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A Viagem Do Haicai de Nempuko Sato
A Viagem Do Haicai de Nempuko Sato
JANÓeOLIS - 1995.
“A VIAGEM DO HAICAI DE NEMPUKU SA I O”
MESTRE EM LETRAS
B A N C A EX A M IN A D O R A :
^ßm£a-©fa^ Maria Lúcia de Barros Camargo
PR ESIDENTE
_______________
Profa. Dra. Luiza Lobo
Paul Valéry.
IHDICE
IMTRODUÇÃO 1
A TRAJETÓRIA DO HAICAI 8
- Duas viagens do haicai 15
- Uma variante: a segunda vertente 18
- Do outro lado do mundo 27
A TRADIÇAO DO PRESENTE 85
CONCLUSÃO 106
ANEXOS 116
IHTRODUÇAO
2
Tose Sato, seu pai, um pequeno comerciante de secos e
molhados.
Em 1922, conheceu Mizuno Nakata, professor da
Faculdade de Medicina de Niigata, que o iniciou no estudo do
haicai. Foi nesta época que Kenjiro adotou o nome de batismo
como haicaísta, Nempuku, Pouco tempo depois, Nempuku
conheceu Kyoshi Takahama(1874-1959) , que tinha sido aluno de
Masaoka Shiki(1867-1902)e de quem tornara-se um dos mais
destacados discípulos.
A situação econômica e social do Japão na década de
vinte era, para não dizer nada, delicada, e o governo
continuava a estimular o processo de emigração iniciado na '
virada do século. É nesse período que Nempuku Sato é outros
membros da família decidiram, sem muita escolha, emigrar
rumo ao Brasil, aqui aportando em 1927. Contudo, no caso
específico de Nempuku Sato, a atividade de "ensinar" haicai
no Brasil parecia seduzi-lo.
No Brasil, paralelamente ao trabalho agrícola,
nunca bem sucedido, Nempuku Sato escreveu uma coluna sobre
haicai no jornal Brasil Jlho, de 1935 a 1942, quando o
jornal foi extinto. A mesma coluna retornaria em 1947, no
Jornal Paulista, sendo publicada até 1977. Juntamente ao
trabalho do jornal, Nempuku fundou a Revista Kokague (1948-
197 9 com 372 números) , que pretendia divulgar a produção dos
haicais elaborados durante suas viagens pelo sul de São
Paulo e norte do Paraná. Além desses haicais, a revista se
3
encontrava à disposição para publicar, através de
correspondência, haicais de qualquer parte do mundo onde
houvesse japoneses interessados. Desse modo, pode-se
encontrar nesta revista, além dos haicais dos alunos7 de
Sato, haicais de diversos haicaístas dos países da América
do Sul.
O ano de 1954 foi o mais emblemático para a vida
de Nempuku Sato, pois, a partir daí, ele passou a se dedicar
exclusivamente ao trabalho de ensino e divulgação do haicai,
com o abandono definitivo da lavoura. Nesta época, publicou,
no Japão, dois volumes com seus haicais: Nenpuku Kushu I e
Nenpuku Kushu II. Publicou também um volume chamado Nenpukn
Halwa (Nempuku "falado"), que se destinava a divulgar as
dificuldades enfrentadas durante o processo de adaptação do
haicai ao Brasil.
Um dos aspectos centrais do meu trabalho está
relacionado ao processo de reorlenta(llza)çào do haicai no
Brasil. Este processo ora se aplica ao haicai de Sato, ora
se aplica ao próprio Nempuku Sato e aos imigrantes e,
talvez, em alguns momentos, ele deva ser aplicado à minha
pesquisa, justamente porque é muito difícil estabelecer um
lugar próprio para o haicai japonês e, ao mesmo tempo,
brasileiro. Trata-se portanto, de uma experiência realizada
em diversos limites.
7 Nempuku Sato possuía em torno de seis mil alunos nesta época, segundo
levantamentos dos seus ex-alunos.
4
O limite, no caso do haicai de N. Sato, se impõe em
diversos momentos, mas um deles, que não discuto de maneira
direta, apesar de pairar sobre todos os outros limites, se
encontra na própria especificidade do espaço deste haicai em
circular, por longos quarenta anos, apenas dentro do
universo da colônia japonesa. Desse modo, este limite, esta
margem de segurança do haicai de Sato, estabelece um círculo
muito peculiar: é um haicai produzido em língua japonesa com
muitos leitores (seis mil ou vinte mil, não sabemos ao
certo) no Brasil.
Este fato, a produção de haicai em língua japonesa,
foi, e continua sendo, uma barreira a mais para quem quer
pesquisar ou divulgar o assunto. Por esse motivo, devo
ressaltar que não fará parte deste trabalho a discussão
sobre a tradução dos haicais e, sendo assim, utilizar-me-ei
da seleção citada anteriormente, que é uma versão autorizada
pelos seus alunos. Insuficiente para analisar o conjunto da
obra de Sato, esta seleção é suficiente para abrir várias
questões.
Todavia, um outro e distinto processo de tradução,
longe do problema da língua, será discutido. Trata-se, a
partir da versão disponível, de examinar a "tradução" do
Brasil que Sato realizava. Agregada a essa "tradução",
também encontraremos a preocupação de Sato em adaptar o
haicai ao Brasil. Portanto, discutir a inserção do haicai no
Brasil feita por um japonês, fora dos cânones oficiais, fora
5
de uma tradição específica e brasileira e sem um
planejamento prévio, constitui um outro objetivo desta
dissertação.
Sendo, no Brasil, um habitante do campo, toda a
apresentação de Nempuku Sato se desdobra, convergindo para
um outro ponto deste trabalho: a leitura poética, do campo
em direção à cidade e da cidade em direção ao campo,
construída por Nempuku Sato. Essa leitura poética do campo
acaba por re-criar, em algumas décadas, todo o movimento
histórico de três séculos do haicai, presentificando sua
história. Seria, às avessas, o movimento do flânevr.
Enquanto o flânevr necessita, de maneira vital, da cidade
para praticar os passeios de leitura da modernidade, Nempuku
Sato sai da cidade, passeando em direção ao campo, para
voltar à cidade.
Entretanto, para realizar a tarefa de inserção do
haicai no Brasil, Nempuku Sato necessitava se instaurar
diante do novo território. Sendo assim, no primeiro capítulo
procuro mapear a trajetória do haicai na virada do século no
Japão, movimento este que influenciaria a chegada ao Brasil
da teoria da composição do haicai. Ao mesmo tempo, realizo o
rastreamento das duas vertentes teóricas européias que
trouxeram o haicai ao Brasil, para depois centralizar-me na
importância da terceira vertente, na vertente japonesa de
Nempuku Sato, que constitui um caso à parte e distante da
visão européia.
A leitura dos haicais tem inicio no segundo
capítulo, através do movimento circular de aproximação do
campo à cidade, associando à leitura dos haicais de Sato o
problema da experiência: da reorienta(liza)ção, da
desterritorialização, da individualização, do haicai
urbano(erudito), do haicai do campo (popular) e, por último,
do componente narrativo do haicai.
O terceiro capítulo continua a desenvolver a
leitura dos haicais, procurando refletir sobre o problema da
da viagem que trouxe o haicai ao Brasil, do valor estético e
da fronteira estética do haicai.
No quarto capítulo procuro estabelecer a relação
entre o haicai e o ’’agora". Examinar este particular
aprisionamento do presente, que se manifesta no haicai,
significa construir o movimento que transplantou, pelas mãos
de Sato, uma parte deste tradicional modelo de
presentificação e regeneração poética e histórica até o
Brasil.
7
A TRAJETÓRIA DO HAICAI
9
"La labor de Shiki no es nada fácil, pues un
ano después del nacimiento del poeta comenzó en Japón
la era Meiji, y con ella la apertura oficial del -Japón
a toda clase de influencias occidentales".10
10
Alèm da intuição, a perspectiva histórica
desfrutada por Shiki corresponderia a uma exigência imediata
de posicionamento diante do incontrolável movimento de troca
de práticas culturais exógenas.
Ao assumir a crítica social que revigoraria a
amplitude do haicai, Shiki incorporava a consciência de sua
época, pois as idéias, ou, se quisermos, a natureza do seu
tempo já não possuía a paixão exclusiva pela religiosidade
desfrutada por Bashô, Buson e Issa. Neste tecido complexo,
podemos observar um deslocamento, talvez o primeiro, do
espaço do haicai. Ele deixaria de ser pensado a partir de
uma base exclusivamente religiosa, passando a refletir sobre
uma gama mais ampla quanto ao seu raio de ação.
Desse modo, semelhante ao pássaro cuco, que diante
da hora da morte começa a cantar até sangrar a garganta, ou
à cigarra que de tanto cantar morre por uma explosão, Shiki
soube reconhecer, no limite, o momento de colocar o pincel
sobre a superfície da seda, para fazer o haicai com aqueles
ingredientes comuns àquilo que encontramos na modernidade
literária do Ocidente: crítica, ironia, contradição, terror,
parcialidade, rapidez, sagacidade, crueldade e, de maneira
emergente ainda, a incorporação do leitor.
11
Vejamos um exemplo da critica de Shiki no haicai:
Viento de otofío
no hay para mi dioses,
no hay budas.13
12
do haicai, descartando o budismo, o misticismo, e
acrescentando a crítica social.
Sem dúvida, Shiki parece ter incorporado e
desenvolvido uma crítica sistemática da produção de haicai
no Japão, desempenhando o papel do critico-artista moderno.
Funcionou, de acordo com Nietzsche, como uma antena da raça.
Dito de outro modo, Shiki soube corresponder às
exigências de sua época, e isso fica claro quando pensamos
que, a partir dele, os haicaístas assumiriam com desembaraço
novos desafios estéticos, mesmo que isso significasse a
superação das fronteiras geográficas do Japão.
Para chegar até nosso destino, devo apresentar o
elo de ligação entre Shiki e Nempuku Sato.A trajetória do
haicai do Japão ao Brasil não ficaria completa sem a
inclusão de Kyoshi Takahama(1874-1959).
Kyoshi Takahama fazia parte de uma geração que
inicia um processo plural de atividades. Além de escrever
haicais, Kyoshi escreveu "romances", artigos para jornal e,
paralelamente, tornava-se editor, intermediando inclusive a
publicação do primeiro livro de Nempuku Sato no Japão.
Aqui começa a viagem que trouxe ao Brasil a
vertente japonesa13 do haicai. Nempuku Sato desembarcou em .
Santos, S.P.,em 1927, trazendo um desejo e uma missão.
Desejo de chefiar uma família com sete membros e a missão
de:
13
cultive a terra
plantando com suor
um país de haicais.16
16 Kyoshi Takahama. Haicai tarefa oferecido a Nempuku Sato por ocasião de sua
saida do Japão em 1927. Trad. de Tokui Sato.
17 Depois de várias consultas e diversas conversas sobre o assunto, não
encontrei nenhuma bibliografia específica sobre a produção de haicai, por
japoneses, fora do Japão.
14
DUAS VIAGENS DO HAICAI
15
O caminho trilhado por A. Peixoto(a fonte
francesa)foi o mesmo19 percorrido, quase vinte anos depois,
por Guilherme de Almeida, ao publicar, em 28 de fevereiro
de 1937, num ensaio chamado Os Meus Halkals, a seguinte
reflexão:
19 Embora exista uma diferença: Guilherme de Almeida pensa o haicai como uma
proposta de "erudição", ao passo que Afrânio Peixoto privilegia o aspecto
"popular" do haicai.
20 Id.ibid., p. 38.
16
"Escrever sobre o Japão no final do século
XIX implicava em aderir a uma tendência artística, a um
gosto, cuja primeira característica era a de ser
cosmopolita. Europeus, americanos do norte e do sul,
homens de letras ou artistas plásticos, o público
cultivado em geral, achavam-se sensibilizados,
fascinados, pela última grande descoberta do Ocidente,
por sua última grande viagem-o Japão".21
17
pressupostos teóricos diferentes daqueles aplicados por
Tablada.
18
concretismo. Essa segunda leitura do haicai, como
examinaremos depois de maneira pormenorizada, foi
responsável pela apresentação de novas soluções no que diz
respeito à tradução. Além disso, esta vertente modificaria o
cenário das influências francesas, optando pelos estudos da
linguagem ideoqramática de Ernest Fenollosa, e pela pesquisa
insistente em torno dos aspectos formais do imagismo de
Pound.24 Dessa forma, desenha-se vim cenário no qual a
"identidade" estética define as aproximações.
Do mesmo modo, no campo da linguagem ideogramática,
deve ser ressaltada a publicação no Brasil, em 1977, por
Haroldo de Campos, de um ensaio de Siergei Eisenstein, sobre
a montagem cinematográfica e o ideograma. Os trabalhos ali
relacionados partiram de uma premissa comum ligada ao
haicai: a supremacia da imagem e o privilégio do aspecto .
silogistico. Isto permitiria o manuseio da imagem a partir
do movimento de desmontagem e montagem. De fato, trata-se de
pensar o haicai através do ideograma como uma estrutura
encerrada. A estratégia de Fenollosa, Pound, Eisenstein e,
depois, H. de Campos seria a de pensar objetivamente a
poesia a partir da abolição do verso e da estruturação e
privilégio da imagem, que, neste caso, não se trata da
"imagem poética" como figura de linguagem.
19
Haroldo de Campos, em 196925, num ensaio com sabor
de manifesto, pretendia operar em duas frentes distintas
para estabelecer o lugar do haicai entre as formas
contemporâneas de poesia. Em primeiro lugar, ele explica
rapidamente as origens do haicai:
21
para o processo de composição do haicai: a amplitude
crítica.
Num ensaio posterior,29 na verdade um desdobramento
do primeiro ensaio, H. Campos procura associar o haicai a
um projeto que fosse capaz de se ajustar ao desenvolvimento
do plano piloto da Poesia Concreta. Nestes termos, o haicai
oferecia sua contribuição.
22
lida no desfecho da Introdução do livro A Arte no Horizonte
do Provável:
23
"0 sucesso ou insucesso na apresentação de
qualquer poesia estrangeira em inglês fica em grande
parte na dependência do trabalho poético aplicado aos
meios escolhidos. Talvez seja demais esperar que
eruditos idosos, que passaram a mocidade a se digladiar
com renitentes caracteres chineses, sejam também bem
sucedidos como poetas. Até os versos gregos poderiam
ter sido mal recebidos se os que deles nos abastecem
tivessem compulsivamente de contentar-se com os padrões
provincianos da versificação inglesa. Os sinólogos
deveriam lembrar-se de que o propósito da tradução
poética é poesia, não as definições dos dicionários".32
24
Esse aspecto, de uma religião poética, foi
defendido durante grande parte de seus ensaios sobre o
haicai.
25
extremo esse sentimento desolador causado pelo haicai de
Bashô, exatamente porque continua atribuindo um caráter
estritamente poético ao haicai, embora reconheça a relativa
distância formal que separa essa prática do Oriente da
poesia ocidental.
Pode ser também observado que, nesta perspectiva,
o haicai perde muito daquela referência à imagem discutida
anteriormente, porém ganha fôlego, em O. Paz, o lado místico
e religioso, o lado metafísico do haicai.
Podemos dizer que a' amplitude metafísica de Bashô
foi realçada, como se a lição do mestre tivesse sido
compreendida em sua plenitude. Mas, qual será o motivo que
gerou esse apego a Bashô? Aparentemente isso pode ser
respondido pelo próprio autor:
26
Por outro lado, os ensaios de O. Paz' realizam um
levantamento histórico sobre a filiação do haicai, que será
analisado mais adiante neste trabalho.
27
Sato adicionou a experiência da cidade, que implicava
individualizar e urbanizar o haicai.
Portanto, existem duas viagens distintas que
trouxeram o haicai até nós. A primeira se refere às duas
vertentes eruditas e europeizadas que veicularam uma
"forma", adequando-o às suas necessidades estéticas. A
segunda viagem se refere à terceira vertente, e reflete uma
descoberta: Nempuku Sato, escrevendo haicais em japonês no
Brasil, lançava-se em direção ao repasse de toda história do
haicai, recriando um círculo, no qual o haicai fosse capaz
de reviver, ao mesmo tempo, vários períodos de sua história
ao longo das quatro décadas em que Sato produziu haicais no
Brasil.
As duas primeiras vertentes atribuíram uma certa -
vocação poética e inseriram o haicai na cidade. Desta forma,
este tipo de "urbanização” do haicai era realizada sem
transição, aos saltos e solavancos, abortando a discussão
sobre um dos principais aspecto do haicai: aquele que se
refere a sua origem agrícola.
Analisando a sociedade ocidental, Raymond Williams
reconhece que a nossa origem agrícola acabou sendo
marginalizada, devido "à nossa vocação natural da cidade
industrial", num esquecimento que somente pode ser pensado a
partir do desejo Ocidental de superar, a todo custo, a
herança recente do campo. Talvez este fato ajude a explicar
o desconhecimento, no Brasil, da obra de Nempuku Sato.
28
O desejado elemento urbano do haicai se articula às
discussões eruditas que permearam toda poesia visual,
objetiva, originárias do imagismo do início do século, bem
como as discussões de caráter histórico-literário a respeito
do esteticismo simbolista francês.
Seja como for, o que realmente estava em jogo nos
dois casos (do imagismo inglês e nas ramificações do
simbolismo francês) se referia ao uso continuado, mas agora
adaptado às novas tendências, da imagem; o processo de
elaboração das imagens era o centro das atenções, em que
prevaleceu, como sabemos, o caráter construtivista do
imagismo poundiano, que geraria pouco depois a poesia
concreta alemã(nos anos 20).
Por outro lado, o fato de o haicai de N. Sato
descrever um movimento no qual surge em primeiro lugar o
campo, não significa que este haicai deva ser exclusivamente
ali realizado, pois o exame destes haicais servirá como
reconhecimento e observação do modo pelo qual ocorre o
processo de urbanização devastador e rápido das regiões
agrícolas, principalmente no norte do Paraná e sul de São
Paulo.
O processo de urbanização do campo constituirá um
grande obstáculo a ser transposto por Sato, ou seja, neste
caso será dada uma oportunidade para vislumbrarmos o
horizonte da transição extremamente emblemática, em busca da
superação de espaços, e principalmente, ver nestes exemplos,
29
o campo sendo transportado à cidade e a cidade invadindo o
campo, seja pela abertura de estradas, de vias, seja pela
constante marca de ausência que a cidade lança em direção ao
campo.
A inovação critica desejada e praticada por Shiki
começava a fechar um círculo, e esse movimento incorporava
seu último elemento, talvez impensado na origem:
literalmente, a viagem ao Ocidente, a superação do horizonte
geográfico japonês através do haicai.
Desse modo, Sato possuía uma "ferramenta" de
leitura do Brasil, mas o seu funcionamento era um enigma.
Manejar o haicai significaria aprender, sem parâmetros de
comparação, sobre a natureza e organização social do novo
país.
Para que o haicai e o haicaísta funcionassem, seria
necessário adaptá-los e aclimatá-los o mais rápido possível:
30
sobreposicionamento de duas experiências distintas: a
incorporação do Ocidente, e o seu duplo, ou seja, revisitar
o Oriente.
31
0 HAICAI DE HEHPQKQ SATO: CAMPO E CIDADE
Nempuku Sato.
32
ocorre uma característica singular deste erudito japonês,
pois, ele pode ser, entre outras coisas, um mendigo, como
Bashô40. Por outro lado, no século XVIII e XIX, o haicai pode
ser encontrado em diversas manifestações populares, sendo
praticado através de uma forma específica relacionada ao
riso. Neste caso, o haicai pode ser chamado de "senryu", ou
haicai humorístico.
Portanto, o haicai, inicialmente, estava voltado
para a reflexão sobre temas nobres e o seu espaço era o
campo.Com o surgimento das primeiras e pequenas cidades41, o
haicai passa a ser difundido fora do campo. Do mesmo modo,
também nos séculos XVIII e XIX, a população do campo passa a
difundir esta prática. Sendo assim, o haicai descreve um
movimento que ultrapassa um limite que o fixava às atitudes
nobres, recebendo novos desdobramentos populares.
Partindo das reflexões de T.S. Eliot42 sobre a
cultura, independentemente da minha escolha, não seria
inteiramente correto associar o poeta ou o artista Nempuku
Sato ao intelectual ou ao erudito homem de letras. Vejamos
como se constrói, para Eliot, o conceito do homem erudito,
do artista e do intelectual no Ocidente.
33
"El término cultura admite distintas
asociaciones según esternos pensando en el desarrollo de
un individuo, de un grupo o clase, o de una sociedad
entera. (...) Podemos estar pensando en un refinamento de
los modales, o 'urbanidad’ y ’civismo’ en cuyo caso
debemos primero tomar en consideración una clase social
y al individuo superior como representativo de lo mejor
de esa clase. 0 tal vez pensemos en el estúdio y en un
estrecha familiaridad con la acumulación de saberes dei
pasado; en tal caso, nuestro hombre de cultura es el
erudito. 0 en la filosofia en su sentido más amplio: un
interés en ideas abstractas y cierta habilidad para
manejarias; en tal caso, nos estamos quizás refiriendo
al intelectual (...).0 quizá pensemos en las artes y en
ese caso nos referimos al artista y al amateur o
diletante. Pero rara vez nos vienen al pensamiento
todas estas cosas al mismo tiempo."43
43 Id. i b i d . p .26-27 .
34
diferente, como teria ocorrido a contaminação do haicai de
N. Sato?
PRIMEIRO O CAMPO
35
constatamos as características ’’feudais" que a economia e a
sociedade japonesa apresentavam até o século XIX.
Obviamente, este fato determina que a grande maioria da
população habite, preferencialmente, o campo.
Octavio Paz, entretanto, observa vim movimento
diferente:
36
Por outro lado, diria que alguns pressupostos não
se encaixam adequadamente na reflexão acima. Em primeiro
lugar é problemático referir-se à cidade moderna no século
XVI ou XVII.
Para Raymond Williams, os
37
se possa atingir a iluminação. Para realizar essa tarefa, é
necessário, segundo Bashô, uma concentração distraída, uma
sincera identificação com as coisas e uma irmandade com tudo
que existe no mundo: ervas daninhas, estrume de vaca, flores
ou capim.
38
& ORIEHTAÇÁO INICIAL
39
Neste ponto, a "ferramenta” de leitura começa a ser
utilizada pelo haicai de Sato (e se funde a ele),
convertendo-se num meio para conquista territorial. Sendo
assim, a conquista territorial se apresenta sob dois
aspectos: de um lado, o haicai busca segurança neste
reconhecimento para ler o Brasil; ao mesmo tempo, e isso
forneceria um outro sentido, o haicai e o haicaísta deveriam
se adaptar à cena local, recuperando-se das perdas e
reconhecendo os ganhos da viagem que os trouxe ao Brasil.53
Simultaneamente, através da substituição da
floresta pelo campo, a cidade estaria mais próxima das
"trilhas de folhas caídas". Existe aqui um movimento de
aproximação da influência do meio urbano; entretanto, é uma
aparição ainda fugaz, que não produz muitas pistas, apenas
as desperta. O que se poderia encontrar no final das trilhas
de folhas caídas? A cidade? O campo?
O haicai de Nempuku Sato começa a realizar um
movimento circular, tendo como ponto de partida o campo.
<0
40
A CIDADE AUSEHTE
único machado"^4
54 Haicai de W. Sato.
41
Essa incorporação, nos haicais de N. Sato, abrange
variados aspectos como, por exemplo, a inclusão dos negros
no seu panorama temático.
42
Vejamos um desdobramento desta presente ausência:
43
da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos
nossa subsistência, e as realizações das sociedades
humanas".59
44
haicai. Nempuku Sato pretendia fazer o haicai retornar,
rapidamente, à origem agrícola e dela até o século XIX,
quando conquista a cidade. Porém, esta cidade não é qualquer
cidade, ela é um espaço criado a partir de imagens as quais
remetem, edificando e revivendo, ao campo.
A publicação dos seus haicais, no Japão,
estabelece uma estrada, um espaço integrador entre duas
realidades espaciais distintas: o produtor no Brasil e o
leitor no Japão. Entretanto, estabelece um limite onde não •
se pode mais localizar de maneira precisa a ação
determinante do haicai, deixando de ser específica de um
lugar.
O haicai não é japonês nem brasileiro. Dessa forma,
o haicai agrega a primeira característica marcante do
capitalismo: deixa de ser "puro" e se transforma em um
produto desterritorializado.
A avaria produzida pelo movimento de
desterritorialização re-ordenará o mecanismo do haicai,
esmagando os limites conhecidos de uma unidade, que neste
caso podem ser relacionados à retirada do conjunto do hokku,
que produziu a avaria principal, lançando o haicai japonês
em direção a novos desdobramentos.
45
"Não perguntaremos como é que isto funciona
em conjunto: esta questão é já produto de uma
abstracção. As máquinas desejantes só funcionam
avariadas, avariando-se constantemente"60
46
A INDIVIDUALIZAÇÃO DO HAICAI
47
exigida pelo haicai e buscada pelo autor, a autonomia se
mostra relativa, porque a sombra do autor sempre retorna,
principalmente para lhe atribuir valor ou importância.
Em relação á autoria existe um processo semelhante
ocorrendo no Ocidente no final do século XVIII, analisado
por Michel Foucault. Vejamos:
48
Sato parece ter isso em mente quando recria todo o processo
de autoria, datado do século XVIII no Japão, no Brasil do
século XX. Primeiro porque escolhe os "haiku-kukais"
(reuniões) para realizar os exercícios de ensino do haicai,
notadamente um procedimento coletivo no qual o autor seria
uma figura secundária. Todavia, Sato re-instala o autor,
individualizando o haicai e assinando as publicações.
O projeto de elaboração de um haicai(não só do -
haicai) não se completa jamais. Não faz parte dele
estabelecer uma unidade encerrada: sendo um produto do
estilhaçamento do "hokku", a história do haicai revela uma
característica antagônica: ele é um fragmento daquela
unidade anterior. Desse modo, o seu trabalho apenas se
efetua ao longo do exercício da leitura, que, diga-se de
passagem, permite ampla liberdade para estruturarmos um
presente a partir de um ponto aleatório deste exercício.
De propósito ou não, seu processo de elaboração é
caótico, porque não se completa nem mesmo através da
leitura; portanto, torna-se um objeto irredutivelmente
inacabado.
Imbricado ao caráter inacabado aparece, ou continua
aparecendo, alguma coisa que restringe nossa capacidade de
entendimento do haicai: o silêncio.
O silêncio, a princípio enigmático, perpetua-se
pela carga infinita de significados: aquilo que não se pode
ou não se deve falar necessariamente se cala. Entretanto, em
49
japonês è possível expressar o silêncio através de
ideogramas. Este silêncio, ligado ao esvaziamento do
espírito budista e zen-budista, pode ser semelhante à fuga
do escritor diante do imponderável início ou fim de uma
obra.
50
Periodo de preparação que se destina a "desfigurar"com
classe a natureza, ou mesmo a transgredi-la.
Talvez, deste modo, o haicai perca inevitavelmente
seu "dom natural" de representar a natureza, chamando para
si uma "redefinição" da natureza, pois ele não possui
apenas o caráter imagético que o consagrou entre nós.
51
definitivamente a origem do fato, pois a origem estaria
fraturada e esvaziada de história; podemos percebê-lo e
assim procedemos, mas absorvemos apenas uma parte ocasional
e desgovernada.
Vejamos um caso no qual Nempuku Sato se utiliza da
ironia e da crítica social:
Brasil
celeiro do inundo
comendo arroz e batata.64
Aranha
força bruta
remenda a teia.6S
52
de fornecer chaves de leitura dela mesma, o que ocorre
somente quando se engendra a cultura neste
processo.Portanto, quando se diz que o ideograma que compõe
o haícai tem a finalidade exclusiva de representar uma parte
da natureza através do silogismo, utiliza-se apenas uma
parcela do seu potencial.
Uma leitura mais abrangente ocorre, na pintura,
quando os "impressionistas" desdobraram o potencial de
representação do ideograma. O "impressionismo", paralelo às
pesquisas que desenvolvia o imagismo poundiano, nutria-se em
grande escala da técnica de pintura do ideograma japonês. O
"impressionismo" possuia uma característica básica de
instalar um borrão entre a paisagem e o leitor (funciona
como uma espécie de "deformidade" da natureza)66. Este borrão
advém, talvez, da tentativa de reproduzir um efeito
semelhante ao que o ideograma produz no branco da seda.
Quando examinamos um ideograma à distância, o seu efeito
causa a sensação de iam grande borrão. Este efeito visual
adquire ares carregados e torna toda a atmosfera mais
densa, enchendo-a de mistérios.
No Ocidente, a influência japonesa se manifestou,
de acordo com O. Wilde, de maneira criadora:
53
nossas ruas, esfumando os lampiões de gás e
transformando as casas em sombras monstruosas?(...) A
mudança extraordínária que tem sofrido o clima de
Londres, durante êstes dez últimos anos, deve-se por
completo a uma escola artistica particular. Você
sorri.Considere o tema do ponto de vista científico ou
metafísico e será da minha opinião. Com efeito: que é a
Natureza? A Natureza não é a mãe que nos deu à luz.É
criação nossa.(...) As coisas existem porque as vemos e
o que vemos e como o vemos depende das artes que
influíram em nós. Olhar uma coisa e vê-la são atos
muito diferentes. Não se vê uma coisa enquanto não se
compreendeu sua beleza. Então, e só então nasce para a
existência. Agora a gente vê a bruma, não por que ela
exista, mas porque alguns poetas e alguns pintores lhe
ensinaram o encanto misterioso de tais efeitos. Névoas .
podem ter existido em Londres durante séculos. Até me
atrevo a dizer que sempre existiram. Mas ninguém as viu
e por isso não sabíamos nada a respeito delas. Não
existiram até o dia êm que a Arte as inventou.67
54
duplicidade do seu registro, fornecendo versões de cada
instante.
68 Haiku. IV vol.
55
vivos, compartilhando de nossa humanidade, falando com
sua linguagem expressiva e silenciosa".69
56
Esta primeira leitura coloca de lado toda a
discursividade que poderia revelar novos direcionamentos
menos restritivos sobre o funcionamento do haicai.
De outro modo, procuro chamar a atenção novamente à
diferença. As circunstâncias culturais que envolveram e
condicionaram a produção do haicai no Japão foram
extremamente diferentes das condicionantes ocidentais.
No haicai se manifesta uma maneira de "olhar” e
"criar", porém a sensibilidade deste ato é diferente. A
disciplina exigida para realização desta tarefa, do mesmo
modo, é diferente da experiência ocidental.
57
O HAI CAI COMO PARTE DE DMA EXPERIÊNCIA NARRATIVA
58
No caso de N.Sato, podemos observar uma forma
poética tentanto se articular a uma forma narrativa. Temos
um tipo de narrador constituído pela figura do camponês
viajante, que recolhe as experiências dos grupos
sedentários, realizando um trabalho de intercâmbio. Seu
principal veículo era o "olhar", que se converteria a seguir
em haicai.
De fato, não é por acaso que o haicai também pode
ser denominado HAIKU-KUKAI, que significa, literalmente,
reunião para fazer haicai. Etimologicamente se encontra uma
referência à palavra reunião dentro da palavra haicai.Esse
detalhe re-instala o haicai de Nempuku Sato dentro de uma
perspectiva do século XVIII.
Tais reuniões aconteciam sempre nas ocasiões da
visita do Sr. Sato: nestes dias, o haicai assumiria
novamente seu caráter coletivo, apesar da identificação de
cada autor. A cerimônia, onde se servia comida e bebida,
culminava com a escolha e a leitura dos haicais escolhidos
pelo Sr. Sato.
Dessa maneira, o Narrador Sato se apresenta como um
elo de convergência, provido da faculdade de intercambiar
experiências; descrevê-lo como um narrador,
72 Ibid. p.197.
59
Além disso, ele tem a responsabilidade do homem que
dá conselhos, urna outra marcante característica do narrador,
segundo W.Benjamin.
60
se tornou imperativo, por causa da ’’radical desmoralização"
produzida pelos combates. Isto, evidentemente, marca um
trauma e, daí em diante, absolutamente tudo exigiria o
recomeçar.
O recomeço do haicai de Sato faz parte de um
processo de estruturação e preparação do "espírito",
buscando uma união com o todo existente ao redor de si,
distante da individualização.
Citemos, por exemplo, as três idéias oriundas de um
sincretismo religioso, seguidas à risca pelos imigrantes,
que têm origem no confusionismo, budismo e xintoismo, e
deveriam ser aplicadas à experiência agrícola: trabalhar
honesta e diligentemente, fazer economia e poupança e, por
último, possuir espírito de conciliação nas relações
sociais.
É desse material simples e escasso, deste pouco e -
desta moral, que se elabora o haicai de Nempuku Sato; assim,
o sentimento de uma ausência histórica anterior -do haicai
no Brasil- produzido pelo iniciar, pelo movimento de se
instaurar, se assemelha a sensação sempre incompleta
provocada e desfrutada através do ato de leitura deste
haicai.
61
MORRER, VIVER E VIAJAR: O TERRITÓRIO DO H&ICAI
H.Nakamura
62
Penso, inicialmente, no problema enfrentado por N.
Sato quanto ao estabelecimento de uma posição definida
sobre o lugar que o haicai deveria ocupar no Brasil. Para
examinar esta questão procederei a um desmembramento
secundário no paradigma de organização dos haicais, que seja
capaz de desvendar a sutil tentativa de Sato de
reorienta(liza)ção do haicai.
Realizar esta abordagem significa operar um recorte
temático, visando encontrar os elementos que, de alguma
forma, contribuíram e auxiliaram neste processo de adaptação
e inserção do haicai no Brasil.
A presente alternativa se torna necessária porque
esta análise não poderia ser feita a partir dos elementos
estruturais do "poema", como diria Antonio Cândido74.
Examinemos um exemplo de análise do ritmo com
critérios ocidentais, que demonstra a inviabilidade deste
procedimento:
63
de balizas, auxiliando no processo de tradução dos haicais.
A análise rítmica ou a leitura formal não pode ser efetivada
por outra razão muito simples: as referências estruturais do
haicai são de outra natureza e se relacionam especificamente
à língua e à cultura japonesa.76
Entretanto, a minha análise pode se nutrir dos
elementos que, no caso de N. Sato, parecem ser reveladores
de um outro direcionamento. Sobretudo, porque Sato deveria
proceder a uma "tradução" conteudística das coisas,
fornecendo uma contextualízação específica para o haicai
brasileiro. Sato deveria recuperar possíveis perdas de
referências ocorridas durante o percurso da viagem que
trouxe o haicai do Japão ao Brasil.
64
A MORTE VISÍVEL E A VIAGEM INVISÍVEL
65
O espaço da morte se funde à reflexão sobre o
deslocamento do haicai, porque este deslocamento pode ter
sido responsável pela tentativa de Sato de fazer o haicai
reviver toda sua trajetória histórica no Brasil. Nempuku
Sato pretendia re-viver o haicai, talvez por aceitar a
hipótese de que o haicai estivesse morrendo.
Se assim for, deslocamento e morte podem, muitas
vezes, refletir um espaço comum, impossibilitando a
demarcação de uma linha divisória clara:
entrevendo o que
resta de um enterro.78
66
Aqui o visível também se encontra camuflado entre a
névoa, produzindo fantasmas e entrevendo duplicidades
invisíveis. Neste caso, o haicai congelou a ausência recente
da vida. Todavia, a sensação produz apenas o enterro de um
duplo da vida, pois foi apenas um representante dela que
morreu. Nempuku Sato pode estar vendo o enterro do duplo do
haicai brasileiro: o camuflado enterro do haicai japonês.
67
contínua a viver o haicai brasileiro. No entanto, resta
naquele lugar, na heterotopia do cemitério, algo importante
que não pode ser festejado nem tampouco nomeado
completamente: diante da morte se cala e esse silêncio se
converte num questionamento sobre a continuidade ou o
sentido da existência do haicai.
68
Assim, o haicai deixa de ser apenas um utensílio da
leitura, nega-se a fornecer exclusivamente uma imagem visual
de primeiro impacto. 0 haicai de Sato encontra-se num espaço
problematizado, sugerindo, constantemente, um retorno à
fragmentação original do hokkv que seria a sua principal
marca. A viagem do haicai re-signíficou este aspecto
fragmentário, camuflando a principal marca do haicai
tradicional japonês, que visava a uma unidade. A herança que
Sato recebeu de Shiki parece se manifestar claramente.81
69
semelhante e um reflexo, mas não idêntico, do haícai
japonês. No Brasil, o haicai "aparece". Neste novo espaço,
o haicai se movimentou e está deslocado, muito além de suas
fronteiras de origem; sendo assim, aos nossos olhos, ele nos
revela a sua duplicidade. Portanto, o haicai não se encontra
mais preso a um estado adjetivo da leitura, que ele
realizava no Japão, porque o haicai não está mergulhado no
seu uso cotidiano. O haícai deixa de ser um utensílio a
mais, e esta viagem da teoria da composição de Sato marca o
processo de substantivação do haicai, que, duplicando-o,
descola-o das prioridades de espelhamento da natureza, da
concisão e da visualidade. Além desses atributos, o haicai
brasileiro, deslocado, transforma-se num produto do
imaginário japonês sobre o Brasil.
Desse modo, ao lado de Maurice Blanchot, poderia
perguntar:
70
procuramos:Será que a própria linguagem não se tornar
na literatura, imagem inteira, não uma linguagem que
conteria imagens ou colocaria a realidade em figura,
mas que seria sua própria imagem, imagem da linguagem-e
não uma linguagem figurada- ou ainda linguagem
imaginária, linguagem que ninguém fala, ou seja, que se
fala a partir de sua própria ausência, tal como a
imagem aparece sobre a ausência da coisa, linguagem que
se dirige também à sombra dos acontecimentos, não à sua
realidade, e pelo fato de que as palavras que os
exprimem não são signos mas imagens, imagens de
palavras e palavras onde as coisas se fazem imagens?83
03 Id. Ibid.p.25.
71
" Cada manhâ nos ensina sobre as atualidades
do globo terrestre. E, no entanto, somos pobres em -
histórias notáveis. Como se dá isso? Isso se dá porque
mais nenhum evento nos chega sem estar impregnado de
explicações. Em outras palavras: quase nada mais do que
acontece beneficia o relato; quase tudo beneficia a
informação. (...) A informação recebe sua recompensa no
momento em que é nova; vive apenas nesse momento; deve
se entregar totalmente a ele e, sem perder tempo, a ele
se explicar. Com a narrativa é diferente: ela não se
esgota. Conserva a força reunida em seu âmago e é capaz
de, após muito tempo, se desdobrar".84
72
Dessa maneira, o haicai de Sato seria parecido
"aos grãos que, há séculos, estão hermeticamente armazenados
nas câmaras das pirâmides e que, até o dia de hoje,
conservam seu poder de germinação".85
Retornemos, novamente, para este haicai,
associando-o, agora, à viagem até a fronteira:
73
teórica; a idéia que viaja. A viagem interna está associada
ao sentido que procura "reorient(aliz) ar" o haicai (leste ou
oeste nern sei onde), repensando sua forma de produção,
sendo agora voltada, ao mesmo tempo, ao reconhecimento do
território teórico.
O deslocamento da experiência de Sato, que pretende
reelaborar um campo de ação, encontra-se cravado por uma
duplicidade evidente, onde Autor e Obra se fundem- "japonês
vivo aqui"-, porém está ausente desta constatação que eles
continuam sendo brasileiros.
O trabalho de pesquisa construido por N. Sato em
torno do novo território possuiria um sentido amplo,
abarcando a viagem interna sobreposta à externa e, além
disso, este trabalho incorporou um elemento a mais neste
novo território.
14
UM& OUTRA FRONTEIRA
75
raridade e humor; ou, pelo contrário, atribuindo-lhe uma
certa dose de facilidade, em relação a sua composição, e,
obviamente, descartando-o como experiência com ’ valor
estético.
As duas vertentes ocidentais desconheciam a
movimentação de Nempuku Sato. Portanto, existe uma outra
perspectiva que estava preocupada em aclimatar o haicaí ao
Brasil, de uma outra maneira. O processo de aclimatação
desenvolvido por Sato talvez não seja insuficiente para
desconfiarmos de um aumento da amplitude estética do haicai.
07 Id . I b i d . p .63.
76
"0 cumprimento da norma produz o prazer
estético; mas o valor estético, ao mesmo tempo que o
prazer, pode também incluir fortes elementos de
desagrado sem que a sua integridade seja afectada".88
88 Id-Ibid.p.63.
89 Octavio Paz. O arco e a lira.
77
"0 poético é poesia em estado amorfo;o poema
é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se
recolhe e se revela plenamente"90
90 Id. Ibid.p.17.
Cruz e seu indireto modelo profano, Garcilaso? A
perspectiva histórica -consequência de nosso fatal
distanciamento -nos leva a uniformizar paisagens ricas
em antagonismos e contrastes. A distância nos faz
esquecer as diferenças..."91
91 id. ibid.p.18,19.
os casos de idéias e teorias que se movem de uma
cultura para outra, assim como quando as chamadas
idéias orientais a respeito da transcendência foram
importadas pela Europa durante o início do século XIX;
ou, quando certas idéias européias a respeito da
sociedade foram traduzidas para as tradicionais
sociedades do Oriente, durante o final do século
XIX. (...) Semelhante movimento para um novo ambiente
nunca é livre. Envolve necessariamente um processo de
representação e institucionalização diferente daquele
do ponto de origem".92
92 E. Btr. Said. The world, the text, and the critic, p. 226. "Like people and
schools of criticism, ideas and theories travel-from person to person, from
situation to situation, from one period to another. Cultural and intellectual
life are usually nourished and often sustained by this circulation of ideas,
and whether it takes the form of acknowledged or unconscious
influence,creative borrowing,or wholesale appropriation, the movement of ideas
and theories from one place to another is both a fact of life and a usefully
enabling condition of intellectual activity.There are particularly interesting
cases of ideas and theories that move from one culture to another, as when so-
called Eastern ideas about transcendence were imported into Europe during the
early nineteenth century, or when certain European ideas about society were
translated into traditional Eastern societies during the later nineteenth
century. (...).Such movement into a new environment is never unimpeded.lt
necessarily involves processes of representation and institutionalization
different from those at point of origin". Minha tradução.
80
que parece ter sido ressaltado neste deslocamento também se
localiza na base de uma nova institucionalização.
No ponto de origem, no Japão, o haicai foi
institucionalizado quando Bashô começou a assiná-los. A
reorienta(liza)ção do haicai, realizada por Sato no Brasil,
adquiriu importância central junto ao processo de re-
institucionalização. Talvez, tenha sido a primeira vez que
esse processo necessitava ser realizado fora do Japão. Re-
institucionalizar o haicai significava algo sem precedência,
algo que não possuia registros anteriores.
81
imobilizasse um determinado aspecto do seu trabalho de
deciframento, ligado à "descompromissada" leitura que ele
pôde desfrutar no local de origem. Talvez porque esta
leitura do mundo estivesse mergulhada no uso cotidiano, isto
é, o trabalho do haicai não era visto, não estava presente
ou desaparecia em seu próprio uso diário; nesse sentido, ele
existia apenas na "ausência". No local de origem, não havia
nenhuma necessidade de reconhecimento do território, de um
novo reposicionamento: enfim, seu lugar estava garantido,
pois ele se confundia com o próprio meio.
A viagem desta teoria para outro lugar duplicou a
responsabilidade do trabalho de:
cultive a terra
plantando com suor
um pais de haícais.93
93 Takahama Kyoshi.
94 Ver nota n.68.mu-ga.
82
cultural- o valor estético aqui é secundário-, com poder
suficiente para transportá-los ludicamente ao lugar
desejado:a substituição da flor do ipê pelo sakura,a
identidade original.
No novo ambiente, entretanto, o haicai não se
recuperou desta perda; ao invés disto, a "ausência" se
tornou "presença", sendo realçado o aspecto "estético" e,
por outro lado, jamais a necessidade de um Autor seria tão
desejada, tendo-se em vista a necessidade de um componente
gerenciador do processo; portanto, o haicai foi re-
subjetivado e, sendo assim, um elemento oposto(o Eu), que
deveria estar submerso, entrou em cena para repovoar aquele
lugar, anteriormente consagrado ao "não-eu", à
"despersonalização".
Precisamente neste ponto, o haicai como experiência
"vivida", coletiva ou individual, começa a alternar a
importância de alguns valores: aos olhos dos "outros"(os
nossos), ele assume a forma de um objeto com valor estético
e poético, porque neste momento está deslocado; porém, entre
os japoneses no Brasil, continua a ser pensado, mesmo que
isto seja anacrônico, como uma experiência coletiva (haiku-
kukais), e por fim o lado individual sendo ressaltado a cada
publicação do Autor no Japão.95
83
Se o deslocamento aproximou o haicai da ’’tensão
para a exatidão"96, que norteia o princípio estético de se
pensar a poesia através de Paul Valéry, seguindo a mesma
linhagem de pensamento de Mallarmé, que remonta a Baudelaire
e este, por sua vez, a E.A.Poe, podemos concluir que N. Sato
não escreveu haicais por acaso, embora ele não tenha
conseguido abolir o acaso dos resultados. Assim, se
desenharia um cenário inquietante , cuja principal
característica seria possível localizar nas fronteiras e
limitações de uma teoria viajante.
84
A TRADIÇAO DO PRESENTE
Da digestão.
0 apetite, a fome e a sede nos
advertem de que o corpo tem
necessidade de restaurar-se e a
dor, esse monitor universal, não
demora em vir atormentar-nos se
não queremos ou não podemos
obedecer ao sinal.
Brillat Savarin
85
este é, muitas vezes, o verdadeiro haicai: ele pode ser
capas de tocar o coração das pessoas".97
86
necessário e básico um caminho, semelhante àquele "mu-ga"
exigido do "haikaísta", conhecido como despersonalização.
99 Id. Ibid.p.43.
87
seu haicai deveria conhecer e articular, junto ao passado, o
presente.
Se pensarmos no esgotamento das experiências do
passado, não sornente relacionadas à literatura, mas também
vinculadas as políticas sociais e modelos econômicos
esvaziados, o que, precisamente, o passado continuaria a nos
fornecer em termos de recomeço histórico? Um modelo a não
mais ser perseguido?
Walter Benjamin problematiza esta questão de
maneira a fornecer uma linha de escape que abandona as
noções negativas do que ele denomina barbárie:
88
construção, e a tábula rasa desta edificação ganha e perde
sentido a partir da elaboração do passado.
Assim, a educação do jovem Leopardi101 de ítalo .
Calvino102, depois da explosão da biblioteca do conde
Monaldo,103 e o escritor benjaminiano não possuem mais todo
um emaranhado de referências datadas e organizadas do
passado. Ou, de outro modo, possuem; mas, como tratá-las
dentro desta desordem?
Devem proceder a um sem número de redefinições, que
inviabilizam a apreensão linear das coisas, abrem-se ao
futuro, mesmo que de maneira enigmática: o depois é o caos
do presente.
ítalo Calvino pensa a tradição articulada à
organização de sua biblioteca:
101 Escritor italiano citado por I. Calvino. In: Por que ler os clássicos.p.16.
102 Id .ibid .pp.9-16.
103 Id. ibid. Citado por. p. 16.
104 Id.ibid.15.
89
Desse modo, inserindo uma nova organização da
biblioteca e o barulho exterior, e apenas desta maneira, o
jovem Leopardi pode retornar e começar novamente sua
educação, ou seja, ele deve preservar o rumor que, neste
caso, significa a impropriedade de uma definição clara sobre
a absorção da experiência do passado.
O bárbaro se encontra ao lado de Leopardi de forma
parecida. No caso do bárbaro, entretanto, não foi a
biblioteca que explodiu: explodiram as oralidades, que
compunham a experiência do passado.
No caso de Nempuku Sato, o presente deveria
circular em direção ao passado/ Sato necessitava instaurar
uma tradição que fosse capaz de trazer fragmentos do passado
para serem incorporados. Um dos re-começos do haicai pode
ser observado quando Sato re-criou uma parte da experiência
coletiva, ao mesmo tempo em que era individualizada.
Por outro lado, © segundo elemento a se articular
no espaço do vazio da tradição do haicai japonês no Brasil,
refere-se ao componente mais destacado do haicai: o
aprisionamento do presente. Esta característica da nova
condição do homem moderno, de começar do hic et nunc(aqui e
agora), aproxima-se vertiginosamente de uma condenação à
imortalidade enclausurada semelhante àquele "que pensa
antes" :Prometeu105.
105 Prometeu: "aquele que pensa antes", irmão de Epimeteu "aquele que pensa
depois". Mári© da Gama Kury. Dicionário de mitologia, p.339.
90
0 início da destruição dos conceitos, que até então
eram extremamente positivados, talvez deva ser atribuído a
Hegel106, quando, a partir dele, o "presente" se converte
numa contradição continuada entre ser e não ser, e se torna
dialético.
91
De acordo com a quarta, acabou se cansando
daquilo que se havia tornado sem razão. Os deuses
ficaram cansados, as águias ficaram cansadas, a ferida
fechou-se de cansaço.
Restou a inexplicável montanha rochosa.- A
saga busca explicar o inexplicável. Já que ela se
origina de um fundo de verdade, precisa acabar de novo
no inexplicável".108
92
Ou, infinito:
110 J.L. Borges. Citado por I. Calvino. In: Seis propostas para o próximo
milênio.p.83.
ui ver C. M. Bowra. Historia de la literatura griega. pp.67-68.
93
"A história faz as coisas a fundo, e
atravessa várias fases quando leva ao túmulo uma forma
social. A última fase de uma forma da história
universal é a sua comédia. Os Deuses gregos, já
tragicamente feridos de morte no Prometeu Agrilhoado de
Ésquilo, também tiveram que suportar a morte cómica dos
Diálogos de Luciano. Porquê esta marcha da história?
Para que a humanidade se separe alegremente do seu
passado. "112
94
presentificaçao do passado, e por últirno, pela tentativa de
re-signíficar o Japão fora do Japão.
Aqui parece ter início a tradição de simplicidade,
de aprisionamento rápido do presente, que se aproxima da
modernidade do "começar” bárbaro .Autor e haicai são fígados
em decomposição e em recomposição .Ve jamos como isto ocorre '
neste caso:
pássaros
remos
rumores113
95
"Senão de Eléia, discipulo de Parménides,
negou que uma flecha pudesse chegar à sua meta, já que
está imóvel em cada um dos instantes de seu trajeto, e
uma série de imobilidades, ainda que infinita, não será
jamais um movimento. Quatro séculos antes de Cristo,
Diodoro Cronos negou que um muro possa ser demolido:
quando os tijolos estão unidos o muro está de pé,
quando já não estão, o muro não existe. Tais argumentos
não são trabalhosas trivialidades. Diodoro de Cronos,
Zenão de Eléia e Nagarjuna queriam demonstrar que a
realidade é inconcebível e, por conseguinte,
ilusória" .114
96
adjetivos que um momento antes lhe atribulamos, e entra
nessa suspensão do sentido, que nos é a coisa mais
estranha, pois torna impossivel o exercicio mais
corrente de nossa fala, que é o comentário."115
97
em movimento e tampouco parada; que, se se colhesse um
pedaço de pau, de um pè de comprimento, e todos os dias
alguém o cortasse pela metade, nunca seria visto o seu
fiin; e que um cavalo e uma vaca eram três, porque,
considerando-os separadamente, eram dois, porém,
juntos, eram um, e um e dois são três. Parecia um homem
que disputasse com sua própria sombra as corridas e que
fizesse ‘ruído para anular o eco. Era um tavão
inteligente, eis tudo. E sua finalidade, qual seria?"117 .
99
Portanto, o "pensar" pelo viés da barriga se nutre,
através do impulso lúdico, da necessidade de criação.
100
Assim, o haicai parece conceder ao Ocidente os direitos
que sua literatura lhe recusa, e as comodidades que ela
lhe suprimia. Você tem o direito, diz o haicai, de ser
fútil, curto, ordinário; de encerrar o que vê, o que
sente dentro de um fino horizonte de palavras, e o que
mais lhe interessar. Você tem o direito de se fundar (
a partir de si mesmo) em sua própria notabilidade; sua
fi'ase, qualquer que seja, enunciará uma lição,
libertará um símbolo, você será profundo; com despesas
menores, sua escritura será plena".121
101
Mais um caso de elementos em tensão(touro x rosas,
encontro intermediado por uma cerca). Este exemplo trata,.
sobretudo, da anotação de um episódio fugaz: um vagabundear
em torno das coisas. Ao contrário do flãneur que lança seu
olhar mordaz sobre a arquitetura da cidade, formando,
recolhendo e construindo uma verdadeira ”arquitextura” do
caminhar despreocupado, N. Sato encontra-se no campo, e
sendo assim, ele se aproxima mais da personagem imaginária
criada por 0. Wilde: Bumbury.123
Bumbury é a justificação para que Algernon
Moncrief f124 saia da cidade em direção ao campo para
desfrutar do andar despreocupado, do vagabundear ao redor da
cidade em busca de estórias, curiosidades e detalhes.
Entretanto, se a cena descrita no haicai acima fosse
observada por Algernon, disfarçado de Bumbury, é provável
que toda ela se sobrecarregasse de informações adicionais,
recheado de um "antes" e ura "depois". Evidentemente não
quero dizer cora isso que o episódio seria desinteressante.
Apenas charão atenção para o papel diferente do "antes” e do
"depois" era ambos os casos: não há espaço no haicai para
comportá-los por inteiro, haverá sempre uma falta. A
distância colabora no sentido de revelar a diferença entre o
-------------------------
123 O. Wilde.Me refiro â peça: A importância de ser prudente.
124 Personagem que inventa Bumbury.
102
olhar ocidental e o olhar oriental. Neste caso, a questão
parece se articular com a leitura:
103
material mais nobre do haicai, do "presente” indefinido e
irredutível, que se apresentaria como justificação e
necessidade de criação artística.
O trecho final do livro Seis propostas para o
próximo milénio de I. Calvino, dedicado à rapidez, possui
uma citação em homenagem ao enigma continuado:
104
algum sentido especifico e, do mesmo modo, não se preocupam
com a rapidez do ato, da pincelada plena em que se converte
cada haicai, minimizando assim a memória histórica. Pelo
contrário e paradoxalmente, estes elementos constituem uma
fronteira do ato de realização de cada haicai: são suas
margens como controle do comentário, de onde escapa e se
constrói a liberdade para sua compreensão.
105
COÍJCLOSÃO
envelheço
em qualquer lugar
que eu viva.
Nempuku Sato.
106
haícaí no Brasil encontra-se ligada ao mecanismo
desenvolvido por Sato, que remetia o haícaí às suas origens
no Japão.
Estar no Brasil, rnas, ao mesmo tempo, imagínar-se
no Japão, criava uma rua de mão dupla capaz de possibilitar
ao haicai "acomodações" propícias ao novo e desconhecido
território.O deslocamento do haicai de Sato encontra-se
cravado por um componente capaz de fazer o haicai viajar
entre o Ipê e o Sakura. Do mesmo modo, este deslocamento,
proporcionado pela viagem, atribuía ao haicai a necessidade
de circular. Esta circularidade possibilitou ao haicaísta
inventar uma sobrevida para o haicai brasileiro. Desta
maneira, o haicai de Sato fez circular, por longos'quarenta
anos, toda a sua história. Quando necessitou re-colocar o
haicai no campo, quando precisou re-coletivizar a produção
do haicai, quando a viagem do haícaí derivava rumo ao
esquecimento da identidade cultural, quando, enfim, a
reorlentalização estava em jogo, Nempuku Sato lançava-se em
direção ao paraíso natal do haicai, não importando qual
época histórica deveria ser resgatada.
Por exemplo: o haicai do Japão vívido por Sato já
não representava mais um produto do campo; entretanto, no
Brasil, o haicaísta necessitava retornar às origens desta
prática agrícola, que remonta ao século XVII. Dessa maneira,
o paraíso natal do haicai era recriado fora do espaço
original.
107
Fazer o presente circular era direção ao passado, e
do mesmo modo, articular o passado ao presente
desterritorializado do haicai, constituía uma outra parcela
vital do processo de reorlenta(llza)ção. Contudo, esta nova
ordenação das coisas não era semente importante para a
preservação de uma "forma”; pretendia também favorecer os
imigrantes, fornecendo-lhes um contato rápido com o Japão,
que deveria ser lembrado. O haicai representava, neste caso,
a viagem mais curta entre os dois lados do mundo e, além
disso, era um veículo eficaz e permanente para que os
imigrantes japoneses pudessem, através da construção de um
imaginário, estar no Brasil, mas re-criando todo um círculo
de experiências históricas que os aproximava de um Japão, em
parte, imemorável. Sendo assim, o haicai funcionava como um
catalizador de experiências de dois Japão(s): o Japão
tradicional e memoriável, capaz de fornecer subsídios para a
adaptação ao Brasil, embora preservando uma identidade
cultural, deveria ser lembrado; todavia, existia neste
retorno uma parcela do Japão imemorial composto pelas
reminiscências da emigração e das condições sócio-politicas
da virada do século, que, em grande parte, deveria ser
esquecido.
No Japão experimentado por Sato, o haicai havia se
transformado em mais um produto das preocupações
preservacíonístas emergentes daquela sociedade, como era o
caso da abertura do comércio interno, do surgimento das
108
cidades, das jâ evidentes influências ocidentais e,
principalmente, da exposição externa do haicai. Formava-se
assim, todo um emaranhado de implicações existenciais e
estéticas que produziam um efeito enriquecedor para o
haicai, embora também criasse uma forma híbrida de
composíção poética.
Cultive a terra
plantando com suor
um páís de haicais.^^
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japoneses. Exa ura trabalhador, sim, porèrn o seu trabalho,
diante das exigências de uma época desenvolvimentista, -
desaparecia quase por completo.
A sobrevida do haicai parece ter sido conquistada e
garantida, embora Nempuku Sato reconhecesse o
envelhecimento, dele e do haicai, em qualquer lugar que
vivessem.
Nempuku Sato morreu em Bauru-SP, em 197 9, aos 81
anos de idade.
110
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
LIVROS DO AUTQR:
DE HAICAIS
SOBRE HAICAI
111
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