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LU AIN-ZAILA

Sankofia
B r e v es hi s t ór i as s obr e A fr o f ut u r i s m o

RIO DE JANEIRO
EDIÇÃO DA AUTORA
2018
CO PY RI G HT © LU AI N -ZAI LA , 20 18
T ODO S O S DI RE IT OS RE SE RV ADO S

CA PA/ D IA G RAMA ÇÃ O/ PR OJE T O G RÁF I CO


LU AI N -ZAI LA ( L UCIE NE M . E R N E ST O)

RE VIS ÃO
DE YSE MA RA RO D RI GUE S DE LI M A
DA NIE L A B O R GE S PE RE I R A

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E R NE ST O, L UCIE NE MA R CE LI N O
E 71 SA N KOF IA : B RE VE S HI ST Ó RIA S S OB RE AF ROF UT U RI SMO/ LU CIE NE
MA RC E L I NO E R NE S T O . – – RI O DE J ANE I R O , 2 018 .
2 26 P .
I SB N 9 788 592 232 726 (9 78 - 85 - 9 223 27 - 2 - 6)
1 .F I C Ç Ã O C I E NT Í F I CA . 2 . A F R O F U T U R I SMO . 3 . C O NT O S . I T Í T U L O .
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RE DE S S OCI AIS

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LU AI N -ZAI LA @L UAI NZ AIL A

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Desenhar futuros é preciso e indispensável
AFROFUTURISMO

Desde a antiguidade, os povos negros africanos e suas inúmeras


diásporas sempre demonstraram através de levantes estarem prontas
para imaginar e viver futuros onde suas pátrias, descendências, culturas
e vidas seriam livres de qualquer tipo de opressão. E é esta certeza, a
de merecer um futuro que vai levar a população africana e
afrodiaspórica, aonde quer que esteja a pensar o Futurismo Negro,
tanto de modo histórico exigindo direitos e dignidade através de
pessoas reais como, por exemplo, Martin Luther King, Mandela ou
Aqualtune, quanto de forma ficcional contemplando realidades
alternativas onde liberdade e existência são necessidades básicas
conquistadas frente a uma linha do tempo histórica cheia de entraves
à estes princípios básicos, e insegura à sua presença no presente e
principalmente no futuro.
Esse ímpeto deve ter sido o combustível que fez Martin
Delany, um dos principais líderes políticos negros dos EUA (1859)
escrever e publicar na Anglo-African Magazine, Blake, or the Huts of
America (Blake, ou Cabanas da América) cujo tema é uma revolta de
escravos bem-sucedida nos estados do sul e a fundação de um país
negro em Cuba. Mas teria ele sido inspirado por Nat Turner que
décadas antes (1831) conclamou uma rebelião que aterrorizou os
escravistas na Virginia? Ou estaria ele desejando ardentemente, através
de uma visão alternativa, a liberdade plena finalmente alcançada em
1863 com a vitória do norte na guerra civil? Eis um exemplo onde
ficção e realidade conectam passado, presente e futuro, o pulsante
propósito do Afrofuturismo.
O termo Afrofuturismo nasceu no campo da ficção científica,
sendo utilizado a primeira vez pelo escritor branco Mark Dery em
Black to the Future, num ensaio e depois num capítulo do livro Flame
Wars: The Discourse of Cyberculture (1994), onde busca compreender
através de entrevistas com Samuel R. Delany, Greg Tate e Tricia
Rose, a pequena presença de escritores afroamericanos na ficção
científica oficial americana, a mainstream (palavra sem tradução) que
apresenta no termo, neste caso, um ideário de poderio, sobreposição
dominante, uma teia discursiva que mantém o homem branco,
heteronormativo, falsamente como um ser legitimante de seu próprio
discurso e até da noção de humanidade, refutando qualquer outra
presença ou representatividade que não o reconheça como universal,
ou seja, mainstream.
Posso dizer que foi uma experiência estranha, aceitar
um prêmio [Nébula, 1968] em uma sala cheia de
pessoas com smoking e vestidos de noite e então, deste
mesmo lugar onde o aceitei, ouvir uma repreensão de
meia hora de uma eminência, que declara que este
prémio é imerecido e para as pessoas que o elegeram um
grupo de estúpidos incautos. Não é paranoia, contei
mais de uma dúzia de pares de olhos passeando entre o
falante e eu que continuou com a trivialidade de obras
gratificantes como a minha e a tolice dos mais de cem
escritores que votaram nela. (DELANY, 2011,
tradução livre)

A partir desta realidade experimentada tanto por Samuel R.


Delany em 1968 quanto por N. K. Jemisin em igual teor ou pior em
2016/2017 é possível sentir que a política de invisibilidade é muito
atual e que trocar a realidade dos dois entre os tempos em nada afetaria
o que sofreram.
Desdobramentos no tempo
Logo, podemos dizer que a nomenclatura afrofuturismo se
popularizou ao retroceder no tempo, reforçando e abraçando o
Futurismo Negro desde seus primórdios amplos à sua efervescência
atual, não apenas no campo da literatura, mas da música, filmografia,
artes, enfim... todo o espaço ocupado por uma mente negra
reescrevendo o futuro com a sua presença.
Ao adentrar neste movimento que se torna mundial e
investigar sua base filosófica, sustentada por referenciais muito
anteriores ao termo, é possível captar em suas reorganizações, tanto de
ideias quanto de conceitos e estética, as bases epistemológicas do
Afrocentrismo, pensamento que ganhou corpo teórico em 1980
através do pesquisador afroamericano Molefi Kete Asante, que o
define da seguinte forma:
Afrocentricidade é um modo de pensamento e ação no
qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas
africanas [negras] predominam. Em termos teóricos é a
colocação do povo africano [África e diásporas] no
centro de qualquer análise de fenômenos africanos.
Assim é possível que qualquer um seja mestre na
disciplina de encontrar o lugar dos africanos num dado
fenômeno. Em termos de ação e comportamento, é a
aceitação/observância da ideia de que tudo o que de
melhor serve a consciência africana se encontra no cerne
do comportamento ético. Finalmente, a
Afrocentricidade procura consagrar a ideia de que a
negritude em si é um tropo de éticas. Assim, ser negro
é estar contra todas as formas de opressão, racismo,
classismo, homofobia, patriarcalismo, abuso infantil,
pedofilia e dominação racial branca. (ASANTE, 2014,
p. 3)
O pensamento afrocêntrico desafia a pessoa negra a nascer de
novo, reconhecendo que sua existência no mundo é um acúmulo de
signos eurocentristas que não a referenciam ou respeitam, pelo
contrário, a inferiorizam-na e deslegitimam enquanto sujeita capaz de
ter voz, consciência e produção.
Jemisin gostava de ficção científica e fantasia quando
era criança. Mas ela não escrevia sobre personagens
negros ou femininos antes de tropeçar com Octavia
Butler ainda adolescente. Ao ler, eu [Jemisin]
disse:"Caramba, acho que essa mulher é negra. Procurei
uma foto, e não havia nenhuma. Em vez disso, a capa
do livro estava rebocada com a imagem de uma mulher
branca. Deixei a foto de lado” – foi um momento de
iluminação para Jemisin. "Eu nunca tinha visto isso em
sci-fi [science fiction] antes", afirmou. Ela nunca havia
pensado que uma liderança poderia ser outra coisa
senão um homem branco. (WOMACK, 2013, p. 96,
tradução livre)

Já dentro do gênero ficção científica temos bons exemplos do


que significa refazer caminhos e visões:
• A mudança da terminação “punk” para “funk” é outro elemento
importante, pois sai da dinâmica de um rock “branco” para um
soul negro. A lógica funk tem a ver com a experiência de uma
pessoa negra: a experimentação sensorial; pessoa chave da
mudança, relendo a escravidão, relendo os problemas urbanos
passados – presentes – futuros. É como se o som funk, o letrismo
do hip-hop, os atabaques africanos, os tambores afrocubanos
batá, as cuícas brasileiras e os remixes da mesa de som
encontrassem uma harmonia e coexistissem ajudando a contar
histórias.
• Novas concepções de subgêneros: Dieselfunk; Cyberfunk;
Rococoa; Steamfunk; Sword & Soul; Blaxploitation;
Blackstatic; Alternate History.
Nesse sentido é certo afirmar que a concepção de raça [ler
Kabengele Munanga e Carlos Moore] como uma tecnologia, dentro do
Afrofuturismo e sob preceitos distinguíveis do sistema racista, pode e
deve ser considerada num âmbito maior deste movimento político-
ideológico e estético como um artefato maior de poder, que bem
sustentado e articulado tem a capacidade de plantar questionamentos
na psique da população negra que vive sob projetos de vida e nação
racialmente desfavoráveis.
Desta forma, podemos concluir que o Afrofuturismo é uma
metáfora afrocentrada realista sobre o verdadeiro reflexo de uma
pessoa negra, que precisa experimentar o seu eu enegrecido em
essência, seja como escritor ou escritora, leitor ou leitora,
compreendendo que é possível e mais do que justo, que protagonize o
seu destino ou que crie mundos onde heróis de heroínas de face negra
sejam sujeitos da narrativa.
Referências Bibliográficas
MOORE, Carlos (2007): Racismo & sociedade: novas bases epistemológicas para
entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições.
CARNEIRO, Aparecida Sueli (2005): A construção do outro como não ser como
fundamento do ser. Tese (doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo.
WOMACK, Ytasha (2013): Afrofuturism. The World of Black Sci-Fi and Fantasy
Culture.EUA: Lawrence Hill Books.
DELANY, Samuel (2011): “RUNES SANGUINIS / Racismo y Ciencia Ficción”.
Em: NYRSF - The New York Review of Science Fiction (1998) e integrante de
Dark Matter: A Century of Speculative Fiction from the African Diaspora (2000).
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: A Teoria Da Mudança Social (1980).
SANKOFIA

Sankofia é uma ideia que resolvi criar para batizar meus


pensamentos expostos em forma de literatura neste livro, mas que
poderia levar em conceito para um artigo ou uma conversa, ou seja,
estou construindo pontes para os pensamentos que quero expor às
pessoas, sabendo que daqui por diante, ao fazer uma avaliação de
minhas palavras, escritos, o farão sobre conceitos que fazem jus à
minha ideologia em construção.
Logo, posso dizer que a palavra – Sankofia – é uma definição
que encontra proximidade com a ideia de utopia, mas ao contrário
deste termo, pode e deve ser alcançada já que tem a ver com uma
necessidade de estabelecer a presença negra na esfera literária por
nossas mãos, porém não sem consciência e muito menos sem a ideia
de preservação de uma história, um legado, ou seja, não estou falando
de algo que vai acontecer e que vai, se manter de forma etérea na
consciência, muito pelo contrário, o cerne é a eterna vigilância da
lembrança e uma intenção coletiva de preservação, até de quem se é.
E sendo assim, um renascimento sankofico (pronúncia: sancôfico) é se
reinventar, é rever sobre uma identidade afrocentrada.

Sankofico/sankofica: derivada da palavra-


provérbio africano Sankofa (escrita ideográfica
Adinkra) que significa “Nunca é tarde para voltar
e apanhar o que ficou para atrás”. Sendo assim, o
termo pode ser visto como uma analogia léxica que
comtempla uma noção de resgate estrutural de
intelectualidade afrocentrada, e também, um
exemplo em si da construção de um modo de pesar
e expressar sua raiz africana em meio à cultura
ocidental em que está inserido, na qual sua base
ancestral é desconsiderada em termos plenos de
identidade (Lu Ain-Zaila, conceito elaborado
durante meus estudos sobre Afrofuturismo e
Afrocentricidade no final de 2017)

Resumindo, Sankofia é uma obra de construção utópica-


sankofica de representatividade em inúmeros gêneros literários.
Algumas intenções estão em formato fechado com início, meio e fim,
mas outras eu apresento em formato de fragmentos, intenções a
explorar, possibilidades que usam a literatura não apenas como um
entretenimento, mas como uma ferramenta de aprendizagem e
compreensão aprofundada do afrofuturismo.
ESTE É UM FRAGMENTO
DA OBRA
DISTRIBUÍDO
GRATUITAMENTE
PELA AUTORA.
Era Afrofuturista
21

Existência

Conexão

Ternodes – O Segredo de Kanzi

A Invenção das Tranças

Admissão

Ode à Laudelina

O Artefato

Crianças Vermelhas

FRAGMENTOS
Uma Real Probabilidade
Balfac Cke
Vazia Eternidade
Existência
— Corre, vai! Anda! Vão nos alcançar! – grita Abini logo atrás
de mim, enquanto corremos freneticamente pelo apertado corredor,
rumo à cabine da nave Asale, só três metros a nossa frente, só três. E
então a ouço gritar...
— Muda o código! Adimu, muda! – o grito dela é visceral e
corro ainda mais, a medida certa para abrir a porta e fechar bem sob o
braço de um dos tripulantes tomados por uma espécime invertebrada
e consciente em termos comparáveis aos humanos. É tudo o que sei
dizer.
O membro avariado parecia algo mínimo, vi pelo monitor que
estava mais aborrecido pelo incômodo de ter um braço quebrado,
agora, pouco útil do que com dor. Isso me fez pensar que dor ou a
falta dela nos dava sentido de algo errado ou não, assim como a
exaustão física ou emocional e a solidão, que sinto neste exato
momento, pois nenhum dos que estão lá fora se parecem comigo, a
não ser biologicamente. Não que estas sensações sejam exatamente
boas, mas é um aspecto humano, sentir algo e julgávamos a relação
com outras espécies através deste espelhamento. Mas eles não
demonstravam possuir isso de um modo perceptível, talvez fossem
capazes de suprimir as conexões nervosas ou ignorar. Jamais
entenderei porque não quero saber ou estudá-los.
A única coisa que consigo pensar agora é que... não quero estar
aqui, sou uma antropóloga, vim para coletar amostras: terra, água,
alguma possível vegetação, nada parecia estar aqui e avaliar, datar
carbonicamente minerais, outros elementos, sabe... analisar e não ser
tomada por uma-algo. Abini é quem iria pilotar, nem sei o que faço

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diante de tantos botões parecidos em forma e cores. Estou perdida. E
agora, eu sou a última barreira entre a possível ida deles à Terra. Isso
não é justo.
— Precisamos, compreenda, é inevitável sua tomada – disse a
copilota olhando para o monitor como se olhasse diretamente para
mim, e logo atrás dela no chão estava a pilota chefe Abini sendo
tomada, do mesmo jeito que aconteceu com os outros, primeiro, a
espécime escorreu para o seu rosto e então começou a se esvair para
dentro de seus olhos, nariz, boca, escorregando como água e então
depois de algum tempo, vi em seus olhos que agora se tornara deles,
delas, todos e que tinham gostado do próximo passo evolutivo dado:
sair da possível água, eu não tenho dados que confirmem isso e
locomover-se, ter mais sensações. Eu já conhecia o processo, a mente
resiste por aproximadamente trinta minutos e depois cessa, a pessoa
se levanta e então... É todos.
Foi um grande erro, feio, de principiante, um mal humano. A
excitação nos tornou presas fáceis. Devíamos ter usado os robôs de
captação e daqui ter operado o laboratório robótico, mas não,
tínhamos que “experimentar” a atmosfera do planeta, tirar os malditos
capacetes e o pior de tudo, entrar na suposta água, um erro colossal.
Aquilo não era um mar e sim “o mundo deles-todos” e agora deixamos
de ganhar um planeta para dar o nosso.
E aqui dentro não tem nada, sem comida, água e não sei
quanto tempo isso vai durar, mas eu não posso deixar que entrem e
muito menos que saiam daqui, só me resta tomar uma atitude: mudar
o código de ignição, exatamente como Abini me ensinou.
Respiro fundo, prendo minhas tranças usando duas, vindas da
parte inferior da nuca e me recomponho, isso. Agora aperto o botão e

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o sistema me solicita o código antigo, insiro, mas como não sou Abini
para passar pela identificação biométrica, digito o código restrito em
seu lugar e aguardo o reprocessamento, certo, mas então percebo o
silêncio, um nada de barulho lá fora, olho para o monitor e percebo
que todos sumiram. Não há nem mais um traço de movimento lá fora.
O que será que estão fazendo? O que foram fazer?
Finalmente, o sistema me pede o novo código de ignição,
digito, um código restrito, digito e então, o último passo, eu tenho a
opção entre o biométrico e o de voz, e claro, o biométrico parece
ótimo, mas então paro e percebo que essa não pode ser uma opção,
pois nos tomaram em essência, a nossa biologia externa permanece
inalterada, a mesma, logo, o de voz é o apropriado.
Respiro fundo e me preparo, tenho que repetir duas vezes, mas
então percebo um rangido e tudo começa a piscar. Essa não... o
sistema da nave passou para a emergência, e então volto a olhar para
o monitor a minha frente, ainda esperando para dar meu código de
voz, aperto o botão e ao fazê-lo, sinto que a porta atrás de mim se abre
lentamente. Estou perdida, os vejo vindo em minha direção correndo,
e só tenho alguns segundos para...
— Sou humana! Sou humana! – grito ferozmente a plenos
pulmões duas vezes e assim que me alcançam, resisto, e ouço o sistema
dizer – Código de voz aceito – Eu consegui! – penso com alegria, mas
fui pega e me pergunto. — Eu vou morrer? A espécime vai me matar?
Começo a cogitar as probabilidades me guiando pelo pouco
que vi. Será que vai me fazer assistir impassiva ao que faz com o meu
corpo?
Esperneio com todas as minhas forças, chuto, me debato, mas
não adianta. Eu sei que não, mas resisto organicamente por ser uma

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espécie que sempre briga e luta por sobrevivência, mas assim que cinco
deles me suspendem e carregam para a sala médica, tenho a certeza de
que não serei eu-apenas por muito mais tempo.
Enquanto isso, a minha última visão é a do teto da nave
passando e passando, mas antes que tudo termine, eu fecho meus
olhos e tento fazer um filme de adeus ao que sou: ancestralidade,
vivências sociais, pertencimento histórico, novas ideias e concepções a
partir do que conheço, ou acredito conhecer, sonhos a realizar,
arrependimentos. Tudo estará perdido em breve.
Meu nome é Adimu e significa rara em suarili, língua do
Quênia. Minha mãe, brasileira, me deu este nome e meu pai angolano
não gostou muito, mas compreendeu o motivo. Era o nome de uma
personagem do livro de quando ela era criança, numa visita de autores
e autoras às escolas da periferia onde morava, a heroína do livro era
negra e fez com que ela se apaixonasse por esse nome.
Mamãe me contou que não tinha grandes metas na vida, mas
ouvir aquelas pessoas que saíram de salas como a dela e viraram
alguém, motivaram-na a ir além. Todos e todas diziam que era preciso
estudo e esforço, ela acreditou e anos mais tarde, ela se formava em
Letras-Francês numa universidade federal, mas já dominava bem o
inglês e entre as atividades da vida, separava tempo para inspirar
outros e traduzir gratuitamente documentos de estudo. Era um
projeto coletivo de apoio ao acesso de conteúdos que ia desde artigos
da revista Science, pesquisas citadas no Nobel a documentos
digitalizados da primeira universidade do mundo, Timbuktu, no
Mali, África.
Minha mãe era fascinada por aprender e permitir a outras
pessoas o acesso a conhecimentos que lhe permitissem um “lugar

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social” mais consciente e foi assim que conheceu meu pai, ele
aprendera árabe como guia turístico no Cairo, e depois ao se tornar
guia histórico no Mali para os pesquisadores, ficou fascinado pelo
projeto que crescera e por minha mãe, que visitava o local pela
primeira vez. Aliás, meu pai dizia que minha mãe era muito mais
apaixonada por papel velho do que por ele e no final das contas, eu
também, amo um pedaço de cerâmica ou qualquer outro objeto de
séculos, datado por carbono 14.
E então ele veio para o Brasil, se embrenhou no projeto e assim
viveram, doando conhecimento a todos que quisessem aprender, o
“ter” jamais seria uma barreira novamente e assim me tornei
antropóloga, continuei o legado deles e quando vi a chance de escrever
meu nome africano, negro, de essência brasileira e sul-americana na
história, não resisti, o fiz e agora estava ali, prestes a perder o que me
fazia Adimu, humana e perder isso era pior que a morte.
Os eu-todos me jogaram secamente sobre a mesa, senti dor nas
costas e me mantive quieta, a princípio, mas quando vi Abini ou o que
sobrara dela, a casca, com um daqueles, daquelas em mãos, chorei de
ódio e comecei a resistir novamente, ofegante e então ela colocou a
espécime sobre meu rosto. Senti-me sufocada, engasgada,
desesperada, meus últimos sentimentos humanos a flor da pele e então
desmaiei, morri, não sei dizer.
— Mas o que é isso? – perguntei a mim ao acordar tonta e
assustada sob um chão rochoso, úmido e frio. Eu estava dentro das
Cavernas Cango, na África do Sul, que visitei com meus pais e tenho
a lembrança do castigo mais extenso e adorável da minha vida, duas
semanas, pois peguei uma pedra para estudar. Ali comecei a ser o que
faria da minha vida inteira.

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As suas formações de milhares de anos são fantásticas e me
lembro de apreciar a sua quietude, apenas quebrada pelo som da
natureza ao fundo, seguindo o seu curso de milhões de anos.
Por um instante me senti em casa, mas foi quando percebi que
mais alguém estava lá, era eu e não era eu ao mesmo tempo.
— Então é isso? Vou ficar vagando em memórias da minha
vida? Qual o objetivo de vocês? – perguntei ao reflexo de um eu que
não era eu.
— É incrível, as informações que seus... “não sei” conseguem
captar, imagens, vozes, energia percorre as... memórias. É estranho,
vivo, algo é diferente, as suas são carregadas de... esse seu vocabulário
é cheio de, palavras, termos, sinônimos e outras... não sei dizer, existe
um vocabulário, mas é...
— É complexo, cheio de significados, teorizações e eu adoraria
ter esta conversa lá fora, do meu corpo. Eu de um lado da mesa e você
de outro.
— Sabe que não, mas... insiste? Qual o sentido, sentido dessa
frase? – me pergunta ela-eu.
— Como eu disse é complexo, não é fácil explicar ou, talvez
seja simples, existem implicações e significantes que dependem do
contexto e do assunto abordado, mas as palavras não têm sentido sem
que haja um assunto que as signifique no tempo e espaço – respondi
complicando ao máximo e o quanto possível a resposta, pois não tinha
ideia de quanto tempo fiquei desmaiada e o quanto absorveu de mim.
Ela-eu me olhava “curiosa” e era estranho estar tendo aquela
conversa, e enquanto ocorriam as pausas, eu buscava contar o tempo,
uma forma de sobreviver e resistir ao que estava acontecendo em
minha mente e a melhor forma de fazer isso era tomando a frente.

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— Olha, não tínhamos a intenção de entrar em seu mundo,
não foi de propósito, apenas foi inadvertidamente feito, não precisa
nos tomar e nem o nosso planeta. Podemos ir embora e nunca mais
voltar, apenas... nos solte.
— Não sei se é possível, vimos seu mundo e esse “isso” que
vocês têm é bom, gostamos, são “muitos”, nunca juntamos com
outros-ele cheio de diferentes – disse ela-eu para mim, e compreendi
o que estava dizendo, ainda que sem um nexo satisfatório em meus
termos de fala.
Em suma, ela-todos estava dizendo que gostava da sensação
complicada de ser um de nós, todas as irregularidades humanas que
sentiam eram satisfatórias, talvez excitantes ou saborosas na lógica
dela-eu, ou seja, em poucas palavras, nós erámos uma espécie cheia de
diferenças que nunca tinham experimentado e agora queriam mais de
nós, e eu precisava ao máximo me manter menos deles.
— Então... outros-eles, vieram até o seu planeta? – perguntei
tentando entender porque não vimos rastros de outras espécies na
superfície daquele exoplaneta.
— Eles-eu-nós que vivia, aqui, antes, depois só, não diferentes
mais – a resposta dela me fez cogitar que aquele não era o planeta deles
e sim um tomado, onde as diferenças se existiam foram absorvidas e
então nada mais sobrou além de todos-eles-elas iguais, ou seja, o
tiramos da neutralidade existencial e demos a eles o vislumbre de um
mundo cheio de possibilidades, bilhões para ser mais exata. Mas foi
então que me ocorreu que eu era capaz de sentir o incômodo da pedra
onde sentara, logo era como estar num sonho lúcido e se eu sentia,
poderia ser capaz de perturbar a assimilação que fazia de meu
vocabulário, de mim, Adimu, pois como antropóloga eu tinha muito

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a oferecer, inclusive algo que não gostaria; meu extinto primitivo de
sobrevivência. E não pensei duas vezes, avancei sobre ela, foi um susto
e a joguei contra a parede de rochas e caí também.
— O que é isso? – perguntou ela-todos ao experimentar algo,
talvez dor, por ainda ter eu, ali.
— Algo que temos muito em nosso eu e que infringimos a
outros para nos defender ou atacar. Não quero seu eu-todos dentro do
meu eu, logo... – respondi enquanto pegava uma pedra no chão para
atacá-la e foi quando o cenário mudou, tropecei numa mesa de centro
e cai sentada no sofá. Agora estou na casa dos meus pais. Onde ela-
eles está?
— Querida, você está bem? Vai se atrasar. Eu estou tão
orgulhosa de você... – aquilo era uma afronta, a imagem da minha
mãe, empurrei-a com força e não permiti que chegasse perto, me
tocasse. Será que havia feito isso com os outros? Sentiram-se como
num sonho e assimilaram, desistiram, cansaram? Quanto tempo
realmente havia passado? Alguns segundos, tudo é relativo dentro da
mente e ela-outro controla a ida e vinda, não eu. Só o que tinha era a
chance de dificultar a sua leitura de quem eu sou, o que me constitui
e isso teria que bastar para me tirar dela, ou tirar ela-todos de mim.
— Você é persistente, mas vamos chegar lá. Queremos unir
vocês – disse ela-outros e aquilo me assustou, está falando mais
parecida comigo, articula melhor, o que significava que entende
melhor as palavras, me consumia e isso não é bom, preciso ganhar
tempo, assim como ela-outros faz comigo.
— Somos diferentes demais, nunca conseguirá harmonia ou
nos tornar eu-todos, somos outros-outras-muitos e resistiremos. Eu

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resisto a você agora – insisti tentando buscar uma brecha que a
desestabilizasse.
— Queremos tornar vocês, eu-todos, juntos. Será melhor.
— Não será. Cada pessoa desta tripulação é diferente de um
jeito, na língua, no rito enquanto humano com suas conexões culturais
e pensamentos coesos ou soltos. Vocês-todos são conectados,
parecidos e na verdade não gostam disso, e por isso tentam nos tomar,
vocês não têm singularidades, privacidade, segredos e por isso buscam
assimilar outros-eu, querem o que nos torna diferentes, muitos-
muitas-vários, vocês querem ser eu-só, mas são todos-chatos – resolvi
usar um insulto simples e percebi que aquilo a incomodou, pois não
foi vociferado, lhe dei a chance de absorver o significado e então, me
calei.
Resolvi tentar outra abordagem, se a natureza deles era a
assimilação das diferenças e depois passividade pela conexão eu-todos,
nós éramos o contrário, apenas o eu-só, pois a ideia de unidade não
tinha a ver com sermos iguais em pensamentos e atitudes, mas sim
diferentes e complexos com nossos contextos sem que isso significasse
estar acima um do outro, em tese, essa questão humana era histórica,
uma complicação não resolvida até os tempos de hoje.
Dei-me conta que a cada tomada de um dos tripulantes, mais
ficavam a volta, ou seja, os eu-todos estavam ao redor da mesa em
conexão, assimilando tudo que ela-todos tirava de mim, e se
partilhavam o tudo-outros e depois nada sobrava, aquela era a curva
de regularidade que eu precisava desestabilizar e fazer com que
almejasse experimentar o eu-só, para além dos outros-ela, e que lugar
mais interessante para fazer isso do que dentro da própria mente.

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— Inveja é o ato de desejar o que não é seu, tomar para si o
que é de outro e não dividir com ninguém, sem eu-todos – logo após
dizer aquilo, fechei os olhos e me recostei na poltrona.
Era a minha última cartada, comecei a relembrar com a
máxima reprodução de detalhes, sons, cores o lugar mais cheio de
gente e complexo em línguas, modos que já estive e com todas e tantas
especificidades o quanto fosse possível. Fiquei em silêncio e então
percebi passos em minha direção, podia sentir sua respiração em meu
rosto e então ela-todos fez algo curioso, me sacudiu, queria saber onde
eu estava e então abri os olhos e a deixei entrar na lembrança mais
intensa e vivida que tinha.
Estava na ONU, onde recebi juntos com os outros tripulantes,
as honras por ter sido escolhida para a missão de coalizão mundial.
Havia um mundo cultural dentro daquelas paredes, naquele dia.
Eu e ela-eu agora estávamos em meio a uma multidão de
pessoas. Lembro-me de ter ficado curiosa com a fonética de alguns
idiomas e olhar fixamente para os trajes de gala de muitos países, era
um festival de modos de vida indo e vindo, nos fones e tantas línguas
faladas fora deles que ela-eu não sabia qual desejar, queria todos e
todas. Lembrei-me da ansiedade que senti ao andar entre as pessoas
dali e ela-eu tentou fazer o mesmo, mas queria absorver tudo, cada
trecho de linguagem, mesmo que eu não tivesse a compreensão e ali
cometeu o erro “humano” da excitação desmedida, o único que
reconhecia e esperava daquela espécie. Esqueceu-se o bastante de
mim, a ponto de eu conseguir perdê-la de vista na memória.
Aproveitei seu vislumbre e andei na direção contrária, havia
uma porta no fundo, não sei se era real, não lembro dela, mas era uma
porta e saí de lá.

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De repente, comecei a me sentir engasgada novamente,
sufocada e então abri os olhos, estavam turvos pela espécie que ainda
não havia me absorvido. Eu estava sobre a mesa, me debati e virei de
lado para expelir aquela eu-todos.
Senti um asco arrebatador e passei a mão em minha face
loucamente buscando tirar aquilo de mim, qualquer vestígio, mas não
tinha muito tempo, pois não sabia o que aconteceria assim que a
memória extasiante que dei a ela-todos fosse consumida por eles-
todos ao redor, e então, não sei por que me veio o pensamento de que
o nosso cérebro biologicamente é um poço de eletricidade e química,
e que talvez causar um curto-circuito fosse algo interessante. E não
hesitei, liguei o desfibrilador e joguei sobre ela-todos.
Não houve estouro, mas, um belo choque psíquico, encolhi-
me na parede e vi na sequência todos os tripulantes tomados irem ao
chão, o elo havia sido... eu não sei, só sei que descobri uma forma de
impedi-los e de talvez, ter a tripulação de volta.
— Droga! Cadê, cadê ele, anda Adimu, procura... achei! –
finalmente, o bendito taser da Abini, não que se possa achar normal
levar algo assim ao espaço, mas ela o tinha para atordoar qualquer um
que demonstrasse instabilidade emocional durante a viagem,
estávamos procurando antes e agora serviria ao meu propósito de
neutralizar cada espécime sem matar a pilota chefe e os outros, caso
ainda existissem dentro de seus corpos.
— Lá vai! – disse a mim antes de acertar um a um no chão, e
então saí de lá mais que depressa. Tranquei a porta e observei por
horas até me cansar e ir dormir na cabine, agora, munida de comida,
água e esperança. Adormeci até ser dia novamente, em tese, já que

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onde pousamos e pela rotação, a noite durava umas cinco horas e
acordei assustada ao ouvir gritos vindos da sala médica.
Saí da cabine quase sem respirar, o corredor não tinha
iluminação e andei bem devagar. Vi que esmurravam a janelinha da
sala e ao ver o desespero estampado no rosto deles senti alívio, estavam
vivos, eram humanos, ao menos quatro deles. Abri a porta e eles
saíram, ali nos abraçamos e choramos sem parar. Ainda éramos nós,
extremamente felizes por estarmos vivos.
Levamos algumas horas até termos coragem de entrar na sala
médica novamente. No chão e na mesa estavam os restos dos eu-todos
que nos tomaram, e também, o corpo inerte de dois astronautas que
após exames seguindo o protocolo médico foram declarados com
morte cerebral, não havia o que fazer por eles, e seguindo a regra de
contaminação, não poderíamos levá-los para casa. Acho que isso foi o
que mais nos doeu, lembrar-nos de seus sorrisos achando que
tínhamos encontrado um segundo lar.
Dois dias após uma minuciosa conferência da nave em busca
da presença de algum eu-todos, tivemos a certeza de que estávamos
sós, os cinco, cada um com os seus pensamentos e dúvidas.
Apenas eu, Dra. Adimu fiz um relatório extenso do ocorrido,
os outros não lembram exatamente de nada ou do contato, talvez
porque tudo parecesse um sonho e por terem sido tomados em seus
cômodos dormindo. Daí pode vir o motivo de não terem uma exata
noção e três deles relataram que esqueceram várias lembranças
pessoais, que acredito foram “distribuídas”. Já Abini têm flashes de ter
falado consigo mesma e apenas eu, não sei dizer o porquê, resisti e me
lembro de tudo, algo foi diferente.

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Talvez o sentimento de raiva tenha sido forte o suficiente para
distrair e alimentar a curiosidade da eu-todos, talvez a quantidade de
informações e complicações humanas inerentes ao meu ofício de
compreender o humano ou pelo menos, entender seus feitos tenha
distraído ela-eu, mas a verdade é que nunca vou saber como escapei.
Finalmente, após uma quarentena vigiada, era a hora de partir
e nunca mais voltar ali. Abini tentou ligar os motores, mas a lembrei
de que tinha me ensinado a mudar a ignição para impedir a fuga deles.
Eu então lhe disse o código – 2408 e logo após, o sistema pediu a
conferência de voz e a dei com alegria e satisfação em reconhecer...
— Sou humana!

81
19
Estamos só começando...

20
67
Não detenha seus sonhos, adie-os, mas não os perca de vista
Essa afirmação transpassa e perpassa a ficção.
83
Arrisque um salto no desconhecido...
O futuro é um experimento em mutação permanente
115
Não sei como, mas vez ou outra, voe, voe alto e sem destino
Faça magia com suas palavras
129
Não deixe de contar história a você
153
Só pode ser eterno, o que vale a pena ser lembrado
161
Esse é o meu jeito de contar histórias
Antes fosse só ficção...
201
Permita-se desafiar as possibilidades
211
Meus passos, meu caminho, minha jornada

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