não cumpriram as suas condições. Esta, aliás, parece ser a explica­
ção que eles próprios oferecem do assunto, embora não sej a claro
qual terá sido a sua violação do compromisso. E que de alguma
forma tenham pecado, fosse qual fosse o seu pecado, é corrobora­
do pelo bem conhecido capítulo no livro do Deuteronómio, que
de modo tão notável antecipa a natureza do seu castigo. Esta passa­
gem, traduzida para grego cerca de 350 anos antes do cerco de
Jerusalém por Tito, tem em si as marcas de uma profecia maravi­
lhosa; agora, porém, não me refiro a ela enquanto tal, mas só como
uma indicação de que o desapontamento, que, de facto, deles se
apossou na era cristã, não estava necessariamente fora da preserva­
ção do desígnio divino original, ou também da antiga promessa a
eles feita, e da sua confiante expectação do seu cumprimento. A
sua ruína nacional, ocorrida em vez da grandeza, é descrita nesse
livro, não obstante todas as promessas, com uma ênfase e uma
minúcia que demonstram que ela já há muito era esperada, pelo
menos, como um resultado possível do destino de Israel. Entre
outras punições que fustigariam o povo pecador, foi-lhes dito que
seriam vencidos pelos seus inimigos e disseminados entre todos os
reinos da Terra; que nunca teriam tranquilidade naquelas nações
ou descanso para a planta dos seus pés; que haveriam de ter um
coração receoso, olhos embaciados e uma alma consumida pelo
pesar; que haveriam de sofrer males, ser esmagados em todas as
épocas e alarmar-se com o terror da sua sorte; que os seus filhos e

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 423
as suas filhas seriam dados a outros povos, que haveriam de esperar
e adoecer todos os dias, e que a sua vida estaria sempre suspensa na
dúvida diante deles, e o medo os assediaria dia e noite; que seriam
um provérbio e uma lenda em todas as nações para onde fossem;
que maldições, sinais e portemos cairiam sobre eles e a sua descen­
dência para sempre. Eis alguns dos quinhões, e não os mais terrí­
veis, deste amplo anátema; e o seu cumprimento parcial numa
data antiga da sua história fora, para eles, uma admoestação, quan­
do o tempo predito se aproximou, de que, por grandes que pudes­
sem ter sido as promessas, essas dependiam dos termos da aliança
estabelecida entre eles e o seu Criador, e que, assim como se tinham
sujeitado a maldições no tempo antigo, assim de novo poderiam
nelas incorrer.
Este grande drama, tão marcado com os caracteres da acção
sobrenatural, interessa-nos aqui apenas na sua relação com a evi­
dência da origem divina do cristianismo; e é nesta altura que o
cristianismo surge na cena histórica. É um facto notório que ele
nasceu no território e no meio do povo j udeu; e se só tivesse esta
conexão histórica com o judaísmo, teria ainda alguma parte no
prestígio da sua pátria original. Mas assevera ser muito mais do
que isso; professa ser o cumprimento efectivo da Lei Moisaica, o
meio prometido da libertação e do triunfo para a nação, que esta,
como afirmei, em virtude de um ou outro pecado, desde sempre se
julgou ter inibido ou confiscado. Professa ser o fruto, o herdeiro e
o sucessor, não casual mas legítimo, da aliança moisaica, ou até o
próprio judaísmo, desenvolvido e transformado. Deve, natural­
mente, demonstrar a sua pretensão, e também preferi-la; mas se o
conseguir fazer, então todos os indícios da Presença Divina, que
distinguem a história j udaica, de imediato lhe pertencem e são
uma parte das suas credenciais.

424 • J o h n H e n ry N e w m a n
E, pelo menos, a visão prima facie das suas relações com o
judaísmo é a favor destas pretensões. É um facto histórico que, pre­
cisamente na época em que os Judeus cometeram o seu pecado
imperdoável, fosse ele qual fosse, e foram expulsos da sua pátria para
vaguearem sobre a terra, os seus irmãos cristãos, nascidos da mesma
cepa, igualmente cidadãos de Jerusalém, também saíram da mesma
pátria, mas para sujeitar a terra e fazê-la sua; isto é, empreenderam a
obra genuína que, segundo a promessa, a sua nação efectivamente
fora intimada a levar a cabo; e com um método muito seu, com
uma nova finalidade, só devagar e a custo, mas conseguiram, apesar
de tudo, real e de modo completo. E, desde essa época, os dois filhos
da promessa - da promessa falhada e da promessa cumprida -
sempre se encontraram juntos; e enquanto o cristão esteve numa
posição elevada, o judeu foi humilhado e desprezado - um foi a
«cabeça», o outro «O dorso»; pelo que, para não ir mais longe, o facto
de o cristianismo ter efectivamente feito o que o judaísmo era para
fazer, decidiu a controvérsia, pela lógica dos factos, a favor do cristia­
nismo. As profecias anunciaram que o Messias viria numa época e
num lugar determinados; os cristãos apontam-no como vindo então
e ali, como fora anunciado; não são confrontados com qualquer pre­
tensão contrária ou por qualquer pretendente rival da parte dos
Judeus, apenas pela sua asserção de que Ele não veio, embora, até ao
acontecimento, os mesmos tivessem dito que Ele viera e havia de vir.
Além disso, o cristianismo clarifica o mistério que paira sobre o
judaísmo, clarificando plenamente a punição do povo, especificando
o seu pecado, o seu hediondo pecado. Se, em vez de aclamar o seu
próprio Messias, o crucificaram, então o estranho açoite que os per­
seguiu após a acção e a vigorosa expressão anterior do anátema são
explicados pela genuína estranheza da sua culpa; ou antes, o seu pe­
cado é a sua punição; pois, ao rejeitarem o seu Rei Divino, perderam

U m a G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 42 5
ipso facto o princípio vivo e o vínculo da sua nacionalidade; Além
disso, vemos aquilo que os induziu em erro; pensaram que lhes seria
dado imediatamente um triunfo e um império que, ao fim e ao
cabo, lhes foi dado, mas através do lento e gradual crescimento de
muitos séculos e de uma longa guerra.
Em geral, advirto, por outro lado, que o judaísmo, em virtude
de ter sido o canal de tradições religiosas que se perdem na profun­
deza da antiguidade, é decerto um ponto importante para o cristia­
nismo conseguir provar que ele é o legítimo herdeiro dessa religião
mais antiga. Nem, por outro lado, é de menor importância, para o
significado dessas tradições antigas, conseguir determinar que elas se
não perderam com o seu depósito original, antes foram transferidas,
com o fiasco do judaísmo, para a custódia da Igreja cristã. E esta
aparente correspondência entre os dois é em si uma presunção da
realidade de semelhante correspondência. Em seguida, faço saber
que, se a história do judaísmo foi tão admirável em sugerir a presen­
ça de uma acção divina especial nos seus desígnios e no seu desti­
no, é ainda mais admirável e divina a história do cristianismo; e,
além disso, mais espantoso é ainda que as duas admiráveis criações
houvessem de abarcar quase todo o curso das idades em que existi­
ram nações e estados, e tivessem de constituir um sistema expresso
de comunhão incessante entra a terra e os céus, desde o princípio
ao fim, no meio de todas as vicissitudes dos afazeres humanos. Este
fenómeno traz, mais uma vez, na sua face, para aqueles que acredi­
tam em Deus, a probabilidade de que ele possui a origem divina
que confessa ter; e (quando olhado à luz quer da forte presunção,
em que insisti, de que pela misericórdia de Deus nos será concedi­
da uma revelação Sua, quer do contraste apresentado por outras reli­
giões, nenhuma das quais declara ser uma revelação directa, definida
e integral, como esta é) - este fenómeno, repito, de maravilhas cu-

42 6 • J o h n H e n ry Newman
mulativas eleva a probabilidade, para o j udaísmo e o cristianismo,
nas mentes religiosas quase a uma certeza.

7. Se o cristianismo está tão intimamente ligado ao j udaísmo,


como supus, então houve, por meio dos dois, comunicações direc­
tas entre o homem e o seu Criador, desde tempos imemoriais até
ao dia de hoje - uma prerrogativa tão grande que em mais
nenhum lugar foi reclamada. Nenhuma outra religião, a não ser
estas duas, professa ser um órgão de uma revelação formal, decerto
não de uma revelação que tem em vista o benefício de toda a raça
humana. É aqui que o maometismo fracassa, embora pretenda con­
tinuar a linha da revelação, após o cristianismo; porque é o simples
credo e o rito de certas raças, não trazendo consigo, enquanto tal,
dádivas à nossa natureza; é mais uma reforma de corrupções locais,
um retorno ao culto cerimonial de tempos mais antigos, do que
uma nova e mais ampla revelação. E, enquanto o cristianismo foi o
herdeiro de uma religião morta, o maometismo pouco mais foi do
que uma rebelião contra uma religião viva. Além disso, embora
Maomé declarasse ser o Paráclito, ninguém pretende que ele ocupe
um lugar nas Escrituras cristãs tão proeminente como aquele que o
Messias detém nas Escrituras j udaicas. Chamarei agora a atenção
para a especi� proeminência da ideia messiânica; isto é, para as
profecias das Escrituras Antigas e para o argumento que elas forne­
cem a favor do cristianismo; e embora eu saiba que este argumento
pode ser mais claro e mais exacto do que é, só pretendo aqui refe­
rir-me ao facto da sua existência, todavia, na medida em que nele
mais mergulharmos, fortalecer-se-á a nossa convicção da pretensão
à divindade da Religião que é o órgão dessas profecias e da Reli­
gião que é o seu objecto.

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 42 7
Ora, é inegável que as Escrituras Judaicas ex1snram muito
antes da era cristã e estiveram à guarda exclusiva dos Judeus; seja o
que for, pois, que as suas Escrituras digam distintamente a propó­
sito do cristianismo, se não se atribuir ao acaso ou a uma feliz con­
jectura, é profético. Inegável é também que os Judeus tiraram
desses livros a ilação de que uma grande Personagem haveria de
nascer da sua cepa e conquistar todo mundo, tornando-se para este
num instrumento de extraordinárias bênçãos; ademais, de que ela
faria o seu aparecimento numa data fixa, precisamente a data em
que, como se viu, o Senhor realmente apareceu. Este é o grande
esboço da predição, e se acerca delas só isto se pudesse dizer, muito
longe está de ser irrelevante o demonstrá-lo. Inegável é, repito, que
as Escrituras Judaicas contêm isto, e que os Judeus vislumbraram
efectivamente nelas tal conteúdo.
Primeiro, pois, quanto àquilo que a Escritura declara. Do livro
do Génese ficamos a saber que o povo eleito assentou nesta única
ideia, a saber, que ele era uma bênção para toda a terra, e tal,
mediante um só da sua raça, alguém maior do que o seu pai Abraão.
Foi este o significado e a tendência da sua eleição. Não há aqui lugar
para o erro; o propósito divino é, desde início, estabelecido com a
máxima precisão. Justamente no momento do chamamento de
Abraão, é dito a seu respeito: «Farei de ti uma grande nação, e em
ti todas as tribos da Terra serão abençoadas». Três vezes se anuncia,
na história de Abraão, esta promessa e este desígnio; depois da
época de Abraão, é repetida a Isaac, «Na tua descendência, todas as
nações da Terra serão abençoadas»; e depois de Isaac a Jacob, quan­
do peregrinava longe da sua pátria, «Em ti e na tua descendência,
todas as tribos da Terra serão abençoadas». E de Jacob a promessa
transfere-se para o seu filho Judá, mas com um acrescento, a saber,
com uma referência à grande Pessoa que haveria de ser uma bên-

42 8 • John H e n ry N e w m a n
ção para todo o mundo, e à data em que ela deveria aparecer. Judá
foi o filho eleito do Jacob, o seu bastão ou ceptro, isto é, a sua
autoridade patriarcal, que duraria até que viesse um maior de que
Judá, pelo que a perda do ceptro, quando teve lugar, era o sinal de
que a Sua vinda estava iminente. «Ü ceptro», diz Jacob no seu leito
de morte,» não será tirado a Judá, até chegar Aquele a quem está
reservado», ou «que está para ser enviado», «e Ele será o esperado
das nações» 1 .
Tal era a profecia categórica, literal e inequívoca na sua expres­
são, directa e simples no seu escopo. Um só homem, nascido da
tribo eleita, era o ministro predestinado a ser uma bênção para
todo o mundo; e a raça, enquanto representada por esta tribo,
deveria perder a sua identidade antiga ao adquirir nEle uma nova.
O seu destino estava nela selado já no início. A expectação era a
medida da sua vida. Foi criada para uma grande finalidade e nesta
finalidade encontrou o seu termo. Tais foram as comunicações ini­
ciais feitas ao povo eleito, e aí terminaram - como se o esboço da
promessa, tão nitidamente traçado, tivesse de ser efectivamente
gravado nas suas mentes, antes de lhes ser facultado um maior
conhecimento; como se, pelo longo intervalo dos anos que passa­
ram, antes de se acrescentarem as mais diversas profecias em tipo e

I Antes e à margem do cristianismo, a versão samaritana reza, «donec veníat Pacificus, et ad ipsum

congregabuntur populi». O Targum, «donec veníat Messias, cujus est regnum, et obedient populi:». A versão
dos Setenta, «donec veníant quae reservata sunt illi» (ou «donec veníat cui reservatum est», «et ipse expectatio
gentium». E assim também a Vulgata, «donec veníat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium».
A engenhosa tradução de alguns homens letrados ( «donec venerit ]uda Si/untem», isto é, «O
ceptro de tribo não sairá de Judá até que Judá chegue a Siloé» ), com a explicação de que a tribo de
Judá liderou a guerra contra os Cananeus, vide Juízes !, 1 , 2; XX, 1 8 (isto é, depois da morte de
Josué), e que possivelmente, tanto quanto sabemos, a tribo abandonou a direcção da guerra em
Siloé, vide Josué XVIII, 1 (isto é, em vida de Josué), vê-se a braços com três graves dificuldades: 1 .
Que o ceptro patriarcal é uma liderança temporária da guerra. 2 . Que esta liderança pertence a Judá
justamente na alrura em que pertenceu a Josué. 3. Que ela foi finalmente perdida para Judá (em
vida de Josué), antes de ter sido confiada a Judá (morto Josué).

Uma G r a m á t i c a do Asse n t i m e n t o • 429


em figura, à maneira do Oriente, os anÓncios originais pudessem
sobressair à vista de todos, na sua severa explicitação, como verda­
des arquetípicas e guias para interpretar tudo o mais que fosse obs­
curo na sua expressão ou complexo na sua direcção.
E, em segundo lugar, é de todo claro que os Judeus entende­
ram assim as suas profecias e esperavam o seu grande Soberano
justamente na época em que o Senhor veio, e em que eles, por
outro lado, foram destruídos, perdendo a sua antiga identidade,
sem adquirir outra nova. Os historiadores pagãos referiram-se a
este facto. «Apossou-se da maior parte deles uma convicção», diz
Tácito, ao falar da sua resistência aos Romanos, «de que nos anti­
gos livros dos sacerdotes se dizia que, justamente nessa época, o
Oriente prevaleceria, e que homens nascidos na Judeia obteriam o
império. As pessoas comuns, como é próprio da cupidez humana,
tendo interpretado a seu favor este grande destino, nem sequer
pelos seus reveses foram levadas à verdade dos factos». E Suetónio
amplia a crença: «Todo o Oriente abundava numa crença antiga e
persistente de que, naquela época, pessoas originárias da Judeia
tomariam posse do império». Após os acontecimentos, claro está,
os Judeus recuaram e negaram a justeza da sua expectativa; não
conseguiram todavia negar que a expectativa existira. Assim, o
judeu Josefo, que era da facção romana, afirma que aquilo que os
encorajara na posição que tomaram contra os Romanos fora «Um
oráculo ambíguo, encontrado nos seus escritos sagrados; de acordo
com ele, nessa data, um deles e do país havia de governar o mun­
do». Josefo apenas pode dizer que o oráculo era ambíguo; não con­
segue relatar que eles assim pensaram.
Ora, ao considerar que o Senhor, justamente nessa época, apa­
receu como mestre e fundou não só uma religião, mas (o que era
uma nova ideia no mundo) um sistema de combate religioso, um

43 0 • J o h n H e n ry N e w m a n
grupo agressivo e militante, uma Igreja Católica dominante, que
visava o benefício de todas as nações pela conquista espiritual de
todos; e que este combate, iniciado então por ela, prosseguiu sem
cessar até hoje, e agora é tão vivo e real como sempre foi; que este
corpo militante encheu, desde o princípio, o mundo e teve admi­
ráveis êxitos, que os seus êxitos foram, em geral, de benefício
extremo para toda a raça humana; que ele difundiu uma noção inte­
ligente acerca do Deus supremo a milhões que teriam vivido e
morrido na irreligião; que ele elevou o tom da moralidade onde
quer que tenha chegado, aboliu as grandes anomalias e misérias
sociais, elevou o sexo feminino à sua dignidade genuína, protegeu
as classes mais pobres, destruiu a escravatura, encorajou a literatura
e a filosofia, e desempenhou um papel central nesta civilização do
género humano que, apesar de alguns males, foi em geral produto­
ra de um bem muito maior - ao considerar, repito, que tudo isto
começou na altura predita, esperada, reconhecida, quando a antiga
profecia afirmou que num só homem, nascido da tribo de Judá,
todas as tribos da Terra seriam abençoadas - sinto que tenho o
direito de dizer (e a minha linha de argumentação não me induz a
mais) que se trata ao menos de uma coincidência notável; a saber,
de uma daquelas coincidências que, quando acumuladas, se apro­
ximam muito da ideia de milagre, como sendo impossíveis sem a
Mão de Deus que nelas directa e imediatamente actua.
Tendo chegado até aqui, podemos ir ainda bastante mais longe.
Os anúncios, que não era possível pôr directamente antes do argu­
mento, por figurativos, vagos ou ambíguos, podem usar-se valida­
mente e com grande efeito, quando para nós forem interpretados,
primeiro, pelo plano profético e, ainda mais, pelo objecto histórico.
Um princípio que se aplica a todos os assuntos sobre os quais racio­
cinamos é o seguinte: o que é apenas um amontoado de factos, sem

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o •
43 1
ordem ou direcção, antes da explicação �dequada, pode, uma vez
esta conseguida, localizar-se e ajustar-se com grande facilidade em
todas as suas partes isoladas, como sabemos que acontece relativa­
mente aos movimentos dos corpos celestes, desde a hipótese de
Newton. De igual modo, o acontecimento é a chave verdadeira da
profecia, reconcilia descrições conflituosas e divergentes, incorporan­
do-as numa representativa comum. Compreendemos assim como,
segundo disseram as profecias, o Messias podia sofrer e todavia ser
vitorioso; o Seu reino ser judaico na estrutura, porém evangélico no
espírito; o Seu povo ser a descendência de Abraão, no entanto «OS
pecadores dos Gentios». Estes aparentes paradoxos são apenas cor­
respondentes e afins a outros que constituem uma característica tão
proeminente no ensinamento do Senhor e dos seus Apóstolos.
Quanto aos Judeus, visto que viveram antes do acontecimen­
to, não é de espantar que, embora correctos na sua interpretação
geral da Escritura até onde ela chegou, se tivessem detido perante a
verdade total; que, ademais, no advento do seu Messias, não tives­
sem conseguido reconhecê-lo como o rei prometido, como nós ago­
ra O reconhecemos - pois temos a experiência da sua história ao
longo de quase dois mil anos, por meio da qual interpretamos as
suas Escrituras. Podemos, em parte, compreender a sua posição fren­
te a essas profecias, através da nossa, hoje, em direcção ao Apocalip­
se. Quem poderá negar a grandeza sobre-humana e o carácter
impressionante deste livro sagrado?! Todavia, enquanto profecia,
embora alguns contornos do futuro sejam discerníveis, quão diferen­
temente ele nos afecta em comparação com as predições de Isaías!
Quer porque se refere a acontecimentos não sonhados ainda por vir,
quer porque já há muito se cumpriu em acontecimentos que, no seu
pormenor e na sua circunstância, nunca se tornaram história. E a
mesma observação se aplica, sem dúvida, a partes das profecias mes-

43 2 • John H e n ry Newman
siânicas; se, porém, o seu cumprimento foi assim gradual no tempo
passado, não nos devemos surpreender, se partes delas aguardem
ainda o seu lento, mas verdadeiro, cumprimento no futuro.

8. Quando sugeri que, sob certos pontos de vista, o cristianismo não


respondeu às expectações das antigas profecias, das quais ele preten­
de ser o cumprimento, tinha sobretudo em mente o contraste que
nos é apresentado entre o quadro que elas traçam da universalidade
do reino do Messias e o seu desenvolvimento parcial em todo o
mundo, que é tudo aquilo que a Igreja cristã pode demonstrar; e,
além disso, o contraste entre o descanso, a paz que, segundo as mes­
mas, ele introduziria e a história concreta da Igreja - os conflitos de
opinião que irromperam no seu recinto, os actos violentos e as vidas
indignas de muitos dos seus dirigentes, a degradação moral de gran­
des massas do seu povo. Não intento defrontar aqui estas dificulda­
des, excepto ao dizer que o fracasso do cristianismo em corresponder,
num aspecto, a essas profecias não pode destruir a força da sua sinto­
nia com elas nos outros; tal como podemos aceitar que o retrato de
um amigo oferece dele uma parecença inadequada e, todavia, esta­
mos certos de que é o seu retrato. O que efectivamente tentarei aqui
mostrar é o seguinte: o cristianismo estava, desde início, de todo
consciente do seu próprio futuro prospectivo, muito diferente das
expectações que os profetas suscitariam a seu respeito; e defronta a
dificuldade daí derivada por antecipação, fornecendo-nos as suas
próprias predições do que ele havia de ser no facto histórico, predi­
ções que são de imediato comentários explicativos acerca das Escri­
turas Judaicas e evidências directas da sua própria presciência.
Penso, pois, ser possível discernir que, embora o Senhor clame
ser o Messias, Ele mostra muito pouca dependência consciente das

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 43 3
antigas Escrituras, ou escassa ansiedade por cumpri-las; como se lhe
coubesse a Ele, Senhor dos profetas, empreender o Seu próprio curso
e deixar que as expressões das mesmas se ajustassem a Ele como
pudessem, e não tivesse o cuidado de a Si mesmo a elas se acomodar.
Os evangelistas, de facto, mostram esse zelo natural em sua defesa e,
por conseguinte, ilustram o que n'Ele advirto por contraste. Delatam
um empenhamento sério em rastrear na Sua Pessoa e na sua história
o cumprimento da profecia, como quando o discernem no seu
regresso do Egipto, na sua vida em Nazaré, na gentileza e na afabili­
dade do seu modo de ensinar, nas diversas ocorrências minúsculas da
Sua paixão; mas Ele próprio prossegue claramente no seu caminho,
reclamando, é certo, ser o Messias dos Profetasl , não recorrendo tan­
to às profecias passadas quanto à expressão de outras novas, com
uma antítese não diferente da que tanto impressiona no Sermão da
Montanha ao afirmar, primeiro, «Foi dito aos antigos», e em segui­
da acrescenta, «Mas eu digo-vos». Outro exemplo marcante a este
respeito vê-se nos nomes com que Ele se refere a Si mesmo, que
têm pouco ou nenhum fundamento em qualquer outra coisa que
antes dEle tenha sido dita nas Escrituras Judaicas. Estas falam dEle
como Soberano, Profeta, Rei, Esperança de Israel, Descendência
de Judá e Messias; mas, repito, Ele próprio, embora reconheça
estes títulos como Seus, sobretudo o de Cristo, escolhe duas como
suas designações especiais, Filho de Deus e Filho do Homem; esta
última é-lhe dada só uma vez nas antigas Escrituras, e pela mesma
Ele corrige qualquer interpretação estreita que os Judeus delas
fizessem; enquanto a primeira nunca foi usada de modo distinto a

1 Ele apela para as profecias a fim de evidenciar a Sua missão divina, dirigindo-se ao povo de
Nazaré (Lucas IV, 1 8) , aos disdpulos de João (Mateus XI, 5) e aos fariseus (Mateus 21 I, 42 e João
V, 39) , mas não nos pormenores. O apelo aos pormenores reserva-os para os seus discípulos. Vide
Mateus XI, 1 O; XXVI, 24, 3 1 , 54; Lucas XXII, 37; XXIV, 27, 46.

434 • J o h n H e n ry N e w m a n
seu respeito antes de Ele ter vindo e, segundo parece, foi anuncia­
da ao mundo, antes de mais, pelo Anjo Gabriel e por S. João Bap­
tista. Nestes dois nomes, Filho de Deus e Filho do Homem, que
indicam as duas naturezas do Emanuel, Ele separa-se da dispensa­
ção judaica, em que nascera, e inaugura a Nova Aliança.
Isto não é acidental, e fornecerei agora alguns exemplares seus,
isto é, do que poderei chamar a visão autocrática independente
que Ele tem da Sua própria religião, em que se estava a fundir o
antigo j udaísmo, e do discernimento profético do seu espírito e do
seu futuro que tal visão implica. Ao citar, com este fim, as Suas
próprias palavras a partir dos Evangelistas, suponho (disso não existe
nenhuma dúvida razoável) que eles escreveram antes de terem
ocorrido quaisquer acontecimentos históricos de uma natureza que
os levassem inconscientemente a modificar ou a colorir a lingua­
gem que o seu Mestre utilizou.
1 . Primeiro, pois, o facto em que tantas vezes se insistiu como
concepção ousada, antes inaudita e digna de origem divina, de que
Ele projectaria uma religião universal, e que seria levada a cabo por
aquilo que se poderia denominar um movimento propagandista a
partir de um centro. Até então, a noção acolhida no mundo fora a
de que cada nação tem os seus próprios deuses. Os Romanos legis­
laram nesta base, e os Judeus afirmaram-na desde início, asserindo
naturalmente que todos os deuses, excepto o seu Deus, eram ído­
los e demónios. É verdade que os Judeus tiveram de ser ensinados
pelas suas profecias sobre aquilo que estava reservado para o mun­
do e para eles; e que a sua primeira dispersão através do Império,
alguns séculos antes da vinda de Cristo, e os prosélitos que eles
congregaram à sua volta em todos os lugares, eram uma espécie de
comentário das profecias mais amplo do que o seu; mas, de facto,
quando o Senhor chegou, vimos o que foi a sua expectação a partir

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 43 5
dessas profecias, nas passagens por mim antes citadas a partir dos
historiadores romanos da sua época. Ele, porém, desde início,
resistiu a essas interpretações plausíveis, mas erróneas, da Escritura.
No Seu berço fora, de facto, reconhecido pelos Sábios Orientais
como seu rei; o Anjo anunciou que Ele reinaria na casa de Jacob;
também Natanael O reconheceu como Messias com um título
real; mas, ao iniciar a sua obra, Ele interpretou essas predições à
sua maneira, e não à maneira de Teudas e de Judas de Galileia, que
pegaram na espada e reuniram soldados à sua volta - nem à
maneira do Tentador, que Lhe ofereceu «todos os reinos do mun­
do» . Nas palavras dos Evangelistas, Ele não começou a lutar, mas a
«pregar»; e, além disso, a «pregar o reino dos céus», dizendo,
«Cumpriu-se o tempo, o Reino de Deus está próximo; arrependei­
-vos e acreditai no Evangelho». Este é o título significativo, «O rei­
no dos céus» - tanto mais significativo, quando explicado pelo
preceito concomitante do arrependimento e da fé - em que Ele
funda a política que veio estabelecer, desde o princípio ao fim.
Uma das Suas últimas palavras, antes de sofrer, foi, «Ü meu Reino
não é deste mundo». E as Suas últimas palavras, antes de deixar a
Terra, quando os seus discípulos o interrogaram acerca do Seu rei­
no, foi que eles, como pregadores e não soldados, deveriam «ser
Suas testemunhas até aos confins da terra», deveriam «pregar a
todas as nações, a começar por Jerusalém», deveriam «ir pelo mun­
do fora e pregar o Evangelho a toda a criatura», deveriam «ir fazer
discípulos de todas as nações, até à consumação de todas as coisas».
O último dos quatro Evangelistas é igualmente preciso na evo­
cação do propósito inicial com que o Senhor iniciou o Seu minis­
tério, a saber, criar um império, não pela força, mas pela persuasão.
«A Luz veio ao mundo: todo aquele que pratica o mal odeia a luz,
mas aquele que faz a verdade vem à luZ» . «Levantai os vossos olhos

43 6 • John H e n ry N e w m a n
e vede as searas, pois já estão prontas para a ceifa» . «Ninguém vem
a Mim, a não ser que o Pai o traga a Mim». «E eu, se for levantado
da terra, atrairei a Mim todas as coisas».
Assim, enquanto os Judeus, apoiando-se nas suas Escrituras com
grande aparência de razão, buscavam um libertador e um conquis­
tador pela espada, descobrimos que o cristianismo, desde o início,
não por uma reflexão baseada em tentativas e na experiência, mas
como verdade fundamental, corrigiu magistralmente esse erro,
transfigurando as antigas profecias e trazendo à luz, como S . Paulo
pôde dizer, «O mistério que estava oculto desde há séculos e gera­
ções, mas agora foi manifestado nos Seus santos, a glória deste
mistério entre os Gentios, que é Cristo em vós», não apenas acima
de vós, mas em vós, pela fé e pelo amor, «a esperança da glória» .
2 . Antecipei, em parte, a minha observação seguinte, que se
refere aos meios pelos quais o empreendimento cristão se deveria
levar a cabo. Que a pregação teria parte nas vitórias do Messias era
evidente a partir do Profeta e do Salmista; mas, em seguida, Carlos
Magno pregou, Maomé pregou, com um exército atrás de si. O
mesmo Salmo que menciona aqueles «que anunciam boas novas»
fala igualmente do seu Rei que «banha o seu pé no sangue dos seus
inimigos»; mas o que é grandioso e original no cristianismo é que,
no seu vasto campo de conflito, os seus pregadores deviam estar de
todo desarmados e sofrer, mas para prevalecer. Se não estivéssemos
tão familiarizados com as palavras do Senhor, penso que elas nos
espantariam. «Eis que vos envio como ovelhas para o meio dos
lobos». Este deveria ser o seu estado normal, e assim foi; e todas as
promessas e instruções a eles dadas o implicam. «Bem-aventurados
os que sofrem perseguição»; «bem-aventurados sois vós, quando de
vós disserem mal»; «os mansos herdarão a terra»; «não resistais ao
mal»; «sereis odiados por todos os homens por causa do Meu

Uma G r a m á c i c a do Asse n t i m e n t o • 437


Nome»; «os inimigos do homem serão os . seus domésticos»; «aque­
le que perseverar até ao fim será salvo». Que tipo de encoraj amen­
to era este para homens que em breve iriam ter um trabalho
imenso? Será assim que os homens enviam os seus soldados para a
batalha, ou os seus filhos para a Í ndia ou a Austrália? O rei de
Israel odiava Miqueias, porque ele sempre «profetizou males a seu
respeito». <<Assim perseguiram eles os Profetas que existiram antes
de vós», diz o Senhor. Sim, e os Profetas enganaram-se; foram per­
seguidos e perderam a batalha. «Meus irmãos,» diz S. Tiago,
«tomai como exemplo de uma vida de sofrimento e de paciência os
profetas, que falaram no nome do Senhor» . Foram «torturados,
inj uriados, apedrejados, esquartej ados, andaram fugidos - e deles
não era digno o mundo», diz S. Paulo. Que argumento, para os
encorajar a ter em vista o êxito mediante o sofrimento, pôr diante
deles o precedente daqueles que sofreram e que fracassaram!
Todavia, os primeiros pregadores, os discípulos imediatos do
Senhor, não viram dificuldade alguma numa perspectiva tão horrí­
vel aos olhos humanos, tão desesperada! Quão conatural era esta
estranha, insensata e irresponsável coragem ao seu estado regenera­
do mostra-se, de modo muito significativo, em S. Paulo, um con­
vertido de vocação tardia. Ele não foi um companheiro pessoal do
Senhor, todavia, com que fidelidade faz ecoar a linguagem de nos­
so Senhor! O seu instrumento de conversão é «a loucura da prega­
ção»; «as coisas fracas da Terra confundem as fortes»; «temos fome
e sede, estamos nus, somos fustigados e não temos pátria»; «somos
vituperados e abençoamos, somos perseguidos, amaldiçoados, fei­
tos o refugo deste mundo, a escória de todas as coisas». Tal é a
compreensão íntima, por parte de alguém que nunca na terra viu o
Senhor, e dos Seus discípulos originais pouco ficara acerca do
carácter dos Seus ensinamentos; e considerando que as profecias,

43 8 • J o h n H e n ry N e w m a n
em cuja base ele vivera desde o nascimento, apresentam quase
sempre na sua superfície uma doutrina contrária, e que os Judeus
dessa época as entendiam comummente nesse sentido contrário,
não podemos negar que o cristianismo, ao delinear o método com
que prevaleceria no futuro, seguiu uma linha própria e indepen­
dente, e ao aprontar, desde início, uma regra e uma história para a
sua propagação, uma regra e uma história que prosseguiu até hoje,
se livra da acusação de só em parte cumprir as profecias j udaicas,
ao assumir um carácter profético muito seu.
3. Abordamos, agora, um terceiro ponto em que o Mestre Divi­
no explica e, sob certo aspecto, corrige, mediante uma interpreta­
ção mais exacta delas, as profecias da Antiga Aliança acerca de Si
mesmo. Admiti que elas pareciam dizer que a sua vinda redundaria
num período de paz e de fervor religioso. «Eis», diz o Profeta, «que
um rei reinará na justiça, e um príncipe reinará no j uízo. O louco
não mais se chamará príncipe, nem o falso se chamará grande. O
lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á com a crian­
ça. Não hão-de ferir nem matar em toda a minha montanha santa,
pois a Terra está cheia do conhecimento do Senhor, tal como as
águas cobrem o mar».
Estas palavras parecem predizer uma inversão das consequên­
cias da queda, e esta inversão ainda não nos foi concedida, é verdade;
mas consideremos quão distintamente o cristianismo nos acautela
frente a semelhante predição. Embora se diga com muita força nos
Evangelhos que a história do reino dos céus começa no sofrimento
e na santidade, também claramente se diz que ele desemboca na
infidelidade e no pecado; ou seja, que, embora haja nele, em todas
as épocas, muitQs homens santos, muitos homens religiosos, e embo­
ra a santidade, tal como no começo, seja sempre a vida, a substân­
cia e a semente germinal do Reino Divino, contudo, haverá sempre

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 439
muitos, haverá ainda muitos mais que, pelas suas vidas, são para ele
um escândalo e uma injúria, não uma defesa. É este, aliás, um anún­
cio espantoso, e tanto mais quando visto em contraste com os pre­
ceitos enunciados pelo Senhor no Sermão da Montanha, e com a
descrição que Ele fez aos Apóstolos das suas armas e do seu combate.
O facto, uma vez cumprido, num tempo em geral não muito longo,
suscitou nos cristãos tanta perplexidade que três das primeiras here­
sias brotaram mais ou menos da recusa obstinada, anticristã, de
facultar de novo os privilégios do Evangelho aos que tinham caído
no pecado. Todavia, as palavras do Senhor são precisas: diz-nos Ele
que «Muitos são os chamados, poucos os escolhidos»; na parábola
do banquete de bodas, os servos são enviados para reunir «todos os
que encontrarem, maus e bons»; as virgens loucas «não tinham azei­
te nas suas lâmpadas»; no meio das sementes boas um inimigo lança
sementes que são prejudiciais ou sem valor; e «O reino é semelhante
a uma rede que apanhou toda a espécie de peixes»; e «no fim do
mundo, os Anjos virão e hão-de separar os maus dos justos».
Além disso, Ele não só fala da Sua religião como destinada a
possuir um poder temporal tão vasto que, como no caso do babi­
lónico, «as aves do céu habitariam nos seus ramos», mas também
nos desvenda a perspectiva da ambição e da rivalidade nos seus
membros dirigentes, quando admoesta os Seus discípulos contra o
desejo de ocupar os primeiros lugares no Seu reino; ademais, de
pecados ainda maiores, na sua descrição do servo que «começou a
bater nos seus companheiros, a comer, a beber e a embriagar-se»
- passagens que têm um significado terrível, se considerarmos
que tipo de homens foram, até hoje, escolhidos para ser os Seus
representantes e terem assento na cátedra dos Seus apóstolos.
Se, portanto, se levantar a objecção de que o cristianismo, ao
contrário do que parecem prometer os antigos profetas, não abole

440 • John Henry Newman


o pecado e a irreligião no seu recinto, poderemos responder que
ele não induziu a fazer assim, antes advertiu, de modo concreto,
num espírito profético, os seus seguidores perante a expectativa de
semelhante conduta.

9. De harmonia com os anúncios do Senhor antes do aconteci­


mento, o cristianismo haveria de prevalecer, de se tornar num
grande império e encher a Terra; mas deveria realizar este vaticínio,
não como fizeram outros poderes vitoriosos, e como os Judeus
esperavam, pela força das armas ou por outros meios deste mundo,
antes pelo expediente inédito da santidade e do sofrimento. Se um
partido actual em ascensão, se a grande família de Orleães, ou um
ramo dos Hohenzollern, na ânsia de fundar um reino, proclamas­
se, como sua única arma, a prática da virtude, o nosso espanto não
seria maior do que a surpresa de um j udeu, há mil e oitocentos
anos, se lhe fosse dito que o seu Messias glorioso não devia lutar,
como Josué ou David, mas apenas pregar. É, de facto, um pensa­
mento tão estranho, na sua predição e no seu cumprimento, como
sugerir-nos importunamente que um Poder Divino acompanhava
aquele que o concebia e proclamava. Eis o que tenho estado a dizer
- desejo agora considerar em si mesmo o facto predito, sem refe­
rência à sua qualidade de conteúdo de uma predição ou de uma
realização: isto é, a história da origem e do estabelecimento do
cristianismo; e inquirir se ela é uma história passível de se reduzir,
por qualquer subtileza filosófica; à acção habitual das causas
morais, sociais ou políticas.
Como bem se sabe, vários foram os escritores que tentaram
indicar causas humanas para a explicação do fenómeno: Gibbon,
em especial, mencionou cinco, a saber, o zelo dos cristãos, herdado

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 441
dos Judeus, a sua doutrina de um estado .futuro, a sua pretensão ao
poder miraculoso, as suas virtudes e a sua organização eclesiástica.
Consideremo-los, com brevidade.
Pensa ele que estas cinco causas, quando combinadas, explica­
rão razoavelmente o acontecimento; mas não pensou em explicar a
sua combinação. Embora elas sejam muito convenientes para o seu
propósito, contudo, tal acessibilidade dimana da sua coincidência;
e donde provém esta coincidência? Enquanto esta se não explicar,
nada está explicado, e será melhor deixar em paz a questão. Estas
pretensas causas são entre si de todo distintas e, digo, o milagre é
que as juntou. Como é que uma multidão de gentios chegou a ser
influenciada com o zelo j udaico? Como é que os zelotas acabaram
por se sujeitar a um regime estrito, eclesiástico? Que ligação tem
um regime secular com a imortalidade da alma? Porque é que a
imortalidade, uma doutrina filosófica, levaria à crença nos mila­
gres, que é uma superstição do vulgo? Que tendência havia nos
milagres e na magia para tornar os homens austeramente virtuo­
sos? Por último, que poder existia num código da virtude, tão sere­
no e ilustrado como o de Antonino, para gerar um zelo tão
agressivo como o dos Macabeus? Até agora, os acontecimentos
miraculosos tinham sido, sem dúvida, aparentemente só coinci­
dências; mas não se tornaram menos miraculosos por catalogar as
suas causas constituintes, a não ser que mostremos também como
elas chegaram a ser constitutivas.
Todavia, e a propósito; a questão real é esta: serão as caracterís­
ticas históricas do cristianismo, também na questão de facto, cau­
sas históricas do cristianismo? Forneceu Gibbon a prova de que
elas são? Apresentou dados comprovativos da sua actuação, ou faz
somente a conjectura, no seu j uízo privado, de que elas tiveram
efeito? Se terão sido adaptadas para realizar uma certa obra, é uma

442 • John Henry Newman


questão de opinião; se efectivamente a realizaram, é uma questão
de facto. Ele devia aduzir exemplos da sua eficácia, antes de ter um
direito a dizer que são eficazes. E a segunda questão é esta: qual o
efeito de que elas se devem considerar como causas? Apenas este: a
conversão de grupos de homens à fé cristã. Não percamos isto de
vista. Teremos de determinar se as cinco características do cristia­
nismo foram causas eficientes da transformação de grupos de
homens em cristãos? Creio que eles não efectuaram tais conversa­
ções, nem se adaptaram a fazê-lo, e pelas razões seguintes:
1 . Quanto à primeira, o zelo, pelo qual Gibbon entende, em
parte, o espírito ou esprit de corps, este é, sem dúvida, um princípio
impulsor quando os homens já são membros de um corpo, mas
actuará ele na sua incorporação? Os Judeus nasceram no judaísmo,
tinham uma história longa e gloriosa e, claro está, sentiriam e mostra­
riam esprit de corps, mas como é que o espírito de partido tende a
transplantar o judeu ou o gentio do seu lugar para uma nova socieda­
de, e uma sociedade que, como a presente, estava fracamente consti­
tuída em sociedade? Pode, decerto, sentir-se zelo por uma causa ou
por uma pessoa; falarei agora deste ponto; mas a ideia de Gibbon
acerca do zelo cristão não é melhor do que o vinho velho do judaís­
mo deitado em novos vasos cristãos; e seria um estimulante demasia­
do insípido, mesmo se acatasse semelhante transferência, para se
tomar por uma causa da conversão ao cristianismo, sem uma evidên­
cia precisa na demonstração do facto. Os cristãos sentem entusiasmo
pelo cristianismo depois de se terem convertido, não antes.
2. Em seguida, quanto à doutrina de um estado futuro. Gibbon
parece indicar por esta doutrina o temor do inferno; existem hoje,
sem dúvida, pessoas que passaram, pela conversão, do pecado a uma
vida religiosa, em virtude das descrições vivas da futura punição dos
maus; mas, depois, importa lembrar que tais pessoas já acreditavam

U m a G r a m á c i c a do Assen t i m e n t o • 443
na doutrina que assim lhes era proposta. Em contrapartida, apresen­
tai um folheto sobre o fogo do inferno a um dos turbulentos jovens
de uma grande cidade, sem qualquer educação e sem fé; e, em vez de
ser por ele amedrontado, rir-se-á dele como de algo extremamente
ridículo. A crença no Estígio e no Tártaro já definhava no mundo na
época em que o cristianismo apareceu, tal como a crença paralela
parece estar agora a morrer em todas as classes da nossa sociedade.
Hoje, nas nossas grandes cidades, a doutrina da punição eterna ape­
nas irrita a multidão dos homens e os torna blasfemos; porque have­
ria de ter tido qualquer outro efeito na população pagã, na época em
que o Senhor veio? Contudo, foi no seio dessas populações que Ele e
os Seus pela primeira vez apareceram. Quanto à esperança de vida
eterna, foi, ·sem dúvida, à semelhança do temor do inferno, uma
doutrina muito eficaz no caso dos homens que se tinham efectiva­
mente convertido, dos cristãos levados à presença do magistrado ou
que se contorciam sob a tortura. Mas o pensamento da glória eterna
não desvia os homens maus de uma vida má; e porque deveria,
então, convertê-los dos seus pecados aprazíveis para uma existência
austera, mortificada, sem alegria, para uma vida de regime duro, de
medo, de desprezo e de desolação?
3. Que a reivindicação de milagres deveria ter uma ampla in­
fluência do cristianismo no meio das populações pagãs, que tinham
muitos prodígios seus, é uma opinião em contraste curioso com a
objecção feita ao cristianismo que suscitou uma resposta de Paley,
a saber, que «OS milagres cristãos não são narrados ou referidos
pelos primeiros escritores cristãos, de modo tão pleno ou com tan­
ta frequência como seria de esperar» . Paley resolve a dificuldade na
medida em que ela é um facto, observando, como eu sugeri, que
«era destino seu opor-se à acção mágica, contra a qual a simples
produção desses factos não era suficiente para a convicção dos seus

444 • J o h n H e n ry N e w m a n
adversários»: «Não sei», prossegue, «se eles próprios a consideraram
de todo decisiva para a controvérsia». Uma reivindicação do poder
miraculoso por parte dos cristãos, demasiado rara para se tornar
agora numa objecção contra o facto de eles a possuírem, dificil­
mente pôde ter sido uma causa principal do seu êxito.
4. E como será possível imaginar, com Gibbon, que aquilo
que ele chama as «virtudes sóbrias e domésticas» dos cristãos, a sua
«aversão ao luxo da época», a sua «castidade, temperança e econo­
mia», que estas qualidades baças persuadiriam uma natureza a con­
quistar e a fundir o duro coração pagão, apesar da perspectiva
desencorajante do barathrum, do anfiteatro e da fogueira? Conse­
guiu a moralidade cristã, pela sua severa beleza, converter o pró­
prio Gibbon? Pelo contrário, diz ele amargamente, «Não foi neste
mundo que os primeiros cristãos desejaram tornar-se a si mesmos
agradáveis ou úteis». «A virtude dos cristãos primitivos, como a
dos primeiros Romanos, foi muitas vezes acolitada pela pobreza e
pela ignorância» . «Ü seu aspecto sombrio e austero, a sua antipatia
pelos afazeres e prazeres comuns da vida, as suas previsões frequen­
tes de calamidades iminentes, incutiram nos pagãos a apreensão de
um perigo que proviria da nova seita» . Deparamos aqui não só
com o repúdio de Gibbon perante a atitude moral e social, mas
também com a sua postura pagã. Como é que, então, aqueles gen­
tios haveriam de ser vencidos pela amabilidade daquilo que eles
olhavam com semelhante repulsa? Temos aqui a prova cabal de que
o carácter cristão inspirava repugnância aos pagãos; onde está a
evidência de que ele os converteu?
5. Por último, quanto à organização eclesiástica. Foi esta, sem
dúvida, com o andar do tempo, uma característica especial da nova
religião; mas como poderia ela contribuir directamente para a sua
extensão? Deu-lhe decerto força, mas não vida. Não nascemos dos

Uma G r a m á t i c a do Assen t i m e n t o • 44 5
ossos e dos músculos. Uma coisa é fazer conquistas, outra consoli­
dar um império. Foi antes de Constantino que os cristãos realiza­
ram as suas grandes conquistas. As regras estabelecem-se para
tempos pacíficos, não para tempo de guerra. Este contraste faz-se
sentir agora de tal modo na Igreja Católica que, como bem se sabe,
nas regiões pagãs e nos países que sacudiram o seu j ugo, ela sus­
pende a sua administração diocesana e o seu Direito Canónico e
põe os seus filhos sob a j urisdição extraordinária, exti:alegal, da
[Sagrada Congregação da] Propaganda.
Tal é o que sou levado a dizer acerca das Cinco Causas de Gib­
bon. Não nego que elas poderiam ter actuado, agora e então; Simão
Mago acercou-se do cristianismo para aprender a arte dos milagres;
e Peregrino, por mor da influência e do poder; mas o cristianismo
não desbravou o seu caminho graças a conversões individuais,
antes por meio de conversões amplas e em larga escala, e a questão
é esta: como é que elas se originaram?
É deveras singular que não tivesse ocorrido a um homem da
sagacidade de Gibbon inquirir qual a explicação que os próprios
cristãos forneceram a este respeito. Não teria sido melhor para ele
abandonar a simples conjectura e, em vez disso, ter encarado os
factos? Porque não tentou a hipótese da fé, da esperança e da cari­
dade? Nunca ouviu falar do arrependimento perante Deus e da fé
em Cristo? Não se recordou das muitas palavras dos Apóstolos, de
Bispos, dos Apologistas, dos Mártires, constituindo todas elas um
só testemunho? Não; tais pensamentos são-lhe íntimos, e íntimos
da verdade; mas não pode simpatizar com eles, não pode neles
acreditar, não pode sequer centrar-se neles, porque carece da forma­
ção requerida para semelhante exercício da mentel . Vejamos se os

1 Vide supra, pp. 338, 366-367, 403-405.

446 • J o h n H e n ry N e w m a n
factos do caso não surgem claros e inequívocos, se simplesmente
tivermos a paciência para os suportar.
Fora prometido, desde tempos imemoriais, um Libertador da
raça humana mediante a nação j udaica. Chegou o dia em que Ele
devia aparecer e era ansiosamente esperado; além disso, Alguém
apareceu, concretamente, nesta data na Palestina e reivindicou ser
Ele. Deixou a terra, sem aparentemente ter feito muito em prol do
objectivo da sua vinda. Mas, quando se ausentou, os Seus discípu­
los encarregaram-se de ir pregar a todas as regiões da terra, com o
fim de O anunciar e reunir convertidos em Seu Nome. Após algum
tempo, observou-se que, admiravelmente, tiveram êxito. Assistir­
-se-ia ao espectáculo de ver, em múltiplos lugares, amplos grupos
de homens a professar que eram Seus discípulos, que O tinham
por seu Rei, aumentando incessantemente em número e penetran­
do nas populações do Império Romano; por fim, convertem o pró­
prio Império. Tudo isto é um facto histórico. Queremos agora
conhecer o facto histórico ulterior, a saber, a causa da sua conver­
são; por outras palavras, quais eram os tópicos dessa pregação que
tão eficaz foi? Se acreditarmos no que nos foi dito pelos pregadores
e pelos seus convertidos, a resposta é simples. Eles «pregaram Cris­
to»; convidaram os homens a crer, a esperar e a pôr o seu afecto
neste Libertador que viera e se ausentara; e o instrumento moral
com que os persuadiam a proceder assim era uma descrição da
vida, do carácter, da missão e do poder desse Libertador, uma pro­
messa da Sua presença invisível e da sua protecção aqui, e da visão
e da fruição dEle, no futuro. Do princípio ao fim, para os cristãos,
como para Abraão, Ele é o Centro e a plenitude da dispensação.
Eles, como Abraão, «vêem o Seu dia e rej ubilam» .
Um soberano temporal faz-se conhecer mediante os seus admi­
nistradores subordinados, que levam o seu poder e a sua vontade a

U m a G r a m á c i c a do Assen t i m e n t o • 44 7
influenciar cada um dos seus súbditos que não o conhecem pes­
soalmente; também o Libertador universal, longamente esperado,
quando veio, em vez de fazer e consolidar os súbditos por meio de
uma afabilidade ou majestade visível, parte mas, através dos -

Seus mensageiros, descobre-se que Ele imprimiu a lmagem I ou a


ideia de Si mesmo nas mentes individuais dos seus súbditos; e esta
Imagem, apreendida e venerada nas mentes individuais, torna-se
um princípio de associação, um vínculo real dos súbditos entre si,
que assim se aglutinam ao corpo em virtude de estarem unidos a
esta Imagem; além disso, esta Imagem, que constitui a sua vida
moral, quando eles já tinham sido convertidos, é também o instru­
mento original da sua conversão. A Imagem dEle é que cumula a
única grande necessidade da natureza humana, é o Curador das
suas feridas, o Médico da alma; esta Imagem é o que suscita a fé e,
em seguida, a recompensa.
Se reconhecermos esta Imagem central como a ideia vivifican­
te da comunidade cristã e dos indivíduos que dela fazem parte,
então conseguiremos decerto ter em conta, pelo menos, duas das
causas de Gibbon, como tendo, em ligação com esta ideia, alguma
influência em fazer convertidos e em fortalecê-los na perseverança.
Foi o Pensamento de Cristo, não uma corporação ou uma doutri­
na, que inspirou aquele entusiasmo que o historiador tão exigua­
mente compreende; e foi o Pensamento de Cristo que deu vida à
promessa da eternidade que, sem Ele, seria em qualquer alma ape­
nas um peso intolerável.
Ora, uma visão mental como esta apelidar-se-á talvez de nebu­
losa, quimérica, ininteligível; isto é, por outras palavras, miraculosa.
Penso que assim é. Como é que, sem a Mão de Deus, poderia uma

1 Vide supra, pp. 53-58 e 1 0 1 - 1 06.

448 • John H e n ry Newman


ideia nova, uma só e a mesma, entrar ao mesmo tempo em miríades
de homens, mulheres e crianças de todas as categorias, sobretudo das
mais baixas, ter o poder de os arrancar às suas comodidades e aos
seus pecados, de os encorajar contra as mais cruéis torturas, perdurar
vigorosamente como influência sustentadora durante sete ou oito
gerações, até que estabeleceu uma política extensa, quebrou a obsti­
nação do governo mais forte e mais sábio que o mundo jamais con­
templara, e abriu o seu caminho desde as primeiras cavernas e
catacumbas até à plenitude do poder imperial?
Ao abordar este tema, restringir-me-ei à demonstração, tanto
quanto me permitem os meus limites, de dois pontos - primeiro,
que o Pensamento ou a Imagem de, Cristo foi o princípio da con­
versão e da comunhão; e, em seguida, que nas classes mais baixas,
sem poder, sem influência, sem reputação ou educação, reside o
seu êxito principal. !
Quanto à ideia vivificante, é esta a explicação que dela encon­
tramos em S. Paulo: «Dei-vos a conhecer o evangelho que vos pre­
guei, que também recebestes e no qual permaneceis; pelo qual
também sois salvos. Pois dei-vos, antes de mais, aquilo que tam­
bém recebi, como Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as
Escrituras», etc. , etc. «Sou o último dos Apóstolos; mas, quer eu
quer eles, assim anunciámos e assim vós acreditastes». «Agradou a
Deus pela loucura da pregação. salvar aqueles que acreditam». «Pre­
gamos Cristo crucificado». «Decidi nada conhecer entre vós, a não
ser Jesus Cristo, e Este crucificado». «A vossa vida está escondida
com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer,

I Se os meus limites tivessem permitido, deveria ter descrito, como terceiro tema, o sistema
reinante da idolatria impura, e o fenómeno admirável de tais multidões, que tinham sido seus escra­
vos, dela se libertarem pelo poder do cristianismo - sob a orientação da grande obra («Do pagão e
do judeu») do Dr. Dõllinger.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 449
então também vós aparecereis com Ele na ·glória». «Vivo, mas ago­
ra não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» .
S. Pedro, que foi considerado o mestre de uma escola separa­
da, diz o mesmo: <<Jesus Cristo, que vós não vistes e, no entanto,
amais; em quem agora acreditais e vos alegrareis».
E S. João, que, por vezes, é olhado no cristianismo como um
terceiro mestre: «Ainda se não manifestou o que seremos; mas
sabemos que, quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele,
porque O veremos como Ele é».
A medida que eu for avançando, tornar-se-á claro que os seus
discípulos os seguiram nesta devoção soberana a um Senhor Invisível.
E, em seguida, quanto à situação mundana e ao carácter dos
Seus discípulos, o Senhor, numa conhecida passagem, dá graças a
seu Pai celeste, «porque», diz Ele, «escondeste estas coisas» - os
mistérios do Seu reino - «aos sábios e prudentes, e as revelaste aos
pequeninos» . De harmonia com este anúncio, diz S. Paulo que
«não foram muitos os homens sábios segundo a carne, não muitos
os poderosos, não muitos os nobres», que se tornaram cristãos. Ele,
de facto, é um desses poucos; assim foram também outros contem­
porâneos seus e, com a passagem do tempo, o número dessas
excepções aumentou, pelo que havia convertidos, e não poucos,
nos altos postos do Império e nas escolas de filosofia e da instru­
ção; mas mantém-se ainda a regra de que a grande massa dos cris­
tãos se encontraria nas classes que não tinham importância no
mundo, quer em virtude da categoria quer da educação.
Todos sabemos que assim aconteceu com o Senhor e com os
seus Apóstolos. Afigura-se quase irreverente falar das suas ocupa­
ções temporais, quando estamos tão simplesmente acostumados a
considerá-los nas suas conotações espirituais; mas é útil lembrar­
-nos de que o próprio Senhor foi uma espécie de ferreiro, fez ara­
dos e cangas para os bois. Dos Apóstolos, qttatro eram pescadores,

450 • J o h n H e n ry Newman
um modesto cobrador de impostos, dois homens casados e outro,
segundo se diz, jardineiro l . Quando Pedro e João foram apresenta­
dos ao Conselho, afirmou-se que eles, de um ponto de vista secu­
lar, eram «homens iletrados e de estrato inferior», e assim a eles se
referiram, numa época ulterior, os Padres da Igreja.
Durante quatro séculos, os seus amigos e inimigos informam, a
seu favor ou para seu descrédito, que os seus convertidos eram da
mesma categoria que eles próprios. «Se um homem for educado» diz
Celso por troça, «que permaneça longe de nós, cristãos; não quere­
mos homens sábios, homens sensatos. Todos consideramos isso como
um mal. Não; mas se houver alguém inexperiente, estúpido, ignoran­
te ou louco, que venha com um bom coração». «São tecelões», afirma
ele noutro lugar, «sapateiros, ferreiros, ignorantes, palhaços». «Lou­
cos, gente de baixo nascimento», diz Trifã.o. <<A maior parte de vós»,
diz Cecílio, «está degradada pela necessidade, pelo frio, pelas cansei­
ras e pela fome; homens que vieram das camadas mais baixas da
população; mulheres ignorantes e crédulas»; «grosseiros, rudes, iletra­
dos, ignorantes até das artes sórdidas da vida; se não compreendem
sequer os assuntos civis, como poderão entender os divinos?» Deixa­
ram as suas corporações, os seus martelos, as suas bigornas, para pre­
gar acerca das coisas celestes», diz Libânio. «Intrujam as mulheres, os
servos e os escravos», afirma Juliano. O autor de Filopatris refere-se a
eles como «pobres criaturas, empecilhos, gente velha e mirrada,
homens de rostos abatidos e pálidos». Quanto à sua religião, tinha a
reputação popular, segundo vários Padres, de ser uma superstição
senil, a descoberta de velhotas, uma anedota, uma loucura, uma
extravagância, uma absurdidade, um fanatismo.

1 Sobre os assuntos seguintes, vide Lami, De Eruditione Apostolorum; Mamachius, Origines


Christ.; Ruinart, Act. Man.; Lardner, Credibiliry, &e.; Fleury, Eccles. Hist. Kortholt, Calumn. Pagan. ,
e De morib. Christ., &e.

U m a G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 45 1
Os próprios Padres da Igreja confirmam estas opm10es, na
medida em que descrevem a insignificância e a ignorância dos seus
irmãos. Atenágoras fala da virtude dos seus «homens ignorantes, dos
artífices e das velhas». «Não vieram», diz S. Jerónimo, «da Academia
ou do Liceu, mas da ralé popular» . «São ferreiros, servos, campónios,
marceneiras, homens de ocupações sórdidas, mendigos», diz Teodo­
reto. «Trabalhamos na agricultura, no mercado, nos banhos públi­
cos, nas tabernas, nas estrebarias e nas feiras; como marinheiros,
como soldados, camponeses, como comerciantes», diz Tertuliano.
Como é que tais homens chegaram a converter-se? E, uma vez con­
vertidos, como conseguiram eles revolucionar o mundo? No entan­
to, foram em frente, desde início, «conquistando e para conquistar».
A primeira manifestação do seu número temível realizou-se jus­
tamente na altura em que S. Pedro e S. Paulo sofreram o martírio, e
foi a causa de uma perseguição terrível. Temos dela um relato em
Tácito. «Nero», diz ele, «para acabar com o boato geral [de que
Roma fora incendiada por sua ordem] , atribuiu o incêndio a outros,
infligindo um castigo muito duro a esses detestáveis criminosos que
dão pelo . nome de cristãos. O autor desta seita foi Cristo, que fôra
executado no tempo de Tibério pelo Procurador Pôncio Pilatos. A
superstição pestilenta, enfraquecida por algum tempo, rebentou de
novo, não só na Judeia, a primeira sede do mal, mas até em Roma, o
centro da confluência e da irrupção de tudo o que é atroz e funesto
em todos os quadrantes. Foram, primeiro, aprisionados os que não
faziam segredo da sua seita; e, mediante este indício, uma grande
multidão de outros, condenados não tanto por incendiar a cidade,
quanto pelo ódio à raça humana. A mofa acrescentou-se à morte;
vestidos de peles de animais, foram estraçalhados por cães; pregados
em cruzes; transformados em tochas para que, desmaiando o dia,
pudessem servir de luzes. Por isso, apesar de culpados, e merecendo

452 • J o h n H e n ry N e w m a n
um castigo exemplar, excitaram a compaixão, em virtude de estarem
a ser destruídos, não para o bem-estar público, mas por causa da
crueldade de um só homem».
Os dois Apóstolos sofreram, e segue-se um silêncio durante
uma geração inteira. Após trinta ou quarenta anos, Plínio, amigo
de Trajano e também de Tácito, foi enviado como propretor do
imperador para a Bitínia; surpreende-se e fica perplexo com o
número, a influência e a obstinação dos cristãos que ali encontra, e
também na vizinha província do Ponto. Tem a oportunidade de
ser muito mais j usto para com eles do que o seu amigo historiador.
Escreve a Trajano para saber como há-de lidar com eles, e citarei
algumas partes da sua carta.
Diz Plínio que não sabe como se há-de comportar com eles,
visto que a sua religião não foi tolerada pelo Estado. Nunca esteve
presente a qualquer julgamento seu; duvida se as crianças presentes
no meio deles, bem como os adultos, se deverão considerar como
réus; se a abjuração porá as coisas no seu lugar ou se há-de incorrer
igualmente no castigo; se deverão ser castigados, só por serem cris­
tãos, embora nenhum crime determinado se provar contra eles. O
seu método consistira em examiná-los e em fazer-lhes perguntas; se
admitissem a acusação, concedia-lhes uma ou duas oportunidades,
ameaçando-os com o cas tigo; em seguida, se continuassem reni­
tentes, dava ordens para a sua execução. «Pois», argumenta ele, «eu
não tinha dúvidas de que, fosse qual fosse o carácter das suas opi­
niões, a obstinação rebelde e inflexível merecia o castigo. Outros
havia ainda, possuídos também de semelhante extravagância, que,
por serem cidadãos, enviei para Roma».
Alguns causaram-lhe satisfação; repetiram, depois dele, uma
invocação aos deuses, ofereceram vinho e incenso à imagem do impe­
rador e, além disso, amaldiçoaram o nome de Cristo. «Por conse-

Uma G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 453


guinte», diz ele, «soltei-os; pois dizem-me que nada pode levar um
cristão verdadeiro a fazer essas coisas». Outros há também que
sacrificaram, que tinham sido cristãos, alguns deles durante cerca
de vinte anos.
Em seguida, mostra-se curioso por saber algo de mais definido
a seu respeito. «Segundo me disseram os informadores, todo o seu
crime ou erro era este: costumavam reunir-se num dia determinado
antes da aurora e cantar um hino a Cristo como deus, associar-se
entre si por um j uramento [sacramento] (não em vista de qualquer
crime, pelo contrário) para se resguardar do furto, do roubo, do
adultério, da quebra de promessas, do abuso dos depósitos. Depois
disto, costumavam separar-se e, em seguida, encontravam-se de novo
numa refeição, que era social e inofensiva. Todavia, até isto deixa­
ram de fazer, após o meu Edito contra a sua reunião».
Esta informação levou-o a sujeitar à tortura duas jovens servas,
«apelidadas de diaconisas», para saber o que nisso havia de verda­
deiro e de falso; mas diz que nada ficou a saber, excepto que se tra­
tava de uma superstição depravada e extravagante. Tal foi o que o
levou a consultar o imperador, «sobretudo por causa do número
dos que nela estavam implicados; pois estes eram, ou pareciam ser,
muitos, de todas as idades e de ambos os sexos. Pois o contágio da
superstição alastrara não só nas cidades, mas também nas aldeias e
em todo o território». Acrescenta ele que havia já alguma melhoria.
«Os templos quase esquecidos começaram de novo a encher-se e as
solenidades sagradas, após uma longa interrupção, a ser restaura­
das. Também as vítimas estavam de novo à venda, pois já era mui­
to raro encontrar compradores».
Os pontos salientes nesta descrição são os seguintes: no termo
de uma geração a partir dos Apóstolos, além disso, quase durante a
vida de S . João, os cristãos tinham-se espalhado tanto num amplo

454 • J o h n H e n ry Newman
distrito da Ásia que quase se tinham ali desvanecido as religiões
pagãs; eram pessoas de vidas exemplares; ganharam nome pela
fidelidade invencível à sua religião; não havia ameaças ou sofri­
mentos que conseguissem levá-los a repudiá-la; e a sua única carac­
terística tangível era o culto do Senhor.
Isto acontecia no início do século II; não muitos anos depois,
encontramos outra notícia acerca da comunidade cristã, de um
cristão grego anónimo, numa carta a um amigo que ele desejava
converter. Esta é demasiado longa para ser citada e difícil de resu­
mir; mas umas quantas frases mostrarão como, de modo notável,
ela concorda com o relato do pagão Plínio, sobretudo em dois
pontos - primeiro, nos números de cristãos; em segundo lugar,
na devoção ao Senhor como princípio vivificante da sua organiza­
ção comunitária.
«Üs cristãos», diz o escritor, «não se distinguem dos outros
homens pelo país, pela linguagem ou pelos costumes. Não vivem
em cidades somente suas, não falam um dialecto particular nem
adoptam modos estranhos de vida. Habitam nas suas cidades de
origem, mas como residentes temporários; em tudo participam
como os outros cidadãos, e tudo suportam, como se estranhos fos­
sem. Nos países estrangeiros encontram uma pátria e, em cada
casa, vêem um país estrangeiro. Contraem matrimónio como os
outros homens, mas não abandonam os seus filhos. Obedecem às
leis estabelecidas, mas vão além delas no teor das suas vidas. Amam
toda a gente e por toda a gente são perseguidos; não são conheci­
dos, mas são condenados; são pobres e enriquecem muitos; são
desprezados, mas no desprezo encontram a glória; são difamados,
mas inocentes; são amaldiçoados, e abençoam. Pelos Judeus são
atacados como estrangeiros, pelos Gregos são perseguidos, e aque­
les que os odeiam não sabem dizer a causa do seu ódio.

U m a G r a m á t i c a d o Asse n t i m e n t o • 455
«Os cristãos estão no mundo como a alma no corpo. A alma
encontra-se nos membros do corpo, e os cristãos nas cidades do
mundo. A carne odeia a alma e combate contra ela, embora não
sofra a partir dela mal algum; e o mundo odeia os cristãos. A alma
ama a carne que a odeia, os cristãos amam os seus inimigos. A sua
tradição não é uma invenção terrena, nem mortal é o pensamento
que eles tão cuidadosamente conservam, nem a seu cargo foi confia­
da uma dispensação de mistérios humanos; antes o próprio Deus, o
Omnipotente e o Criador Invisível, estabeleceu, a partir dos céus,
entre os homens a Sua Verdade e a Sua Palavra, o Santo e Incom­
preensível, e gravou-a profundamente nos seus corações; nem, como
seria de esperar, enviou um servo qualquer, anjo ou príncipe, ou um
administrador das coisas terrestres ou celestes, mas o próprio Artífice
e Demiurgo do Universo. Deus enviou-O ao homem, não para infli­
gir terror, mas na clemência e na gentileza, tal como um Rei envia
um Rei que é o Seu Filho; enviou-O como Deus aos homens, a fim
de os salvar. Não nos odiou, não nos rejeitou, não se recordou da
nossa culpa, mas revelou-Se como magnânimo e paciente e, nas Suas
próprias palavras, suportou os nossos pecados. Entregou o seu pró­
prio Filho como resgate por nós, o j usto pelos injustos. Pois que
outra coisa, excepto a Sua Santidade, poderia cobrir a nossa culpa?
Em quem seria possível, para nós, pecadores maldosos, encontrar
justificação, excepto no Filho de Deus? Ó doce troca! Ó obra divina
que excede toda a compreensão! Ó benefícios que superam toda a
expectativa! Ao enviar, pois, um Salvador, que pode salvar aqueles
que por si mesmos são incapazes de salvação, quis Ele que O consi­
derássemos como nosso Guardião, Pai, Mestre, Conselheiro, Médi­
co; nossa Mente, Luz, Honra, Glória, Força e Vida>> l .

I Ep. ad Diognet.

45 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
O escrito que citei provém da primeira metade do século II.
Vinte ou trinta anos depois, o mártir S. Justino menciona, com a
mesma energia, a difusão da nova religião: «Não há nenhuma raça
de homens», diz ele, «bárbaros ou Gregos, e ainda daqueles que
vivem em carros ou que são nómadas, ou pastores em tendas, entre
os quais as preces e a Eucaristia não sejam oferecidas ao Pai e ao
Criador do universo, por meio do nome de Jesus crucificado» .
Cerca do final do século, escreve Clemente: <<A palavra d o nos­
so Mestre não permaneceu na Judeia, como a filosofia se manteve
na Grécia, mas difundiu-se por todo o mundo, convencendo ao
mesmo tempo Gregos e bárbaros, raça após raça, aldeia após aldeia,
todas as cidades, casas inteiras, e os ouvintes um a um, mais ainda,
e não poucos dos próprios filósofos».
E j ustamente no seu termo, Tertuliano, na Apologia, chegou ao
ponto de ameaçar o Governo Romano: «Somos um povo de on­
tem», afirma; «e, todavia, chegámos a todos os lugares que vos per­
tencem, cidades, ilhas, castelos, lugarejos, assembleias, até os vossos
acampamentos, às vossas tribos, companhias, palácios, ao senado e
ao foro. Apenas deixámos de fora os vossos templos. Podemos con­
tar os vossos exércitos, e os nossos números numa só província serão
ainda maiores. Em que guerra convosco não seríamos suficientes e
estaríamos dispostos, embora desiguais em números, que tão pronta­
mente são condenados à morte, se nesta religião não fosse mais legí­
timo ser morto do que matar?»
Escutemos, mais uma vez, o grande Orígenes, na primeira
metade do século seguinte: «Em toda a Grécia e em todas as raças
bárbaras no interior do nosso mundo, há dezenas de milhares que
deixaram as suas leis nacionais e os deuses tradicionais pela lei de
Moisés e pela palavra de Jesus Cristo; embora aderir a esta lei seja
incorrer no ódio dos idólatras e, além disso, se corra o risco da mor­
te por se ter abraçado esta palavra. E considerando como, em tão

U m a G r a m á t i c a do Assen t i m e n t o • 457
poucos anos, apesar dos ataques que nos foram feitos, com perda
da vida ou da propriedade, e sem um grande número de mestres, o
anúncio desta palavra abriu o seu caminho em todas as partes do
mundo, pelo que Gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, aderem à
religião de Jesus, trata-se, sem dúvida, de uma obra mais grandiosa
do que qualquer obra do homem».
Não precisamos de nenhuma demonstração para nos garantir
que o incessante e rápido crescimento do cristianismo foi um fenó­
meno que impressionou os seus contemporâneos, tal como agora
excita a curiosidade dos historiadores filosóficos; e também eles
tiveram então os seus modos peculiares de o explicar, diferentes
sem dúvida do de Gibbon, mas igualmente pertinentes, embora
menos elaborados. Foram sobretudo dois e levaram ambos a perse­
gui-lo - a obstinação dos cristãos e os seus poderes mágicos; o
primeiro era a explicação adaptada pelas mentes cultas, e o último
sobretudo pela populaça.
Quanto ao primeiro, desde o início até ao fim, os homens no
poder reprovam com autoridade a obstinação insensata dos mem­
bros da nova seita, como a sua ofensa característica. Plínio, como
vimos, encontrou nela a sua única falta, mas suficiente para mere­
cer a pena capital. Segundo parece, o imperador Marco [Aurélio]
considerou a obstinação como a derradeira causa - motivo a que
se devia atribuir a sua conduta antinatural. Depois de ter falado da
alma, como «pronta, se houver agora de se separar do corpo, a
extinguir-se, a dissolver-se ou a permanecer com ele», acrescenta,
«mas a prontidão deve nascer do seu juízo pessoal, não da simples
perversidade, como no caso dos cristãos, antes com reflexão, com
gravidade, sem efeito teatral, para ser persuasiva». E Diocleciano,
no seu Édito de perseguição, declara ser seu «objectivo mais sério
punir a persistência depravada destes malditos homens».

458 • J o h n H e n ry N e w m a n
Quanto à última acusação, dizia-se que o seu fundador adqui­
rira um conhecimento da magia no Egipto e deixara depois de si,
nos seus livros sagrados, os segredos da arte. O próprio Suetónio re­
fere-se aos cristãos como a «homens de uma superstição mágica»; e
Celso acusa-os de «encantações em nome dos demónios». O guarda
que tinha a seu cargo a custódia de Santa Perpétua receava que
ela fugisse da prisão «mediante encantamentos mágicos». Quando
S. Tibúrcio caminhou descalço sobre carvões ardentes, o seu juiz cla­
mou que Cristo lhe ensinara a magia. Santa Anastásia foi metida na
prisão como administradora de venenos; a populaça bramiu contra
Santa Inês, «Fora com a bruxa! Fora com a feiticeira!» Quando S.
Bonoso e S. Maximiliano suportaram o alcatrão ardente sem se
contrair, Judeus e pagãos gritaram «Bruxos e feiticeiros!» «Que
nova ilusão», pergunta o magistrado acerca de S. Romano, no Hino
de Prudêncio, «entrou nestes sofistas, que negam o culto dos deu­
ses? Como é que este feiticeiro mofa de nós, industriado pelo seu
encantamento tessálio a rir do castigo?»!
É, de facto, difícil penetrar nos sentimentos de irritação e temor,
de desprezo e espanto, suscitados quer na população das cidades
quer nos magistrados, frente a uma conduta tão inédita, tão inva­
riável, tão absolutamente para lá da sua compreensão. Os muito
jovens e os muito velhos, a criança, o jovem no vigor das suas pai­
xões, o homem sereno de meia-idade, as donzelas e as mães de
famílias, campónios e escravos, filósofos e nobres, crentes solitários
e grupos de homens e de mulheres - todos eles eram igualmente
vistos a desafiar os poderes das trevas para fazer o seu pior. Neste
estranho encontro tornou-se um ponto de honra para o Romano
quebrar a determinação da sua vítima, e o triunfo da fé deu-se quan-

1 Essay on Devewpment ofDoctrine, cap. IV, § 1 .

U m a G r a m á t i c a d o Assen t i m e n t o • 459
do os seus mais selvagens expedientes para esse objectivo foram
visivelmente em vão. Os mártires crispavam-se perante os sofri­
mentos como os outros homens, mas tal crispação natural era
incomensurável com a apostasia. Nenhuma intensidade da tortura
conseguia afectar o que era uma convicção mental; e o pensamento
soberano em que eles viveram foi o seu apoio adequado e a sua
consolação na morte. Para eles, a perspectiva das feridas, a perda
dos membros não era mais terrível do que é para o combatente
deste mundo. Enfrentaram os instrumentos de tortura como o sol­
dado ocupa o seu lugar frente à artilharia do inimigo. Rejubilaram
e correram ao encontro do seu ataque, e como se ele tivesse a cora­
gem, como haveria de ter, de destruir os números que se juntaram
à fila mais avançada, como os seus camaradas que impediram a sua
ruptura. E, por fim, quando Roma descobriu que tinha de lidar
com um exército de Cévolas, então a mais orgulhosa das sobera­
nias terrestres, adornada com a plenitude dos seus recursos mate­
riais, humilhou-se perante um poder que assentava num simples
sentido do invisível.
No diálogo do ancião Inácio, discípulo dos Apóstolos, com o
imperador Trajano, temos uma espécie de tipo do que ocorreu
durante três ou, melhor, quatro séculos. Foi mandado de Antio­
quia para Roma, a fim de ser devorado pelas feras no anfiteatro. Ao
longo do caminho, escreveu cartas a várias Igrejas cristãs e, entre
outras, aos seus irmãos romanos, no meio dos quais iria sofrer.
Vejamos se, como afirmei, a imagem do Rei Divino, prometido
desde o início, não seria o princípio vivo da sua resolução obstina­
da. O ancião é quase ameaçador na sua determinação ao martírio.
«Oxalá as feras», diz aos seus irmãos, «sejam o meu prémio, pois já
estão prontas para mim! Hei-de desafiá-las, gritar-lhes-ei para
depressa me devorarem, para não terem medo de mim, pois alguns

460 • J o h n H e n ry Newman
há em quem elas não tocam. Se não se mostrarem dispostas, obri­
gá-las-ei. Sede pacientes comigo; sei qual é o meu galardão. Come­
ço agora a ser um discípulo. Não tenho ambição alguma das coisas
visíveis ou invisíveis, excepto para ganhar Cristo. Seja o fogo ou a
cruz, o ataque das feras selvagens, a fractura dos meus ossos, seja o
esmagamento dos meus membros, a contracção de todo o meu
corpo, que as torturas do demónio caiam todas sobre mim, se é
apenas para alcançar Jesus Cristo». Noutros lugares, na mesma
epístola, diz, «Escrevo-vos, ainda vivo, mas anelando pela morte.
O meu amor está crucificado! Não tenho gosto pelo alimento
perecível. Anseio pelo Pão de Deus, pelo Pão celeste, pelo Pão da
vida, que é a Carne de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Anseio pela
água viva de Deus, pelo seu Sangue, que é o Amor sem corrupção
e a Vida para sempre» . Diz-se que quando ele chegou à presença
de Trajano este gritou, «Quem és tu, pobre diabo, que estás tão
desejoso de transgredir as nossas regras?» «Não é esse o nome», res­
pondeu ele, «para Teóforo». «Quem é Teóforo?», perguntou o
imperador. «Aquele que traz Cristo no seu peito». Nas palavras do
Apóstolo, já citadas, ele trazia «Cristo em si, a esperança da glória» .
Tudo isto se pode denominar entusiasmo; mas o entusiasmo pro­
porciona uma explicação muito mais adequada da confissão de um
ancião do que a cinco razões de Gibbon.
Exemplos do mesmo espírito ardente e da fé viva, em que ele
assentava, se encontrarão onde quer que abramos as Acta Martyrum.
Em plena perseguição em Esmirna, em meados do século II, no
meio de torturas que até comoviam os espectadores pagãos, as víti­
mas fizeram-se notar pela sua calma serena. «Fizeram ver a todos»,
diz a Carta da Igreja, «que, no meio desses sofrimentos, eles esta­
vam ausentes do corpo, ou antes, que o Senhor estava a seu lado e
caminhava no meio deles».

U m a G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 461
Nessa mesma altura, Policarpo, o amigo familiar de S. João, e
contemporâneo de Inácio, sofreu na sua extrema velhice. Quando,
perante a sua sentença, o . procônsul lhe ordenou «jurar pela fortuna
de César e abandonar Cristo», a sua resposta revelou a íntima devo­
ção à mesmíssima Ideia, que fora vida interior de Inácio. «Durante
oitenta e seis anos», respondeu, «fui seu servo, e Ele nunca me enga­
nou, mas sempre me protegeu; como posso blasfemar o meu Rei e o
meu Salvador?» Quando o prendiam à fogueira, afirmou, «Deixai lá;
aquele que me dá força para suportar o fogo, dar-me-á também for­
ça para me aguentar firme na fogueira, sem os vossos pregos».
Os cristãos consideraram como um serviço agradável Àquele
que os amou professar a fé com coragem e sofrer com dignidade.
Neste espírito cavaleiresco, como assim se pode designar, enfrenta­
ram as palavras e os actos dos seus perseguidores, tal como os
filhos dos homens respondem à dureza com a dureza e a um golpe
com outro golpe. «Que soldado», diz Minúcia, «não desafiará o
perigo com maior ousadia debaixo dos olhos do seu comandante?»
Na mesma perseguição de Esmirna, quando o procônsul instou o
jovem Germânico a ter pena de si e da sua juventude, para espanto
da multidão, excitou a fera selvagem a atacá-lo. De igual modo, S.
Justino diz-nos de Lúcio que, ao 'ver um cristão submetido à tortu­
ra, de imediato reprovou duramente o juiz, e foi com aquele envia­
do à execução; e, em seguida, outro se apresentou e também ele foi
cond�nado. Quando os cristãos foram metidos na prisão, na cruel
perseguição em Leão, Vettius Epagathus, um jovem distinto que se
entregara a uma vida ascética, não conseguiu suportar a vista dos
sofrimentos dos seus irmãos, e pediu licença para defender a sua
causa. A única resposta que obteve foi ser condenado a morrer em
primeiro lugar. O que o relato contemporâneo vê na sua conduta
não é que ele mostrou zelo pelos seus irmãos, embora assim fosse,

462 • John H e n·ry Newman


nem que acreditou em milagres, embora decerto acreditasse; mas
que ele «foi um discípulo gracioso de Cristo, seguindo o Cordeiro
para onde quer que Ele fosse».
Nessa memorável perseguição, quando Biandina, uma escrava,
foi encarcerada por causa da sua fé, a sua senhora e os seus compa­
nheiros cristãos recearam que ela, em virtude da sua constituição
delicada, cedesse debaixo dos tormentos; fatigou, isso sim, os seus
torturadores. Foi uma alegria e um alívio ouvi-la gritar no meio
das suas dores, «Sou cristã». Meteram-na outra vez na prisão e, em
seguida, sujeitaram-na a novos sofrimentos, durante mais dois dias.
No último, viu ela um jovem de quinze anos ser arrastado para o
anfiteatro a fim de morrer; receou por ele, como outros por ela
tinham receado; mas também ele suportou generosamente a sua
prova e foi para Deus antes dela. Os últimos sofrimentos de Bian­
dina consistiram em ser colocada na conhecida cadeira de ferro em
brasa e, em seguida, ser exposta numa rede a um touro selvagem;
acabaram por lhe cortar a garganta. Também Sanctus, quando as
chapas de metal ardente foram aplicadas aos seus membros, no meio
do.s tormentos apenas clamou, «Sou cristão», e permaneceu de pé e
firme, «banhado e fortalecido», dizem os seus irmãos que escreveram
o relato, «na fonte celeste da água viva que jorra do peito de Cristo»
ou, como noutro lugar se afirma de todos os mártires, «refrescado
com a alegria do martírio, a esperança da bem-aventurança, o amor
a Cristo e o espírito de Deus Pai». Com que claridade todos vemos,
nesta narrativa, aquilo que os fortaleceu para o combate! Se amam
os seus irmãos, é na companhia do seu Senhor; se olham para os
céus, é porque Ele é a sua luz.
Epipodius, jovem de educação esmerada, quando ferido na boca
pelo Prefeito, clamou, enquanto o sangue dela escorria, «Confesso
que Jesus Cristo é Deus, juntamente com o Pai e o Espírito Santo».

U m a G r a m á t i c a d o Ass e n t i m e n t o • 463
Sinforiano, de Autun, também ele jovem e de nobre nascimento, ao
ser-lhe dito para adorar um ídolo, respondeu, «Dai-me licença e,
com um martelo, o reduzirei a cacos». Quando Leónidas, pai do
jovem Orígenes, foi metido na prisão por causa da sua fé, o filho,
então com dezassete anos, desejou ardentemente partilhar o seu
martírio, e a sua mãe teve de esconder as suas vestes para o impedir
de levar a cabo o seu propósito. Em seguida, acompanhou os con­
fessores na prisão, defendeu-os no tribunal e deu-lhes o beijo da
paz quando os levaram para sofrer, e isto, apesar de ter sido preso
várias vezes e ter sido posto no cavalete de tortura. Também em
Alexandria, a bela escrava Potamiena, no momento de ser despida
para ser lançada à caldeira de alcatrão ardente, disse ao Prefeito,
«Rogo que me deixes mergulhar nela lentamente com os meus ves­
tidos, e verás com que paciência sou agraciada por Aquele que des­
conheces, Jesus Cristo». Quando a multidão, na mesma cidade,
partiu os dentes da idosa Apolónia, e acendeu uma fogueira para a
queimar, a não ser que blasfemasse, ela própria saltou para a fogueira
e assim alcançou a sua coroa. Quando Sixto, bispo de Roma, era
conduzido ao martírio, o seu diácono, Lourenço, seguiu-o chorando
e lamentando-se, «Ó meu pai, para onde vais sem o teu filho?» E
quando, três dias depois, a sua vez chegou, foi posto na grelha e,
passado um momento, disse ao Prefeito, «Vira-me; este lado j á está
pronto». Donde proveio o espírito tremelicas, receoso e, além dis­
so, ofensivo, a crítica entediosa dos nossos dias molificativos? Jul­
gará Gibbon sondar as profundezas do oceano eterno com a fita e
o metro da sua filosofia simplesmente literária?
Quando Bárulas, uma criança de sete anos, foi açoitado até
sangrar por repetir o seu catecismo diante do juiz pagão - a saber,
«Há um só Deus, e Jesus Cristo é verdadeiro Deus» - a sua mãe
encorajou-o a perseverar, censurando-o por pedir de beber. Em

464 • J o h n H e n ry N e w m a n
Mérida, uma jovem de nobre família, com doze anos de idade,
apresentou-se diante do tribunal e derrubou os ídolos. Foi flagela­
da e queimada com archotes; não derramou uma lágrima nem
mostrou outros sinais de sofrimento. Quando o fogo chegou à sua
face, abriu a boca para o receber e foi sufocada. Em Cesareia, uma
donzela, que ainda não tinha dezoito anos, foi, cheia de coragem,
pedir as orações de alguns cristãos que estavam presos diante do
pretório. Foi de imediato presa, rasgados e abertos com ancinhos
de ferro os seus lados, mantendo ela durante esse tempo uma
expressão viva e alegre. Pedro, Doroteu e Gorgónio eram moços da
câmara imperial; eram altamente considerados pelos seus mestres e
eram cristãos. Sofreram também tormentos horríveis, morrendo
no meio deles, sem uma sombra de vacilação. Chamai loucura, se
quiserdes, ou magia a semelhante conduta: mas não mofeis de nós,
atribuindo-a em tais crianças apenas ao simples desejo de imortali­
dade ou a qualquer organização eclesiástica.
Quando a perseguição grassava na Ásia, uma grande multidão
de cristãos apresentou-se diante do procônsul, desafiando-o a agir
contra eles. «Desgraçados!», respondeu ele, em parte por desprezo
e em parte com horror, «Se tendes de morrer, não podereis para tal
encontrar cordas ou um precipício?» Em Útica, cento e cinquenta
cristãos de ambos os sexos e de todas as idades foram mártires num
só grupo. Segundo se diz, foi-lhes pedido para queimar incenso a
um ídolo, ou então seriam atirados a um poço de cal viva; sem
hesitação, saltaram para dentro dele. No Egipto, cento e vinte con­
fessores, depois de terem suportado a perda dos olhos ou dos pés,
conseguiram prolongar as suas vidas nas minas da Palestina e da
Cilícia. Na última perseguição, segundo o testemunho do austero
Eusébio, um contemporâneo, o massacre de homens, de mulheres
e crianças prosseguiu às vintenas, em grupos de sessenta, às cente-

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 465
nas, até que os instrumentos de execução ·deram de si e os algozes
não conseguiram matar mais. Contudo, diz-nos ele, como teste­
munha ocular, que, mal alguns cristãos eram condenados, outros
acorriam de todas as partes e rodeavam os tribunais, confessando a
fé, aceitando com alegria a sua condenação e entoando cânticos de
acção de graças e de triunfo até ao fim.

Foi assim que o poder romano foi vencido. Foi assim que a Semente
de Abraão e a Expectativa dos Gentios, o manso Filho do Homem,
«tomou posse do Seu grande poder e reino» nos corações do Seu
povo, no teatro público do mundo. O modo como a profecia anti­
ga se cumpriu é tão maravilhoso quanto a profecia é em si clara e
ousada.
«Que todos os Teus inimigos pereçam, Senhor; mas que o teu
amor para eles brilhe, como o sol brilha na aurora!»

Acrescentarei as palavras memoráveis dos dois grandes Apologistas


da época:
<<A vossa crueldade», diz Tertuliano, «embora cada acto seja
mais refinado do que o último, de nada vos aproveita. É antes um
estímulo para a nossa seita. Crescemos em números cada vez maio­
res, todas as vezes que vós nos dizimais. O sangue dos mártires é a
sua semente para a colheita».
Orígenes usa, inclusive, a linguagem da profecia. À objecção de
Celso de que o cristianismo, desde início, abriria, por si só, todo o
império à irrupção dos bárbaros e à extrema ruína da civilização,
replica o seguinte: «Se todos os Romanos fossem como nós, então
também os bárbaros se aproximariam da Palavra de Deus e se tor-

46 6 • J o h n H e n ry Newman
nariam os maiores respeitadores da Lei. Todo o culto se reduziria a
nada, e apenas o dos cristãos predominaria, pois a Palavra vai con­
tinuamente conquistando cada vez mais almas» .
Uma observação adicional: - Era j usto que aquelas multidões
heterogéneas e iletradas, que durante três séculos sofreram e triun­
faram em virtude da Visão interior do seu divino Senhor, fossem
escolhidas, como sabemos que foram, no século IV, para ser os
campeões especiais da Sua Divindade e os adversários vitoriosos
dos seus impugnadores, numa época em que o poder civil, que os
considerava demasiado fortes pelas suas armas, tentou, mediante
uma ominosa heresia nas altas esferas da Igreja, subtrair-lhes a Ver­
dade que, durante todo esse tempo, fora o princípio da sua força.

ro. Excluí, até aqui, o pensamento com que porei fim a estas consi­
derações acerca do cristianismo; deixei-o forçosamente de lado,
porque ele surge de modo oportuno em primeiro lugar, embora o
curso da minha argumentação me não tenha permitido introduzi­
-lo no seu lugar natural. A Revelação começa onde a Religião natu­
ral fracassa. A Religião da Natureza é um simples começo, necessita
de um complemento - só pode ter um único complemento, e
este complemento genuíno é o cristianismo.
A Religião Natural baseia-se no sentido do pecado; reconhece a
doença, mas não consegue descobrir, busca apenas o remédio. Este
remédio, para a culpa e para a impotência moral, encontra-se na
doutrina central da Revelação, a Mediação de Cristo. Não preciso de
abordar um tema tão familiar a todos os homens num país cristão.
É por isso que o cristianismo é a realização da promessa feita a
Abraão e das revelações moisaicas; foi assim que ele, desde início,
conseguiu encher o mundo e implantar-se em toda a classe. de

Uma G r a m á t i c a d o As s e n t i m e n t o • 467
sociedade humana onde chegaram os seus pregadores; foi por isso
que o poder romano e as muitas religiões nele contidas lhe não
conseguiram resistir; é este o segredo da sua constante energia e
dos seus incessantes martírios; eis porque ele, no presente, é tão
misteriosamente poderoso, apesar dos novos e temíveis adversários
que o assaltam no seu caminho. Tem em si o dom de estancar e
sarar a única ferida profunda da natureza humana - o que redun­
da mais no seu êxito do que uma enciclopédia completa do conhe­
cimento científico e uma biblioteca inteira de controvérsia e, por
conseguinte, ele há-de durar enquanto durar a natureza humana. É
uma verdade viva que jamais envelhecerá.
Pessoas há que falam dele como se já fosse uma coisa da histó­
ria, com influências só indirectas nos tempos modernos; não posso
admitir que ele seja uma simples religião histórica. Tem, sem dúvi­
da, os seus fundamentos em memórias passadas e gloriosas, mas o
seu poder encontra-se no presente. Não é uma questão deprimente
de antiquário; não o vislumbramos em conclusões tiradas de docu­
mentos mudos e de acontecimentos mortos, mas pela fé exercida
em objectos sempre vivos, pela apropriação e pelo uso de dons
sempre recorrentes.
A nossa comunhão com ele reside no invisível, não no obsole­
to. Mesmo hoje, os seus ritos e preceitos suscitam continuamente a
interposição activa desta Omnipotência em que a Religião já há
muito teve o seu começo. Primeiro e acima de tudo, temos a Santa
Missa, em que Aquele que outrora por nós morreu na Cruz renova
e perpetua, pela Sua presença literal, o único e idêntico sacrifício
que se não pode repetir. Em seguida, temos a Sua entrada efectiva,
em corpo, alma e divindade, na alma e no corpo de cada fiel que
dEle se aproxima à busca do dom, de um privilégio mais íntimo
do que se com Ele vivêssemos durante a Sua jornada na terra, já há

468 • John H e n ry Newman


muito passada. Temos, além disso, a sua permanência pessoal e
contínua nas nossas igrejas, elevando o culto terrestre ao antegosto
dos céus. Tal é o mister do cristianismo e, repito, a sua genuína
adivinhação das nossas necessidades é em si uma prova de que ele
realmente as satisfaz.
Às doutrinas que mencionei como verdades nucleares, outras,
como todos sabemos, se seguem, que regem a nossa conduta pes­
soal, o nosso trajecto de vida, as nossas relações sociais e civis. O
Libertador prometido, a Esperança das nações, não fez a meias a
Sua obra. Deu-nos Santos e Anjos para nossa protecção. Ensinou­
-nos como, mediante orações e actos de culto, ajudamos os nossos
amigos falecidos e preservamos um memorial de nós mesmos,
quando morrermos. Criou uma hierarquia visível e uma sucessão
dos sacramentos, para serem os canais das Suas graças; o Crucifixo
garante a Sua evocação em cada casa e em cada quarto. Em todos
estes modos se apresenta Ele a Si mesmo diante de nós. Não men­
ciono aqui os seus dons enquanto dons, mas enquanto memoriais;
não quanto àquilo que os cristãos sabem que eles comunicam, mas
ao seu carácter visível; e digo que, enquanto a natureza humana
continuar viva e activa, como sempre esteve, assim também Ele
vive, para as nossas imaginações, graças aos seus símbolos visíveis,
como se estivesse na terra, com uma eficácia prática que até os des­
crentes não podem negar, pelo que o correctivo desta natureza, a
sua força dia após dia - este poder de perpetuar a Sua imagem,
sendo ao mesmo tempo singular e especial, e Sua prerrogativa
exclusiva, é uma grandiosa evidência de como Ele cumpre bem, até
hoje, a Missão Soberana que, desde o primeiro começo da história
do mundo, Lhe foi atribuída na profecia.
Não posso ilustrar melhor este argumento do que recorrendo a
um pensamento profundo acerca do cristianismo, que já há muito

U m a G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 46 9
atraiu a atenção dos filósofos e dos pregadoresl , e porque provém do
homem admirável que dirigiu os destinos da Europa nos primeiros
anos deste século. Era um argumento natural e consistente em
alguém que teve a paixão especial pela glória humana, incentivo de
tantas carreiras heróicas e de tão poderosas revoluções na história do
mundo. No isolamento da sua prisão, e perante a visão da morte,
parece ter-se expresso a si mesmo com o efeito seguinte:
<<Acostumei-me a pôr diante de mim os exemplos de Alexan­
dre e de César, com a esperança de igualar os seus feitos e de viver
nas mentes dos homens para sempre. Mas, ao fim e ao cabo, em
que sentido continua César ou Alexandre a viver? Quem conhece
ou se preocupa alguma coisa a seu respeito? Quando muito, ape­
nas se conhecem os seus nomes; pois, quem é que, entre a multi­
dão dos homens, ouve ou pronuncia os seus nomes, conhece
realmente alguma coisa acerca das suas vidas ou dos seus feitos, ou
associa a esses nomes qualquer ideia definida? Além disso, até os
seus nomes nutam e oscilam para cima e para baixo no mundo
como espectros, mencionados apenas em ocasiões particulares ou
em virtude de associações acidentais. O seu lugar principal é a sala
de aula; têm um lugar privilegiado nas gramáticas e nos livros de
exercícios dos jovens; são exemplos esplêndidos para temas; origi­
nam cópias escritas. Tão baixo caiu o heróico Alexandre, tão baixo
o César imperial, ut pueris placeat et declamatio jiat2.
«Mas, pelo contrário» (prosseguiu ele, segundo se conta) , «em
todo o mundo, existe apenas um nome que continua a viver; é o
Nome de Alguém que passou os Seus anos na obscuridade e teve
uma morte de malfeitor. Dezoito séculos decorreram desde esse tem-

1 Fr. Lacordaire e M. Nicolas.


2 «Para que agrade às crianças e se faça a proclamação».

4 70 • J o h n H e n ry Newman
po, mas esse nome ainda persiste na mente humana. Tomou posse
do mundo e mantém essa posse. No meio das mais diversas nações,
sob as mais diversificadas circunstâncias, nas raças e nos intelectos
mais cultos ou mais rudes, em todas as classes da sociedade, o
Detentor desse grande Nome reina. Reconhecem-No grandes e
pequenos, ricos e pobres. Milhões de almas falam familiarmente
com Ele, arriscam-se pela Sua palavra, buscam a Sua Presença. Ele­
vam-se em sua honra palácios sumptuosos e inumeráveis; a Sua ima­
gem, como na hora da Sua mais profunda humilhação, é exibida
triunfantemente na cidade garbosa, no campo aberto, nas esquinas
das ruas, no cimo das montanhas. Santifica o átrio ancestral, a sala, o
quarto de dormir; é o tema para o exercício do mais elevado génio
nas artes imitativas. É usado junto do coração durante a vida; é sus­
tido diante dos olhos que se apagam na morte. Eis, pois, Alguém
que não é um simples nome, que não é uma mera ficção, que é uma
realidade. Morreu e partiu, mas ainda vive - vive como um pensa­
mento vivo, energético, de gerações sucessivas, como o tremendo
poder impulsionador de mil acontecimentos grandiosos. Fez sem
esforço o que outros, com lutas vitalícias, não conseguiram. Pode Ele
ser menos do que Divino? Quem é Ele, senão o próprio Criador;
que é soberano sobre as Suas próprias obras, para quem os nossos
olhos e os nossos corações instintivamente se viram, porque Ele é o
nosso Pai e o nosso Deus?» I
Ponho aqui fim aos meus exemplos, entre os muitos que se
poderiam fornecer, dos argumentos aduzíveis a favor do cristianis­
mo. Insisti neles de modo a mostrar como eu aplicaria os princípios
deste Ensaio à demonstração da sua origem divina. O cristianismo,
quanto às suas evidências e aos seus conteúdos, dirige-se a mentes

1 Occas. Sermons.

U m a G r a m á. t i c a do A s s e n t i m e n t o • 47 1
que estão na condição normal da natureza humana, como acreditan­
do em Deus e num juízo futuro. Dirige-se a essas mentes através
do intelecto e da imaginação; suscitando uma certeza da sua verdade
mediante argumentos demasiado diversos para uma enumeração
directa, demasiado pessoais e profundos para as palavras, demasiado
poderosos e convergentes para a refutação. Nem a razão precisa de
vir em primeiro lugar e a fé em segundo (embora seja esta a ordem
lógica) , mas um só e mesmo ensinamento é, em aspectos diferen­
tes, objecto e demonstração, e suscita um acto complexo de infe­
rência e de assentimento. Fala a cada um de nós, por cada um de
nós é recebido, como a contrapartida, por assim dizer, de nós mes­
mos, e é real como reais somos nós.
Nas palavras sagradas que o seu Divino Autor e Objecto disse
de Si mesmo: «Eu sou o Bom Pastor, e conheço os Meus e os Meus
conhecem-Me. As minhas ovelhas escutam a Minha voz, e Eu conhe­
ço-as, e elas seguem-Me. E dou-lhes a vida eterna, e elas não pere­
cerão; e ninguém as tirará da Minha mão».

47 2 • J o h n H e n ry Newman
NOTAS
Nota 1

Sobre Hooker e Chillingworth, vide supra 235.

1 . A propósito da primeira publicação deste volume, um Correspondente fez o

favor de me indicar uma lista de passagens na famosa obra de Chillingworth,


além da que eu próprio citei, em que mais ou menos se propunha o argumento
para o qual chamei a atenção no cap. VII § 2, p. 23 1 . Ele fê-lo com o propósito
de mostrar que o significado de Chillingworth, quando cuidadosamente exami­
nado, se revelará em acordo substancial com a distinção que eu próprio fiz entre
infalibilidade e certeza; as inexactidões de linguagem em que ele caiu, por esta­
rem necessariamente implicadas no argumentum ad hominem, que ele apresenta­
va ao seu opositor, ou por serem o resultado acidental do carácter peculiar do
seu intelecto, que, embora cheio de ideias, carecia de serenidade e de circuns­
pecção, que são bem evidentes no Bispo Butler. Outros mais familiarizados com
Chillingworth do que eu decidirão a este respeito; mas não posso recusar-me a
aceitar uma explicação, que priva os controversistas actuais da autoridade de
uma mente vigorosa e subtil no seu uso de um argumento que, decerto, assenta
numa grande confusão do pensamento.
Junto as referências que o meu Correspondente me forneceu:

( 1 .) Passagens que tendem a mostrar um acordo da opinião de Chilling­


worth acerca da distinção entre certeza e infalibilidade com a que foi estabeleci­
da no ensaio precedente:
1 . «Religion of Protestants», cap. II § 1 2 1 (vol. I, p. 243, Oxf. Ed. 1 838),
«For may not a private man», etc.
2. Ibid. § 1 52. Contudo, a última frase, depois de «when they thought
they dreamt», cai no erro que ele estivera a expor.

Uma G r a m á t i c a do Ass e n t i m e n t o • 47 5
3. Jbid. § 1 60 (p. 275 ) .
4. Cap. I I I § 2 6 ( p . 332) , «Neither i s your argument», etc.
5. Jbid. § 36 (p. 346) .
6. Jbid. § 50 (p. 363) , «That Abraham», etc.
7. Cap. V § 63 (vol. II, p. 2 1 5) .
8. Jbid. § 1 07 (p. 265 ) .
9. Cap. VII § 1 3 (p. 452) .
Vide também vol. I, pp. 1 1 5 , 1 2 1 , 1 96, 236, 242, 4 1 1 .

(2.) Passagens inconsistentes com as anteriores:


1 . Cap. II § 25 (vol. I, p. 1 77) . Um argumentum ad hominem.
2. Jbid. § 28 (p. 1 80) .
3. Jbid. § 45 (p. 1 89) . Um argumentum ad hominem.
4. Jbid. § 149 (p. 263 ) . Um argumentum ad hominem.
5. Jbid. § 1 54 (p. 267) . Citado no texto, p. 1 84.
6. Cap. V § 45 (vol. II, p. 39 1 ) . Ele argumenta na base dos princípios do
adversário.

2. Devo também expressar a minha gratidão a outro correspondente, que cha­


mou a minha atenção para uma passagem de Hooker (Eccles. PoL II, 7) , cujo
início é <<An earnest desire», etc. , e que aparentemente antecipa a doutrina de
Locke acerca de certeza. É tão difícil estar certo do significado de um escritor
cujo estilo destoa muito do da nossa própria época que hesito em tentar trans­
formar esta passagem em afirmações categóricas. Além disso, tenho de pergun­
tar, não pressuporá Hooker aqui a certeza absoluta da inspiração e da autoridade
divina da Escritura, não acreditará ele que o seu ensinamento é a genuína verda­
de, incondicionalmente e sem qualquer mescla de dúvida? Ademais, que tinha
ele, a não ser a evidência provável como uma garantia de semelhante concepção
a seu respeito? Acolheu, porventura, o Credo de S. Atanásio na base de uma
demonstração lógica de que os seus artigos estavam na Escritura? Todavia, j ul­
gou-se capaz, sem qualquer suspeita, de dizer em voz alta na comunidade, «Só
quem preserve essa fé inteira e incorrupta, não perecerá, sem dúvida, eternamen­
te». É, de facto, uma feliz inconsistência da sua escola ser mais ortodoxa nas suas
conclusões do que nas suas premissas; ser céptica nas suas teorias no papel e
crente na suas próprias pessoas.

47 6 • J o h n H e n ry N e w m a n
3. Também um amigo me envia uma palavra acerca da controvérsia relativa às
diversas leituras de Shakespeare, que eu referi (supra, cap. VIII § 1 , p. 2 1 7) para
ilustrar as deficiências da Inferência Formal; desde a data do artigo na revista,
que eu utilizara, o veredicto dos críticos fora desfavorável à auroridade e ao valor
da Cópia Anotada, descoberta vinte anos antes. Posso acrescentar que, desde a
minha primeira edição, tive o prazer de ler a interessante dissertação do Dr.
Ingleby sobre os «Vestígios da autoria das obras atribuídas a Shakespeare».

Nota I I

Sobre a alternativa intelectual entre o ateísmo e a catolicidade,


vide supra p. 1 60, etc., Dezembro, 1880.

Como estou prestes a enviar para o prelo as últimas páginas da nova edição des­
te Ensaio, aproveito a oportunidade, que o seu tema torna pertinente, para clarifi­
car um mal-entendido, publicado num diário de Londres, acerca de uma afirmação
minha usada na controvérsia, que suscitou, nos últimos dias, uma pronta e eficaz
defesa do zelo delicado do Sr. Lilly. Não deveria eu ter por necessário fazer qualquer
acrescento ao que ele tão bem disse, a não ser o seguinte: é de esperar que aquilo
que é um grande erro a meu respeito seja corrigido com a minha própria mão e
com as minhas próprias palavras.
Foi dito a meu respeito: «Ü cardeal Newman restringiu a defesa do seu cre­
do à proposição de que ele é a única alternativa possível ao ateísmo». Segundo
entendo, significa isto que, nas minhas convicções religiosas e nos meus esforços
polémicos, abandonei toda a ideia de usar argumentos da razão para apoiar a
questão da verdade da fé católica; que apenas confio na ameaça e no consequen­
te pânico de que, só se um homem não for católico, terá ele de ser ateu. Impor­
ta, porém, referir que não utilizo nenhum argumento na controvérsia a favor do
meu credo além da ameaça do ateísmo como sua alternativa; e também que nem
sequer tentei demonstrar com argumento algum a razoabilidade dessa ameaça.
Ora, que afirmo eu, e que é que não afirmo? O presente volume fornece
uma resposta a esta pergunta. De princípio ao fim, está cheio de argumentos,
cujo escopo é a verdade da religião católica; todavia, nenhum deles insinua ou

Uma G r a m á t i c a do As s e n t i m e n t o • 477
depende da alternativa de catolicidade ou ateísmo ; como é que então se pode
dizer que esta alternativa é a única defesa que propus para o meu credo? O
Ensaio começa por refutar as falácias daqueles que dizem que não podemos
acreditar naquilo que não compreendemos. Não há aqui nenhum apelo ao argu­
mento a partir do ateísmo. Incidentalmente e obiter aduzem-se razões para dizer
que a causação e a lei, como com elas deparamos no universo, apontam para um
Criador infinito; não é ainda nenhum argumentum ab atheismo. Terminada esta
parte da obra, dou mais um passo para justificar a certeza enquanto exercida na
base de uma acumulação de provas, sem qualquer demonstração em separado;
nada acerca do ateísmo. Enceto, em seguida, uma demonstração directa do teís­
mo (que, de facto, fora em grande parte preludiada num capítulo anterior)
como uma conclusão tirada de três departamentos de fenómenos; continua ain­
da ausente a ameaça do ateísmo. Passo então à demonstração do cristianismo; e
onde é que surge aqui a ameaça do ateísmo? Começo com a profecia; em segui­
da, avanço para o testemunho coincidente das duas alianças e, daí, para o argu­
mento poderoso que nasce do testemunho prestado ao carácter divino do
catolicismo pela bravura e pela resistência dos primeiros mártires. E ali acabo.
Esta nem sequer é a única obra argumentativa em defesa do meu «credo»,
por mim facultada ao público. Publiquei um Essay on Development ofDoctrine,
Theological Tracts, A Letter do Dr. Pusey, A Letter to the Duke of Norfolk, obras
mais ou menos polémicas, todas elas defesas do credo católico; ocorrerá em
alguma delas a simples palavra «ateísmo»?
Basta, pois, daquilo que não afirmo nem afirmei: agora, quanto àquilo que
declarei e a que deveras adiro. Isto leva-me de imediato ao adágio, em que me
empenhei na Apologia, página 1 98 , a saber: «Não existe meio-termo algum, na
filosofia verdadeira, entre ateísmo e catolicidade, e uma mente perfeitamente
coerente, sob as circunstâncias em que se encontra agora na terra, deve abraçar
um dos dois». É decerto este adágio que o meu crítico tem em mente e que,
estou disso consciente, levantou anteriornente dificuldades a leitores, que eu
lamentaria lançar na perplexidade.
Ora, se na Analogy de Butler encontramos a afirmação de que não existe
uma posição consistente ou um medium lógico entre a aceitação do Evangelho e
a negação de um Governador moral, pois as mesmas dificuldades se podem adu­
zir contra ambas as crenças, e se elas são fatais contra o cristianismo são igual­
mente fatais contra a religião natural, não deveríamos ter compreendido o que

4 78 • J o h n H e n ry Newman
se afirmou? Poderia ela, de facto, encarar-se como uma ameaça contra a negação
do cristianismo, mas não deveria ter uma base argumentativa e um sentido? E
seria justa semelhante interpretação? Seria, de facto, inteiramente honesto dizer,
como alguns disseram, «Põe-me no mau caminho»; e os seus defensores poderiam
apenas replicar, «Ü alimento de um homem é o veneno de outro»; mas seria justo
acusar Bucler de pôr de lado todo o raciocínio científico por uma ameaça? Nin­
guém diria, «Butler limita a defesa do seu credo pessoal à proposição de que ele é a
única alternativa possível à negação da lei moral», pondo de lado como sem valor
para o seu propósito os seus Sermões na Rolls' Chapei. Todavia, que é que eu afir­
mei de mais perigoso ou de mais obscuro do que o argumento de Butler? Poderia
afirmar-se que ele destrói toda a demonstração lógica de um Deus, porque compa­
rou as dificuldades da graça com as dificuldades da natureza? Mais, ele deveria
chegar ao ponto de dizer comigo o seguinte: «se por causa das dificuldades aban­
donamos o Evangelho, então, em virtude de dificuldades comparáveis, devemos
abandonar a natureza; pois, não existe nenhum chão firme entre suportar o escru­
tínio da fé e suportar o escrutínio da outra?»
Isto não é tudo. Segundo parece, a insistência na analogia entre os mistérios
da natureza e os da graça é o meu único argumento a favor da verdade do meu cre­
do. Como é que isto pode ser assim, a partir da genuína natureza do caso? O argu­
mento da Analogia é sobretudo negativo, mas um argumento que tende a
demonstrar deve ser positivo. Butler não demonstra a verdade do cristianismo
com o seu famoso argumento, mas remove um grande obstáculo de um carácter
prima focie para auscultar as provas do cristianismo. Assemelha-se às trincheiras
que os soldados cavam para os proteger, quando decidem atacar um forte. Nin­
guém diria que semelhantes trincheiras dispensam os soldados. Por isso, até certo
ponto, por me «restringir» ao argumento de Analogia a favor do meu credo, infiro
absolutamente a presença e o uso de argumentos independentes, de argumentos
positivos, em virtude de usar o que é sobretudo um argumento negativo. A
seguinte passagem do meu Sermão sobre os Mistérios mostra, para lá de todo o
erro, que eu estava disso totalmente consciente e actuei na sua base:
«Se tenho de submeter a minha razão aos mistérios, não se trata tanto de se
é um mistério a mais ou um mistério a menos; a principal dificuldade consiste
em acreditar; a principal dificuldade para quem indaga é afirmar, com firmeza,
que existe um Deus vivo, apesar da obscuridade que O rodeia a Ele, o Criador, a
Testemunha e o Juiz dos homens. Uma vez habituada a mente, como deve ser, à

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 479
crença num Poder a ela superior, uma vez que ela compreenda que não é por si
mesma a medida de todas as coisas no céu e na terra, terá pouca dificuldade em
avançar. Não digo que ela ird, ou pode ir, para outras verdades sem convicção; não
digo que ela deve acreditar na fé católica sem razões e motivos, mas digo que, quan­
do acreditar em Deus, foi removido o grande obstáculo à fé, um espírito orgu­
lhoso, auto-suficiente, etc.» (Discursos) .
Devo de algum modo alargar o que fui dizendo, mas a fim de intensificar a
força e a plenitude desta explicação. Existe um certo sentido em que se pode dizer
que a Analogia fornece um argumento positivo, embora não seja esse o seu propó­
sito primordial e directo. A coincidência de duas testemunhas que, independente­
mente, oferecem o mesmo relato de um negócio é um argumento em prol da sua
verdade; a semelhança de dois efeitos demonstra uma só causa para ambos. O fac­
to da Mediação tão proeminente na Escritura e no mundo, como Butler a ilustra,
é um argumento positivo de que o Deus de Escritura é o Deus do mundo. Este é
o sentido imediato em que, na Apologia, falo da matéria objectiva da Religião,
Natural e Revelada, do carácter da evidência, da posição e do exercício legítimos
do intelecto em relação a ela. A religião, enquanto tal, tem certos domínios e arra­
baldes definidos, e exige o que Aristóteles chamaria um investigador pepaideumê­
nos, um processo de investigação sui similis. Deparei, pela primeira vez, com esta
peculiaridade na história do desenvolvimento doutrinal; no primeiro exemplo,
apresentou-se-me como um modo de explicar uma dificuldade, a saber, o que se
alcunha de «Variações do Papado», mas, em seguida, descobri uma lei, que estava
exemplificada nos desenvolvimentos ulteriores que a verdade revelada atravessou.
E, em seguida, reflecti que uma lei implica um legislador; que um crescimento
ordenado e majestoso da doutrina na Igreja católica, contrastando com a morte e
a impotência, ou com as mudanças e contradições vagas no ensinamento de
outras instituições religiosas, demonstram uma Presença espiritual em Roma, que
não existe em mais nenhum lado, e que constituía urna presunção de que Roma
estava certa; e se a doutrina da Eucaristia não veio do céu, porque não assim tam­
bém a doutrina do Pecado original? Se o Credo de S. Atanásio veio do céu, por­
que não o Credo do Papa Pio? Eis um uso da Analogia para lá do uso que Butler
dele fizera; e, em seguida, quando reconheci a sua força no desenvolvimento da
doutrina, fui levado a aplicá-lo às Evidências da Religião e, nesse sentido, cheguei
a dizer o que disse na Apologia. «Não existe medium algum na verdadeira filosofia»,
«para uma mente perfeitamente coerente», «entre o ateísmo e a catolicidade».

48 0 • John H e n ry Newman
Os homens, na sua maioria, não são consistentes, lógicos ou cuidadosos; não
obedecem a uma lei no decurso das suas concepções religiosas; e embora não consi­
gam raciocinar sem premissas, e as premissas exijam primeiros princípios, e os pri­
meiros princípios devam ser, em última análise (de uma ou de outra forma)
pressupostos, não reconhecem o que isto implica, e consideram este ou aquele pon­
to na escala ascendente ou descendente do pensamento, conforme o determinam o
seu conhecimento dos factos, preconceitos, educação, laços domésticos, posição
social e as oportunidades de inquirição; existe, contudo, um certo carácter ético, um
só e o mesmo, um sistema de primeiros princípios, de sentimentos e gostos, um
modo de encarar a questão e de argumentar, que é formal e normalmente, natural e
divinamente, o organum investigandi, a nós concedido, de alcançar a verdade religio­
sa, e que levaria a mente, ao longo de uma infalível sucessão, desde a rejeição do
ateísmo ao teísmo, do teísmo ao cristianismo, do cristianismo à Religião Evangélica,
e desta à catolicidade. E, mais uma vez, se um católico tem sérias carências neste sis­
tema de pensamento, então não poderemos surpreender-nos se ele deixa a Igreja
Católica e, em seguida, na altura própria, abandona de todo a religião. Acrescentarei
que uma razão central para eu escrever este Ensaio sobre o Assentimento, ao qual
estou a acrescentar estas últimas palavras, foi, na medida das minhas possibilidades,
descrever o organum investigandi que, a meu ver, é o único verdadeiro e, portanto,
mostrar e explicar a afirmação da Apologja, tema desta Nota.
Devo apenas fazer uma observação mais, antes de terminar. Afirmei, natu­
ralmente, que havia um curso descendente e também ascendente da inquirição e
da fé. Contudo, ao falar na minha Apologja de Evidências e ao seguir a indicação
do que ali afirmei acerca do desenvolvimento doutrinal, tive sobretudo em vista
a escala ascendente, não a descendente. Pretendi dizer, «Sou católico, pela me�­
ma razão por que não sou ateu». Isto torna a falsa interpretação das minhas
palavras, que estou a expor, tanto mais conspícua, porque me reduz e traduz a
uma ameaça e nada mais, a saber, «Se não és católico, deves ser um ateu e ir para
inferno». O Sr. Lilly, na sua carta em minha defesa, vê isto e, de forma muito
feliz, adopta a interpretação positiva, que é a única verdadeira.
Esta explicação é, por isso, uma resposta para alguns homens bons, mas
facilmente atemorizados, que imaginaram que eu estava a negar que a Existência
de Deus fosse uma verdade natural, porque afirmei que negar a revelação era o
modo de negar a religião natural. Mas apenas argumentei que a mesma sofisma­
ria que nega uma pode negar a outra.

Uma G r a m á t i c a do A s s e n t i m e n t o • 481
·
Que a escala ascendente da minha alternativa abstracta tenha sido a ideia
mais saliente na minha mente pode argumentar-se a partir da seguinte passagem
de uma Lição, que eu dei muitos anos antes da Apologia-.
«Um protestante está já a caminho de toda a verdade, em virtude da genuí­
na circunstância de apreender realmente uma parte dela. Vejo isto com tanta
força que não considero um paradoxo dizer o seguinte: que um homem domine
apenas a única doutrina da Existência de um Deus, que seja um monoteísta real
e genuíno, e não apenas nas palavras, ou por confissão herdada, ou nas conclu­
sões da razão, mas por uma apreensão directa» (isto é, com aquilo que, no
Ensaio precedente, chamei «assentimento real» como derivado da «lnferênCÍa», e
agindo como um novo começo) , «e percorreu já três quartos do caminho em
direcção ao catolicismo».
Termino, apresentando ao leitor a pertinente carta do Sr. Lilly, datada de
18 de Novembro.
«Senhor, advirto, no seu tema desta noite, uma afirmação contra a qual vos
peço licença para protestar do modo mais enérgico como uma interpretação mui­
to grave, embora, estou certo, não intencional, do meu amigo profundamente
venerado Cardeal Newman. A afirmação é que "ele limitou a defesa do seu credo à
proposição de que ele é a única alternativa possível ao ateísmo". É, sem dúvida,
verdade que o Cardeal Newman afirmou, "Não existe nenhum medium, na verda­
deira filosofia, entre ateísmo e catolicismo" (Apologia, p. 1 98, 3.ª edição); e, sem
dúvida, não é verdade que ele restrinja a defesa do seu credo a esta proposição.
Aceita expressamente "as demonstrações formais em que assenta a existência de
Deus" (podem elas encontrar-se em qualquer livro de texto da teologia católica)
como facultando uma "demonstração irrefragável" ("Discursos a Congregações
Mistas", p. 262, 4ª edição); mas, para ele em pessoa, é sumamente claro e tem
uma força suprema o grande argumento derivado do testemunho da consciência
- "o Vigário original de Cristo, profeta nas suas informações, monarca no seu
carácter peremptório, sacerdote nas suas bênçãos e anátemas". A existência de
Deus, "evocada nela de modo irresistível" pela voz interior é "a grande verdade de
que todo o seu ser está cheio" (Apologia, p. 24 1 )».
Depois de citar as palavras do Sr. Renan, o Sr. Lilly continua e diz, «Tal é o
ponto de partida do Cardeal Newman. A consciência, o "grande mestre inte­
rior", "mais perto de nós do que qualquer outro meio de conhecimento'', infor­
ma-nos (e também j ulga) que Deus é; "o Atributo especial sob o qual ela O põe

48 2 • J o h n H e n ry N e w m a n
diante de nós, a que subordina todos os outros Atributos, é o da justiça - justi­
ça retributivà' ( Gramdtica do Assentimento, p. 385, 3.ª edição} . "O sentido do
bem e do mal" é, segundo ele, "o primeiro elemento" na religião natural ("Carta
ao Duque de Norfolk", p. 67, 4.ª edição} . E o catolicismo, que ele considera
como a única forma do cristianismo histórica ou filosoficamente defensável é,
na sua opinião, o único complemento possível da religião natural. Só posso
ousar pedir-vos que me deis espaço para indicar assim a natureza do argumento,
graças ao qual ele sobe da sua primeira ideia religiosa à última. Também referiria
aqueles que o poderiam seguir, passo a passo, até à sua Gramdtica do Assentimen­
to, Apologia e Discursos a Congregações Mistas-, ou, se bastar um simples resumo,
um artigo meu na Forthnightly Review de Julho, 1 879. A principal defesa do
Cardeal Newman - não a sua única defesa - do seu credo equivale, pois, a
isto: que a religião é uma parte integral da nossa natureza, e que só o catolicismo
satisfaz adequadamente a expectativa de uma revelação que a religião natural
suscita. Pode esta ser uma boa ou má defesa; mas, boa ou má, é muito diferente
da proposição árida de que «O catolicismo é a única alternativa possível ao ateís­
mo». E termina com algumas palavras amáveis acerca da minha pessoa.
Vtl A minha resposta a Fairbain na Contemporary Review de Outubro, 1 885.

Nota I I I

Sobre o castigo eterno dos maus, vide supra 409-4 1 0, Dezembro, 1 882

Uma grave falsificação de uma passagem deste volume que, no ano transac­
to, apareceu numa Revista de grande nomeada, exige aqui uma menção.
Diz Petavius que, segundo alguns Padres da Igreja de exímia autoridade, é
possível conceber um refrigerium ou reftigeria como garantido aos condenados,
no meio do seu sofrimento penal sem fim; isto é, que o seu castigo, embora sem
fim, não é sem cessação. Citei as suas palavras na nota de rodapé da página 328;
e, no texto, aventurei-me a uma sugestão minha, mas sem reter a sua, para signi­
ficar que se podia conceber um reftigerium, que não fosse estritamente um cessa­
mento do castigo, embora actuasse como tal; quero dizer, a ausência temporária,
na alma perdida, da consciência da sua continuidade ou duração.

Uma G r a m á t i c a do A s s e n r i m e n t o • 48 3
É bem conhecida a história do monge que, tendo ido para a floresta medi­
tar, se deixou ali ficar a ouvir o canto de uma ave durante trezentos anos, os
quais, na sua consciência, decorreram como apenas uma hora. Ora, a dor, tal
como a alegria, pode ser um êxtase e eliminar, relativamente ao tempo, o senti­
do da sucessão; mesmo nesta vida, e quando não é intensa, tem ela por vezes
este efeito; e na suposição de que semelhante insensibilidade ao tempo durará
trezentos anos, pois trezentos anos de dor poderiam concentrar-se num ponto; e
haveria neste intervalo um re.frigerium. E, se dura trezentos anos, poderia tam­
bém durar três milhões, ou um milhão de milhões, segundo os graus da culpa
que pesa diversamente sobre as almas individuais.
Pode objectar-se que semelhante visão do castigo futuro esbate a sua severi­
dade e diminui a sua força moral como ameaça ou restrição do crime. Mas não;
nesta concepção, o facto do sofrimento e da sua eternidade permanece intacto; e
do sofrimento, porventura, «mediante o fogo». Por isso, a eternidade do castigo
persiste no seu aspecto negativo, a saber, que nunca haverá mudança de estado,
aniquilação ou restauração. A simples eternidade, embora sem sofrimento, mes­
mo se imaginada na consciência da alma, é já assaz temível; seria insuportável,
inclusive para o bom, excepto na Visão Beatífica e enquanto nesta contida; seria
uma solidão perpétua. Eis o que torna a perspectiva de uma vida futura tão
deprimente para os nossos agnósticos actuais, que não tem nenhum Deus que
lhes proporcione «moradas» no mundo invisível.
Por outro lado, pode objectar-se que a mais longa série possível de re.frige­
ria, seja qual for a extensão em que eles, juntos, poderão ocorrer, nada é, ao fim
e ao cabo, comparada com uma eternidade de castigo. Mas isto é compreender
mal o que aleguei. Enquanto pertencentes a uma eternidade, os re.frigeria que
vislumbro correspondem na sua recorrência, e equivalem, a essa eternidade, e
são infinitos em número, como excepções num decurso que é infinito.
Pode, ademais, objectar-se que esta visão do castigo futuro é, à primeira vista,
inconsistente com o ensinamento de S. Tomás, 2. 2, q. XVIII, 3; afirma ele ali que,
se os réprobos são condenados ao castigo eterno, devem então saber que ele é eter­
no, porque semelhante conhecimento é necessariamente uma parte do seu castigo.
Se bem o entendo, ele argumenta assim:
1. É de ratione poenae que o castigo deve voluntati repugnare.
2. Mas esta repugnantia só pode ter lugar, se à parte condenada estiver pre­
sente uma consciência do facto de tal poena.

484 • John H e n ry Newman


3. Logo, a poena implica uma consciência do facto da poena.
4. E se a poena é perpétua, então também a sua consciência.
Sem dúvida: mas eu nada predico nem da poena, nem da consciência da
poena, nem da sua perpetuidade, nem da consciência da sua perpetuidade; falo
apenas da consciência (sem referência à perpetuidade) , do lapso de tempo ou da
sucessão de momentos em que decorre essa poena e a consciência da poena. Os
condenados podem estar conscientes do seu estado de perdição e da sua irrever­
sibilidade; todavia, uma ulterior questão será se eles, embora conscientes
de q ue tal estado é irreversível, estarão para sempre ou continuamente cons­
cientes do facto do seu longo curso, na memória e na perspectiva, ao longo dos
períodos e dos eões.
O canto da ave, que o monge ouviu sem se dar conta da passagem do tem­
po, poderia ter sido, «E eles reinarão para todo o sempre»; embora dos muitos
milhares de vezes que a ave repetiu o seu gorjeio ressoe no ouvido do monge
apenas um só canto entoado uma só vez. E se isto pode acontecer no caso das
almas santas, porque não, se assim aprouver a Deus, no exemplo dos maus?
No que tenho estado a dizer, considerei a eternidade como tempo infinito,
porque esta é a suposição corrente.
E expressei-me, durante todo este tempo, sob correcção, como submeten­
do absolutamente tudo o que disse ao juízo da Igreja e da sua cabeça.
Vide O meu artigo na Contemporary, a que acima aludi.

U m a G r a m á t i c a do A sse n t i m e n to • 48 5
ÍNDIC E
I N T RO D U ÇÃ O - ] O H N H E N RY N EW M A N ( 1 8 0 1 - 1 8 9 0 )
Da razão implícita à razão explícita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

PA RT E I - A S S ENT I M E N T O E A P RE E N S Ã O

Capítulo 1 - Modos d e estabelecer e de apreender proposições 35


§ 1. Modos de estabelecer proposições . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
§ 2. Modos de apreender proposições . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

Capítulo 2 - O assentimento considerado como apreensivo . . . 45

Capítulo 3 - A apreensão de proposições . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Capítulo 4 - Assentimento nocional e real . . . . . . . . . . . . . . . . 67


§ 1 . Assentimentos nocionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
§ 2 . Assentimentos reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
§ 3 . Contraste entre os assentimentos nocionais e reais. . . . . 1 14

Capítulo 5 - Apreensão e assentimento em matéria de religião 1 23


§ 1 . A crença num só Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 25
§ 2. A crença na Trindade Santa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 43
§ 3 . A crença na teologia dogmática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 60

PA RT E II - A S S ENT I M E N T O E I N F E R t N C I A

Capítulo 6 - O assentimento considerado como incondicional 1 73


§ 1 . Assentimento simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 74
§ 2. Assentimento complexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 1

lodice • 48 9
Capítulo 7 Certeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
- 22 1
§ 1 . Contraste entre assentimento e certeza . . . . . . . . . . . . . 22 1
§ 2. Indefectibilidade da certeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 1

Capítulo 8 Inferência . . .
- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
§ 1 . Inferência formal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
§ 2. Inferência informal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290
§ 3. Inferência natural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 327

Capítulo 9 O sentido ilativo. . . . . .


- . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 339
§ 1 . A sanção do sentido ilativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 1
§ 2. A natureza do sentido ilativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 347
§ 3. O âmbito do sentido ilativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353

Capítulo 10 Inferência e assentimento em matéria de religião


- 377
§ 1 . A religião da natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 381
§ 2 . A religião revelada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399

N O TA S
1. Sobre Hooker e Chillingworth . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 475
2. Sobre a alternativa intelectual entre o ateísmo e a catolicidade. . 477
3. Sobre o castigo eterno dos maus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483

49 0 • fndice
T E O FAN IAS
a t e o l o gi a , m ú ltip l o luga r

colecção dirigida por

J o s É To LENT I N O M E N D O NÇA
1 . ESPERA DE DEUS, S IMONE WEIL
tradução de Manuel Maria Barreiros
apresentação de José M. Pacheco Gonçalves

2. ENSAIO A FAVO R DE UMA GRAMÁTICA DO ASSENTIMENTO ,


]OHN HENRY NEWMAN
tradução e apresentação de Artur Mourão

3 . os IMPERDOÁVEIS, CRISTINA CAMPO


tradução de José Colaço Barreiros
prefacio de José Tolentino Mendonça

próximos títulos

ÉTICA, DIETRICH BoNHOEFFER


CREDO , HENRI DE LUBAC
A N UVEM DO NÃO SABER
PAGINAÇÃO: MARIA DA GRAÇA MANTA

T IRAGE M : 2000 EXEM P LARES


D E P Ó S ITO LEGAL 2 3 3 464/05

IMPRESSO NA TIPOGRAFIA GUERRA (VISEU)

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