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BREVES REFLEXÕES SOBRE A LIVRE REVOGABILIDADE DAS

LIMITAÇÕES A DIREITOS DE PERSONALIDADE E INDEMNIZAÇÃO

Prof. Doutor Diogo Costa Gonçalves*

Dr. Diogo Tapada dos Santos**

1. Limitação voluntária de direitos de personalidade


1.1. Introdução; negócio jurídico limitativo

I – A limitação voluntária dos direitos de personalidade é possível e até


frequente.
Legalmente, tal possibilidade encontra-se prevista no art. 81.º do CC,
ficando apenas as limitações sujeitas ao controlo do seu conteúdo pelo princípio
da ordem pública (art. 81.º/1)1 e sempre sujeitas à livre revogabilidade (art. 81.º/2).

II – A doutrina2 tem discutido se, após a limitação voluntária a um direito


de personalidade, os atos do beneficiário da limitação são um exercício de violação
lícita de um direito, ou se se exclui tout court a lesão do direito (e, por conseguinte,
se considera naquele âmbito não haver, rectius, direito).
A limitação voluntária dos direitos de personalidade configura via de regra
um consentimento legitimante da lesão que exclui a ilicitude, dentro de uma esfera
de bens de personalidade disponíveis secundum quid, a qual não se retrai pelo

*Doutor em Direito. Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


dcostagoncalves@fd.ulisboa.pt
**Magister Juris (Oxford). Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
dtapadasantos@fd.ulisboa.pt
1
E, naturalmente, aos requisitos do objeto negocial previstos no art. 280.º do CC. Sublinhando este ponto,
veja-se ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, IV, 5.ª ed., 2019, 127, e PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª ed., 2002 (reimp. 2019), 52.
2
Para um sumário de algumas posições veja-se ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Comentário aos artigos
70.º a 81.º do Código Civil (Direitos de personalidade), 2012, 233.

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consentimento, mas antes adquire certa quiescência perante as lesões consentidas.
Contudo, em casos em que o direito de personalidade admita certa modelação do
seu conteúdo pelo próprio titular (pense-se na reserva da intimidade, cujo extensão
se afere, nos termos do art. 80.º, segundo «a natureza do caso e a condição das
pessoas»), estaremos perante um caso em que a limitação voluntária afasta a
própria lesão, e não apenas a ilicitude, conquanto esta modela o objecto do direito.

III – Cumpre observar, a propósito da determinabilidade da limitação, que


as limitações voluntárias aos direitos de personalidade têm de ser particularmente
cuidadosas quanto a este aspeto. Afirma-se, assim, que o consentimento tem de ser
«concreto, tendo em vista situações determinadas»3.
Este aspeto é particularmente relevante enquanto elemento normativo a ter
em conta na interpretação das limitações.

IV – A limitação voluntária dos direitos de personalidade corresponde a um


negócio jurídico – o negócio jurídico limitativo –, unilateral ou contratual, cujo
objeto consiste no concreto regime imposto ao direito de personalidade em causa4.
Os negócios limitativos não correspondem a um tipo contratual; trata-se,
apenas, de uma classificação funcional. Tal significa que o efeito limitativo dos
direitos de personalidade pode ser obtido através de contratos de tipos muito
variados.
Quando a limitação é onerosa e associada ao exercício de uma atividade
profissional, o tipo contratual mais frequente é o contrato de prestação de serviços.

1.2. Exercício da limitação por intermédio de uma pessoa coletiva

I – Por vezes sucede que o sujeito do negócio limitativo dos direitos de


personalidade é uma sociedade comercial e não a pessoa titular dos direitos em
causa.

3
HEINRICH EWALD HÖRSTER/EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, A Parte Geral do Código Civil Português,
2.ª ed., 2019, 288. Insistindo igualmente neste aspeto, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de Teoria
Geral do Direito Civil, 2021, 320.
4
DIOGO COSTA GONÇALVES, Lições de Direitos de Personalidade – Dogmática Geral e Tutela Nuclear,
2022, 298 e ss.

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Pergunta-se: se os direitos de personalidade são indisponíveis e a sociedade
não é a titular dos bens de personalidade identificados, como é possível uma
sociedade ser utilizada como veículo para a limitação de direitos de personalidade
de uma pessoa singular?

II – Com efeito, os direitos de personalidade são absolutamente


indisponíveis quanto à sua titularidade, porque a ninguém é lícito renunciar aos
seus bens de personalidade, quer por via ablativa, quer por via translativa.
Em causa está uma projeção da fundamentação antropológica da tutela: assim
como ninguém pode deixar de ser aquilo que é, também ninguém pode renunciar
à tradução jurídica da sua realidade pessoal5.
À margem desta consideração, a disponibilidade – materializada na limitação
voluntária dos direitos de personalidade – é admitida, nos termos já enunciados.

III – Sendo a limitação um regular exercício de autonomia privada, nada obsta a


que o titular do direito organize o exercício da sua liberdade de atuação como
entender: o concreto modus operandi da limitação pode ser livremente
determinado pelo titular do direito6.
Nada impede, portanto, que o exercício limitativo dos direitos em causa seja
alocado a uma sociedade comercial7. Algo de semelhante ocorre, por exemplo, nas
sociedades profissionais: uma atividade eminentemente pessoal e cujo exercício
depende em absoluto das qualidades do sujeito que a realiza pode ser exercida
através de uma sociedade especificamente criada para o efeito.

IV – Tal modo de organização da atividade limitativa de direitos de personalidade


é especialmente adequado àquelas limitações de direitos preponderantemente
patrimoniais e cujo exercício limitativo corresponde a uma profissão.
Com efeito, a não-patrimonialidade é apontada como uma característica cogente
dos direitos de personalidade8. Contudo, a questão da patrimonialidade não se

5
Com desenvolvimento veja-se DIOGO COSTA GONÇALVES, Pessoa e Direitos de Personalidade –
Fundamentação ontológica da tutela, 2008, passim.
6
DIOGO COSTA GONÇALVES, Lições de Direitos de Personalidade..., cit., 309.
7
Neste sentido, admitindo o exercício de direitos de personalidade em regime de representação ou
licenciamento a terceiros, ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Comentário..., cit., 234.
8
A discussão acerca do conceito de patrimonialidade surgiu a propósito dos requisitos das obrigações,
tendo-se perguntado insistentemente se a obrigação, para ser validamente constituída, devia vincular o
devedor à realização de uma prestação que fosse, não apenas lícita, possível e determinável, mas também
patrimonial.

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coloca do mesmo modo quanto a todos os direitos de personalidade. Se bem
atendermos, existe como que uma evolução gradativa, no sentido da não-
patrimonialidade para a patrimonialidade, à medida que avançamos do núcleo da
tutela (vida, integridade física, honra) para a sua periferia (imagem, voz e palavra,
algumas dimensões da vida privada).
Os bens nucleares da personalidade gozam, tendencialmente, de uma não-
patrimonialidade absoluta: à ordem jurídica repugna a possibilidade de fazer
comércio com a vida, com o próprio corpo ou com a honra e, por isso, limitar o
seu conteúdo em troca de dinheiro.
Na periferia da tutela, a relação é a inversa. À medida que nos vamos afastando do
núcleo, os bens de personalidade gozam cada vez mais de conteúdo patrimonial,
sendo admissível uma maior diversidade de negócios jurídicos fundados na
patrimonialidade dos interesses em causa.
Chega até a discutir-se a existência de direitos de personalidade absolutamente
patrimoniais9, em que todo o objeto da situação jurídica pode ser convolado em
dinheiro. Pense-se, por exemplo, no direito à imagem.

2. Livre revogabilidade das limitações

2.1. A regra da livre revogabilidade; revogação vs. denúncia

I – Como resulta do art. 81.º/2 do CC, as limitações voluntárias dos direitos


de personalidade são livremente revogáveis, «ainda que com obrigação de
indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte».

Da discussão acerca da patrimonialidade da obrigação (requisito hoje abandonado – art. 398.º/2 do CC)
ficou-nos uma noção fundamentalmente correspondente à susceptibilidade de avaliação económica (em
dinheiro) de certa posição jurídica. Para uma visão panorâmica, cf. HUGO RAMOS ALVES, “Em tema de
patrimonialidade da prestação”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Pamplona Corte-
Real, 2016, 535-564.
Mais recentemente, MENEZES CORDEIRO viria a colocar a tónica não tanto na susceptibilidade de avaliação
pecuniária, mas antes na possibilidade do escambo por dinheiro (vide, do autor, Tratado de Direito Civil,
I, 4.ª ed., 2012, 867-868). A troca consentida pelo ordenamento (não a avaliação) surge-nos, portanto, como
quidditas da noção de patrimonialidade.
9
Como sugere MENEZES CORDEIRO, Tratado ..., IV, cit., 114. No mesmo sentido, DAVID OLIVEIRA FESTAS,
Do conteúdo patrimonial do direito à imagem – Contributo para o estudo do seu aproveitamento
consentido inter vivos, 2009, 124 e ss., embora o autor reconheça existirem valores pessoais indissociáveis
do direito (patrimonial) em presença.

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As origens do preceito são conhecidas. Na versão original, proposta por
MANUEL DE ANDRADE, dizia-se que a limitação voluntária «pod[ia] também ser
revogável»10, abrindo portas à possibilidade de limitações irrevogáveis.
Esta orientação foi expressamente afastada no CC de 1966: todas as
limitações a direitos de personalidade são livremente revogáveis,
independentemente de justa causa, o que não afasta – como melhor veremos – a
tutela da confiança dos beneficiários da limitação.

II – O escopo da livre revogabilidade é de fácil apreensão: permitir ao titular


– a todo o tempo e sem pendência de razão justificativa – o resgaste da amplitude
máxima da tutela da sua personalidade.
O sistema jurídico tolera, portanto, a limitação dos direitos de personalidade
desde que se verifiquem dois requisitos: (i) a intangibilidade do seu núcleo ético
fundamental (concretizada através dos requisitos gerais da licitude do objecto
negocial, previstos nos arts. 81.º e 280.º do CC); e (ii) a possibilidade de o titular
do direito recuperar, a todo o tempo, a amplitude máxima da tutela.
A identificação de uma natureza limitativa de direitos de personalidade tem,
por isso, uma importante consequência de regime: independentemente das regras
aplicáveis ao tipo contratual em presença, o facto de o contrato ser um negócio
limitativo impõe que se reconheça a aplicação do princípio da livre revogabilidade.
O mesmo é dizer: o titular dos direitos de personalidade pode sempre
denunciar o contrato nos termos do art. 81.º/2 do CC, ainda que o regime-base do
tipo contratual não admita essa possibilidade11.

III – A livre revogabilidade é um elemento normativo injuntivo que as partes


não podem afastar. Aplica-se, portanto, quer no silêncio das partes, quer na
presença de declarações negociais que a procurem afastar.
Ainda que um certo contrato não acautele diretamente a livre
revogabilidade, esta faculdade é um dos essentialia negotii 12 de um negócio de
limitação voluntária de direitos de personalidade.

10
MANUEL DE ANDRADE, Esboço de um Anteprojecto de Código das Pessoas e da Família, BMJ 102, 1961,
161.
11
JOANA VASCONCELOS, «Artigo 81.º», in Comentário ao Código Civil - I, 2014, 203.
12
Sobre o conceito veja-se ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, 5.ª ed., 2021, 116.

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IV – Diferente possibilidade é a de as partes regularem alguns termos da
livre revogação (por exemplo, o meio para a comunicarem ou um prazo de pré-
aviso para o fazerem). É certo que esses termos, se incumpridos, nunca impedirão
a revogação – contudo, serão potencialmente, e a título próprio, ilícitos contratuais
geradores da obrigação de indemnizar por incumprimento, preenchidos os seus
pressupostos.
Ponto assente é que, na ausência de tal tipo de cláusulas, valem os princípios
gerais.

V – Pese embora a letra da lei assim o referir, o carácter livre e


incondicionado da cessação das limitações aos direitos de personalidade afasta a
figura da revogação. Trata-se de um uso impróprio ou livre do conceito.
Em causa está, em rigor, uma hipótese de denúncia ad nutum: uma
manifestação unilateral de vontade de pôr fim a uma relação jurídica duradoura
sem pendência de causa justificativa, que produz efeitos ex nunc13.
Nas fontes, o legislador utiliza por vezes o conceito de revogação quando
em causa está uma hipótese de denúncia. É o que sucede nos arts. 81.º/2 e 1170.º/1
do CC. A revogação aí prevista é, em rigor, uma denúncia ad nutum.

VI – A denúncia é uma declaração negocial receptícia, produzindo efeitos


nos termos previstos no art. 224.º do CC.
O seu carácter livre e incondicional, bem como o facto de em causa estar o
resgaste da amplitude máxima da tutela da personalidade, depõem no sentido de
não ser exigível pré-aviso14. Só isso se compagina com o caráter eminentemente
pessoal dos direitos de personalidade, os quais o titular pode querer “resgatar” para
a sua esfera jurídica com efeitos imediatos. Esta será, aliás, uma decorrência da
dupla inerência destes direitos15.
Daqui não se retira que o momento e as circunstâncias da denúncia não
tenham consequência na tutela da confiança do beneficiário das limitações e,
consequentemente, no quantum indemnizatório.
Será à luz da dogmática do dano de confiança e não da licitude da denúncia
que a ausência de pré-aviso deverá ser ponderada.

13
MENEZES CORDEIRO, Tratado..., IV, cit., 125.
14
No mesmo sentido, JOANA VASCONCELOS, «Artigo 81.º», cit., 203.
15
Sobre a dupla inerência pode ver-se MENEZES CORDEIRO, Tratado..., IV, cit., 114-115.

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2.2. Cont.: a (ir)relevância do termo resolutivo

I – Podem colocar-se dúvidas quanto ao impacto da existência de um termo


resolutivo fixado no negócio limitativo.
A existência de um termo resolutivo não afasta ipso facto o princípio da
livre resolução. Pode, contudo, ser um elemento volitivo relevante para concluir
no sentido da existência de uma renúncia ou de uma convenção em contrário à
livre revogação.

II – A caducidade e a resolução servem fins contratuais distintos.


A primeira, põe fim a uma relação jurídica por mera verificação de certo
facto futuro; a segunda, corresponde ao exercício de um direito potestativo16
mediante o qual uma das partes precipita unilateralmente (com ou sem justa causa)
o terminus de uma relação contratual.
A existência de um termo resolutivo gera a caducidade. Mas para que se
afaste a resolução, é necessário demonstrar que as partes o quiseram ou que alguma
delas renunciou antecipadamente a tal direito.
É necessário demostrar, portanto, que a ratio do termo é incompatível com
a liberdade resolutiva (de alguma e/ou de ambas as partes), o que nunca se obtém
pela mera alegação da existência de um prazo contratual.
Reitere-se: a existência de um prazo contratual demonstra que as partes
quiseram vincular-se durante certo horizonte temporal; não, necessariamente, que
tenham querido afastar a hipótese de desvinculação unilateral antes do tempo.

III – Em segundo lugar, cumpre também recordar que o non liquet


interpretativo favorecerá sempre a livre revogabilidade.
A livre revogação é o princípio, só afastado por convenção ou renúncia.
Não tendo sido lograda prova suficiente no sentido da existência de convenção ou
renúncia, prevalece o princípio da livre revogabilidade.
Não será, portanto, a livre revogabilidade a carecer de prova.

16
ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Desvinculação Programada do Contrato, 2021, 109.

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3. Efeitos da revogação
3.1. Efeito extintivo

I – Para além de a denúncia reconstituir, na esfera jurídica do sujeito, os


direitos que haviam sofrido limitação, há que apontar que a denúncia da limitação
extingue o negócio que a titula.
A concreta eficácia extintiva da denúncia depende, naturalmente, do objeto
do contrato.
Em bom rigor, o que se extingue é o consentimento do titular para a
limitação do direito e o efeito que dele decorre na ordem jurídica.
Se o objeto do contrato com efeitos limitativos dos direitos de personalidade
subsiste sem a eficácia limitativa, então a extinção da relação jurídica foi parcial:
o contrato mantém-se no que não depender da limitação.
Se, pelo contrário, todo o objeto contratual for consumido pela limitação
voluntária ou a tiver como pressuposto, o efeito extintivo da relação jurídica será
total17.

3.2. Obrigação de indemnizar

I – O facto de a revogação ser lícita não significa que não existam


consequências financeiramente pesadas para o autor da revogação.
A livre revogação gera a obrigação de indemnizar «os prejuízos causados
às legítimas expectativas» do beneficiário da limitação (art. 81.º/2 do CC).
Em que consistem as legítimas expectativas do beneficiário da limitação?

II – Em causa não estão expectativas proprio sensu, enquanto situação


jurídica ativa18,19. Com efeito, a expectativa jurídica é a esperança juridicamente
tutelada de aquisição (ou constituição) de um direito (ou outra situação jurídica

17
Sobre a dimensão da eficácia extintiva da denúncia veja-se DIOGO COSTA GONÇALVES, Lições de Direitos
de Personalidade..., cit., 309.
18
RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, 2011 (reimp.), 409 (nota 1031),
parece admitir que se pudesse tratar de expetativas jurídicas proprio sensu, para logo de seguida afirmar
que o legislador tinha outra intenção ao usar a expressão.
19
Diferentemente, MENEZES CORDEIRO, Tratado ..., I, cit., 907, dá como exemplo de expetativa jurídica a
prevista no art. 81.º/2 do CC.

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ativa) que está dependente da verificação de um facto complexo de produção
sucessiva20.
A limitação voluntária de direitos de personalidade não constitui na esfera
jurídica do seu beneficiário uma expectativa em sentido próprio, ou seja, uma
esperança juridicamente tutelada na aquisição de uma vantagem. De outra forma,
essa esperança na aquisição de uma vantagem seria juridicamente exigível, o que
não é em face da livre revogabilidade.
O beneficiário de uma limitação não pode nunca esperar mais do que a sua
revogação desmotivada e sem pré-aviso, e é nesse condicionalismo que tem de
aceitar o benefício.
Como recorda PAIS DE VASCONCELOS, «a sua expetativa é necessariamente
precária»21.

III – Por outro lado, o legislador quis tutelar unicamente a confiança na


continuação do contrato22, e apenas quando esta efectivamente exista.
Este ponto é importante. Qualquer contrato é um instrumento de confiança.
Todavia, o que o legislador tutela no regime estatuído no art. 81.º/2 do CC é a
confiança do beneficiário na manutenção de um contrato livremente revogável.
Ora, a ninguém é legítimo confiar na manutenção de uma relação jurídica
livremente revogável. A livre revogabilidade exige, portanto, que a confiança
juridicamente tutelada se constitua a jusante da existência do próprio contrato.
Em causa está, na verdade, uma confiança criada no beneficiário por atos
do titular dos direitos que permitem a convicção fundada na manutenção do
contrato (não obstante a livre revogabilidade).
Não se pode confundir esta confiança, geradora de indemnização, com a
tutela que uma expectativa jurídica atribui ao seu titular, permitindo-o forçar a
produção do efeito jurídico esperado na sua esfera jurídica.

IV – Temos, assim, que o dano indemnizável à luz art. 81.º/2 do CC


corresponde à frustração da confiança do beneficiário na manutenção do negócio
limitativo apesar do princípio da livre revogabilidade.

20
LUÍS ALBERTO CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., 2017, 640.
21
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral ..., cit., 55.
22
Neste sentido, acompanhando PESSOA JORGE, veja-se CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de
Personalidade, cit., 409 (nota 1031).

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Estando em causa um dano de confiança – como os trabalhos preparatórios
expressamente previam no articulado proposto23 – a maioria da doutrina entende
que o quantum indemnizatório se deve circunscrever ao interesse contratual
negativo.
É esta a posição de RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA24, PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS25, MANUEL CARNEIRO DA FRADA26, ANA FILIPA MORAIS
ANTUNES27, ELSA VAZ SEQUEIRA28, DAVID FESTAS29, entre outros.
A jurisprudência é, tanto quanto sabemos, silente em relação a este assunto.

V – Esta orientação não merece reparo.


Desde logo, porque a obrigação de indemnizar funda-se num ato lícito
(responsabilidade por facto lícito30).
Ora, a responsabilidade contratual (que tem frequentemente como
consequência uma indemnização pelo interesse contratual positivo) pressupõe um
ilícito, i.e., o incumprimento.
O ilícito do incumprimento é correspetivo daquilo a que se chama o
interesse do cumprimento, pelo que a indemnização, nesses casos de frustração do
dever de prestar, se destina a colocar o lesado na situação em que estaria se o
contrato tivesse sido pontualmente cumprido – ou seja, é pelo interesse contratual
positivo.
Diferentemente, na revogação da limitação voluntária de direitos de
personalidade temos um ato lícito, libérrimo, e em relação ao qual o beneficiário
da limitação não pode invocar qualquer interesse no cumprimento31.
Summo rigore só há dever de prestar por parte do titular dos direitos (dever
esse que se traduz na tolerância da sua limitação, oferecida ao beneficiário)
enquanto este quiser: deixando de querer, a denúncia produz efeitos imediatos e
não tem de ser motivada.

23
MANUEL DE ANDRADE, Esboço de um Anteprojecto ..., cit., 161, reportando-se a uma «obrigação de
ressarcimento pelo dano de confiança».
24
CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, cit., 409 (nota 1031).
25
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, 2006, 168.
26
MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, 2004 (reimp. 2018), 838.
27
ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Comentário ..., cit., 239.
28
ELSA VAZ DE SEQUEIRA, Teoria Geral do Direito Civil: Princípios Fundamentais e Sujeitos, 2020, 24.
29
DAVID DE OLIVEIRA FESTAS, Do Conteúdo Patrimonial ..., cit., 384-386.
30
Assim ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Comentário ..., cit., 239.
31
O exercício de livre revogação, independentemente do contexto ou do fundamento invocado, nunca
configura um ilícito contratual. O exercício livre e incondicionado de um direito não é uma ilicitude.

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Por esta razão, bem observa PAIS DE VASCONCELOS que «a promessa do
titular do direito de personalidade, ainda que feita mediante uma contrapartida,
não cria um sinalagma perfeito»32.

VI – Concorre ainda, para o mesmo resultado, a dogmática da


responsabilidade pela confiança33.
A confiança na manutenção do negócio limitativo não se confunde com o
interesse do beneficiário na própria limitação. Este último (o interesse contratual
positivo), deixou-o o legislador desprotegido ao permitir a livre revogação.
Em razão dos interesses em jogo, o legislador apenas tutelou a confiança
criada no não exercício daquela faculdade, e nada mais:

«(...) o objecto de protecção – recorda DAVID OLIVEIRA FESTAS – é aqui a


“razoável confiança” que essa pessoa tenha depositado na continuação da limitação. O
grau de confiança e a sua razoabilidade devem ser ponderados atendendo às
circunstâncias objectivas e subjectivas relativas à limitação. Não é indemnizada a
totalidade dos prejuízos resultantes da revogação (nos termos gerais dos arts. 562.º e
ss.), mas apenas aqueles danos que resultem da frustração de expectativas “legítimas”
ou justificadas, isto é, das expectativas decorrentes de uma confiança razoável da outra
parte na manutenção da limitação.»34

VII – Esta solução resulta do art. 81.º/2 do CC e encontra respaldo também


noutros lugares paralelos de imputação de danos de confiança.
Pense-se, por exemplo, na possibilidade de o mandatário revogar o mandato
sem a antecedência conveniente (art. 1172.º, al. d), do CC). A revogação é lícita e
eficaz, e a indemnização limita-se aos danos resultantes da frustração das legítimas
expectativas na observância de uma antecedência mínima (ou seja, o dano de
confiança).

VIII – Por fim, formula-se a favor deste entendimento um argumento


impressivo avançado por PAIS DE VASCONCELOS:
«o valor [de indemnização] fixado não deve ser de tal modo avultado que impeça, de
facto, o exercício do poder de revogação»35.

32
PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, cit., 168.
33
Assim o identifica CARNEIRO DA FRADA, Teoria da Confiança ..., cit., 838.
34
DAVID DE OLIVEIRA FESTAS, Do Conteúdo Patrimonial ..., cit., 384-386.
35
PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral ..., cit., 55.

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Com efeito, uma indemnização pelo interesse contratual positivo é o
equivalente económico ao cumprimento do contrato. Se o titular de direitos de
personalidade fosse confrontado com tal quantum indemnizatório, estaria numa
situação materialmente idêntica à execução específica do contrato, e cairíamos na
consequência (que certamente o legislador não quis permitir) de que por via
indemnizatória o titular dos direitos fosse levado a não exercer a livre
denunciabilidade.
Tal conclusão é manifestamente inaceitável.
Exercida a denúncia, os bens de personalidade devem continuar intocados
na esfera jurídica do seu titular. Como tal, qualquer indemnização arbitrada tem de
respeitar esta necessidade, sob pena de a indemnização ser, ela própria, violadora
dos ditos direitos de personalidade.
Indemnizar o beneficiário da limitação pelo interesse contratual positivo,
reconhecendo-lhe um interesse no cumprimento, é o mesmo que impor ao titular
dos direitos de personalidade a sua limitação.
O sistema, com coerência interna, não consente esta conclusão36.

IX – Como tal, a «expectativa legítima» a que alude o art. 81.º/2 do CC não


abrange o interesse do cumprimento, excluindo a indemnização pelo interesse

36
Em sentido contrário, PAULO MOTA PINTO tem vindo a sustentar que, estando em causa um
«consentimento vinculante» para a limitação, a livre resolução acarreta a obrigação de indemnizar pelo
interesse contratual positivo. Só não será assim se a limitação corresponder a um «consentimento
autorizante». Cfr., do autor, “A proteção da vida privada na jurisprudência do Tribunal Constitucional” in
Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos, 2018, 709-711. Veja-se, também, MAFALDA
MIRANDA BARBOSA, Lições de Teoria Geral do Direito Civil, cit., 319.
Não podemos acompanhar. Uma livre resolução que tenha como consequência a imputação, ao resolvente,
do interesse no cumprimento, de livre tem muito pouco. A licitude exige, no plano sinépico, consequências
aplicativas diferenciadas. Como já referimos, a indemnização resultante do exercício da livre revogação
nunca poderá ser tão elevada que dela resulte, na prática, a coartação do próprio direito a resolver.
Também da distinção entre «consentimento autorizante» e «consentimento vinculante», admitindo a sua
relevância, não é possível retirar consequências de regime tão diferenciadas. O «consentimento vinculante»
denota apenas uma necessidade de cooperação do titular com o escopo limitativo do direito. Destarte, pode
consubstanciar um Tatbestand de confiança mais intenso, e no limite alargar o dano de confiança, mas não
parece que possa fundar uma pretensão ao cumprimento e, consequentemente, à indemnização pelo
interesse contratual positivo – sobre o impacto do tipo de consentimento na diferente intensidade da
confiança veja-se DIOGO COSTA GONÇALVES, Lições de Direitos de Personalidade..., cit., 307.
Mostrando alguma abertura à ponderação do interesse contratual positivo, ainda que mitigada, veja-se
MENEZES CORDEIRO, Tratado ..., I, cit., 907, quando afirma que «“legítimas expetativas” equivale a danos
emergentes e lucros cessantes; uns e outros não podem ser considerados “danos” uma vez que a revogação
foi legítima; além disso, perante a causalidade normativa, haverá um cômputo mais reduzido da
responsabilidade, uma vez que não se incluem as “expetativas” extraordinárias ou especulativas». Veja-
se ainda ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO/ANTÓNIO B. MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado - I,
2020, 327.

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contratual positivo. A indemnização deve situar-se no plano da confiança no não-
exercício da faculdade de resolução37.
Sendo a confiança o fundamento da indemnização, a imputação de danos exige
que o investimento de confiança seja objectivamente justificado e a situação de
confiança em que se funda seja imputável ao titular do direito, permitindo graus
de intensidade diversos.
Como tal, a prova e cômputo do dano podem ser de difícil concretização. Por um
lado, as partes deverão prever contratualmente a compensação devida para este
tipo de casos, mormente mediante uma cláusula penal indemnizatória. Se não o
fizerem, haverá que encontrar critérios legais e contratuais para fixar a
indemnização, e nesse caso lugares paralelos tais como o «prudente arbítrio do
tribunal» (art. 1594.º/3 do CC) poderão ser relevantes e, ademais, nada impede o
recurso à equidade na fixação do quantum indemnizatório tal como previsto no art.
566.º/3 do CC.

37
Para maiores desenvolvimentos, DIOGO COSTA GONÇALVES, Lições de Direitos de Personalidade..., cit.,
307-308.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 4 - 2022 567

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