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David Harvey.
Planejando a Ideologia do Planejamento – Tradução livre
(No Planejamento da Ideologia do Planejamento)
(Sobre o Planejamento da Ideologia do Planejamento)
Reimpresso sob autorização de David Harvey, 1985. A Urbanização do Capital.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, pp. 165-184.
[176]
É um truísmo dizer que todos nós planejamos. Mas o planejamento como uma
profissão possui um domínio muito mais restrito. Lutando como podem por alguma
razão para a sua existência, os profissionais planejadores encontram-se confinados,
na maior parte, na tarefa de definir e tentar alcançar uma ordenação “bem-sucedida”
do ambiente construído. Em última instância, o planejador está relacionado com um
local próprio, um mix apropriado de atividades no espaço de todos os diversos
elementos que compõem a totalidade das estruturas físicas – as casas, estradas,
fábricas, escritórios, instalações de eliminação de água e esgoto, hospitais, escolas e
similares – que constituem o ambiente construído. De tempos em tempos, a
ordenação espacial do ambiente construído é tratada como um fim suficiente em si
mesmo, e alguma forma de determinismo ambiental toma conta. Em outros tempos,
essa ordenação é vista côo um reflexo em vez de um determinante das relações
sociais, e o planejamento é visto como um processo ao invés de um plano – e então,
o planejador é deixado, ele mesmo, longe da prancheta para participar de encontros
com banqueiros, grupos comunitários, desenvolvedores imobiliários [land developers]
e similares, na esperança de que uma intervenção oportuna aqui ou uma medida
preventiva lá possam alcançar um “melhor” resultado geral. Mas o “melhor” assume
alguma proposta, a qual é muito fácil de especificar no geral, mas difícil de
particularizar sobre. Como um complexo recurso físico criado fora do trabalho humano
e engenhosidade, o ambiente construído deve funcionar primeiramente para ser útil à
produção, circulação, troca e consumo. [176/177] Este é o trabalho do planejador para
assegurar a sua adequada [proper] gestão e manutenção. Mas isto imediatamente
coloca a questão: útil ou melhor para o que e para quem?
[177]
O Planejamento e a Reprodução da Ordem Social
Seria fácil pular essas questões iniciais para cair imediatamente dentro de um modelo
pluralístico da sociedade na qual o planejador atua tanto como um árbitro ou como um
peso corretivo nos conflitos entre uma diversidade de grupos de interesse, cada um
dos quais se esforçando para pegar um pedaço da torta. Tal salto deixa de fora um
passo crucial. A sociedade trabalha, afinal, com o princípio básico de que a atividade
mais importante é a que contribui para a sua própria reprodução. Não temos de
perguntar longe para descobrir o que esta atividade implica. Considere, por exemplo,
as diferentes concepções sobre a cidade, como “workshops da civilização industrial”,
como o “centro nervoso da vida econômica, social, cultural e política” da sociedade,
como centros de inovação, troca e comunicação, e como ambientes vivos para as
pessoas1. Todas essas – e mais – são concepções bastante comuns. E se nós
aceitamos uma ou todas elas, então o papel do planejador pode simplesmente ser
definido como garantia de que o ambiente construído é composto por todas essas
necessárias infraestruturas físicas que servem aos processos que temos em mente.
Se o “workshop” se dissolve em um caos de desorganização, se o “nervo central”
perde sua coerência, se a inovação é frustrada, se a comunicação e os processos de
troca se tornaram ilegíveis, se as condições de vida se tornaram intoleráveis, então a
reprodução da ordem social está em dúvida.
Nós podemos empurrar esse argumento para mais longe. Nós vivemos, além de tudo,
em uma sociedade a qual, na ausência de uma expressão melhor, está fundada sobre
os princípios capitalistas da propriedade privada e do mercado de troca, uma
sociedade que pressupõe certas relações sociais com respeito à produção,
distribuição e consumo, os quais, eles mesmos, precisam ser reproduzidos se a ordem
social deve sobreviver. E então nós chegaremos ao que pode parecer como uma
pergunta bastante cósmica: qual é o papel do planejador urbano-regional no contexto
desses processos globais da reprodução social? Uma análise crítica deve revelar as
respostas. No entanto, é uma medida da falha da ciência social contemporânea (da
qual a literatura do planejamento extrai muito de sua inspiração) que nós tenhamos
que abordar as respostas tanto com cautela como com tato, nós devemos nos atrever
a afastarmo-nos dos cânones tradicionais quanto ao que pode ou não ser dito. Por
1 Essas várias concepções de cidade podem ser encontradas, por exemplo, em L. Mumford (1961); J.
Jacobs (1969); L. Wirth (1964); Comitê de Recursos Nacional (dos Estados Unidos) (1937); e R. Meier
(1962).
esta razão, eu devo começar com uma breve digressão a fim de abrir novas
perspectivas para a discussão.
Quando nós consideramos o sistema econômico, a maioria de nós se sente em casa
com as análises baseadas nas categorias de terra, trabalho e capital como “fatores”
da produção. Nós reconhecemos que a reprodução social depende da combinação
perpétua desses elementos e que o crescimento requer [177/178] a recombinação
desse fatores dentro de novas configurações que são, em certo sentido, mais
produtivas. Essas categorias, nós com frequência admitimos, são bastante abstratas
e, de tempos em tempos, nós as quebramos para ter em conta o fato de que nem terra
nem trabalho são homogêneos, e que o capital pode assumir forma produtiva (física)
ou líquida (dinheiro). Não obstante, nós parecemos preparados a aceitar um alto nível
de abstração, sem muitos questionamentos sobre a validade ou a eficácia dos
conceitos envolvidos. Ainda que a maioria de nós empalideçamos quando nos
deparamos com a descrição sociológica da sociedade que apela para o conceito de
relações de classes entre senhores de terra, trabalhadores e capitalistas. Se nós
escrevemos em tais termos, nós provavelmente seremos julgados como simplistas
demais ou como envolvidos em níveis de abstração que não fazem sentido. na pior
das hipóteses, tais concepções serão consideradas como ofensivas e ideológicas se
comparadas aos conceitos supostamente não ideológicos de terra, trabalho e capital.
Por que e em que terreno – folosófico, prático ou qualquer outro – foi decidido que
uma forma de abstração faz sentido e é apropriada, enquanto as outras estão fora da
ordem? Não faz sentido razoável conectar nosso pensamento sociológico com nossa
economia, ainda que de forma bastante simplista e primitiva? Faz sentido mesmo
dizer que o inquilino do centro da cidade que a renda paga ao senhorio não é
realmente um pagamento para que o homem que dirige um carro grande e vive nos
subúrbios, mas um pagamento a um fator de produção escasso? A "cientificação" da
ciência social parece ter sido realizada para mascarar as relações sociais reais –
representando as relações sociais entre as pessoas e grupos de pessoas como
relações entre coisas. A reificação implicada por tais táticas é clara o suficiente para
ver, e os perigos da reificação são bem conhecidos. No entanto, nós parecemos estar
à vontade com as reificações e a aceitá-las de forma acrítica, mesmo que exista a
possibilidade de que, ao fazè-lo, nós destruímos nossa capacidade de entender,
gerenciar, controlar e alterar a ordem social de maneira favorável para nossos
propósitos individuais ou coletivos. Neste capítulo, portanto, procuro colocar o
planejador no contexto de uma descrição sociológica da sociedade que vê as relações
de classe como fundamentais.
2Os ciclos econômicos e, em particular aqueles associados ao investimento nos vários componentes
do ambiente construído, são discutidos por B. Thomas (1973); M. Abramovitz (1964); S. Kuznets (1961);
e E. Mandel (1975).
dono da terra podem ser muito distintos dos interesses do capital; mas nos Estados
Unidos, a posse de terra e a propriedade se tornaram uma importante forma de
investimento a partir do século XVIII em diante. Sob essas condições, a “terra e os
interesses da propriedade” são simplesmente reduzidos a uma facção do capital
(usualmente os capitalistas de dinheiro e os rentistas) investido na apropriação da
renda. Isso nos leva a considerar o importante papel das companhias proprietárias,
desenvolvedores, bancos e outros intermediários financeiros (companhias de
seguros, fundos de pensão, associações de poupança e empréstimo etc.) no mercado
de terras e propriedades. E eu devo também adicionar que a “casa própria” não chega
a significar o que diz, por que a maioria dos proprietários de imóveis atualmente
compartilham equidade com uma instituição financeira e não possuem título de
propriedade. Nos Estados Unidos, além disso, temos que pensar no interesse terras
e propriedades principalmente como uma facção do capital investido na apropriação
de rendas.
Eu devo assumir por propósitos de conveniência analítica que uma distinção clara
existe entre essas classes e frações de classes e que cada uma persegue seus
próprios interesses única e exclusivamente. Em uma sociedade capitalista, é claro, a
estrutura toda das relações sociais está fundada na dominação de capitalistas sobre
trabalhadores. Colocar isto desse modo é simplesmente reconhecer que os
capitalistas tomam as decisões de investimento, criam os empregos e as mercadorias,
e funcionam como agentes catalisadores no crescimento capitalista. Nós não
podemos sustentar, por um lado, que a América foi criada pelos esforços de
empreendedores privados e negar, por outro lado, que o capital domina o trabalho. O
trabalhador não é passivo, é claro, mas suas ações são defensivas e, no melhor dos
casos, confinadas a ganhar uma parcela razoável do produto nacional. Mas se o
trabalhador controlasse as decisões de investimento, então não se justificaria por mais
tempo a descrição de nossa sociedade como capitalista. Nosso interesse aqui não é
nem tanto focar nesse primeiro antagonismo, mas examinar a miríade de formas
secundárias de conflitos que podem girar fora dele para tecer uma complexa teia de
argumentos sobre a produção e o uso do ambiente construído. Apropriadores (donos
de terras e proprietários de imóveis) podem estar em conflito com interesses da
construção, capitalistas podem estar insatisfeitos com as atividades de ambas
facções, e o trabalhador pode estar em desacordo com todos os outros. E se o sistema
de transportes ou o sistema de esgoto não funciona, então tanto trabalhador quanto
capital irão, igualmente, externalizar. Deixe-nos considerar dois exemplos que, apesar
de sua natureza hipotética, ilustram as complexas alianças que podem formar e lançar
alguma luz nos tipos de problemas que os planejadores urbanos tipicamente encaram.
Inicio com a proposição de que o preço dos recursos existentes no ambiente
construído – e, portanto, a taxa de apropriação de renda – é [180/181] altamente
sensível aos custos e taxas da nova construção. Suponha que os interesses da
construção estejam mal organizados, em uma recessão ou incapazes de ganhar fácil
acesso à terra barata e que a taxa de novas construções seja baixa e os custos altos.
Sob essas condições, aqueles que procuram a apropriação de renda possuem o poder
de aumentar suas rendas de retorno pelo levantamento de locação de, digamos,
moradia. O trabalhador pode resistir; organizações de inquilinos podem surgir e
procurar controlar a taxa de aluguel de apropriação e para manter o custo de vida
baixo. Se obtiverem sucesso, as organizações de inquilinos podem mesmo dirigir a
taxa de retorno sobre os recursos existentes para baixo para o ponto onde os
investimentos são inteiramente retirados (talvez produzindo o abandono). Se o
trabalho carece de organização e poder na comunidade, mas é bem organizado e
poderoso no local de trabalho, um aumento na taxa de apropriação pode resultar na
busca de salários mais altos, os quais, se forem concedidos, podem diminuir a taxa
de lucro e acumulação. Uma resposta racional da classe capitalista sob essas
condições é procurar uma aliança com o trabalho para conter apropriações de renda
excessivas, para liberar terra para novas construções, e para fazer com que a moradia
mais barata seja construída para a classe trabalhadora. Podemos ver esse tipo de
coalizão em ação quando grandes interesses corporativos em localizações
suburbanas se juntam com grupos de direitos civis numa tentativa de quebrar o
zoneamento restritivo suburbano que excluem as populações com baixos salários dos
subúrbios. Uma exploração dessa dimensão do conflito pode nos dizer muito sobre a
estrutura dos problrmas urbanos contemporâneos.
O segundo caso que eu devo considerar surge da dinâmica geral da acumulação
capitalista, a qual, de tempos em tempos, gera uma superprodução crônica,
excedentes reais da capacidade podutiva e capital-dinheiro ocioso desesperadamente
precisando de saídas produtivas. Em tal situação, o dinheiro é facilmente passado por
aqui [come by] para produzir investimentos a longo prazo no ambiente construído, e
uma vasta onda de investimentos flui para dentro da produção do ambiente
construído, o qual serve como um desafogo para o capital excedente – tal era o boom
experenciado de 1970 a 1973. Mas em algum ponto, a existência da superprodução
se tornou fácil de ver – seja espacial em Manhattan ou habitacional em Detroit – e o
boom de propriedade entrou em colapso em uma onda de bancarrotas e
“refinanciamentos” (considere, por exemplo, a queda dos bancos secundários
associados ao mercado imobiliário de Londres em 1973 e o péssimo desempenho dos
Investimentos Imobiliários Confiáveis nos Estados Unidos, o qual tinha US $11 bilhões
em ativos, metade dos quais sem ganhar atualmente absolutamente nenhuma taxa
de retorno). O que se tornou evidente neste caso foi que investimentos excessivos
trazem em seu rastro desinvestimentos e desvalorização do capital para, pelo menos,
algum seguimento dos interesses da propriedade territorial. Os interesses da
construção também se defrontam com uma padrões extremamente difíceis de booms
e crises, os quais militam contra a criação de uma organização viável a longo prazo
para a coerente produção do ambiente construído. Se o trabalho afunda parte de sua
equidade dentro do mercado imobiliário, então isto, também, pode encontrar suas
poupanças desvalorizadas por esses processos; e através da comunidade organizada
e da ação política, eles podem procurar proteger a eles mesmos tão bem quanto
possível. Neste [181/182] caso também, podemos discernir uma estrutura para nossos
problemas urbanos que são explicados em termos de requisitos conflitantes das várias
classes e facções como elas encaram os problemas criados pelo uso do ambiente
construído como um desafogo para o excedente de capital em um período de
superacumulação.
Essas dimensões do conflito são atravessadas, contudo, por um conjunto
completamente diferente de considerações, os quais surgem do fato de que o
ambiente construído é composto por ativos que são tipicamente tanto de longa
duração quanto fixos no espaço. Isso significa que estamos lidando com mercadorias
que devem ser produzidas e usadas sob condições de “monopólio natural” no espaço.
Acontece também que, desde que o ambiente construído deve ser concebido como
uma mercadoria composta complexa, os elementos individuais possuem o poder de
efeitos de “externalidades” sobre outros elementos. Encontramos, assim, que a
competição pelo uso de recursos é a concorrência monopolística do espaço – que
capitalistas podem competir com capitalistas por recursos vantajosamente
posicionados, que operários podem competir com operários por chances de
sobrevivência, acesso e similares, e que a terra e os proprietários imobiliários
procuram influenciar a posição de novos elemetos no ambiente construído
(particularmente meios de transporte) bem como para ganhar benefícios indiretos. A
estrutura básica de conflitos de classes e de facções é, portanto, modificada, e em
algumas instâncias totalmente transformada, dentro de uma estrutura de conflito
geográfico que opõe os trabalhadores dos subúrbios contra os trabalhadores da
cidade, os capitalistas no nordeste industrial contra os capitalistas do Cinturão do Sol,
e assim por diante.
Os distintos papéis e tarefas que o planejador precisam ser entendidos no contexto
das fortes correntes tanto do conflito interclasses e facções, por um lado, quanto da
competição geográfica que os monopólios naturais no espaço inevitavelmente geram,
por outro.
3Alguma ideia da extent do controle hegemônico exercido pelo capital sobre a terra e o mercado de
propriedade pode ser ganho de L. Downie (1974); G. Barker, J. Penney e W. Seccombe (1973); e P.
Ambrose e R. Colenutt (1975).
um exemplo contemporâneo. O problema com o monopólio e o controle hegemônico
é que o sistema de preços torna-se artificial (e isto pode levar a desapropriações),
enquanto não exista nada que assegure que o poder do monopólio não seja abusivo.
3 As intervenções do Estado são uma característica onipresente na produção,
manutenção e gestão do ambiente construído4. O sistema de transporte – primeiro
exemplo de um “monopólio natural” no espaço – tem posto sempre o problema do
ganho privado versus o benefício público social, propriedade privada versus [184/185]
as necessidades sociais agregadas. O abuso do poder de monopólio (que é muito
fácil de acumular em termos espaciais) trouxe a regulação estatal como resposta. Os
penetrantes efeitos de externalidade têm em todos os países deixado a regulação
estatal da ordem espacial para reduzir os riscos que se prendem às decisões de
investimentos de longo prazo. E os elementos de “bens públicos” no ambiente
construído – as ruas, calçadas, sistemas de drenagem e esgoto e tudo isso – os quais
não podem, a rigor, ser apropriados privadamente têm sempre sido criados por
investimentos diretos por parte dos órgãos do Estado. O tema das “melhorias
públicas” tem sido citado largamente na história de todas as cidades americanas.
O mix exato de mercado privado, controle monopolista e intervenção e provisão
estatal tem variado no tempo bem como de lugar para lugar. Tal mistura é escolhida
ou, mais provavelmente, chegou por um complexo processo histórico não é tão
importante assim. O que é importante é que isso parece garantir a criação de um
ambiente construído que serve ao propósito da reprodução social e que isso deve
fazê-lo de tal maneira que as crises sejam evitadas na medida do possível.
6Um bom exemplo de como os planejadores devem descer por tal caminho é descrito por R. Goodman
(1971).
ideologia do planejamento é construída. O planejador procura intervir para restaurar o
“equilíbrio”, mas o “equilíbrio” implícito é o que é necessário para reduzir conflitos civis
e para manter as condições requeridas para a constante acumulação de capital. De
tempos em tempos, é claro, os planejadores devem ser capturados (por corrupção,
clientelismo político ou mesmo argumentos radicais) por uma classe/fração ou outra
e, assim, perder a capacidade de agir como estabilizadores e harmonizadores – mas
essas condições, embora endêmicas, são inerentemente instáveis, e um inevitável
movimento de reforma irá, muito provavelmente, varrê-las quando não for mais
consistente com os requisitos da ordem social. O papel do planejador, então,
frequentemente deriva sua justificação e legitimidade pela intervenção para restaurar
aquele equilíbrio que perpetuou a ordem social. E o planejador moldou uma ideologia
apropriada para esse papel.
Isso não necessariamente significa que o planejador é um mero defensor do status
quo. As dinâmicas da acumulação e do crescimento social são tais que criam tensões
endêmicas entre o ambiente construído como é e como deveria ser, enquanto os
males que resultam do abuso do monopólio espacial podem rapidamente se tornar
muito difundidos e perigosos para a reprodução social. Parte da tarefa dos
planejadores é identificar perigos tanto do presente quanto do futuro e afastar uma
incipiente crise do ambiente construído. De fato, toda a tradição do planejamento é
progressiva no sentido de que os planejadores se comprometem com a ideologia da
harmonia social – a menos que tenha sido pervertido ou corrompido de algum modo
– sempre coloca o planejador no papel do “justiceiro”, “corregedor de desequilíbrios”
e “defensor dos [187/188] interesses públicos”. Os limites dessa postura progressista
são claramente definidos, contudo, pelo fato de que as definições de interesse público,
ou desequilíbrio e de injustiça são definidos de acordo com os requisitos de
reprodução da ordem social, a qual é, quer nós gostemos do termo ou não, uma ordem
social distintamente capitalista.
O conhecimento de mundo dos planejadores não pode ser separado de seu
compromisso necessariamente ideológico. Ordenações do ambiente construído
existentes e planejadas são avaliadas em relação a alguma noção de um
ordenamento sócio-espacial “racional”. Mas esta é a definição capitalista de
racionalidade à qual apelamos (Godelier, 1972). O princípio de racionalidade é um
ideal – o núcleo central de uma ideologia difusa – o qual ele mesmo depende da noção
de processos harmoniosos de reprodução social sob o capitalismo. Os limites do
entendimento de mundo dos planejadores são definidos por esse compromisso
ideológico subjacente. Na direção oposta, o conhecimento do planejador é usado
ideologicamente, tanto como legitimação quanto como justificação de certas formas
de ação. A força e os argumentos políticos podem, sob a influência do planejador, ser
reduzidos a argumentos técnicos pelos quais uma solução “racional” pode facilmente
ser encontrada. Aqueles que não aceitam isso como solução estão, então, abertos ao
ataque como “não razoáveis” e “irracionais”. Desta maneira, tanto a compreensão real
do mundo quanto a ideologia se fundem dentro de uma visão de mundo prevalecente.
Eu não quero dizer que todos os planejadores se submetem à mesma visão de mundo
– eles manifestamente não o fazem, e seria disfuncional se o fizessem. Alguns
planejadores são muito tecnocratas e procuram traduzir todas as questões políticas
em problemas técnicos, enquanto outros planejadores assumem uma postura muito
mais política. Mas, qualquer que seja sua posição, a fusão de entendimentos técnicos
com a ideologia necessária produz uma mistura complexa dentro da fraternidade do
planejamento da capacidade de entender e intervir de uma maneira realística e
vantajosa para reprimir, cooptar e integrar de uma forma que parece justificável e
legítima.
8De novo, os urbanistas franceses têm discutido essa ideia longamente em, por exemplo, E. Preteceille
(1975) e M. Castells (1975).
Mas ideologias, eu tenho argumentado, não mudam assim tão facilmente, nem nosso
conhecimento do mundo. E assim nós encontramos, em cada um dos maiores turning
points da nossa história, uma crise de ideologia9. Os compromissos do passado muito
obviamente são abandonados por que eles impedem nosso poder de entender e mais
certamente perdem seu poder de legitimar e justificar (imagine tentar justificar o que
aconteceu no orçamento da cidade de Nova York em meados dos anos 1970 pela
apelação dos conceitos de justiça social). E como os pilares da visão de mundo dos
planejadores desmoronam lentamente, também a busca por um novo patamar para o
futuro. Em tal momento, se torna necessário planejar a ideologia do planejamento.
9Existe uma importante conexão entre as crises de ideologia e legitimidade – ver por exemplo J.
Habermas (1975); por uma história da mudança da ideologia no desenvolvimento urbano, ver R. A.
Walker (1976).
Piven, 1974). O gerenciamento desse processo caiu muito dentro do domínio do
planejamento urbano, e isso gera conflitos de posturas ideológicas e visões de mundo
dentro da própria profissão de planejamento. Ao primeiro sinal (e, aliás, no tempo),
parecia que a teoria do planejamento estava fragmentada nos anos 1960 em
diferentes seguimentos da fraternidade do planejamento movida de acordo com sua
posição ou inclinação para um ou outro pólo do espectro ideológico. Com o benefício
da retrospectiva, nós podemos ver que esse processo não foi mais do que a
internalização dentro dos aparatos do planejamento das pressões e posições do
conflito social. E essa internalização, e as oposições que provocou, se comprovaram
funcionais, não importa o que os indivíduos pensaram ou fizeram. Os tecnocratas
ajudaram a definir as outras fronteiras do que podia ser feito ao mesmo tempo em que
eles solicitaram novos instrumentos para acompanhar a dispersão e estabelecer o
controle social. Os advogados do pobre urbano e os instrumentos que eles
idealizaram forneceram os canais para cooptação e integração ao mesmo tempo em
que empurraram o sistema para fornecer o que quer que tivesse que ser fornecido,
tendo o cuidado de parar perto dos limites que os tecnocratas e os “conservadores
fiscais” ajudaram a definir. Aqueles que empurraram a advocacia tão longe foram
forçados a sair ou desistiram do planejamento por completo, e se tornaram ativistas e
organizadores políticos.
Julgados em termos de sua própria retórica ideológica, os perseguidores da justiça
social falharam, muito do que eles fizeram na Era Progressista, para realizar o que se
propuseram a fazer, embora a posição das “classes perigosas” na sociedade
indubitavelmente melhorou um pouco em fins dos anos 1960. Mas julgadas em
relação da redução de conflitos civis, o restabelecimento do controle social, e o
“salvamento” da ordem social capitalista, as técnicas de planejamento e ideologias
dos anos 1960 foram altamente bem sucedidas. Aqueles que nos inspiraram nos anos
1960 podem se congratular pelo bom trabalho que eles fizeram.
Mas as condições mudaram radicalmente em 1969/1970. A estagflação emergiu como
o problema mais sério, e a taxa de crescimento negativo em 1970 indicaram que os
processos fundamentais de acumulação estavam em profundo problema. Uma política
monetária frouxa – a mais potente ferramenta na gestão do “ciclo político de negócios”
– nos diz através das eleições de 1972. Mas o boom foi especulativo e pesadamente
dependente de um sobreinvestimento massivo em terra, propriedade e setores da
construção que o dinheiro fácil tipicamente encoraja. Mas o final dos anos 1973
deixava claro que o ambiente construído não podia mais absorver na maneira de
capital excedente, e o rápido declínio em propriedade e construção, associados a uma
instabilidade financeira, desencadeando uma subsequente depressão. [193/194] O
desemprego dobrou, os salários reais começaram a se mover para baixo sob o
impacto de severas políticas de “disciplinamento do trabalho”, programas sociais
começaram a ser selvagemente cortados, e todos os ganhos feitos depois da década
de luta nos anos 1960 pelo pobre e o desprivilegiado foram praticamente revertidos
dentro do espaço de um ano. A lógica subjacente da acumulação capitalista afirmou-
se na forma de uma crise na qual os salários reais diminuíram a fim de que a inflação
fosse estabilizada e as apropriadas condições de acumulação fossem restabelecidas.
A pressão dessa lógica subjacente foi sentida em todas as esferas. Os orçamentos
locais tiveram que se deslocar do conservatismo fiscal e precisaram alterar as
prioridades dos programas sociais para programas que estimulassem e encorajassem
o desenvolvimento (com frequência por subsídios e taxas de benefícios). Os
planejadores falaram sobriamente sobre as “duras, difíceis decisões” que estava por
vir. Aqueles que solicitaram a justiça social tiveram um fim em si mesmo nos anos
1960 gradualmente mudaram seu chão assim que começaram a argumentar que a
justiça social podia ser melhor conseguida pela garantia da eficiência do governo.
Aqueles que solicitavam o equilíbrio ecológico e a conservação em seu próprio direito
nos anos 1960 começaram a apelar a princípios da gestão racional e eficiente de
nossos recursos. Os tecnocratas começaram a procurar maneiras de definir padrões
mais racionais de investimentos no ambiente construído, a calcular custos e
benefícios mais refinados do que nunca. O evangelho da eficiência veio para reinar.
Tudo isso pressupõe uma capacidade de realizar uma transformação do equilíbrio
ideológico dentro da fraternidade do planejamento – uma transformação que acaba
por ser quase idêntica àquela a qual foi conseguida com sucesso durante a Era
Progressista. Isso pode, é claro, ser feito. Mas é preciso esforços e argumentos
razoavelmente sofisticados para fazê-lo. E a transformação é feita muito mais fácil por
que os fundamentos da ideologia permanecem intactos. Os compromissos com a
ideologia da harmonia dentro da ordem social capitalista continuam o ponto
permanente sobre os quais as oscilações da ideologia do planejamento voltam.
Mas se nós nos afastarmos e refletirmos algum tempo sobre as tortuosas voltas e
voltas em nossa história, uma sombra de dúvida deve cruzar nossas mentes. Talvez
a mais imponente e efetiva mistificação de todas as mentiras na proposição da
harmonia no ponto imóvel do giratório mundo capitalista. Talvez resida o fulcro da
história capitalista não na harmonia, mas numa relação social de dominação do capital
sobre o trabalho. E se nós perseguíssemos essa possibilidade, nós devemos vir a
compreender por que os planejadores parecem condenados a uma vida de perpétua
frustração, por que os ideais altissonantes da teoria do planejamento são
frequentemente traduzidas em sujas práticas rasas [no chão], como as mudanças na
visão de mundo e uma postura ideológica são produtos sociais, ao invés de serem
livremente escolhidas. E nós devemos, mesmo, vir para ver que este é o compromisso
com uma ideologia alheia que encadeia nosso pensamento e entendimento a fim de
legitimar uma prática social que preserve, em um sentido profundo, a dominação do
capital sobre o trabalho. Nós devemos chegar a esta conclusão, então devemos
certamente testemunhar uma reconstrução marcadamente diferente [194/195] da
visão de mundo dos planejadores que estamos acostumados a ver. Nós devemos
mesmo começar a planejar a reconstrução da sociedade, ao invés de uma mera
ideologia do planejamento.
Notas:
1 Essas várias concepções de cidade podem ser encontradas, por exemplo, em L.
Mumford (1961); J. Jacobs (1969); L. Wirth (1964); Comitê de Recursos Nacional (dos
Estados Unidos) (1937); e R. Meier (1962).
2 Os ciclos econômicos e, em particular aqueles associados ao investimento nos
vários componentes do ambiente construído, são discutidos por B. Thomas (1973); M.
Abramovitz (1964); S. Kuznets (1961); e E. Mandel (1975).
3 Alguma ideia da extent do controle hegemônico exercido pelo capital sobre a terra
e o mercado de propriedade pode ser ganho de L. Downie (1974); G. Barker, J.
Penney e W. Seccombe (1973); e P. Ambrose e R. Colenutt (1975).
4 Os urbanistas franceses têm trabalhado neste aspecto mais cuidadosamente em M.
Castells e F. Godard (1973) e C. G. Pickvance (1976). Ver também os vários ensaios
em Antipode 7, nº 4 – uma questão especial intitulada “A Economia Política do
Urbanismo” – e D. Harvey (1975).
5 Ver, por exemplo, E. Altvater (1973); R. Miliband (1968); N. Poulantzas (1973); e J.
O’Connor (1973).
6 Um bom exemplo de como os planejadores devem descer por tal caminho é descrito
por R. Goodman (1971).
7 Ver, por exemplo, T. Bender (1975) e R. A. Walker (1976).
8 De novo, os urbanistas franceses têm discutido essa ideia longamente em, por
exemplo, E. Preteceille (1975) e M. Castells (1975).
9 Existe uma importante conexão entre as crises de ideologia e legitimidade – ver por
exemplo J. Habermas (1975); por uma história da mudança da ideologia no
desenvolvimento urbano, ver R. A. Walker (1976).