Você está na página 1de 8

ALGUNS ASPECTOS DO ESPAÇO VIVIDO NAS

CIVILIZAÇÕES DO MUNDO TROPICAL*


nJEAN GALLAIS

NESTE ARTIGO APRESENTO ALGUMAS IDÉIAS SUMÁRIAS SOBRE UM TEMA CUJA IMPORTÂNCIA E INTERESSE GEO-
GRÁFICO SE REVELARAM HÁ 15 ANOS QUANDO CONSTATEI A GRANDE DIFERENÇA OU, MELHOR DIZENDO, A DISPA-
RIDADE ENTRE A PERCEPÇÃO DE ESPAÇO DOS DIFERENTES POVOS DE UMA REGIÃO AFRICANA E A MINHA VISÃO
PESSOAL DE GEÓGRAFO EUROPEU NESTA MESMA REGIÃO. EM CONSEQÜÊNCIA DISSO, TENTEI, COM RELATIVO
SUCESSO, COMPREENDER O CONTEÚDO E OS LIMITES DO ESPAÇO VIVIDO ATRAVÉS DO POVO PEUL EM DIVERSAS
REGIÕES DE SEU ESPAÇO SUDANO- SAHELlANO. NA ÉPOCA, AS PESQUISAS REALIZADAS NA ÍNDIA, SOB A FORMA
DE ESTUDOS SOBRE POVOADOS, E AS INFORMAÇÕES GERAIS COLHIDAS NO BRASIL DURANTE MINHA ESTADA NO
NORDESTE, EM DISCUSSÕES SOBRE TRABALHOS GEOGRÁFICOS A RESPEITO DO PAÍS, ME OFERECIAM INTERES-
SANTES ELEMENTOS DE COMPARAÇÃO. O INTERESSE POR ESSE TEMA, EMBORA SEMPRE PRESENTE EM MEU ESPÍ-
RITO, JAMAIS CHEGOU A UMA ABORDAGEM SISTEMÁTICA E EVOLUÍDA. POR ESTA RAZÃO FORMULO, COM CERTA
PRUDÊNCIA, IDÉIAS QUE SÃO HIPÓTESES DE TRABALHO APOIADAS APENAS EM ALGUNS EXEMPLOS ALEATÓRIOS,
MANTENDO-SE, ASSIM, EM UM NÍVEL DE CONCElTUAÇÃO INSUFICIENTE.

O ESPAÇO-PADRÃO DAS SOCIEDADES humanização padronizada de um espaço vazio, como


no caso dos países novos, sobretudo anglo­saxões.
INDUSTRIAIS
2. Objetivação e estandardização dimensionais do es­
paço constituído pela sucessão perfeitamente regu­
Para melhor distinguir as peculiaridades do espaço
lar de unidades idênticas, os quilômetros, por exem­
vivido nas civilizações rurais tropicais, esquematizo, de
plo, que se repetem ininterrupta e infinitamente. Esta
maneira bastante simplificada, a concepção de espaço
base conceptual do espaço está ligada, evidentemen­
que predomina numa sociedade industrial. O espaço
te, ao fenômeno de homogeneização cultural já men­
normalmente utilizado parece ser constituído de uma
cionado: foi a Revolução Francesa, niveladora pela
cadeia relativamente neutra de unidades quilométricas
sua própria ideologia, que completou a aculturação
sobre a qual se desenvolve um emaranhado de diferen­
local e regional e, ao mesmo tempo, forneceu o sis­
ciações e organizações de uso amplamente coletivo:
tema da medida­padrão objetiva do espaço, o siste­
infra­estruturas de transporte, centros de serviços, áreas
ma métrico. Esta medida objetiva e padronizada”
industriais, conjuntos residenciais... A homogeneização
também resulta de uma evolução comparável da per­
da base, totalmente relativa, torno a repetir, deve­se a
cepção do tempo. Numa sociedade rural antiga o
vários fatores.
tempo é acelerado ou retardado de acordo com os
1. Uma certa identidade cultural resultante da evolução dias ou as estações do ano e não se deixa dividir a
progressiva, como no caso da Europa antiga, ou da não ser em partes desiguais. Assim, Pierre Métais

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998 9


observa que, para os melanesianos da Nova Caledô­ O ESPAÇO DESCONTÍNUO DAS SOCIEDADES TROPICAIS
nia,
Os indivíduos das sociedades tropicais pré­industri­
o ano cultural compreende períodos que dão ao autóctone ais, sejam elas rurais ou urbanas, movem­se dentro
a impressão de serem longos (por exemplo, a escavação de um espaço por eles concebido de maneira bem
com chuço das encostas rochosas a 40 ou 50 cm de pro­ diferente. Para eles o espaço e o tempo são constitu­
fundidade sob o sol já quente de setembro ou outubro) e ídos, respectivamente, de lugares homogêneos e de
períodos que se estendem da plantação à colheita do inha­ períodos estáveis onde as alterações sofrem um níti­
me, mais longos segundo nosso calendário, parecendo, en­ do retardamento, parecem bloqueadas por um fenô­
tretanto, mais curtos por serem relativamente pouco pe­ meno de imobilização e separadas por cortes bru­
nosos’. tais que são os fins e os começos. Pode­se dizer que
o africano tem apenas um senso restrito de conti­
A percepção do tempo monótono e regular, que
nuidade pessoal no sentido de que não percorre uma
se afirmou no decorrer da evolução produtivista e
série regular de dias e anos, mas pertence a uma classe
materialista da civilização ocidental, é condição fun­
de idade, situação estática que ele não troca por ou­
cional dessa evolução. Esta civilização industrial, atra­
tra, a não ser em conseqüência de uma ruptura acom­
vés de suas invenções mecânicas, fornece, simulta­
panhada de iniciação. Além disso, ele não concebe o
neamente, as técnicas de uma medição objetiva, cada
espaço de maneira contínua.
vez mais precisa, que se tornou para todos nós uma
base existencial indispensável: sem calendário e sem Esta fragmentação do espaço resulta de vários
relógio, o homem de nossas sociedades se perde na fatos que são, de certa forma, os negativos das cita­
desordem do intemporal. ções anteriores. A causa mais evidente da desconti­
nuidade é a compartimentação sócio­étnica que li­
3. A eficiência das técnicas de produção elimina as es­
mita em diversos níveis o espaço vivido. Na África,
pecificidades do meio natural. Não quero dizer com
o povoado, a linhagem, a tribo e o grupo etnolin­
isso que estas tenham desaparecido, mas os impul­
güístico fornecem à vida material, aos deslocamen­
sos de ordem econômica são registrados sobre um
tos comerciais ou sociais, às trocas matrimoniais e
gradiente cada vez maior de condições pedológicas,
às associações os possíveis escalões de referência.
climáticas e topográficas, graças ao emprego de mei­
Assim Schwartz2 observa que a sociedade Cuerê, a
os eficazes de rápida transformação da natureza. De
noroeste da Costa do Marfim, estabeleci da em po­
modo geral, a concepção de espaço dos indivíduos
voado de uma só linhagem, não se limita a esse po­
das sociedades industriais enfatiza o elemento dis­
voado. A abertura é provocada por dois importan­
tância padronizada, sendo esta distância objetiva cal­
tes imperativos: o sistema matrimonial, segundo o
culada cada vez mais pelo percurso­ tempo do trans­
qual o homem só pode casar com uma mulher que
porte de massa em veículos. Os esquemas de análise
seja de outra linhagem, e a necessidade vital de opor
espacial contemporânea são ainda mais marcados por
ao inimigo uma frente unida. Num grupo vizinho,
este escalonamento padronizado do espaço quando
os Couro, o espaço socialmente vivido compreende
propostos pelos geógrafos dos espaços planos dos
três níveis essenciais: o território de caça comum à
países novos ou aplainados pelo poder absoluto da
tribo; a área agrícola de superfície mais reduzida,
ação industrial. A pesquisa sobre os níveis de orga­
domínio da linhagem dos camponeses; e um con­
nização regional, hierarquizados e comparáveis quan­
junto de mercados que, embora seja instituição mar­
to à dimensão, e a formulação matemática são al­
ginal em relação à sociedade tradicional, não deixa
guns dos aspectos desta percepção de espaço.
de exercer influência paralela política e social. O es­
paço vivido dos Bwa, grupo étnico que vive de um

10 ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998


lado e de outro da fronteira Mali­Alto Volta, parece distância objetiva, parece insignificante. Ao descre­
ser mais simples. Segundo Capron, os Bwa situam ver o delta interior do Niger6 expus detalhadamente
seu horizonte espacial em dois níveis, entre os quais as conseqüências da compartimentação sócio­étni­
não há solução de continuidade : o nível privilegia­
4
ca no nível infra­espacial como, por exemplo, os elos
do, o povoado e o nível étnico Bwa. Nessas organi­ específicos que unem uma etnia a um dos elementos
zações tradicionais o espaço vivido, em seu nível mais do meio (solo cultivável, savana de pastoreio, águas
amplo, corresponde, freqüentemente, à área de se­ dos pesqueiros). Cada um desses elementos é deter­
gurança e de paz interna, seja ela uma proteção do minado por organizações históricas, técnicas, soci­
Estado ou do clã. ais, de bens de raiz e religiosas que lhes são próprias,
estranhas entre si, estruturalmente afastadas, embo­
Na Índia o espaço vivido resulta do entrelaça­
ra vizinhas, ou superpostas dentro de uma percep­
mento de três componentes que se situam em dife­
ção objetiva da distância. Por outro lado, certas situ­
rentes níveis dimensionais do espaço. A casta surge
ações espaciais, medidas pela escala da distância es­
como comunidade espacial numa pequena parte do
trutural, se aproximam bruscamente. É o caso de
povoado, como no caso dos Veedhi cuja situação
numerosas organizações comerciais estabelecidas por
revela um certo status social, e num espaço regional
certas etnias em diferentes regiões ou estados. No
mais ou menos extenso onde; de acordo com seu
Camerun, entre o país Bamilekê tradicional de Ba­
poder, desempenha uma função necessária, mas so­
foussam, as áreas de plantação que o grupo estabe­
cialmente inferior (castas de artesãos) ou uma fun­
leceu na região de Loum, e o terminal comercial e
ção dominante (castas de proprietários) de bens de
portuário de Douala, a distância estrutural para os
raiz que controlam de modo prático a evolução eco­
Bamilekê é reduzida pela densidade das relações, das
nômica da região de casta 5. O segundo elemento do
trocas e pela solidariedade efetiva. Em geral, esta
espaço vivido é o povoado, considerado como uni­
distância estrutural diminui em todos os espaços
dade de relações intercastas institucionalizadas. É
migratórios organizados. Entre uma região de imi­
justamente nesse nível espacial elementar que se si­
gração e a cidade acolhedora a 1000 ou 1500 Km, a
tuam todos os tipos de relações entre indivíduos de
distância vivida é menor do que num centro regio­
castas diferentes. A área cultural (Talminad, Telen­
nal onde a etnia não estabeleceu bases sólidas. Esta
gana, Mahrashtra, Pundjab) apresenta eventualmen­
aproximação estrutural explica a enorme atração
te uma dimensão mais ampla na qual as instituições,
exercida na África pela cidade grande, integrada no
a vida política e os deslocamentos são facilitados pela
espaço vivido de numerosas etnias, às vezes no nível
comunidade de línguas, pelas relações tradicionais
exato de um bairro, mesmo que o centro secundário
entre castas claramente determinadas, pelas normas
dessa cidade dependa apenas de uma ou duas etnias,
administrativas, na medida em que todas estas uni­
talvez até estranhas aos campos circunvizinhos7. A
dades culturais tendem a se cristalizar em Estados.
atração exercida pelas grandes cidades africanas so­
A DISTÂNCIA ESTRUTURAL bre um vasto Umland fica facilitada com a redução
deste Umland à escala da distância estrutural. Quan­
Sob a influência da compartimentação sócio­ ét­ do não há compartimentação sócio­étnica no espa­
nica e dos sistemas preferenciais de relações que aca­ ço vivido, o mesmo acontece com o camponês bra­
bam de ser mencionados, o espaço vivido é deter­ sileiro de uma região de pequena classe dominante
minado por uma distância estrutural que não tem de camponeses, como o descreve Maria Pereira Quei­
muita relação com a distância objetiva das socieda­ roz 8. Além de seu bairro, unidade de vizinhança cen­
des industriais. Esta distância estrutural pode aumen­ trada na igreja, o camponês dispõe de poucas coor­
tar bruscamente a grande diferença que, através da denadas para perceber a extensão e calcular a dis­

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998 11


tância: os bairros vizinhos ou afastados também são diversos elementos ou trechos da hidrografia valo­
socialmente abertos e acessíveis ao imigrante, os res bem diferentes: águas proibidas, águas explora­
parentes se dispersam sobre uma vasta extensão e a das segundo certos ritos, águas livres... É o caso dos
noção de região rural caracterizada e limitada é qua­ pescadores do médio Níger, Bozo, Sorgho, ou dos
se inexistente. caboclos das margens do Amazonas. No povoado
da Unagatha em Andhra Pradesh (União Indiana) as
A DISTÂNCIA AFETIVA
preocupações com a magia são muito rígidas para
O segundo aspecto importante consiste no se­ qualquer deslocamento: não se viaja para o leste na
guinte: o espaço vivido é muito mais carregado de segunda­feira nem no sábado, para o sul na quinta­
afetividade que o nosso. Esta afetividade não é ape­ feira, para o norte na quarta­feira, e para o oeste na
nas constituída pela amizade que os homens nutrem terça­feira. Cada conhecedor de uma civilização
naturalmente pela região e pelo tipo de meio em que pré­industrial pode evocar imediatamente chaves ri­
cresceram, mas é também reforçada pela movimen­ tuais e efetivas semelhantes. Essas chaves, mais pre­
tação do espaço, verdadeiro interlocutor. o animis­ cisamente, abrem apenas o espaço fechado tradicio­
mo e seus cultos, isto é, as preocupações com a ma­ nal, além do qual o homem se angustia diante da
gia que conferem um valor maléfico ou benéfico a impressão de vazio, de irreal, e diante da falta de
certos elementos ou direções do espaço, dão a esse apoio afetivo. O homem só consegue escapar desta
mesmo espaço um conteúdo mítico. No país Guerê, profunda nostalgia, como, por exemplo, a saudade
a noroeste da Costa do Marfim fiquei impressiona­ do caboclo brasileiro desenraizado, quando recria em
do com a intensa humanização da floresta através um meio neutro e vazio seus próprios mitos. Daí a
da ação indireta dos cultos e ritos em inumeráveis reconstituição freqüentem ente exagerada das cultu­
lugares, embora a região fosse pouco povoada. Tal ras tradicionais no meio urbano, osupertribalismo
humanização afetiva do espaço dos povoados no país dos emigrados.
Bwa é descrita por Capron: Este espaço tradicional, limitado por uma distân­
cia afetiva reduzida, pode incluir regiões longínquas,
o povoado e seus arredores imediatos formam o centro
atualmente não habitadas pelo grupo, mas efetiva­
privilegiado da organização sócio­ religiosa do espaço...
mente aproximadas pela conservação dos laços ani­
Afastar­se do povoado significa entrar num mundo natu­
mistas. Este aspecto tem importância geográfica es­
ral cujas forças não foram dominadas e cuja hostilidade
sencial na medida em que esta aproximação estimu­
não foi eliminada9.
la a migração a reocupar a terra perdida, se as condi­
De um lado, o povoado, domínio da segurança e ções o permitirem. Depois de vários séculos de exí­
da realidade, do outro, a mata onde tudo ainda é pro­ lio, a migração atual dos Dogon na planície do Séno
jeto e promessa. Este dualismo fornece a cada cam­ é rigidamente orientada pelas tradições dos clãs que
po seu eixo orgânico; a extremidade próxima do mantiveram a lembrança exata das localidades, dos
povoado é vivida como prolongamento desse povo­ ritos e das possibilidades do país perdido 10.
ado, lugar de repouso para as refeições, posto de vi­
A DISTÂNCIA ECOLÓGICA
gilância, local para ritos agrários e divisão das pos­
ses. Na extremidade oposta à borda do campo, o Enfim, parece que nas sociedades tropicais pré­in­
começo da mata é o ponto de partida dos trabalhos dustriais o espaço é percebido e vivido em relação a
agrícolas cuja execução segue sistematicamente uma uma certa distância ecológica. O homem vê a natu­
marcha simbólica em direção ao espaço humaniza­ reza através de um prisma seletivo que confere uma
do e seguro do povoado. Nas civilizações localiza­ distância ecológica real ao que, aos nossos olhos, não
das à margem dos grandes rios, o animismo dá aos passa de gradiente insignificante. Para o geógrafo

12 ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998


objetivo, a Amazônia é uma planície baixa, monóto­ vamente próximos, os selecionam e os organizam
na, de cobertura vegetal muito uniforme e condi­ dentro de seu espaço vivido. Os exemplos são inú­
ções climáticas comuns. Entretanto, o amazonense meros. O povoado de Zengoaga no Camerun dis­
vê variedade nos tipos de esteiros: vários termos põe de uma área de contato floresta­savana14. A sa­
possuem valor geográfico para uma mesma classifi­ vana, domínio afetivo das mulheres, é densamente
cação. Uma diferença de nível de um ou dois metros vivida, suas plantas e solos são bem conhecidas, e
é suficiente para diferenciar os meios, mudar o tipo suas terras suportam o essencial das culturas tradi­
de floresta e, portanto, os recursos essenciais da re­ cionais. A floresta, domínio da caça para os homens,
gião resultantes da colheita11. Para o asiático do Ex­ é pouco conhecida, pouco cultivada e só se integra
tremo Oriente o espaço plano só é concebido e per­ ao espaço vivido através das culturas recentes. Se,
cebido numa camada topográfica muito limitada. por um lado, como no caso dos Dogon, a distância
Charles Robequain não diz que no Than Hoa a mon­ ecológica entre o planalto de grés e a planície areno­
tanha começa na curva de nível de 15 metros? . Pi­
12
sa é diminuída pela aproximação afetiva, já mencio­
erre Gourou emprega esta noção de distância ecolô­ nada como motor da migração, para certos monta­
gica ao escrever sobre o delta do rio Vermelho: “Al­ nheses do Camerun do Norte, em situação geográ­
guns decímetros a mais e estam os diante de um país fica semelhante, ela é efetivamente aumentada. Bou­
que não pode cultivar o arroz nq inverno, onde os trais 15 considera este componente do espaço vivido
povoados se ampliam e as casas se dispersam 13”. como uma das causas da volta de certas etnias que
O reconhecimento desta visão subjetiva, inevita­ se haviam aventurado na planície. Existe um conta­
velmente imperfeita para um estranho, pode ser fa­ to direto permanente e de base plana entre o mon­
cilitado pelo vocabulário tradicional de valor geo­ tanhês e o sobrenatural que o cerca. A familiaridade
gráfico, revelador dos prismas utilizados. Os Peul de com os ancestrais e com o invisível complementa a
Futa Ojalon (Guiné) dispõem de 9 termos para des­ familiaridade com o meio natural, com as rochas e
crever uma encosta segundo sua inclinação e sua po­ com o ciclo vegetal do milho. Por intermédio dos
sição em relação à base e de 10 termos para designar ancestrais, a montanha é uma área humanizada, ao
lugares segundo o tipo de sua vegetação e da vegeta­ contrário da planície. Uma percepção ainda mais
ção circundante ­ uma preocupação de pastores dualista e maniqueísta predomina na concepção de
montanheses. No caso dos Sambara (Mali), que cul­ espaço dos habitantes de Bali. De um lado encon­
tivam com enxada as savanas sudanesas, a riqueza tra­se Kélod, que significa tudo que está perto da
vernácula dos termos pedológicos é tão complexa e orla, do mar, da planície litorânea, da influência islâ­
exata que foi utilizada pelos agrônomos da Admi­ mica introduzida pelos marinheiros javaneses, do de­
nistração do Niger, após verificarem sua correspon­ mônio e do mal; do outro lado Kaja, o antigo Bali
dência científica precisa. Essa classificação baseava­ hinduísta, seu panteão, confundido espacialmente
se na granulometria e na homogeneidade do materi­ com a montanha e o Desá, comunidade sócio­religi­
al, e um pouco na resistência mecânica e na fertili­ osa16. Tais exemplos de dualidade são num,erosos.
dade dos solos em função da tecnologia empregada. Entretanto, a evolução pode reduzir certas distânci­
Na mesma região, os Peul distinguem apenas cinco as ecológicas. As mudanças de técnica, a pressão de­
tipos de solos segundo a cor: classificação menos mográfica e o enfraquecimento dos ritos abrem al­
precisa e pouco funcional dos criadores de animais, guns meios. Tais mudanças podem ser observadas
medíocres manejadores de enxada. no país Mossi na região de Koupéla, onde os terre­
nos baixos e úmidos, até então afastados, tornam­se
É também através de um prisma escalonado se­
mais familiares aos camponeses que aí cultivam ar­
gundo as distâncias ecológicas que os habitantes de
rozais e pomares. Contudo, a redução da distância
um mesmo grupo, dispondo de vários meios objeti­

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998 13


não é igual para todos e, assim, o grupo social poli­ pelos psicólogos “como uma separação brusca que dimi­
ticamente dominante é que desfruta das vantagens nui inevitavelmente a importância dos fenômenos que
econômicas . Para os camponeses Haoussa do Gul­
17
estão além deste marco em relação aos que estão aquém20”.
bi de Maradi, descritos por Mainet e Nicolas, a nova Parece­me que a pesquisa destes limites e a análise de seu
história da ocupação agrária oscila entre Jiggawa, o significado devem ser realizadas por meio de uma aborda­
planalto das dunas, terreno das culturas tradicionais, gem subjetiva adaptada às culturas e civilizações regionais.
milho e amendoim, onde os chefes de cultura prati­
Esta afirmação suscita um duplo problema: em pri­
cam ritos agrários, e Fadama, o vale arborizado, re­
meiro lugar, o da contribuição específica do geógrafo
fúgio no período de insegurança, domínio dos pes­
para a análise do espaço vivido, onde é freqüentemen­
cadores, dos caçadores e dos oleiros, que reprodu­
te precedido pelo sociólogo, etnólogo, ou psicólogo e,
zem com argila as divindades aquáticas, e, recente­
por outro lado, o da relação entre espaço vivido e espa­
mente, terreno das culturas de vazante. Em conse­
ço geográfico clássico. Simplificando, talvez excessiva­
qüência dessas globalidades antagonistas, deslocar o
mente, digamos que os pesquisadores das ciências hu­
habitat e as atividades de um meio para outro ocasi­
manas se limitam à representação do espaço feita por
ona certos problemas que não são apenas técnicos18.
um grupo particular num dado momento. Eles pouco
consideram, ou pelo menos insuficientemente para o
Adicionemos este agravante: a distância ecológi­
geógrafo, a margem de desenvolvimento, a possibili­
ca dentro de um mesmo espaço e para um mesmo
dade de transformação, a reserva espacial disponível e
grupo pode variar segundo as estações do ano. É
o aparecimento eventual e desordenado de um elemento
esta grande desordem que Evàns­Pritchard19 obser­
geográfico a partir dessa reserva21. A geografia, diga­
va no país Nuer, sobre o alto Nilo. Seus comentári­
mos clássica, descreve minuciosamente o espaço e ten­
os podem ser aplicados ao conjunto da África suda­
ta esclarecer as relações entre os seus diversos elemen­
nesa. A estação seca homogeneiza o espaço, facilita
tos segundo os conceitos universais. O geógrafo ana­
seu percurso e reduz a distância ecológica, enquanto
lista do espaço vivido se empenha em observar a reali­
a estação das chuvas o fragmenta: pântanos inunda­
dade através do uso simultâneo de dois pontos de vis­
dos, cheia de grandes rios cuja travessia se torna di­
ta. É possível que a visão estereoscópica que ele venha
fícil e áreas de cultivos que se alternam com regiões
a obter lhe permita ajustar aos fatos o relevo que lhes é
vazias infestadas de feras. O espaço se diversifica e
conferido pelas sociedades regionais e reter na mente
se torna pouco penetrável.
sua totalidade e no espírito as múltiplas disposições
ESPAÇO VIVIDO E M UDANÇA diferentes que a evolução pode tornar viáveis ou dese­
jáveis. Esta ponderação lhe permite fundamentar com
De todos esses aspectos do espaço vivido nas socie­ maior segurança a pesquisa das relações e compreen­
dades tropicais que acabam de ser mencionados, a antiga der, definitivamente, com maior precisão, como os in­
Europa conserva alguns resíduos locais ainda bem vivos; divíduos usam a natureza. Para um geógrafo preocu­
mas a homogeneização e o escalonamento objetivo e pa­ pado com o desenvolvimento, ou melhor, com as mo­
dronizado do espaço os recobrem progressiva­ mente e dalidades espaciais da inovação e da difusão do desen­
não admitem seu reaparecimento a não ser nos domínios volvimento, o espaço vivido de cada indivíduo ou de
anexos ou gratuitos. Nas sociedades tropicais pré­indus­ cada grupo corresponde à área das mudanças que têm
triais, a combinação das distâncias estruturais, afetivas e valor exemplar. É justamente dentro dos limites que
ecológicas introduz um espaço vivido de grande riqueza e cercam sua própria modalidade, suas relações sociais, a
de inesgotável variedade. Estas medidas sofrem violentas extensão de suas informações e sua geografia afetiva,’
distensões: verdadeiras rupturas do espaço socialmente que o homem das sociedades rurais tradicionais consi­
vivido que podem ser comparadas à parede, concebida dera um fato novo como exemplo eventual. O espaço

14 ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998


efetivamente vivido fornece a infra­estrutura das pos­ cundários são dominados pelas etnias ou pe­
síveis influências. As possibilidades de aceitação de um las castas tradicionalmente comerciantes e
modelo proposto dependem muito mais das distâncias de origem setentrional.
estruturais, afetivas e ecológicas, freqüentemente inter­
8­ PEREIRA DE QUElROZ Maria Isaura. Le
relacionadas, que separam cada indivíduo deste mode­
paysant brésilien traditionnel et la percepti
lo, do que das vantagens econômicas objetivas. Na aná­
on des étendues. Perspectives de Ia sociologie con
lise do espaço vivido, parece­ me possível encontrar,
temporaine, op. cito p.269­ 287.
ou pelo menos deve­se procurar, um contrapeso que
seja útil tanto às visões tecnocráticas quanto aos novos 9­ CAPRON J. op. cito p.276.
métodos de análise espacial. 10­ GALLAIS]. Pasteurs et Paysans du Courma. La
condition sahélienne. Paris: CNRS, 1975...
NOTAS
11­ VERGOLINO DIAS C. e GALLAIS]. Con
* Publicado originalmente como Quelques As­ tenu et limites de Ia régionalisation en Ama
pects de L´Espace Vécu dans Civilizations zonie. La régionalisation de l’espace au Brésil.
du Monde Tropical, L’Espace Géographique, 5 Bordeux: Colloque CNRS, 1968.
(1) 1976. Traduzido e publicado no Boletim
12­ ROBEQUAIN Ch. ú Than Roa, étude géo
Geográfico 35 (254): 5­13 jul­set. 1977.
graphique d’une province annamite . Paris:
1­ MÉTAIS P. Les durées sociales mélanésien­ 1929.
nes et leurs transformations. Perspectives de
13­ GOUROU P. ús paysans du Delta tonkinois.
la sociologie contemporaine. Paris: PUF,
Étude de géographie humaine. Paris: reim
1968, p.241­267.
pression Nouton, 1965, p.20.
2­ SCHWARTZ A. Tradition et changements dans
14­ TISSANDIER]. Zengoaga. Étude d’un villiage
la société Guéré (Côte d’Ivoire). Paris: Mé­
camerounais et de son terroir au contactJorêt­sava
moires ORSTOM, 1971.
ne. Yaoundé: Centre ORSTOM, 1966.
3­ MElLLASSOUX C. Anthropologie économique
15­ BOUTRAIS J. La colonisation des plaines par
des Couro de Côte d’Ivoire. Paris: Mouton, 1964.
les montagnards du Nord du Cemoroun (Monts
4­ CAPRONI. Communautés villageoises Mali­ Mandara). Paris: Mémories ORSTOM, 1973.
Haute­Volta. Paris: Musée de L’Homme, Ins­
16­ SCHRIEKE B. lndonesian sociological studies.
titut d’Ethnologie, 1973. Sobre estas questões
The Hague, 1955­1957.
cI CALLAIS 1. et de COLBÉRY L. Villages
d’Inde centrale (Andhra­Pradesh) . Publications 17­ LAHUEC J. P. Zaongho. Étudegéographique
de l’Université de Rouen, j 972. L’oeuvre magis­ d’un village del’EstMossi. Ouagadougon: Cen
trale de Louis. tre ORSTOM, s.d.

5­ DUMONT. Homo hierarchicus. NRF, 1966, 18­ MAINET G., NICOLAS G. La Vallée du
aborde malheureusement peu l’organisation Gulbi de Maradi. Enquête socio­économi­
spatiale. que: Niamey, IFAN­CNRS, Document des Étu­
6­ GALLAIS, J Le Delta intérieur du Niger. Etude des Nigériennes nº. 16

de geographie régionale. Dakar. Mémories de 19­ EVANS PRITCHARD E. E. Les Nuer. Des
L´IFAN, 1968. cription des modes de vie et des institutions
7­ Caso muito freqüente na África sudanesa ou politiques d’un peuple nilote. Paris: Galli
sudano­florestal onde os centros urbanos se­ mard, 1968, Trad. fr.

ESPAÇO E CULTURA, UERJ, N.6, JUL/DEZ DE 1998 15


20­ MOLES A. A. et ROHMER E. Psychlogie de
l’espace. Paris: Casterman, 1972, p.32.

21­ Afirmações gerais injustas em relação a vá


rios sociólogos e etnólogos que têm gran­
des preocupações geográficas.

Você também pode gostar