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Casos Práticos Resolvidos

Caso 1

O Sr. Eng. António é Presidente da Junta de Freguesia de Alvalade. Um dos


seus opositores políticos, Bento, fez correr uma publicação dando conta de que
António, afinal, não era engenheiro, que a mulher com quem vivia era casada mas não
com ele, e que não obstante andar de BMW e viver no palacete à Lapa, declarava por
mês a módica quantia de € 500,00.
Bento justificou-se, invocando ser do interesse dos eleitores ter acesso a tais
informações.
Quid juris?

Proposta de resolução:

B afirma que:

i) A não é engenheiro;
ii) A declarava 500,00€ por mês;
iii) A mulher com quem A vivia era casada.

O caso incide sobre a temática dos direitos de personalidade. Discute-se se,


nestas afirmações, houve violação de um direito de personalidade. O art. 70.º estabelece
uma tutela geral da personalidade que se concretiza em direitos (subjetivos) especiais de
personalidade. Sendo o direito subjetivo uma permissão normativa específica de
aproveitamento de um bem, o direito de personalidade é uma permissão normativa
específica de aproveitamento de um bem de personalidade. Assim, há tantos direitos de
personalidade quantos bens de personalidade houver a tutelar.

A violação de um direito de personalidade implica:

i) Responsabilidade civil1: Pela violação de um direito de personalidade, o


sujeito responde segundo o regime da responsabilidade civil
extracontratual (483º).
Pela violação de bens de personalidade, há lugar – de modo direito – à
indemnização de danos não patrimoniais2 (indemnização compensatória).

1
Obrigação de reparar os danos sofridos por outrem.
2
Prejuízos que, sendo insuscetíveis de avaliação em dinheiro, porque atingem bens que não
integram o património do lesado (honra, imagem), apenas podem ser compensados com uma
indemnização em dinheiro imposta ao agente, sendo mais uma satisfação que uma indemnização.
Pode haver também lugar a indemnização por danos patrimoniais
indiretos3 – não obstante o bem jurídico lesado ser não patrimonial, dessa
lesão decorre um dano patrimonial (indemnização reconstitutiva).
ii) Providências adequadas4: O lesado tem o direito a requerer as
providências adequadas a minorar os efeitos da ofensa já consumada
(atenuantes), ou prevenir a violação do direito (preventivas), segundo as
circunstâncias do caso. (70/2)

1ª Questão: Direito à honra

Em específico, neste caso, trata-se o problema do direito ao bom nome/honra.


Este direito pode retirar-se do leque dos direitos à integridade moral (70/1). Pergunta-se
o que cabe nesta fórmula: integridade moral é um conceito que necessita de
densificação para perceber quais são os bens tutelados pelo direito e até que ponto o são
(a este propósito será útil a monografia do Professor Diogo Costa Gonçalves intitulada
Pessoa e Direitos de Personalidade).

É fácil distinguir os direitos que brotam da integridade física uma vez que há aí
uma tutela estática do indivíduo. Para aferir os que cabem na integridade moral é
necessária uma aproximação ao conceito de pessoa para o direito.

Neste caso, haverá uma tutela do bom nome e da honra na vertente objetiva
(perspetiva social do sujeito; forma como a sociedade vê o sujeito) e não na subjetiva
(forma como o sujeito se vê a si próprio).

As afirmações feitas (i e ii) são suscetíveis de provocar um juízo por parte da


sociedade face a António. No entanto, cumpre aferir se a conduta de B foi lícita ou não.
Para isso, a doutrina tem avançado dois critérios:

i) Exceptio veritatis5: o facto de a informação ser verdadeira faz com que


o facto de a divulgar seja lícito? A doutrina diverge: o Prof. Menezes

3
Por ex: se alguém, por via da ofensa à integridade moral, coloca outrem numa situação de
depressão, os danos patrimoniais indiretos correspondem às depesas médicas, aos medicamentos que
comprou, etc.
4
Em adequação a cada caso concreto, o tribunal decretará tudo aquilo que for necessário para
que a ofensa seja minorada ou extinta. Por ex: se há um ruído muito forte que impede um sujeito de
dormir, uma providência adequada será uma ação que faça extinguir o barulho. Há aqui o princípio da não
tipicidade: não estão tipificadas na lei aquelas que se aplicam, pelo que será tudo o que for necessário e
decidido pelo tribunal.
5
Desenvolvido na pág. 202 e seguintes do Tratado IV do Professor Menezes Cordeiro.
Cordeiro entende que uma afirmação totalmente verdadeira pode atentar
contra a honra de uma pessoa, pelo que a exceptio veritatis não é, só por
si, justificativa (doutrina maioritária). Em sentido contrário, o Prof.
Pessoa Jorge considera que apenas informações falsas constituem um
ilícito.
ii) Interesse público da informação: sendo o critério mais relevante, o
interesse público da informação distingue-se do interesse do público uma
vez que não releva o facto de o público ter interesse em saber uma
determinada notícia, mas sim a avaliação objetiva que se faz sobre a
utilidade que aquela informação terá para a comunidade.

No caso sub judice, questiona-se se por A ser presidente da Junta, havia interesse
público nas informações reveladas por B. A resposta será positiva pois isto implica que
se ponha em causa as competências e idoneidade do sujeito – indispensáveis a um cargo
público onde se tomam decisões no interesse dos cidadãos.

Por esta razão, não houve violação do direito ao bom nome/honra de António,
pelo que não se desencadeará responsabilidade civil.

2ª Questão: Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada

No que respeita à afirmação iii), a questão coloca-se sobre o ponto de vista de


outro bem de personalidade: a intimidade da vida privada.

O legislador tipificou este direito, dedicando-lhe o art. 80.º. Em bom rigor, não
seria necessário por ser englobado na integridade moral a que se refere o art. 70.º (a
razão de vários direitos surgirem tipificados terá que ver com a frequência dos litígios
sobre a matéria e da necessidade de estabelecer um regime mais pormenorizado).

O n.º 1 refere que “Todos devem guardar reserva quanto à intimidade sobre a
vida privada.” Se o não fizerem irão incorrer nas sanções aplicáveis por violação de um
direito de personalidade (mencionadas supra). O n.º 2 esclarece que “a extensão da
reversa é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”. Admite-se
portanto uma exceção ao princípio geral uma vez que a condição das pessoas ou a
natureza do caso poderá tornar lícita a divulgação de certas informações sobre a vida
privada.
A natureza do caso terá que ver com ponderação de valores em concreto
(critérios objetivos) enquanto que a condição das pessoas terá que ver com aquelas
exceções previstas no art. 79/2 aplicáveis mutatis mutandis ao direito à reserva sobre a
intimidade da vida privada: notoriedade da pessoa, cargo que desempenha, exigências
de polícia ou justiça, interesse público.

Neste campo, é difícil definir de forma abstrata as fronteiras da reserva. Para


auxiliar à resolução do problema, surge a teoria das esferas6. Apesar do Prof. Menezes
Cordeiro distinguir cinco esferas, em termos práticos, podem reduzir-se a três: esfera
pública, esfera privada e esfera íntima.

i) Esfera Íntima – reporta-se à vida sentimental ou familiar no sentido mais


estrito (cônjuge ou filhos);
ii) Esfera Privada – Tem a ver com a vida privada comum da pessoa-
apenas acessível ao circulo da família ou de amigos mais próximos,
equiparáveis a familiares; todos aqueles com quem o sujeito tem uma
relação qualificada.
iii) Esfera Pública – Própria de políticos, atores, desportistas ou outras
celebridades, implica informações que correm num dado meio social.

A regra é a de que a informação só pode passar de uma esfera para a outra


mediante autorização do sujeito e pode circular na mesma esfera a menos que haja
proibição do sujeito. A condição, a notoriedade e o cargo da pessoa justificam, em
princípio, um alargamento do conteúdo da esfera social.

No caso em questão, não havia interess público na informação iii), sendo que a
condição subjetiva da pessoa (notoriedade, cargo) não justificava a divulgação da
informação. Ainda que houvesse, muito dificilmente alguma das exceções do art. 80/2
justificaria a intrusão na esfera íntima.

Assim, a divulgação é ilícita, desencadeando os mecanismos da violação dos


direitos de personalidade (483º - responsabilidade civil e 70/2 – providências adequadas
que, neste caso, poderia ser retirar a publicação de circulação).

Pontos em que teria de incidir a resolução:


6
Desenvolvida nas pág. 262 e seguintes do Tratado IV do Professor Menezes Cordeiro a
propósito do Direito à imagem – todavia extensível ao direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada.
1) Identificação das condutas suscetíveis de violar direitos de personalidade;
2) Identificação dos bens de personalidade em causa (70º);
3) Direito ao bom nome/honra (conceção de pessoa para o direito; honra
objetiva, subjetiva; exceptio veritatis; interesse público da informação);
4) Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada (80º, teoria das esferas);
5) Conclusão pela não violação do direito ao bom nome e à honra;
6) Conclusão pela violação do direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada (responsabilidade civil e providências adequadas).

Caso 2

Sónia e Tomás estão de lua-de-mel em Roma. Depois de vários dias sem dar
notícias, os recém-casados mandaram um email aos seus amigos mais próximos,
agradecendo-lhes a ajuda nos preparativos do casamento e enviando algumas fotografias
dos seus dias romanos!
Um dos amigos dos noivos, teve a feliz ideia de enviar uma das fotografias para
uma conhecida revista do jet set. Longe de ficarem contentes, Sónia e Tomás cortaram
relações com tal amigo… Este não compreende: a fotografia circulou na internet, estava
no facebook, porque razão não podia ser utilizada numa revista?
Quid juris?

Proposta de Resolução:

Em primeiro lugar cumpre identificar os bens de personalidade em causa.


Quando o amigo do casal, que tinha uma relação qualificada com eles, envia a
fotografia para a revista pode estar a violar o direito à reserva sobre a intimidade da
vida privada, ao transporta a informação que pertencia à esfera privada para a esfera
pública. Quando a revista publica a imagem poderá estar a violar o direito à imagem,
uma vez que expõe o retrato sem consentimento.

A reserva sobre a intimidade da vida privada (bem de personalidade que exclui


do conhecimento de outrem aquilo que se inclui na esfera privada do sujeito) comporta
duas realidades: não intrusão na vida privada e não divulgação de factos sobre a vida
privada de outrem. Uma vez que esta matéria já foi tratada no caso anterior, far-se-à
uma análise mais profunda do direito à imagem (há, no caso, violação deste bem de
personalidade, desencadeando os mecanismos do 70º e 483º).
A imagem é a representação de uma pessoa na sua configuração exterior, sendo
que o direito à imagem comporta valores associados: o resguardo da intimidade da vida
privada, o bom nome e reputação e o valor económico da imagem.

O art. 79.º estabelece que ninguém pode ver o seu retrato exposto, reproduzido
ou lançado no comércio a menos que consinta. Este consentimento será uma declaração
negocial7 (podendo ser expressa8 ou tácita9). Refira-se que a imagem, neste contexto,
pode também incluir qualquer representação simbólica da pessoa (incluindo registos de
voz. O princípio geral enunciado no n.º 1 sofre, no entanto, exceções nos n.º 2 e 3:
prescinde-se desse consentimento quando:

i) A notoriedade da pessoa justifique a divulgação da imagem;


ii) O cargo que desemprenho justifique a divulgação da imagem;
iii) Haja exigências de polícia ou justiça;
iv) Haja finalidades científicas didáticas ou culturais;
v) O retrato surja enquadrado na imagem de lugares públicos ou na imagem
de eventos que tenham decorrido publicamente.

O n.º 3 é uma exceção à exceção do n.º 2 uma vez que não permite que estes
factos justifiquem a publicação se da publicação resultar a violação de outro bem de
personalidade – honra/bom nome.

Neste caso, haveria que ponderar se o facto de o casal ter publicado a imagem do
facebook seria um consentimento para a divulgação do seu retrato. A resposta será
negativa uma vez que a publicação num meio de informação não funciona como um
consentimento para a divulgação do retrato em qualquer lugar (ainda que o perfil fosse
público).

Não se verificando nenhuma causa que exclua a necessidade do consentimento


(nº 2), aplica-se a regra geral – é ilícita a divulgação do retrato. Mais uma vez, há
violação de um direito de personalidade e consequentemente responsabilidade civil
(bem como as providências adequadas).

7
Exteriorização de uma vontade que produz efeitos jurídicos.
8
Feita por palavras, escrito ou outro meio de comunicação direto (art. 217º).
9
Mediante factos que com toda a probabilidade revelem essa vontade.

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