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Roberto Troncon
Fabio R. Bechara
1 Introdução 1
2 Ações baseadas em incentivos e a dinâmica dos mercados ilícitos 2
3 Mercados ilícitos locais, nacionais e transnacionais 4
4 Definição de “organização criminosa” nas convenções internacionais e na lei 7
5 Como colocar esses conceitos em prática no trabalho policial? 13
6 A relação entre mercados ilícitos e crime organizado 17
6.1 Drogas 20
6.2 Armas 23
6.3 Tráfico de pessoas e contrabando de migrantes 25
6.4 Novos mercados ilícitos 26
7 Crime organizado e terrorismo 27
8 Comentários finais 30
Bibliografia 34
Mercados Ilícitos Transnacionais, Crime Organizado e seu impacto na região das Américas 37
1 Introdução
1
Link para o site da OCDE: http://www.oecd.org/governance/risk/oecdtaskforceoncounteringillicittrade.htm
acesso em 28/11/2020.
1
1. produção, distribuição, venda e compra de produtos e serviços proibidos,
como narcóticos, animais silvestres e comércio sexual;
A lei de cada país define o que é lícito ou ilícito produzir, comercializar e consumir. O
Uruguai foi o primeiro país do mundo a legalizar a produção, o comércio e o cultivo dos
diferentes tipos de cannabis; portanto, é legal cultivar, portar, comercializar e consumir
uma substância que em todos os países vizinhos é proibida. Em alguns países do mundo, as
bebidas alcoólicas são proibidas; a cocaína já foi comercializada legalmente em todo o
mundo por quase setenta anos; a prostituição é tratada de forma muito diferente entre os
países. A legislação que regula e proíbe o comércio de determinados bens e serviços cria
também os mercados ilícitos.
2
Outro criminólogo influente nesse debate é Klaus Von Lampe; ele construiu um website que reúne 200
definições de “crime organizado”: <http://www.organized-crime.de/organizedcrimedefinitions.htm>.
Os mercados ilícitos podem ser locais, nacionais ou transnacionais. Vamos ver alguns
exemplos.
A natureza econômica do crime já era destacada pelo economista Gary Becker ainda
em 1968: “Em geral, o ‘crime’ é uma atividade ou ‘indústria’ economicamente
importante, apesar da negligência quase total dos economistas.” (BECKER, 1968)3.
A economia de bens e serviços ilícitos conheceu uma expansão nos últimos trinta
anos, incentivada pela alta lucratividade p roporcionada pelas redes criminais que
viabilizam a oferta contínua de produtos e serviços ilegais, como o tráfico de drogas,
animais silvestres ou pessoas, órgãos humanos; de produtos lícitos desviados ou fabricados
na ilegalidade, como tabaco, armas, defensivos agrícolas, eletrônicos, alimentos, vestuário,
audiovisual, fertilizantes, automóveis, bebidas, medicamentos e combustíveis; ou de
serviços como TV a cabo, energia elétrica, entre outros com demanda garantida ou
crescente.
3
BECKER, G. S. Crime and Punishment: an Economic Approach. Journal of Political Economics, n. 76,
1968.
crime transnacional, bem como o aprimoramento dos marcos e estruturas de regulação,
controle e fiscalização do comércio internacional.
1. em mais de um Estado;
4
WILLIANS, P. Crime, illicit markets, and money laundering, carnegie endowment. In: TASK FORCE ON COUNTERING
ILLICIT TRADE/ ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Converging Criminal Networks,
2015. p. 107. Disponível em: http://carnegieendowment.org/pdf/files/mgi-ch3.pdf. Acesso em: 20/07/2016.
4. em um Estado com efeitos substanciais em outro.
Os mercados ilícitos tendem a reduzir o custo médio de suas operações5 por meio da
formação de redes criminais, as quais fornecem, por exemplo, serviços de transporte,
proteção e informações. Essa nova forma de cooperação em rede permite que as
organizações criminosas ampliem o atendimento de novas demandas pelo
compartilhamento das cadeias logísticas e a terceirização de serviços (organizações
criminosas contratam outras organizações, ou indivíduos, para executar parte de sua cadeia
de produção e comercialização).
5
O principal componente do custo para as organizações criminosas que atuam nos mercados ilícitos é o risco
de serem detectadas pela polícia.
6
Bentham, J. Principles of Penal Law, 1 Works, 399 p, 1843
4 Definição de “organização criminosa” nas convenções internacionais e na lei
b) “infração grave” é todo ato que constitua infração punível com uma pena de
privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena
superior;
7
Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças
(promulgado no Brasil como Decreto Presidencial n. 5.017 de 2004. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm>); Protocolo contra o
contrabando de migrantes por terra, mar e ar (promulgado no Brasil como Decreto Presidencial n. 5.016 de
2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm>); e
Protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas partes e componentes e munições
(promulgado no Brasil como Decreto da Presidência da República n. 5.941 de 2006. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/D5941.htm>).
O conceito de “grupo estruturado” possibilita a diferenciação entre a associação de
duas ou mais pessoas que se unem de forma não permanente, com um vínculo temporário e
volátil, para a prática imediata de ilícito penal, punível com uma pena inferior a quatro
anos, e o grupo criminoso organizado, formado por três ou mais pessoas, com vínculo
associativo perene, para a prática de crimes graves, punidos com pena máxima de prisão
não inferior a quatro anos.
Há esforços importantes também no âmbito dos países da região das Américas, que
estão empenhados em tipificar o crime organizado em seus regulamentos internos e
promover a cooperação internacional para combater o crime organizado, compromisso
ratificado na Declaração sobre Segurança nas Américas de 20039.
8
Conceito desenvolvido em WERNER, Guilherme Cunha. Teoria Interpretativa das Organizações
Criminosas: Conceito e Tipologia. In: ORGANIZAÇÕES Criminosas: Teoria e Hermenêutica da Lei n.º
12.850/2013. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2015.
9
Declaração sobre Segurança na Américas de 2003. Disponível em:
Nessa declaração, a OEA faz um chamado aos países membros para lutarem contra
o crime organizado transnacional por meio da plena implementação das obrigações
contraídas pelos Estados Partes na Convenção de Palermo e seus três protocolos, em
especial para que a lavagem de dinheiro, o tráfico ilícito de pessoas, a corrupção e outros
delitos conexos sejam criminalizados no hemisfério. A OEA preconiza, também, que os
países implementem leis que permitam ágil identificação, rastreamento, apreensão e
confisco dos bens e recursos financeiros obtidos por meio das infrações praticadas pelas
organizações criminosas.
11
Convenção Interamericana Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Munições,
Explosivos e Outros Materiais. Disponível em:
<http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-63.htm>. Acesso em: 28 nov 2020.
12
Pl ano de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Hemisfério Ocidental (2015-2018).
Disponível em : https://www.oas.org/csh/portuguese/traficopessoas.asp
Na mesma Reunião de Autoridades Nacionais em Matéria de Tráfico de Pessoas em
que foi aprovado o Plano de Trabalho 2015-2018, foi aprovada a “Declaração
Interamericana de Combate ao Tráfico de Pessoas” ou “Declaração de Brasília” (2014).
13
Declaração de Antígua, na Guatemala, de 2013.Disponível em:
<https://www.oas.org/pt/centro_midia/nota_imprensa.asp?sCodigo=PG-010>.
5 Como colocar esses conceitos em prática no trabalho policial?
O segundo caminho, por sua vez, dirige seu foco para as atividades ilícitas e suas
externalidades. No primeiro caminho, identifica-se a organização e chega-se às atividades
ilícitas às quais a organização se dedica; no segundo caminho, que estamos seguindo como
linha principal do presente módulo, identifica-se a atividade ilícita e a partir daí chega-se à
organização ou às organizações que realizam essa atividade ou que dela se aproveitam de
alguma forma.
14
Albanese (2011) aponta cinco espécies de grupos criminosos organizados: (a) hierarquia rígida: chefe
individual com uma forte disciplina interna com muitas divisões; (b) hierarquia descentralizada: estruturas
regionais, cada qual com a sua própria hierarquia e nível de autonomia; (c) conglomerado hierarquizado:
uma associação de grupos criminosos organizados; (d) grupo criminoso central: estrutura horizontal de
indivíduos que se autodescrevem como trabalhando para uma mesma organização; (e) rede criminosa
organizada: engajamento individual em atividades criminosas na modificação de alianças, não
necessariamente afiliadas a algum grupo criminoso, mas agindo de acordo com as suas respectivas
habilidades para realizar atividades ilícitas.
ramificações do crime organizado no comércio legal, no setor de serviços (incluindo os
serviços financeiros), na burocracia estatal, nas polícias e na política. Diante desse cenário,
fica evidente a necessidade de se buscar novas formas de análise do fenômeno e também da
adoção de novos modelos de organização, operação e articulação das forças de segurança,
principalmente por meio da maior interação entre os sistemas de inteligência e informação
das polícias, dos órgãos de controle interno, do Ministério Público, dentre outras instâncias,
com vistas a permitir a gestão estratégica do problema.
Mesmo sem uma definição clara do que constitui o problema, as agências policiais
são chamadas a desenvolver análises prospectivas para entenderem e se prepararem
antecipadamente para enfrentarem as novas tendências, dinâmicas e ameaças advindas do
crime organizado.
Dessa forma, um caminho possível para se contornar a dificuldade posta pela falta
de um conceito compartilhado sobre o fenômeno do crime organizado é considerar a
atividade ilícita (o empreendimento e o mercado no qual os grupos criminosos atuam) e
15
Ver Lampe, 2003.
16
Ver Naylor, 2004.
não somente a estrutura da organização como ponto de partida para a análise e
investigação policial.
Outra questão importante diz respeito à forma como se dá a mudança de escala das
organizações criminosas do âmbito local e nacional para o transnacional. Aqui também
existem visões conflitivas sobre esse processo: três modelos distintos podem ser utilizados
para explicar as mudanças na escala de operação.
17
Ver Lampe 2003 y 2016.
O primeiro modelo pode ser descrito como o modelo evolucionário do crime
organizado18(LUPSHA, 1996; BEATTO E ZILLI, 2012).
19
Beato, Zilli 2012, p 91
20
Pimentel 2000, p. 56
21
Ibid., p 56
viagens internacionais e o crescimento e barateamento dos sistemas de informação e
comunicação via internet, telefones celulares, e-mails e redes sociais (LAMPE, 2003 E
.
2016) 22
Outro problema distinto diz respeito à evolução dos mercados de bens e serviços
ilícitos. É evidente que as organizações criminosas e os mercados são entes
inter-relacionados, mas, no caso das atividades ilícitas em particular, há mais possibilidade
de observação do comportamento do mercado do que do comportamento e da estrutura
organizacional dos grupos criminais. Vejamos a magnitude e as características dos
principais mercados ilícitos na região.
22
Lampe, 2003 e 2016.
Mercados ilícitos transnacionais são ou constituem-se a partir da oferta, em escalas
regional e internacional, de bens e serviços como drogas, armas, órgãos humanos, pessoas,
criptomoeda, serviços sexuais, animais silvestres e plantas, minérios, produtos roubados,
furtados, contrabandeados, falsificados ou pirateados. A oferta desses bens atende a uma
demanda crescente vinda de consumidores de diferentes países do mundo. Infratores se
organizam e se conectam em redes para atuar nesses mercados, utilizando-se da corrupção,
da violência e de ameaças contra agentes públicos e a sociedade. Essas atividades geram
também um fluxo de recursos financeiros que precisam ser reintroduzidos na economia
após serem “lavados”. Portanto, os mercados ilícitos e suas cadeias globais constituem um
problema público que precisa ser enfrentado e controlado de forma sistêmica. Não basta
atuar contra os crimes como o contrabando, o tráfico ou o roubo de carga isoladamente.
Tanto do ponto de vista prático, da investigação policial e da prevenção, quanto da análise
de inteligência, é preciso entender como se conectam os diferentes agentes envolvidos nas
cadeias logísticas dos mercados ilícitos. Essa é a forma principal pela qual os órgãos
policiais passaram a lidar com o problema dos novos tipos de crime globais, principalmente
desde os anos 2010.
Para fins da análise que faremos a seguir, vamos classificar os mercados ilícitos
segundo suas cadeias de suprimentos. O primeiro grupo é constituído por bens e serviços
que são integralmente ilícitos, ou seja, toda a cadeia de produção e suprimentos, a entrada e
a venda desses bens e serviços nos países é ilícita, sem exceções. Esse é o caso das drogas e
do contrabando de cigarro, celulares, bebidas, entre outros. O segundo grupo é composto
por bens e serviços que são parcialmente lícitos. Nesse caso, os produtos foram fabricados
ou entraram no país de forma legal, mas foram roubados de seus donos (carros, relógios,
celulares, etc.) ou, após serem produzidos legalmente, foram comercializados de forma
ilícita (como no caso das armas de fogo, por exemplo).
Esses dois segmentos dos mercados ilícitos são altamente lucrativos, como veremos.
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime publicou em 2011 a pesquisa
“Estimating Ilicit Financial Flows Resulting from Drug Trafficking and Other
Transnational Organized Crimes” (UNODC, 2011)24, em que examina a magnitude dos
fundos ilegais gerados pelas atividades ilícitas, a partir de parâmetros técnicos estabelecidos
pelo Fundo Monetário Internacional. Nesse estudo, os produtos ou receitas provenientes de
crimes somam aproximadamente 3,6% do Produto Interno Bruto global. Vejamos quais são
os principais segmentos dos mercados ilícitos globais e suas respectivas magnitudes.
23
O comportamento violento e o gosto pela trapaça nas interações sociais são fatores associados à baixa
inteligência (FREEMAN, 2012).
24
UNODC, 2011. “Estimating Ilicit Financial Flows Resulting from Drug Trafficking and Other Transnational
Organized Crimes” . Disponível em:
<https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/Studies/Illicit_financial_flows_2011_web.pdf>
6.1 Drogas
A principal fonte de dados e informações sobre o problema global das drogas ilícitas
no mundo é o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, conhecido pela sigla em
inglês UNODC. Essa agência da ONU estima que aproximadamente 35,6 milhões de
pessoas no mundo sofrem algum tipo de problema de saúde associado ao consumo de
drogas.
Com base nas pesquisas de prevalência de uso de drogas pela população, Reuter e
Greenfield (2001) estimaram o consumo per capita e, levando em conta o valor de varejo
da cocaína nos EUA e na Europa, construíram um intervalo com o valor mínimo de 35
bilhões e máximo de U$115 bilhões de gasto com a droga. Kilmer e Pacula (2009)
apresentam uma estimativa mais conservadora para a receita gerada pelo comércio
internacional de cocaína: entre U$7 e U$8 bilhões de dólares (p. 70).
As estimativas do UNODC são bem mais elevadas. Os lucros obtidos com a venda
da cocaína foram estimados, por essa agência, em U$84 bilhões de dólares para o ano de
2009, sendo que aproximadamente um bilhão corresponde aos custos de produção. A maior
parte dos lucros dessa cadeia produtiva foi gerada não na região produtora, a região andina
da América do Sul, mas na América do Norte e na Europa. Os cálculos derivados dessas
estimativas do tamanho do mercado e da estrutura do mercado sugerem que
aproximadamente 92% da receita proveniente da comercialização da cocaína no mundo
estiveram aptos para a lavagem em 2009. A pesquisa revela ainda que, do total mencionado
de U$84 bilhões de lucro, U$56 bilhões estão disponíveis para lavagem, sendo que, destes,
aproximadamente U$26 bilhões deixaram as jurisdições onde os lucros foram obtidos.
O World Drug Report de 2017 indica que 13525 países no mundo relataram a
presença de cultivo ilícito da droga, sendo que na região das Américas, Canadá, EUA,
México, Paraguai, Colômbia e Brasil, entre outros países, produzem grande quantidade da
droga; aproximadamente 24% da produção mundial ocorrem na América do Sul, e 31%, na
(WORLD DRUG REPORT, 2017, Booklet 2, p. 39).
América do Norte 26
25
World Drug Report, 2017; “A estimativa do número de países é feita com base em um questionário em
que os Estados Membros informam sobre a existência de cultivo no próprio país e nos países do entorno.
“.
26
World Drug Report, 2017. Booklet 2, p. 39.
O relatório de 2017 confirma essa característica disseminada do cultivo da Cannabis
e a forte presença da droga na região das Américas. O Paraguai, segundo o WDR 2017, é o
primeiro país do mundo com maior número na erradicação de plantas de Cannabis, com 12
(WORLD DRUG REPORT, 2017) .
milhões de pés erradicados 27
As estimativas devem ser lidas com cautela. Embora ofereçam uma base útil para o
planejamento de ações de prevenção e controle do problema, segundo alguns especialistas,
esses procedimentos têm várias falhas metodológicas, principalmente em função do fato de
que o preço das drogas no varejo é estimado com base em uma média de uma distribuição
que apresenta grande variação (REUTER; GREENFIELD, 2001; ARKES, 2008;
PACULA, 2007). O preço de qualquer droga varia enormemente entre países e entre
cidades e regiões de um mesmo país28. A validade dessas estimativas globais do mercado
de bens e serviços ilícitos e a metodologia empregada são objeto de intensa disputa entre os
especialistas (NAYLOR, 2004; KILMER; PACULA, 2009).
Mesmo diante das dúvidas sobre a qualidade das estimativas oferecidas pelo
UNODC, há algumas vantagens na utilização desses dados em estudo sobre tendências e
principalmente na comparação entre países. Em primeiro lugar, os levantamentos
oferecidos pela UNODC apresentam metodologia padronizada para a mensuração (de
validade discutível, mas razoavelmente confiáveis) de aspectos como o cultivo e a
produção de drogas, entre outros, o que permite estabelecer comparações longitudinais
(como as que faremos a seguir) sobre a evolução de diversas atividades ilícitas. Em
segundo lugar, as estimativas do UNODC têm abrangência global, ao contrário dos estudos
acadêmicos, que geralmente apresentam estimativas pontuais baseadas em protocolos
metodológicos que dificilmente são aplicados em mais de um momento no tempo e em
mais de um país ou região. Em terceiro lugar, essas estimativas têm sido crescentemente
utilizadas na definição de estratégias governamentais diante do problema do crime
27
World Drug Report, 2017, Dados Tabla “Cannabis cultivation, production and eradication, latest year
available from the period of 2011-2016. Disponível em:
<https://www.unodc.org/wdr2017/field/6.3.1_Cannabis_cultivation_production_eradication.pdf” >.
28
Por exemplo, Reuters e Greenfield (2001) relatam estimativas sobre o preço da cocaína na Espanha:
entre 1988 e 1993, o preço teria caído de U$84 para U$44; enquanto na França, no mesmo período, teria
ocorrido um movimento contrário: um aumento de $72 para $107. Variações internas nos EUA mostram
também diferenças muito acentuadas. O preço da cocaína em Pittsburgh em 1992 era de U$80 contra
U$54 em Miami.
organizado. É claro que estimativas exageradas podem levar à alocação ineficiente de
recursos, mas são adequadas para se avaliar a motivação dos governos na definição de
políticas ou, no mínimo, para analisar a sensibilidade das lideranças políticas diante do
problema.
6.2 Armas
Nenhuma análise dos mercados ilícitos estaria completa sem uma referência ao
mercado de armas de fogo. Há uma conexão entre os mercados ilícitos de armas e drogas
que precisa ser detalhada analiticamente e que tem grande impacto na forma como a
distribuição da droga e o tráfico de armas ocorrem nas áreas urbanas. Os mercados ilícitos
de armas e drogas têm, no entanto, uma diferença importante: armas são produzidas
legalmente para então serem transferidas ao mercado ilegal em algum ponto do processo de
comercialização.
O valor global do comércio autorizado de armas de fogo foi estimado pela ONU em
US$5,8 bilhões no ano de 2013, um aumento de 17% em relação a 201229. A análise de
tendências revelou que o valor do comércio global de armas leves e de pequeno porte quase
dobrou entre 2001 e 2011 (de US$2,38 bilhões para US$4,634 bilhões)30. A tabela 1 mostra
o peso que os EUA e o Brasil têm no comércio legal de armas entre os países da região das
Américas. Os EUA são os maiores exportadores e importadores de armas da região:
sozinhos, movimentam mais do que todos os demais países da região. O Brasil é o segundo
exportador e o quinto importador de armas leves na região das Américas e, globalmente,
está entre os dez maiores produtores mundiais de armas leves (SMALL ARMS SURVEY,
2016). O grande desafio das políticas para o setor não é propriamente o de regular o acesso
legal às armas, mas a capacidade de controle das transferências ilegais de armas. A zona
cinzenta entre o segmento legal e o comércio ilícito é o grande problema a ser enfrentado
pela legislação e pelas polícias.
29
PAVESI,I. In: Trade Update 2016: Tranfers and Transparency. Small Arms Survey: Geneva, 2016. Disponível
em: <htttp://www.smallarmssurvey.org/fileadmin/docs/S-Trade-Update/SAS-Trade-Update.pdf> .
30
AUTHORIZED Trade. Small Arms Survey, Geneva, 2016. Disponível em:
<http://www.smallarmssurvey.org/weapons-and-markets/transfers/authorized-trade.html>
Quadro 1
O tráfico de pessoas deve ser analisado entre os grandes vetores das atividades
ilícitas globais. Essa atividade é considerada pelo Escritório das Nações Unidas sobre
Drogas e Crime como o terceiro maior comércio ilegal do mundo, somente atrás do tráfico
de armas e de drogas. Essa atividade geralmente é dividida em nichos específicos: (a) para
fins de exploração sexual do indivíduo; (b) para a realização de trabalhos escravos ou em
regime de semiescravidão: a finalidade é a utilização do indivíduo como mão de obra, sem
o seu consentimento; (c) para o tráfico de órgãos: quando há o transporte de indivíduos para
retirada de seus órgãos, seja por rapto, morte ou venda; (d) para a adoção de crianças:
compra e venda de menores para adoção ilegal; (e) fins militares: utilização de indivíduos
em conflitos armados; (f) tráfico de esposas, o que é diferente do tráfico sexual, pois a
finalidade deste tráfico é o fornecimento de mulheres para o casamento forçado a regiões
do mundo onde esse tipo de prática ocorre.
É importante notar que o tráfico de pessoas pode ocorrer tanto nacional quanto
internacionalmente. Grande parte dos negócios ligados ao tráfico de pessoas ocorre
31
HUMAN Trafficking Statistics. Polaris Project, Washington D. C., 2016. Disponível em:
<http://www.polarisproject.org/human-trafficking/overview>. Acesso em:28 de nov 2020.
localmente dentro dos países, sem a necessidade de cruzar fronteiras. Em relação ao
contrabando de migrantes, estima-se que mais de 232 milhões de pessoas em todo o mundo
são migrantes internacionais, dos quais 57,5 milhões vivem nas Américas. Destes, 19,15
milhões de pessoas vêm do México e da América Central, e estima-se que metade está sem
documentos pessoais. Este negócio ilícito traz lucros de US$6,6 trilhões por ano
globalmente32.
Central
de comércio de madeira mundial (GLOBAL INITIATIVE AGAINST TRANSNATIONAL
ORGANIZED CRIME, 2014).
33
A Liga das Nações, em 16 de novembro de 1937, promulgou a Convenção de Prevenção e Punição do
Terrorismo da Liga das Nações contra o terrorismo anárquico que assolava o continente europeu, e definiu o
terrorismo como sendo todos os atos criminosos dirigidos contra um Estado e com a intenção premeditada de
criar um estado de terror nas mentes de pessoas específicas ou de um grupo de pessoas ou do público em geral
(art. 1º), sendo os atos de terror especificados como aqueles aptos a atacar funcionários públicos, chefes de
Estado e seus familiares, bem como pôr em risco ou destruir as instalações públicas.
medidas antiterrorismo tendem a afastar tal característica, como pode ser observado na
postura adotada pela Organização das Nações Unidas, que identifica o terrorismo como
Qualquer ato intencional voltado a causar a morte ou grave lesão física a civis ou
não combatentes, quando o propósito desse ato, pela sua natureza ou contexto, seja
intimidar a população ou compelir um governo ou uma organização internacional a
fazer ou se abster de fazer algum ato.34
35
8 Comentários finais
Uma das tarefas práticas mais urgente nessa área envolve a construção de sistemas
de informação compartilhados e o desenho de indicadores que permitam minimamente
avaliar a incidência do problema e os resultados obtidos por meio das políticas públicas
adotadas.
Nesse sentido, a cooperação dos órgãos públicos entre si e destes com o setor
privado, tanto no plano doméstico como no internacional, contribui para a consolidação dos
atuais mecanismos de governança, assegurando mais eficiência no enfrentamento dos
mercados ilícitos globais e permitindo o desenvolvimento de modelos estruturantes que
favoreçam a gestão mais qualificada do problema.
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TEXTO PARA DISCUSSÃO
AS
REGIÃO D AMÉRICAS
Roberto Troncon
Fabio R. Bechara