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Segundo Sexo
Segundo Sexo
Simone de Beauvoir
Ivonete Pinheiro*
Maria Luzia Miranda Álvares**
RESUMO
Este estudo se alinha ao exposto por Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) tendo
como principal objetivo identificar os mitos que estruturam e fomentam até nossos
dias as bases do patriarcado, colaborando para construir a representação das
mulheres como sujeito social secundário nos vários âmbitos da sociedade. A autora
identifica o motivo pelos quais os homens julgaram útil estabelecer seus códigos e
suas leis sobre este gênero, mantendo-o sob sua dependência. Evidencia-se ainda o
modo como os mitos justificam as desigualdades entre os sexos e como se
fundamentam para manter o modelo patriarcal dinâmico, se utilizando do imaginário
social para se afirmar como categoria dominante. Afirmando que os mitos
sobrevivem ao tempo e se perpetuam sofrendo lentas modificações. Através deles e
de forma sutil os homens estabeleceram suas leis e costumes criando imagens que
se insinuam em cada consciência. Este trabalho trata-se de uma análise dos dois
volumes da obra “O segundo sexo”, trazendo à tona sua importância para os
estudos de gênero, após publicação da obra o feminismo garantiu muitas conquistas
para as mulheres, entretanto muito do que Beauvoir escreveu permanece vivo.
Palavras-chave: Gênero, Simone de Beauvoir, Mitos, Mulher, Patriarcado.
INTRODUÇÃO
1357
ainda assim deu prosseguimento a seus estudos. Foi tachada de não ter ideias
próprias e copiar os pensamentos de Sartre1.
Cada página dos dois volumes de “O segundo sexo” a autora dedica
para mostrar as imagens que se construíram em torno da mulher ao longo dos
séculos como o símbolo de beleza, de pureza, de perfeição, do bem, da virtude, do
amor maternal, da “natureza” acolhedora e benévola, que segundo ela, não passam
de construções sociais. É com esses conceitos que se estabelecem as estratégias
de dominação: transformar a mulher em algo diferente do humano mantendo-a na
condição de Outro, convencê-la de que esse é seu destino aprisionando-a na
posição de passividade para evitar sua resistência contra quem a oprime. Diz Ana
Alice Costa sobre isso:
...”não se nasce, se torna mulher”. Exatamente a palavra "tomar" que, no
primeiro momento de formação do pensamento feminista, representou um
marco, com a construção do conceito de gênero, passou a ser esse o ponto
crítico do pensamento de Beauvoir. A palavra "tornar", na forma como a
trata essa autora, significa, de fato, urna mudança do corpo biológico ao
corpo cultural, isto é: do sexo ao gênero, de uma existência a outra. Para
Beauvoir, as estruturas simbólicas definem o masculino e o feminino dentro
de padrões universais, dialeticamente opostos, não detectando assim, o
caráter de relação de gênero (COSTA, 1998, p.42-43).
1
Refiro-me ao seu companheiro, o filósofo Jean Paul Sartre, um dos pioneiros nos estudos sobre o
existencialismo, com quem manteve relação por mais de 40 anos.
1358
Simone de Beauvoir considera difícil conceituar mito: “[...] Ele não se
deixa apanhar nem cercar, habita as consciências sem nunca prostrar-se
diante delas como um objeto imóvel [...]” (Beauvoir, 1949, p.183).
Os mitos ultrapassam os limites do tempo e do espaço e se
manifestam de maneira singular na mente individual de cada pessoa de
acordo com um contexto histórico e social que a comunidade a qual está
inserida vivencia. Estes aparentam muitas vezes inércia, pois se alteram tão
lentamente que as mudanças são praticamente imperceptíveis, o que os torna
ainda mais complexos quando se leva em consideração que sua transmissão
ocorre de forma oral de uma geração para outra, atua no cotidiano de forma
sutil e aparentemente agradável, influenciando diretamente na construção
individual de cada sujeito. Mircea Eliade (1972) acredita que os mitos são um
ingrediente vital para civilização humana, longe de ser uma fabulação é ao
contrário uma realidade viva e abstrata que faz parte do processo de
socialização do sujeito.
É ao mesmo tempo tão fluído e tão contraditório ao ponto de confundir-
se, é ao mesmo tempo a luz e as trevas, a salvadora da humanidade e a
mesma que a arrasta para perdição. O historiador Mircea Eliade descreve a
função do mito do seguinte modo: “A principal função do mito consiste em
revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas
significativas: tanto da alimentação ou casamento, quanto o trabalho, a
educação a arte ou a sabedoria [...]”. (ELIADE, 1972, p.13).
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apresenta-se como presa privilegiada. Deve ocupar seu lugar de esposa submissa
que busca adequar-se a seu destino inevitável, Eva símbolo da traição e do pecado
responsável pela expulsão do casal do Éden, mulher falsa e traiçoeira, traiu a Deus
e induziu seu esposo ao mesmo, representando uma das faces que o cristianismo
atribuiu à mulher e que persegue há séculos, criado pela igreja e reforçado pela
família. Esse mito foi utilizado para impedir a mulher de realizar seu crescimento
pessoal serviu também de justificativa para o processo que impediu o sexo feminino
de desempenhar cargos sacerdotais dentro da igreja, na visão religiosa judaico-
cristã sobre a mulher. Representa o lado mais obscuro, a tentação, os desejos da
carne, o pecado, o desejo de sexo, o motivo pelo qual os homens devem mantê-las
afastadas das possibilidades de progresso pessoal.
Maria, a mulher que aceitou sua sorte sem contestação, representa o mais
elevado desenho do que este gênero deve ser, é a idealização do sexo feminino,
exemplo da salvação (se tratando do outro plano) terá que se submeter à excelência
na sua vivência como mãe, esposa e filha, basicamente três papéis que a
acompanham durante toda a vida, tendo apenas a função de procriar. Este mito
ganhou força e perdura até nossos dias. Para Ana Alice Costa:
3. O mito da feminilidade
2
Ireneu de Lyon (130-202 A.C) bispo grego, teólogo e escritor cristão.
1361
...em troca de sua liberdade, presentearam-na com os tesouros falazes de
sua ‘feminilidade’. Balzac descreveu muito bem essa manobra quando
aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que
é rainha... (BEAUVOIR, 1949, p.287).
1362
social, cultas e aptas para se colocar em par de igualdade com ele. Por mais que
seja dotada desses atributos deve transparecer o contrário para que agrade ao
homem e faça sentir um ser superior, assim, ser feminina é mostra-se impotente,
passiva, fútil e dócil.
Beauvoir afirma ainda que não há mito mais enraizado no coração masculino
do que o do mistério feminino, e que o homem enxerga numerosas vantagens neste
aspecto na mulher. Ao invés de admitir sua ignorância em relação a ela, ele acolhe
um mistério, algo fora de seu domínio e do dela, haja vista que admitir que o mistério
envolve a mulher é dizer que sua linguagem existe porém não é compreendida. É
negando-a que ele se afirma como transcendente, a enxergando como ser
“complicado”, e ele sutilmente a impele para o mito da feminilidade.
O mito da feminilidade é usado na tentativa de estereotipar o comportamento
da mulher. Na primeira parte do vol. 2 de “O Segundo Sexo”, Simone dedica uma
área considerável para discutir como se inicia essa construção, o que, segundo ela,
começa a ocorrer ainda na infância. Enquanto ao menino é dada a liberdade de usar
o próprio corpo para descobrir o mundo, a menina é confinada nos limites do
possível. A passividade, traço que caracterizará a mulher “feminina” se estabelecerá
nela desde os primeiros anos, entretanto é um erro acreditar que se trata de um
dado biológico sendo esse um destino que lhe é imposto pelos seus educadores e
reforçado pela sociedade que reflete os valores dos homens.
No primeiro momento, o mito da feminilidade aparece de forma sutil e
silenciosa através das regras a serem seguidas e das atividades lúdicas, desde os
primeiros anos de vida mesmo não havendo nenhuma rivalidade entre os dois, por
incentivo dos adultos a situação passa a ocorrer. Ao menino é dada a liberdade de
brincar, correr, usar da violência para enfrentar outros meninos, enquanto a menina
é confinada aos brinquedos como uma boneca, espelhando sua própria passividade.
Enquanto é ensinada a desempenhar o ofício que exercerá no futuro, incorpora a
noção de bonito e feio e entende que para agradar é preciso ser bonita, assemelhar-
se a uma boneca.
1363
específico, que varia desde explicar um acontecimento sobrenatural, até justificar a
condição da posição secundária da mulher. No caso das relações de gênero eles
foram utilizados ora para diviniza-la ora para demoniza-la, o certo é que de qualquer
maneira ela é impelida para o “seu destino”. Entretanto quando se trata do sexo
masculino as coisas mudam de figura, porque foram os próprios homens que
criaram os mitos, logo, eles são os maiores beneficiados, aparecem como heróis,
príncipes, deuses... Exalam transcendência.
Deve-se concordar que hoje ainda existem mais do que vestígios desses
mitos em relação à mulher, permanecem vivos e não é surpreendente dizer que em
pleno século XXI ainda servem de justificativa e empecilho para o acesso das
mulheres a muitas áreas da sociedade, apesar de hoje se apresentarem de maneira
diferente, eles ainda estão vivos no comportamento dos indivíduos homens e
mulheres independente de classe social se manifestando de forma singular em cada
povo, sofrendo mutações de acordo com tempo e o espaço em que se delineiam.
Acham-se no significado da menstruação, da virgindade, da masturbação, em outras
palavras, na maneira como a mulher deve enxergar seu próprio corpo e na
representação social que este desempenha. A modificação dos costumes não se dá
de forma imediata e nem simples, pois estes se encontram implantados fortemente
no íntimo de cada sujeito.
A luta do feminismo em relação à ruptura a esses mitos se apresenta como
resistência aos costumes e ao modelo clássico. Baseia-se no princípio de que
homens e mulheres são dotados de igual capacidade, por isso são dignos dos
mesmos direitos, é a resistência de mulheres que reconhecem sua situação de
desfavorecimento, entretanto, não a aceitam.
Sobre a teoria feminista, há muitas asserções. Tomo a de Cisne (2008:70)
para evidenciar essa corrente de pensamento:
O feminismo vem se reafirmando como um dos movimentos sociais que se
situam no campo emancipatório desde sua primeira expressão, na França,
em 1789, quando as mulheres organizadas em praça pública queimaram
seus reclames e denunciaram a história e a si próprias ao questionamento à
ordem estabelecida reivindicando a igualdade e ao a firmarem a liberdade
[...]. (CISNE. 2008.p.70)
1364
pessoal e profissional, na medida em que suas tarefas “naturais” se somam às
atividades escolares e/ ou ao trabalho externo, ou seja, a condição para mulher sair
do ambiente caseiro e aumentar seu valor humano tem que estar inserido à sua
condição de ser mãe, esposa, dona de casa e ainda dispor de tempo para
desempenharas atribuições da esfera pública. As restrições colocadas ao sexo
feminino a partir da recorrência ancestral aos mitos na perspectiva de gênero
serviram de suporte para reforçar o sistema patriarcal e mantê-lo na esfera privada
da sociedade. “Essa dupla função somente tem servido para reforçar a situação de
dominação a que está submetida a partir de uma existência de um a organização
sexual da sociedade (o patriarcado).” (COSTA, 1998, p.48).
Aparentemente as mulheres estão mais preocupadas em seguir um padrão
de beleza para se tornarem socialmente aceitas do que lutar em prol de sua própria
emancipação criando-se, em torno da opressão feminina uma aparência de
“estabilidade” como se seus direitos já estivessem todos garantidos não sendo
necessário prosseguir na luta. Apesar disso, a opressão existe ainda, possuindo
várias faces e se manifestando de diversas formas na sociedade atual,
caracterizando o que a antropóloga Lia Zanotta denominou como “patriarcado
contemporâneo” 4. Atualmente, o conceito de patriarcado é muito questionado
devido sua inflexibilidade se comparado ao conceito de relações de gênero. Lia
Zanotta trata dessa questão:
Porque o uso exclusivo de ‘patriarcado’ parece conter já, de uma só
vez, todo conjunto de relações: como são é porque são. Trata-se de um
sistema ou forma de dominação que, ao ser (re) conhecido já (tudo) explica:
a desigualdade de gêneros (ZANOTTA, 2000, p.3).
4
Lia Zanotta traz o debate no seu artigo: “Perspectivas em confronto: Relações de gênero ou
patriarcado contemporâneo”?“(2000), sobre a utilização do conceito de gênero.
1365
Movimentos articulados na área da antropologia preferem usar o conceito de
relações de gênero já ele se apresenta como mais abrangente, se afastando do
conceito de patriarcado:
...gênero é uma categoria engendrada para se referir ao caráter
fundante da construção cultural das diferenças sexuais, a tal ponto de que
as definições sociais das diferenças sexuais é que são interpretadas a partir
das definições culturais de gênero (ZANOTTA. 2000.p.62).
...no mesmo ritmo da escrita dessa autora que aponta “fatos e mitos”
subjugando as mulheres e, ao mesmo tempo, interroga estes pontos
construídos num processo de representação da tradição escrita (áreas de
conhecimento, histórias etc.), e mostra a dinâmica das ações femininas
dentro da “experiência vivida”, a provocação “desalinha” a perspectiva do
status quo, mas se fortaleceu nas redes do conceito de gênero enquanto
pauta de estudos das relações sociais hierarquizadas...(ÁLAVRES. 2010.
p.85).
Conceito defendido por outra teórica, Joan Scott (1986) Que circunstancia a
seguinte definição:
Considerações Finais
1366
outras abertamente -tornando-se elemento “essencial” no processo de socialização
de ambos os sexos, principalmente do sexo feminino. A noção de liberdade e
independência passa a ser diferenciada, não sendo um processo biológico, mas
cultural em que, na realidade, o menino é convencido que é um ser superior, com a
sociedade prestigiando hierarquicamente valores como o orgulho e a virilidade.
O sistema patriarcal busca meios de se justificar no meio social e se utiliza
dos mitos para se auto afirmar e garantir sua continuidade, sendo a maneira mais
eficaz de justificar a ideologia que se alimenta desses valores, com os mitos
contribuindo de forma forte e decisiva para a construção da noção do que é ser
homem ou ser mulher. O homem de qualquer maneira não deixa também de ser
vítima do processo, pois eles são ensinados a seguir o modelo, às vezes contra sua
vontade- outras não. Foi se utilizando de mitos como o de Maria, Eva, da
feminilidade atribuindo várias faces à mulher.
O patriarcado se instalou com o advento da propriedade privada5 e
acercando-se e se apropriando dos mitos que o mantiveram até hoje. A
subjetividade feminina não se tornou um evento singular devido à hierarquia pautada
pela condição masculina construída na afirmação de que este sexo era o dominante.
E as mulheres foram convencidas de que seu lugar social era de subordinação
sendo fortalecida pelas instituições, a religião, a família e o próprio estado que
serviram de apoio para sua expansão.
Torna-se difícil analisara libertação do sexo feminino sem avaliar a dimensão
dos mitos, que em grande parte moldaram as relações de gênero. Não há a
possibilidade de superar o sistema patriarcal sem desmistificar a imagem da mulher,
e esse é um processo demorado, pois se trata de costumes que venceram o tempo,
atravessaram gerações e se manifestam de forma singular em cada sujeito. Buscar
igualdade social é antes de tudo compreender a situação do oprimido e também do
opressor, e quando de fato conhecermos os atores do processo saindo da
superficialidade entenderemos que em muitos casos os dois são produto de um
processo histórico que os levou a desempenhar tal papel.
Apesar do tempo que nos separa da época em que Simone de Beauvoir
apresentou suas ideias em torno do formato da condição feminina e sua instalação
na sociedade, estas ainda se mantém vivas na sociedade contemporânea. A
5
Abordado pelo teórico Friedrich Engels em: “A origem da propriedade privada da família e do
Estado”, de 1884.
1367
situação da mulher tornou-se um traço cultural em muitas sociedades, e em se
tratando de cultura a desconstrução é muito mais difícil. A mudança é possível,
prova disso é a evolução da situação social feminina que hoje mostra as conquistas
sociais para superar as violências e a falta de direitos que as atingia. Entretanto, não
basta a criação de leis que legitimem o ingresso das mulheres às esferas que até
pouco tempo não eram permitidas a esse gênero. E necessário trabalhar para mudar
a mentalidade das pessoas, só assim a liberdade tomará seu lugar e haverá de fato
justiça social.
REFERENCIAS
COSTA, Alcantara Ana Alice. As donas do poder: mulher e política na Bahia. Bahia.
1998.
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. New York, Columbia
University Press. 1989.
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