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Guaimuras:
ediciones
22 um acordo contra o povo de Honduras
marxismo
vivo
Revista de Teoria e Política Internacional - Nº 22 - Ano 2009
Livros em Espanhol
CM
MY
CY
CMY
Afeganistão, Irã
e Paquistão
SITUAÇÃO CRÍTICA
PARA O IMPERIALISMO
NUMA ÁREA-CHAVE
Marxismo Vivo
Revista de teoria e política internacional
Nº 22 – 2009
Expediente
www.litci.org
Apresentação ................................................................................................................... 4
Añno 2009
A heroica resistência contra o golpe e o nefasto papel de Zelaya
José Moreno Pau e José Welmowicki ............................................................................. 6
O diálogo de Guaymuras, a estratégia do presidente Mel Zelaya e a resistência
Tomás Andino Mencía ..................................................................................................... 15
Do “Novo Século Americano” de Bush à nova tática política de Obama
Alejandro Iturbe .............................................................................................................. 24
Dossiê
Oriente Médio: um novo e imenso Vietnã para Obama
Bernardo Cerdeira ............................................................................................................ 34
Irã, 1979: uma revolução interrompida
Marcos Margarido ............................................................................................................ 42
Por uma nova revolução iraniana
José Welmowicki e Tito Niegra ....................................................................................... 52
Afeganistão : uma encruzilhada para o imperialismo
Bernardo Cerdeira ........................................................................................................... 64
A guerra, o imperialismo e a questão nacional polarizam o Paquistão
Bernardo Cerdeira ............................................................................................................ 75
Estudos
O sistema financeiro mundial e sua crise - Parte 3
Alejandro Iturbe .............................................................................................................. 83
Pontos de Vista
Cuba ... não é uma ilha
Martín Hernández ............................................................................................................ 91
IV Internacional
De que Internacional precisamos?
Clara Sousa ....................................................................................................................... 100
Isto é História
China, 1949: uma revolução no país mais populoso da Terra
Cecília Toledo e Marcos Margarido ................................................................................ 112
Espanha: Da ditadura à monarquia - Parte 2
Felipe Alegría e Teo Navarro ........................................................................................... 122
Cultura
A arte morreu. Viva a arte!
Cecília Toledo ................................................................................................................... 128
O Plano Arias
O governo de Obama buscou uma velha figura de sua confiança: Oscar
Arias, presidente da Costa Rica, diretamente designado como “mediador”
pelo Departamento de Estado dos EUA. Com esse “mandato”, Arias tenta
propor uma saída frente à desestabilização do país e à possibilidade de que
atingisse toda a região, e ao temor de que a situação levasse a uma derrubada
do governo golpista pela ação radicalizada das massas.
O Plano Arias tinha o objetivo de fechar o conflito aberto pelo golpe
por meio de um acordo entre os golpistas e Zelaya. O Plano Arias incluía a
restituição de Zelaya à presidência de Honduras. Mas os outros pontos eram
…e freia a resistência.
A partir de seu apoio ao Plano Arias, Zelaya tentou convencer o movimen-
to de resistência a aceitá-lo e aceitar também um “diálogo pacífico” com os
militares e os golpistas civis. Um exemplo disto foi seu chamado à população
para que fosse recebê-lo na fronteira com a Nicarágua em 24 de julho, duran-
te a greve nacional de 48 horas, para recebê-lo e forçar seu retorno ao país.
A maioria da direção da Frente Contra o Golpe apoiou aquele chamado
e isso fez com que a esta ficasse sem vários de seus dirigentes nas principais
cidades do país. Zelaya fez os manifestantes acreditarem que poderia conven-
cer a cúpula militar a deixá-lo entrar pacificamente e, chegados à fronteira,
viram Zelaya apelando pateticamente ao “patriotismo da cúpula militar”.
Como, obviamente, os generais não o fizeram e organizaram a repressão
em toda a região, Zelaya simplesmente voltou a sair, deixando milhares de
pessoas presas numa armadilha. Assim, pôs em perigo a vida e a liberdade de
milhares de ativistas e de muitos dirigentes da Frente de Resistência contra
o Golpe, o que representava uma ameaça real de perda de dirigentes do mo-
vimento antigolpista.
A orientação de Zelaya teve uma lógica de ferro: a necessidade de man-
ter, a qualquer custo, o controle do movimento. Uma greve geral põe como
centro a ação direta e faz a classe operária aparecer como direção e cabeça do
movimento, o que ameaçava sua hegemonia. Para Zelaya, era fundamental
que sua figura e suas iniciativas se impusessem ao movimento de massas.
Só isso pode explicar que, nesse episódio, ele tentasse seu ingresso pela
fronteira, convocando o movimento a trasladar-se até ali, em meio à greve
mais contundente das últimas décadas. Ao mesmo tempo, buscava evitar
Nos últimos dias temos sido testemunhas do “vai e vem” entre as Comis- Tradução
Marcos Margarido
sões de Mel e Micheletti no marco do Diálogo Guaymuras. Qualquer um que
enxergue dois dedos à frente percebe que existe una tática protelatória por
parte dos golpistas para ganhar tempo, ante a qual o Presidente Mel esmera-
se em continuar em tal “diálogo” com paciência franciscana. Enquanto isso,
os golpistas avançam em sua campanha eleitoral e a maioria da liderança da
Resistência continua centrando suas expectativas em que algo positivo surgirá
desse diálogo.
Minha tese é que o problema não reside apenas na tática protelatória dos
golpistas, mas que, principalmente, o Acordo de San José, apresentado como
a grande panacéia para resolver a crise atual, é em si mesmo uma armadilha
do Departamento de Estado norte-americano para levar a cabo os objetivos
do Golpe de Estado e que, portanto, Mel deveria retirar-se do mesmo e a
Resistência não deveria manter suas esperanças nele.
Os pontos de vista que exponho a seguir foram apresentados verbalmente
em inumeráveis ocasiões no fórum apropriado da direção da Frente Nacional
de Resistência, sem que houvesse una retificação do rumo atual. Isso me
obriga a apresentá-los agora por escrito.
Um projeto neofascista?
Em sua introdução, o material afirma:
Governos e elites do primeiro mundo… estavam conscientes do
que vinha ocorrendo enquanto faziam preparativos para impor seus
interesses através de uma doutrina de guerra permanente […] É por 1 Wim Dierckxsens
isso que, apesar do fim da guerra fria, o gasto militar, sobretudo nos (Holanda); Antonio
Jarquin T. (Nicará-
EUA, continuou crescendo até as cifras alucinantes da atualidade (…) gua); Reinaldo Carca-
um novo holocausto para a humanidade está sendo preparado para nholo (Brasil); Jorge
controlar o mundo, recolonizá-lo, destruir os avanços democráticos Beinstein (Argentina);
e impor o neofascismo a nível planetário. Paulo Nakatani (Bra-
sil) e Rémy Herrera
Nesse marco, as perspectivas para a América Latina são analisadas: (França), membros
da equipe do Obser-
O golpe militar em Honduras não pode ser visto como mais um golpe vatorio Internacional
tradicional num pequeno país dos tempos da guerra fria. Precedido de la Crise. Citações
em wwwobservato-
pela volta da 4ª Frota dos EUA para a América Latina em 2008, de riodelacrisis.org/rea-
um ataque militar da Colômbia a território do Equador e, simulta- darticle.php?article_
neamente, ao acordo de instalação de sete bases militares dos EUA id=265.
A reação democrática
A política aplicada atualmente por Obama não é nova. Na década de
1980, a LIT-QI a definiu como “reação democrática”. Isto é, a utilização das
ferramentas da democracia burguesa (eleições, Parlamento) e das negociações
e pactos para frear, desviar e inclusive derrotar ascensos do movimento de
massas, com a ação militar passando a jogar um papel secundário e auxiliar.
Embora se trate de una política defensiva, pois responde a determinadas
7 Dados extraídos
condições da luta de classes mais desfavoráveis ao imperialismo, suas táticas de www.southcom.
podem ser muito ofensivas e conseguir importantes êxitos para o imperia- mil/appssc/factfles.
lismo. Assim ocorreu na década de 1980, depois da derrota no Vietnã e dos php?id=126
Vietna~ para o
Uzbequistão
Turquia Turcomenistão
imperialismo Líbano
Síria
Afeganistão
Jordânia
Iraque Irã
Israel
Paquistão
Arábia
bernardo cerdeira Saudita
Uma situação crítica: ficar não é recomendável, mas não é possível sair
O imperialismo americano enfrenta uma situação crítica na maior parte
dos países deste Grande Oriente Médio. A resistência das massas, as guerras
e os problemas nacionais não resolvidos geraram uma relação estreita e uma
combinação entre processos de distintos países.
O imperialismo enfrenta duas guerras simultâneas. Não resolveu ainda a
situação do Iraque e ainda não se retirou. E a guerra do Afeganistão está no
seu ponto mais alto desde 2001.
Esta situação gera um impasse para o governo de Barack Obama. A
prudência recomenda sair o mais rápido possível, antes que a situação destas
guerras impopulares piore e gere uma crise interna nos Estados Unidos. No
entanto, a própria possibilidade de uma derrota vergonhosa, que provoque
uma situação de instabilidade em dois ou três países do Oriente Médio, não
só impede o imperialismo de retirar-se totalmente como até pode fazer com
que aumente o número de suas tropas no Afeganistão.
Neste Dossiê abordamos três países que nos parecem hoje os centros da
luta de classes na região. O problema central para o imperialismo é a guerra
do Afeganistão. Obama encontra-se em uma encruzilhada: precisa encontrar
uma saída negociada com o Talibã, mas não pode negociar em uma posição
de fraqueza como a atual. Por outro lado, para fortalecer sua posição e não
perder a guerra precisaria de muito mais soldados. Mas uma escalada militar
teria sérias repercussões internas nos Estados Unidos onde a guerra já é
tremendamente impopular.
Por outro lado, a guerra atravessou a fronteira com o Paquistão e está
desestabilizando o país vizinho. A guerra está em curso num país tremenda-
mente instável, com um governo débil e em crise.
Por fim, um país chave para todo o Oriente Médio é o Irã, o mais pode-
roso econômica e militarmente da região. Sua influência política estende-se
a países fundamentais do Oriente Médio tais como o Iraque (onde a maioria
do governo baseado em partidos xiitas tem ligações com o Irã); Líbano,
onde apóia o também xiita Hezbollah e inclusive na Palestina, onde apóia o
movimento sunita Hamas.
A contrarrevolução
A queda do Xá causou a liberação das forças revolucionárias da popula-
ção. Os shoras surgiam em todas as partes, revelando a força do movimento
operário. No campo eram criadas organizações semelhantes para a ocupação
das terras. As organizações de esquerda saiam da clandestinidade e publicavam
inúmeros jornais, enquanto as minorias nacionais de língua árabe, turcomana
e curda exigiam autonomia em suas regiões.
A burguesia dividia-se, com o surgimento de um setor contrário ao
controle total do aparato estatal pelo clero xiita, representado por Bazargan
e Bani Sadr. Este setor refletia interesses diversos em relação ao imperialis-
mo e quanto aos métodos utilizados para controlar o movimento operário.
Preferia desviar a revolução para o rumo da democracia burguesa, com suas
instituições “representativas” e eleições regulares. Mas tais instituições eram
inexistentes no Irã, o que debilitou suas posições. Apenas um Bonaparte,
capaz de colocar-se “acima” das classes pela sua posição de imã, poderia ma-
nobrar adequadamente entre as pressões do imperialismo de um lado e do
movimento de massas de outro. Sua ideologia reacionária, posta a serviço da
defesa irredutível da propriedade privada, combinada com a repressão brutal
foram as formas encontradas pela burguesia do bazar para a defesa de seus
interesses históricos de classe.
Em junho de 1979 uma nova lei de imprensa foi aprovada, dando o sinal
verde para a perseguição aos jornais de esquerda. E agosto a redação do
Ayandegan foi fechada, seguindo-se o fechamento de 34 jornais de oposição
no mesmo mês. Em setembro os dois maiores jornais burgueses do país,
Kayhan e Ettela’at, foram expropriados e transferidos para a Fundação dos 1 2 D I V È S, Je a n
Deserdados, controlada pelo clero. Phillippe. Uma guerra
Os partidos oposicionistas foram postos na clandestinidade, como o contra os pueblos de Irak
e Irán. Correo Inter-
Mujahedeen-e Khalq (Mujadines ou Lutadores do Povo), guerrilha pequeno- nacional, n. 7, 1985.
burguesa de ideologia muçulmana, e o Hezb-e Kargaran-e Sosialist (HKS ou
Partido Socialista dos Trabalhadores), trotsquista. Massoud Rajavi, líder dos 13 Idem
A guerra Irã-Iraque
Em 22 de setembro de 1980, Saddam Hussein invade o Irã para impedir
que o processo revolucionário avançasse para o território iraquiano através
da comunidade xiita, que compõe 70% da população iraquiana, e do levante
curdo. O exército iraniano consegue repelir o invasor e no início de 1982 o
território iraniano estava liberado. Khomeini, no entanto, decide continuar
a guerra, que duraria mais seis anos, ao custo de pelo menos 500 mil vidas.
O ataque da ditadura de Hussein ocorreu num momento vital do proces-
so revolucionário. “O movimento independente dos shoras, depois de uma
reativação ao calor de uma onda de lutas econômicas da classe operária era
o alvo de uma ofensiva frontal por parte do regime. A campanha de “união
nacional” que o regime islâmico pôde encarar frente ao ataque iraquiano, 14 Idem
A guerra
No Correio Internacional de setembro deste ano, a LIT resumia assim a
atual situação militar dos Estados Unidos neste conflito:
Tropas dos Estados Unidos ocupam o Afeganistão há oito anos, um
período quase 50% mais longo que o envolvimento do país nas duas
Guerras Mundiais. No entanto, depois de todo este tempo, o Talibã, que
foi deposto do governo no momento da ocupação em 2001, mantém
uma atividade guerrilheira permanente em quase todo o país.
Segundo o centro de estudos britânico International Council on Secu-
rity and Development (citado pelo Estado de São Paulo de 11/09/2009)
o Talibã age em 97% do território afegão. Em 80% do país a presença
de insurgentes seria permanente. Esta porcentagem vem crescendo
O que é o Afeganistão?
O Afeganistão é um país com 85% do seu território formado por mon-
tanhas, numa área de 647,5 mil km². Sua população estava estimada em cerca
de 32 milhões de habitantes em 2008.
É um dos países mais pobres do mundo. A taxa de mortalidade infantil é
de 160,23 mortes a cada 1000 nascimentos. A expectativa de vida é de 43 anos.
A instabilidade política e os conflitos internos arruinaram a já débil economia
e infra-estrutura. Hoje, cerca de 1/3 da população afegã já abandonou o país.
No Afeganistão convivem diferentes grupos étnicos que em sua maioria
são povos iranianos, ou seja, falam idiomas indo-europeus do subgrupo das
línguas iranianas (os pashtuns, os tadjiques e os balúchis, por exemplo). Ou-
tras etnias falam línguas do grupo turco (como os uzbeques e turcomanos).
O idioma dari, também chamado de persa oriental ou farsi oriental, é falado
em 50% do país e utilizado como língua franca de comunicação entre os
diferentes povos iranianos.
Como não há um censo sistemático no país, não existem estatísticas
exatas do tamanho e da composição dos variados grupos étnicos. Segundo o
CIA World FactBook4, uma distribuição aproximada é a seguinte: pashtuns,
42%, tadjiques 27%, hazaras 9%, uzbeques 9%, aimaks 4%, turcomanos 3%
e balúchis 2%.5 4 Espécie de anuário
da CIA onde analisam
Estes grupos étnicos vivem também em vários dos países com os quais dados geográficos,
o Afeganistão faz fronteira. Por exemplo, existem cerca de 26 milhões de econômicos e sociais
pashtuns no Paquistão, segundo o último censo. A maioria vive na Província de todos os países do
da Fronteira Noroeste, cuja capital é Peshawar, mas também existem 3,5 mundo.
milhões de pashtuns em Karachi, a maior cidade do Paquistão e que abriga 5 CIA World Fact-
a maior concentração da etnia pashtun em uma única cidade. Outras etnias Book, 2007.
A política de Obama
A estratégia e as táticas do atual governo dos Estados Unidos para a
guerra do Afeganistão só podem ser consideradas no marco da política geral
do imperialismo contra os trabalhadores e os povos explorados de todo o
mundo. Esta política é analisada por Alejandro Iturbe em outro artigo deste
número da Marxismo Vivo, que explica a mudança de tática do imperialismo
para continuar enfrentando a luta dos trabalhadores e povos do mundo no
novo cenário criado pela derrota da ofensiva militar do governo Bush.
A nova política do imperialismo está marcada por duas orientações gerais.
Por um lado, continua sendo imperialismo e, por isso, mesmo com um pre-
sidente negro que utiliza um discurso conciliador, democrático, que prega a
união de povos e classes, continua tendo como objetivo principal explorar a
classe operária de todo o mundo e saquear as riquezas dos países explorados.
Para isso, continua disposto a utilizar todos os recursos e a violência necessária
e possível na atual situação mundial.
Mas, por outro lado, a derrota do projeto de Bush enfraqueceu o impe-
rialismo e obrigou-o a adotar uma tática preferencial de negociações, planos
de “paz” e manobras “democráticas” para desviar e derrotar revoluções e
processos de insurgência armada. Isso não significa que o imperialismo aban-
done as guerras e as ações armadas, mas que prioriza a tática das negociações,
utilizando a força para pressionar os inimigos e obrigá-los a claudicar, capitular
e a colaborar em troca de concessões “democráticas”.
Mas, quando passamos da análise da tática mundial do imperialismo para
abordar a situação concreta do Afeganistão, parece haver uma contradição:
o novo governo de Barack Obama vem intensificando a intervenção militar
neste país. Desde a campanha eleitoral, Obama vem defendendo que é no
Afeganistão que se trava a principal batalha contra o terrorismo e que agora, 8 Idem
Tradução
EUA, epicentro da crise atual Marcos Margarido
O epicentro da crise atual encontra-se, sem dúvida, nos EUA, a principal
economia do mundo. Em um capítulo anterior, vimos o caráter cada vez mais
“rentista” que o país foi adquirindo, e sua expressão na desindustrialização
e “financeirização” de sua economia. Um processo que é o resultado com-
binado de políticas conscientes da burguesia estadunidense (transferir para
outros países as indústrias de maior consumo de energia e toda uma parte
de indústrias de produtos de consumo), por um lado, e da dinâmica objetiva
de crescimento do setor especulativo, por outro.
A economia estadunidense dos últimos anos tem se construído sobre os
chamados “déficits gêmeos” da balança de comércio exterior e do orçamento
estatal. O déficit comercial é o resultado do grande aumento do volume de
importações de produtos industriais de consumo e, também, do aumento do
preço do petróleo. Em 2006, alcançou a cifra recorde de US$755,7 bilhões, em
2007 reduziu-se a US$ 711,6 bilhões (sua primeira queda em vários anos, já
refletindo o início da recessão). Cerca de um terço deste déficit é produzido
pelo intercâmbio com a China.
O déficit fiscal é o resultado combinado de vários fatores. O primeiro é a
redução de impostos para as grandes empresas. O segundo é o aumento dos
gastos no setor militar (incluídos os ocasionados pelas guerras do Iraque e
Afeganistão). O terceiro, como já vimos, é o financiamento da especulação
através da dívida pública.
Desta forma, passou-se de um superávit anual de US$128 bilhões em 2001,
herança da era Clinton, para um déficit de US$337 bilhões (237 bilhões do
balanço de contas correntes e cerca de 100 bilhões adicionais para as guerras).
Em 2007, graças à boa receita do imposto sobre os lucros, o governo Bush
conseguiu reduzir o balanço de contas correntes para US$163 bilhões. Mas
em 2008, o resgate de vários bancos o elevou para mais de US$400 bilhões, 1 Em julho de 2008,
com a previsão de chegar a US$447 bilhões em 20091. o resgate dos gigan-
tes hipotecários tri-
A soma dos dois déficits significava que, em 2007, para funcionar nor- plica o déficit fiscal
malmente e não começar a parar, a economia estadunidense precisava do dos EUA. Em www.
ingresso de US$3 bilhões diários em média, do exterior, através de receitas libertaddigital.com
A bolha do consumo
Na realidade, nos EUA, não apenas o Estado, mas também as empresas e
consumidores estão superendividados, isto é, devem mais que sua real capaci-
dade de pagamento e, muitas vezes, mais que o valor real de suas propriedades.
Neste sentido, no caso das famílias, a bolha imobiliária não era mais do que
a base que sustentava a bolha muito maior do consumo.
O poder aquisitivo do salário dos trabalhadores estadunidenses vem
caindo de modo quase constante desde a década de 1980. Em primeiro lugar,
porque os novos empregos nos serviços fornecem salários mais baixos que
os industriais. Em segundo, porque houve uma queda nos próprios salários
industriais. Por exemplo, um mecânico antigo da fábrica de aviões Boeing
ganha US$50 mil ao ano, enquanto um novo recebe apenas US$28 mil, cifra
que se localiza apenas pouco acima do custo das necessidades básicas. Isto
é, uma vez cobertas essas necessidades, a maioria das famílias trabalhadoras
estadunidenses quase não tem possibilidades de consumo para manter a tra-
dicional renovação periódica de automóveis, eletrodomésticos etc.
A partir de 2002, o extremo barateamento e a abundância de crédito co-
meçaram a ser financiados, essencialmente, com os empréstimos hipotecários,
graças à diferença positiva que obtinham a cada ano em sua renovação pela
subida artificial dos preços dos imóveis. Mas, ao mesmo tempo, isto aumen-
tava seu endividamento. O New York Times estimou, em julho de 2008, que
cada família estadunidense devia uma média de cerca de US$100 mil (US$80
mil da hipoteca, US$12 mil do carro e US$8 mil do cartão de crédito). Se
considerarmos a existência de 75 milhões de famílias, isto nos dá a incrível
cifra de US$7,5 trilhões de “dívida familiar”, mais da metade do PIB do país.
Com o fim da bolha imobiliária e o começo da queda dos preços das casas,
esse mecanismo foi cortado. O New York Times (23/12/2008) informa que
em novembro de 2008 a venda de casas havia caído 8,6%, e seu preço médio,
13%. Desde o máximo preço médio alcançado (US$230,2 mil em julho de
2006) ao atual (US$181,3 mil), acumula-se uma queda de mais de 21%. Além
disso, estima-se que, em 2009, haverá uma nova queda próxima aos 20%.
Por isso, agora o montante da dívida hipotecária de cada família é maior
que o preço de mercado do imóvel. Isto é, ao renovar a hipoteca, já não rece-
bem uma diferença a seu favor, e, além disso, devem pagar a diferença negativa
entre a dívida adquirida e o novo crédito (baseado no preço mais baixo da
A “bicicleta imobiliária”
Na segunda metade da década de 1970, na Argentina, chamou-se de “bi-
cicleta financeira” ao circuito especulativo que jogava com a dívida externa,
a cotação peso-dólar e as altas taxas de juros para os depósitos bancários. Era
uma “bicicleta” porque, igual a toda bolha ou sistema especulativo, o circuito
só funcionava caso continuassem “pedalando” (injetando novos fundos); em
caso contrário, caía.
Atualmente, podemos falar da queda de uma “bicicleta financeira imo-
biliária” nos EUA. Já vimos como foi financiado o consumo das famílias
trabalhadoras. Um segundo aspecto, como foi impulsionado o crescimento
econômico em seu conjunto, foi sintetizado pelo economista Joseph Stiglitz:
“Aproximadamente 80% do aumento do emprego e quase dois terços do
aumento do PIB dos EUA, nos últimos anos, originaram-se direta ou indi-
retamente no setor imobiliário”2.
Agora nos referiremos a como, em base aos créditos hipotecários, foi-
se construindo um circuito especulativo cada vez maior, artificial e fictício,
isolado de toda base real. Especialmente, a partir do momento em que, para
“manter-se pedalando”, apelou-se aos créditos subprime (ou “créditos vas-
soura”), fornecidos a pessoas ou famílias que já se sabia não terem condições
de pagar no momento de aquisição.
O processo começava quando uma empresa especializada em operações
imobiliárias, como a Countrywide, outorgava um crédito hipotecário; sobre
esse ativo financeiro, era contratado um “seguro de resgate” em uma grande
seguradora como a AIG. A partir daí, passava a ser um crédito ou dívida
“segurada”, transferida ou negociada com um banco especializado (como
Fannie Mae, Freddie Mac ou o ramo hipotecário do Bear Sterns).
Os agora títulos garantidos por hipotecas são vendidos aos grandes bancos
de investimento, como Goldman Sachs, Lehman Brothers ou Merryll Lynch,
que os “cortam em partes”, mesclam-nos, transformam-nos em “obrigações
de garantias de dívidas” (CDOs, em inglês) e então são vendidos a diferen-
tes investidores. Estes papéis, já quase totalmente desligados da “operação
subjacente”, eram camuflados com boas qualificações de risco, outorgadas
por empresas como a Moody’s e a Standard & Poor’s. São assim negociados
inúmeras vezes no mercado, numa cadeia quase sem limites.
Tudo isso, num processo em que cada elo da cadeia, por um lado, recebia
comissões sobre comissões e, por outro, ajudava a “bicicleta” a não cair. Os
operadores recebiam comissões dos bancos e das empresas imobiliárias para
outorgar hipotecas sem verificar as receitas ou a capacidade de pagamento
do cliente. Os corretores inflavam o valor das casas porque, a maior preço,
maiores comissões. Os bancos de investimento pagavam grandes comissões
às empresas especializadas para que qualificassem com boas notas de “grau de
2 STIGLITZ, Jose-
investimento” títulos derivativos cada vez mais “podres”, porque ganhavam ph. How to stop the
fortunas com sua comercialização que, logo, era duplicava ou triplicava em downturn. New York
outras operações. De fato, a “bicicleta financeira imobiliária” já havia chegado Times, 23/01/2008
A modo de epílogo
Pareceu-me útil terminar este trabalho com um epílogo que, de modo
sintético, apresente as ideias que pretendi que fossem seu “fio condutor”.
• O ponto de partida é, claro, a lei do valor-trabalho de Marx. Ou seja,
a concepção de que só a força de trabalho cria novo valor na produção e que
a mais-valia é o trabalho ou produto excedentes apropriados pela burguesia
na produção e realizada monetariamente no mercado; 7 Clarín, 16/12/2008.
• Disso, passamos à concepção de que o lucro de todos os setores da Bancos de mármore são
burguesia surge da divisão, ou da apropriação desta mais-valia social gerada os bancos comerciais
na produção; tradicionais. Levam
esse nome devido ao
• O terceiro elemento é o conceito marxista de dinheiro como “a for- material utilizado no
ma mais acabada do valor”. Algo que, ao mesmo tempo, significa que o acabamento de seus
conjunto da massa de dinheiro deve ser equivalente ao conjunto da massa de prédios. (NT)
Uma longa análise para justificar uma realidade que não existe
As correntes castristas afirmam que em Cuba não se restaurou o capita-
lismo porque, à frente do Estado cubano existe um grande dirigente revo-
lucionário: Fidel Castro. Roberto Ramírez não tem a mesma opinião, mas a
conclusão igual à dos castristas. Fidel impediu a restauração do capitalismo
e portanto estaria cumprindo, objetivamente, um papel revolucionário.
Como já vimos, para Ramírez, essa postura excepcional de Fidel em
relação aos outros líderes dos ex-Estados operários seria explicada por uma
suposta história excepcional de Cuba. Mas isso não é assim.
É verdade que Cuba, ao não obter a independência da Espanha, seguiu,
junto a Porto Rico, um curso diferente do restante da América Latina, mas
não excepcional. Em Cuba, como em todo o continente, houve uma violenta
luta pela independência e isso foi possível porque importantes setores da
burguesia colocaram-se à frente dessa luta.
Também é verdade que Cuba passou de colônia do império espanhol para
uma colônia dos EUA, mas esse é o mesmo processo que ocorreu no restante
do continente, onde os países que conseguiram a independência do império
espanhol em pouco tempo passaram a ser colonizados pelo império inglês,
primeiro, e pelos EUA depois. Também é verdade que essa dependência de
Cuba em relação aos dois impérios foi possível pelo papel das “elites cuba-
nas”, mas não é verdade que o restante das elites latino-americanas teve um
comportamento muito diferente.
Também é equivocado falar do Movimento 26 de Julho como um movi-
mento não classista. A comparação com o movimento estudantil não tem
sentido. O que é correto para o movimento estudantil (que é uma fase da
vida das pessoas) não pode ser usado para caracterizar uma corrente político-
militar que tem, ao contrário do movimento estudantil, um programa, uma
estrutura, uma política e uma direção. Tampouco é correto afirmar que o
Movimento 26 de Julho tinha como objetivo, desde o primeiro momento,
enfrentar o imperialismo para conseguir a liberação nacional de Cuba. Não
há nenhum fato da realidade que comprove isso.
O único fato que o texto menciona é a reforma agrária votada em maio
de 1959, que teria sido “...inaceitável para os EUA e a oligarquia cubana”.
Mas a realidade é que essa reforma agrária foi sumamente limitada e só be-
neficiava uns 300 mil produtores (burgueses e pequenos burgueses) que já
eram proprietários de terras.
Por outro lado, Fidel Castro, depois de ter recebido o apoio de setores
burgueses dos EUA, e inclusive da própria CIA5, em sua luta contra Batista,
viajou para os EUA em abril de 1959, pouco tempo depois da tomada do 5 Ver estudo de John
Lee Anderson no livro
poder, para tentar estreitar as relações com esse país e ali declarou: “Eu disse
“Che Guevara. Una
de maneira clara e definitiva que não somos comunistas. As portas estão aber- vida revolucionaria”,
tas aos investimentos privados que contribuam para desenvolver a indústria Ed. Anagrama.
A restauração
O texto de Roberto Ramírez tem importantes limitações do ponto de
vista histórico: a suposta excepcionalidade histórica de Cuba e a suposta luta
contra o imperialismo, desde o início, por parte do Movimento 26 de Julho.
Também tem várias limitações teóricas: uma corrente guerrilheira que toma
o poder e que não responde a nenhuma classe social e um Estado que não é
nem operário nem burguês.
6 GONZÁLEZ, Er-
No entanto, a principal limitação do texto é que este conjunto de histórias nesto. El trotskismo
e teorias é formulado para tentar explicar um fato que não existe, ou seja, que obrero e internacionalista
Fidel Castro, à frente do Estado cubano, estaria defendendo as conquistas en la Argentina. Ed. An-
da revolução de 59: a expropriação da burguesia e a independência nacional. tídoto, Tomo 3, vol.1.
Porque não só Fidel Castro não está fazendo isso, como essas conquistas 7 No Programa de
não existem mais. Transição, Trotsky
Roberto Ramírez diz que Fidel Castro só fez reformas econômicas disse: ”No entanto,
“isoladas” e “parciais”. Realmente, em Cuba foi feita uma série de reformas não se pode negar
categoricamente, por
pró-capitalistas isoladas e parciais, que não significaram a restauração do capi- antecipação, a pos-
talismo. Mas isso ocorreu entre 1977 e 1983. Nesse período foram legalizadas sibilidade teórica de
as cooperativas (de 44 em 1977 para 1472 em 1983) e se liberaram uma série que, sob a influên-
de trabalhos autônomos mas, no início dos anos 90, as reformas “isoladas” cia de circunstâncias
completamente excep-
a que Ramírez se refere foram deixadas de lado para dar lugar a profundas cionais (guerra, derro-
reformas na estrutura econômica, o que significou uma mudança qualitativa tas, crack financeiro,
no caráter do Estado cubano. pressão revolucioná-
É bom ressaltar que nem os economistas cubanos (castristas) concor- ria das massas etc.)
os partidos pequeno
dam com Ramírez. Eles não falam de reformas parciais. Um estudo de três burgueses, incluindo
economistas do CEA (Centro de Estudos sobre América) de Havana, com a stalinistas, possam
o sugestivo título de Cuba: a reestruturação da economia8 trata das profundas ir mais longe do que
eles mesmos queiram
mudanças feitas pelo governo em 1995. na via de uma ruptura
Esses economistas, reproduzindo o discurso do governo cubano, dizem com a burguesia”.
que não se restaurou o capitalismo, mas demonstram ser sérios, já que não
ocultam as profundas reformas estruturais. Segundo seus informes, Cuba 8 CARRANZA, Julio,
GUTIERREZ, Luis e
está completamente aberta ao capital estrangeiro; “…no final de outubro de MONREAL, Pedro.
1994 o governo cubano anunciou que nenhum setor produtivo da economia Madri: Impala Edito-
nacional estaria fechado ao investimento externo”. Também destacam a rial, 1995.
De que Internacional
precisamos hoje?
Clara Sousa
Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI)
O conflito sino-soviético
Se a situação interna era de crise econômica, a política externa chinesa
não era menos atribulada. Para os comunistas chineses, os países atrasados
eram “o foco de todas as contradições do mundo capitalista, o elo mais fraco
da corrente imperialista e o centro nervoso da revolução mundial”17, o que
os levou a apoiar os movimentos de libertação dos países coloniais, como as
guerras da Coreia e do Vietnã.
No início da década de 1960, os EUA iniciam um bombardeio aéreo
sem precedentes sobre o Vietnã e ameaçam invadir a China para destruir 16 LI, Minqi. The rise
suas instalações nucleares. A tímida resposta da burocracia soviética, com of China and the demise
of the capitalist world
um suprimento limitado de armas ao Vietkong e sua negativa em declarar economy. New York:
publicamente a defesa da China em caso de um ataque imperialista, leva Mao Monthly Review
ao rompimento definitivo com a URSS, cuja disputa remonta à denúncia dos Press, 2008.
crimes de Stalin por Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da
17 Citado por NOVA-
URSS, em 1956. CK, George. New Judg-
O que era uma disputa ideológica, em torno à primazia de construir o ment on the Sino-Soviet
“comunismo num só país” e à defesa do stalinismo, transformou-se numa Rift: Monthly Review and
divisão entre os dois maiores Estados operários, favorecendo enormemente the Great Debate. Inter-
national Socialist Re-
o imperialismo. Mao recusa-se a participar de uma frente única dos Estados view, v. 34, n. 3, 1963.
operários em defesa do Vietnã, sob o pretexto de que os soviéticos eram Em www.marxists.org,
revisionistas e negociavam com os Estados Unidos, o que era verdade. acesso em 15/10/09.
A restauração capitalista
Em 1976, no mesmo ano em que morrem Zhou Enlai e Mao Tsé-tung,
explodem em Pequim enormes manifestações populares, as primeiras es-
pontâneas desde 1949. Milhares de pessoas saem às ruas exigindo liberdades
democráticas e o retorno do verdadeiro espírito do marxismo-leninismo. A
luta interna acirra-se.
Em 1978, durante a sessão plenária do PCCh, Deng Xiaoping anuncia
as primeiras reformas capitalistas batizadas de As Quatro Modernizações: na
agricultura, na indústria, defesa nacional e nas áreas de ciência e tecnologia.
No campo, as famílias receberam permissão para aumentar a quantidade de
terra que podiam cultivar como lotes privados e para vender a produção no
mercado aberto, a preços não tabelados. Na cidade, foram estimuladas as
iniciativas privadas para abertura de negócios.
A restauração capitalista começa a gerar desigualdades sociais impensáveis
no período anterior e o governo é assolado por uma enxurrada de denúncias
de corrupção. Nos anos 80, a China entra numa crise econômica e política
sem precedentes, com a exploração brutal da classe operária e a fome se
espalhando pelo campo.
Em 1989 ocorrem novas manifestações de massas. Em maio, milhares de
estudantes, exigindo liberdades democráticas e o fim da corrupção no gover-
no, ocupam a Praça Tiananmen, em Pequim. Aos poucos, as manifestações se
espalham por todo o país, e no momento em que elas começam a envolver a
classe trabalhadora, nas fábricas e outros locais de trabalho, a burocracia do
PCCh desata uma repressão sem precedentes, deixando centenas de mortos,
feridos e presos.
A maior reação à restauração capitalista é derrotada pelo governo chinês,
que se converte em ditadura burguesa. O heroísmo das massas chinesas não
conseguiu evitar que o conjunto da burocracia chinesa, incluída a ala bona-
partista de Mao Tsé-tung, fizesse a China retroceder 40 anos e a levasse de
volta às terríveis condições da exploração capitalista. Se foi Deng Shiaoping
o artífice da restauração, a impossibilidade da política maoísta de levar o país
ao socialismo, que será mundial ou não será, preparou o terreno. Mas as trai-
ções e inconsequências dos dirigentes não nos podem fazer esquecer uma das
maiores revoluções de toda a história do socialismo mundial, protagonizada
pelas massas camponesas e operárias chinesas.
As reivindicações nacionais
O franquismo, após sua vitória militar, esmagou com violência sanguinária
as reivindicações nacionais dos povos catalão, basco e galego, convertendo
com isso a luta contra a opressão nacional em uma das alavancas fundamen-
tais da luta antifranquista. A Transição tratou de dar uma saída ao problema
por meio do “Estado das Autonomias”, um tipo de pacto entre o aparelho
de Estado, a esquerda oficial e as burguesias periféricas pelo qual o primeiro
cedia algumas atribuições de governo aos governos territoriais em troca do
reconhecimento da unidade da Espanha e da proeminência do poder central.
O abandono descarado da reivindicação do direito de autodeterminação
por parte do PCE, do PSOE e da burguesia nacionalista, unido à brutal
repressão sobre o povo basco, onde as mobilizações alcançavam maior radi-
calidade e combatividade, foi o caldo de cultivo para o desenvolvimento do
ETA. A morte e a tortura de muitos de seus ativistas pelas forças repressoras
franquistas e sua inserção social lhes granjeava um grande apoio popular.
No outono de 1977 produziram-se multitudinárias mobilizações pelos
direitos nacionais. As manifestações eram de centenas de milhares no país
Basco. Em Barcelona, a Diada5 Nacional catalã de 11 de setembro de 1977
congregou um milhão de manifestantes.
Inclusive em zonas onde o nacionalismo não tinha tradição histórica
como a Andaluzia houve manifestações maciças em defesa da Autonomia.
No dia 4 de dezembro em Málaga um jovem trabalhador foi assassinado pela
polícia enquanto participava da manifestação, que reuniu 200 mil pessoas.
Os enfrentamentos dos trabalhadores com a polícia alcançaram tal virulência
que o governo decretou durante três dias o “estado de exceção” em Málaga.
As eleições sindicais
No início de 1978 realizaram-se as primeiras eleições para comitês de
empresa, com os sindicatos já legalizadas. As CCOO e a UGT obtiveram
em conjunto mais de 70% dos delegados. Nesta época, estas duas centrais
alcançaram níveis desconhecidos de afiliação, cinco milhões entre as duas orga-
nizações, cerca de 50% da classe operária de então. Através do financiamento
estatal que receberiam pela representação obtida, os privilégios concedidos
como “sindicatos mais representativos” e a restrição crescente dos direitos
democráticos dos filiados, uma burocracia dirigente se fortaleceu, cada vez
mais independente da base afiliada e dos trabalhadores e mais dependente do
aparelho estatal e da patronal. As eleições sindicais de 1978 representaram a
consolidação da divisão sindical em duas grandes centrais (CCOO vinculada
ao PCE - do qual, mais tarde, iria progressivamente se desvinculando – e a
UGT, vinculada ao PSOE) e a marginalidade da central anarquista CNT, que
não tomou parte no processo eleitoral.
As greves, ao contrário do período anterior, dão-se agora só por motivos 5 Diada: dia em que
econômicos e, apesar de que as direções sindicais tinham aceitado os tetos se celebra a festa na-
salariais, ocorreram muitas mobilizações contra a perda do poder aquisitivo cional catalã.
A Constituição é aprovada
O PSOE em 1977 ainda se pronunciava a boca pequena pela República,
mesmo que a princípios de 1978 já aceitava plenamente a “monarquia cons-
titucional” dos Bourbon. Os dirigentes do PSOE e do PCE defendiam a
Constituição, de cuja elaboração participaram, como a melhor garantia para
as liberdades democráticas, para acabar com os golpes de estado e para asse-
gurar os direitos sociais como o trabalho, a moradia, a educação ou a saúde.
No entanto, a Constituição, que seria aprovada por grande maioria no
referendo de 6 de dezembro de 1978 (mas que em Euskadi só foi apoiada por
uma terça parte do censo eleitoral) consagrava a inviolabilidade da economia
de mercado e da propriedade capitalista, a restauração na cúpula do Estado
monárquico estabelecida por Franco, a unidade forçada da Espanha, garantida
pelo Exército franquista e as vias para declarar o “estado de exceção e de sítio”
se a “segurança nacional” fosse ameaçada.
Cecília Toledo
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) - Brasil
Essa idéia de construção na arte, de maestria, de domínio técnico, é ex- 10 Bertold Brecht foi
tremamente dialética, porque a distancia da natureza, daquela sua origem um dos maiores dra-
primitiva, e temporariamente desfaz os laços da vida, deixa a realidade em maturgos e encena-
dores do século XX.
suspenso para que o homem se divirta e sinta prazer com ela. É o que diz A citação foi extraída
Bertold Brecht10, um artista profundamente ligado ao marxismo, que vê de seu livro Escritos
nesse prazer a qualidade libertadora da arte: sobre Teatro.
A burguesia e a arte
Pouco depois da Revolução Francesa de 1789, a filosofia clássica alemã
fez uma crítica estética da realidade, e o mesmo ocorreu nas décadas de 1830
e 1840, durante a segunda Revolução Industrial. Essas críticas expressavam
dúvidas sobre a possibilidade de uma autêntica criatividade artística sob as
novas relações burguesas. Foram momentos muito parecidos aos que vivemos
hoje. Uma sociedade assentada na cega luta de interesses materiais, onde os
homens vivem unicamente sob a pressão das carências, não pode haver uma
produtividade artística autêntica. Mesmo reconhecendo que o capitalismo era
o fundamento essencial do progresso, Hegel via que os efeitos paralisantes da
divisão do trabalho, a crescente mecanização de todas as formas de atividade
humana, a diluição da qualidade na quantidade, todas essas características
típicas da sociedade burguesa eram inimigas da poesia, adversas à arte.
A concepção dialética geral da história (as forças destrutivas do capitalis-
mo são ao mesmo tempo grandes forças produtivas) determinava a visão de
Marx sobre a arte. A decadência da criação artística é inseparável do progresso
da civilização burguesa.
O próprio desprezo pela arte, característico da sociedade burguesa, se
converte em poderoso fator revolucionário. As afirmações de Marx e Engels
contidas no Manifesto Comunista são muito adequadas a essa idéia. Mesmo
quando a burguesia destrói todas as relações idílicas, quando prostitui tudo,
quando despoja de sua aura a todas as profissões até então veneradas e dignas
de um piedoso respeito, incluindo o trabalho do poeta, ainda assim o niilis-
mo do modo burguês de produção é, ao mesmo tempo, seu maior mérito
histórico. Tudo o que sagrado é profanado, e os homens, por fim, se vêm
forçados a considerar serenamente suas condições de existência e suas relações
recíprocas. Marx e Engels viam nessa destruição das ilusões e dos vínculos
que unem o homem às antigas formas sociais como uma das condições ne-
cessárias para o surgimento uma cultura humana verdadeiramente universal.
Na sociedade capitalista se estabelece uma interdependência universal
entre as nações. E isso se refere tanto à produção material como intelectual.
A produção intelectual de uma nação se converte em patrimônio comum de
todas. A estreiteza e o exclusivamente nacional resultam cada vez mais im-
possíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais se forma uma literatura
universal19. Portanto, Marx via que aí surge uma enorme contradição, porque
a sociedade burguesa cria riqueza material e poderosos meios de desenvolvi-
mento cultural só para demonstrar na forma mais evidente sua incapacidade
de utilizar esses meios, as limitações do desenvolvimento cultural em uma
sociedade baseada na exploração do homem pelo homem.
Sob o domínio da burguesia atinge sua culminação uma contradição
historicamente condicionada (e, portanto, transitória) entre o desenvolvi- 19 MARX, K. e EN-
mento das forças produtivas da sociedade e suas realizações artísticas, entre GELS, F. O Manifesto
a tecnologia e a arte, entre a ciência e a poesia, entre enormes possibilidades Comunista.
Arte e coletivismo
A dialética marxista se baseia não apenas na doutrina da unidade de todos
os aspectos da vida social, mas também no reconhecimento de sua relação e
desenvolvimento contraditórios. Toda transição para formas mais elevadas e
mais desenvolvidas é acompanhada por uma negação; a compreensão desse
aspecto destrutivo do progresso explica o que poderia parecer pessimismo nos
comentários de Marx sobre a arte grega. Mas a dialética do desenvolvimento
histórico não dá um resultado negativo. Na opinião estética de Marx não há
nem vestígio dessa imaginária tragédia da arte sobre a qual se apóiam muitos
pensadores de todos os matizes, sobretudo nos dias de hoje.
A visão de Marx era totalmente otimista em relação à arte. Para ele, na
sociedade comunista, as disparidades entre as pessoas altamente dotadas e
as massas desaparecem. A concentração exclusiva do talento artístico em
indivíduos únicos e a consequente supressão desses dotes na grande massa é
uma conseqüência da divisão do trabalho.
O coletivismo, longe de suprimir a originalidade pessoal, oferece o
único terreno sólido para um desenvolvimento total da personalidade. A
idéia central em Marx e Engels é que a sociedade comunista elimina não
apenas as contradições abstratas entre trabalho e prazer, mas também entre
sentimento e razão, entre as habilidades físicas e mentais do homem. Junto
com a abolição das classes e a gradual desaparição da contradição entre tra-
balho físico e trabalho espiritual, vem o desenvolvimento geral do indivíduo
completo que os máximos pensadores sociais até agora só puderam sonhar.
Só a sociedade comunista, na qual “os produtores associados regulem esse
metabolismo seu com a natureza colocando-o sob seu controle coletivo, em
vez de serem dominados por ele como por um poder cego”, pode estabelecer
as bases materiais para “o desenvolvimento das forças humanas, considerado
como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade [...] A redução
da jornada de trabalho é a condição básica”20.
Com isso, Lifshitz conclui seu livro. Mas antes, faz uma síntese necessária
de tudo o que foi dito:
Segundo a teoria de Marx, portanto, o comunismo cria condições
para o crescimento da cultura e da arte que, comparadas às limitadas
oportunidades que a democracia de escravos oferece a uns poucos
privilegiados, estas devem necessariamente parecer muito mesquinhas. 20 MARX, K. O Capi-
A arte morreu! Viva a arte!, este é o lema da estética de Marx. tal, vol.III