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Revisão e Diagramação
Feiticeira Sardothien
TRONO
de
vidro
O PRÍNCIPE E O CAPITÃO
Antes da ida a Endovier
Celaena Sardothien, a maior assassina de Erilea e agora a Campeã do Rei, não tinha
se dado ao trabalho de apressar a égua negra pelas ruelas de Forte da Fenda. Mesmo
depois de duas semanas de viagem de ida e volta à base das Montanhas Ararat, embora
estivesse meio congelada e coberta com a poeira de cem estradas, ela não estava tão
ansiosa para alcançar seu destino final.
Não se surpreendeu ao ver Chaol Westfall no pé da colina sobre a qual o castelo estava
empoleirado; não estava surpresa ao ver meia dúzia de guardas fazendo o possível para
fingir não observar cada movimento seu, ou sinalizar o caminho sinuoso que ela havia
tomado. Ela já tinha visto os homens que Chaol posicionara na própria cidade: nos
portões das muralhas, nas esquinas, nos telhados, procurando por qualquer sinal de seu
retorno.
Chaol parecia exatamente o mesmo de quando ela saiu, em seu uniforme preto e
dourado limpo, o pomo da espada em forma de águia reluzindo no sol do meio da
manhã. Pelo menos agora ele estava usando a própria espada.
Depois de matar Cain no duelo, ele não a usara nas poucas semanas que levaram para
ela se recuperar dos ferimentos. Quando saiu, no mês anterior, ele ainda estava usando
outra lâmina. E ainda tinha aquelas sombras em seus olhos de bronze.
Mas aquelas sombras haviam desaparecido agora, enquanto olhava por baixo da
cobertura sombreada de seu capuz. Ele estava de pé ao lado do portão, os braços
cruzados sobre o peito largo, aquele franzir familiar nos lábios.
Ela estalou a língua e desmontou, jogando as rédeas para um dos guardas
aguardando, quando se virou para enfrentar o capitão.
— O quê... sem flores?
O cenho franzido se aprofundou. Ela sorriu amplamente.
Esta tinha sido sua primeira missão, o primeiro teste de confiança e habilidade
genuína. Celaena empurrou o queixo para um dos alforjes da égua. Uma enorme
protuberância destacava-se sob o couro desgastado.
— Quando você acha que ele vai me dar alvos dignos da minha habilidade?
Os olhos de Chaol moveram-se de seu rosto para a cabeça no alforje da sela, então de
volta para ela, o cenho franzido se aprofundando.
— Você está três dias atrasada.
Ela deu de ombros e não esperou por sua permissão para começar a subir pelo
caminho inclinado até o próprio castelo. Não, ela não precisava mais de permissão – não
como Campeã do Rei. Mas Chaol se enrijeceu, no entanto.
Ela riu baixo.
— Tente você ir para os contrafortes das Montanhas Ararat em pleno inverno e veja
se faz em melhor tempo. Eu quase perdi os dedos das mãos e dos pés de frio — ela
retorceu o rosto em um sorriso primitivo. — Você não quer saber como eu consegui me
manter quente.
Nada. Nem mesmo um sinal de sorriso.
Ela suspirou e olhou para o céu.
— Serei açoitada, torturada, ou apenas serei obrigada a atender a Corte da Rainha por
uma tarde?
Ele não reagiu a isso, tampouco. Simplesmente deu um passo para o lado dela.
— Eu não sou a pessoa a quem você tem que se explicar.
Ela lançou a ele um olhar de soslaio.
— Você estava preocupado que eu não voltaria? — Quando ele não respondeu, ela
disse: — Quanto tempo antes de você mandar seus cães para me caçar?
Ele olhou para ela dessa vez, seus olhos dourados e ferozes.
— Uma semana. Eu lhe daria uma semana antes de enviar meus homens para
investigar. Mas você teve sorte, as notícias da morte de Sir Carlin chegaram a nós logo
depois que você... cuidou dele.
O matou. Cortou a garganta e a cabeça. Jogou seu corpo no rio Ararat. Ela o observou em
silêncio, desafiando-o a dizer, mas ele já desviara o olhar.
Eles estavam a meio caminho do longo trajeto antes de ele dizer calmamente:
— Você se machucou de alguma forma?
Ela bufou.
— Matar homens em suas camas não envolve muitos riscos — seus olhos se
estreitaram. E, embora soubesse que não devia, acrescentou: — Ou envolve muita honra.
É isso que você está pensando, certo?
Um músculo se contraiu na mandíbula dele.
— Eu sei o que sua posição implica.
Mas ela ainda se perguntou se ele, de alguma forma, teria esquecido até agora – como
se o baile de Yule e o duelo com Cain o fizesse pensar que ela era outra pessoa, alguém
inofensivo. Um lobo sem presas.
Mais silêncio, o castelo cada vez mais perto.
— Suponho que Sua Majestade saiba que estou aqui?
— Ele quer se encontrar com você imediatamente. E leve sua... prova.
Ela fez uma careta.
— Eu sabia que ele queria as cabeças, mas... ele quer vê-las na reunião? Quem estará
lá?
— Que preocupação tem isso para você?
Ela deu de ombros novamente. Cada detalhe daquela reunião era uma preocupação,
especialmente Chaol com seus olhos demasiados afiados e a capacidade de farejar até
mesmo a mais inocente das mentiras dela.
— Eu só quero saber quão ingênua posso ser.
— Na frente do Rei? Você quer acabar de volta nas minas?
Ela deu a ele um sorriso doce.
— E aqui estava eu, pensando que ele e eu já éramos bons amigos.
Um reluzir de dentes.
— Você realmente não pensa...
— Um mês sem mim e você voltou a me tratar sério assim? Estamos de volta a isso?
Ela não tinha percebido quão profunda era essa pergunta até que ele parou de andar.
Por um momento, eles apenas olharam um para o outro, um momento durante o qual
ela se lembrou daquele dia depois do duelo, quando ele a segurou – não um Capitão
segurando um assassino, ou um amigo segurando outro amigo, mas um homem
segurando uma mulher...
Se tentasse tocá-lo agora, ele a afastaria? Ela não queria saber, e não tinha a coragem
de tentar. Ou a coragem de perguntar o que ele queria.
— Eu confio em você — foi tudo o que ele disse.
— É por isso que você tinha homens em toda a cidade me espionando?
— Tinha homens em volta da cidade — disse ele com os dentes cerrados — porque
eu queria ter uma chance de cumprimentá-la primeiro. Para ver se você estava bem.
Ela deu um passo e inclinou a cabeça. Cuidar dela, não espionar. Tinha passado muito
tempo desde que tinha tido quem se importasse o suficiente para se preocupar.
Ela teve que engolir algumas vezes antes que pudesse responder.
— Claro que estou bem — uma resposta estúpida, mas ele começou a andar
novamente. Ela o seguiu, piscando contra o brilho da neve derretida no castelo de vidro.
— Mas se eu não estivesse bem — ela ousou perguntar — o que você teria feito?
Um encolher daqueles ombros poderosos.
— Não importa agora.
— Chaol.
Ele não olhou para ela quando respondeu.
— Eu teria feito o que precisasse fazer.
Ela rangeu os dentes.
— Pare de ser tão cauteloso.
— Eu não vejo como você saber faz qualquer diferença.
Ela sentiu suas narinas inflarem, mas manteve a boca fechada. Tudo bem.
Eles chegaram aos portões da frente do castelo. A agitação habitual dos cortesãos, dos
servos, dos guardas e dos visitantes não foi diminuída pelo dia frio. Ela olhou para as
torres superiores, seu estômago torcendo por mais do que a ideia de subir todas aquelas
escadas para a sala do conselho do Rei.
Tanto dependia dessa reunião – tanto, que não se atreveu a pensar nisso. E certamente
não na frente de Chaol, que podia ler seu rosto com uma facilidade enervante.
Então, ela sorriu antes que ele pudesse se virar para vislumbrar seu rosto, para
descobrir a dúvida e o medo por baixo. Confiança absoluta, arrogância absoluta: seus
melhores e mais amados escudos e máscaras.
— Espero que Sua Majestade tenha uma mesa decente de comida para eu comer
enquanto estiver sendo interrogada.
— Cuidado com a boca, ou a única coisa que comerá será carvão quente.
— Você realmente faz isso às pessoas?
Os olhos dele se estreitaram.
— Por qual tipo de pessoa me toma?
— Você é o Capitão da Guarda do homem mais poderoso do mundo. Só Wyrd sabe
que coisas horríveis você faz às pessoas.
— Você deve estar nervosa como o inferno se está recorrendo a me provocar.
Ela não deixaria que isso a balançasse, não permitiria que o sorriso ou a presunção a
parassem por um instante. Mas ela hesitou diante dos grandes e amplos degraus da
frente do castelo. As melhores mentiras eram sempre misturadas com a verdade – que o
deixasse acreditar no que quisesse.
— Você conhece minha história com Sua Majestade.
Afinal, ele foi o único a trazê-la para o encontro com o Rei no primeiro dia da
competição. Ele a viu quase em pânico ao pensar em encontrá-lo, pálida.
Sem dúvida, ele estava pensando no mesmo encontro. Seus olhos suavizaram, e ele
colocou uma mão no ombro dela.
— Apenas seja educada. Submissa.
— Esse é um verdadeiro desafio digno de mim.
Um meio sorriso.
— Se for bem comportada, vou mandar um bolo de chocolate com avelã aos seus
aposentos durante nosso almoço.
— Nosso almoço?
Uma sugestão de cautela, mas um sorriso crescente.
— A menos que você tenha outra pessoa com quem prefira comer.
Ela mastigou o interior de seu lábio, olhando para uma das torres de pedra – a torre
em que Dorian tinha seu quarto. Ela quis dizer cada palavra que havia dito ao Príncipe
Herdeiro naquele dia em que terminara as coisas entre eles, e manteve distância desde
então. Então não... não havia mais ninguém com quem pudesse comer hoje, nem mesmo
Nehemia.
— Suponho que poderia suportar o almoço com você — disse ela.
Ela não podia deixar de se perguntar se o sorriso dele era de diversão ou algo mais.
Mas a absoluta força de seu sorriso era suficiente para fazer o mundo parar.
— Eu senti sua falta — ela admitiu.
O sorriso de Chaol falhou, e ele a encarou de novo – questionando, calculando,
perguntando. Ela esperou que ele olhasse ao redor, para refletir sobre as pessoas que os
assistiam e como melhor responder, mas ele continuou olhando para ela. Como se o
mundo tivesse feito uma pausa para ele também.
E então ele riu baixo, mais para si mesmo do que para ela e disse:
— Era chato como o inferno sem você aqui.
Ela riu e subiu os degraus para dentro do castelo. E, embora não o tocasse, embora
ele não lhe tivesse oferecido o braço, eles caminharam um pouco mais perto enquanto se
dirigiam ao Rei.
A ASSASSINA E A PRINCESA
Semanas antes do baile
O dia de inverno estava quente o suficiente para que Celaena Sardothien não se
preocupasse com luvas quando partiu para Forte da Fenda.
A Princesa Nehemia, no entanto, estava completamente miserável. Ainda assim, ela
declinou às repetidas ofertas de Celaena para tomar uma carruagem para a rua principal
da cidade. Viajar de carruagem só faria o dia passar mais rápido, dissera a Princesa. E,
desde que elas tinham reivindicado o dia apenas para desfrutar da companhia uma da
outra, nenhuma delas estava com muita pressa para vê-lo acabar rapidamente.
Então elas caminharam por Forte da Fenda, vestidas tão finamente quanto podiam
enquanto ainda estava quente – e permaneceram relativamente despercebidas.
Gastaram seu tempo atravessando a cidade, embora tivessem um acordo tácito de não
se aventurar perto das docas, armazéns ou qualquer lugar que fosse uma prova viva do
império de Adarlan; a conquista brutal do continente.
Tendo passado um ano como escrava, e não particularmente inclinada a discutir os
tópicos da escravidão, da guerra e do inferno geral do mundo, Celaena estava mais do
que feliz em manter-se nas ruas onde elas poderiam fingir ser duas jovens mulheres
prontas para gastar quantias obscenas de dinheiro.
Nehemia já visitara grande parte da cidade e não gostara de quase nada do que tinha
visto, mas ainda assim induziu Celaena a um desvio para passar pelo Teatro Real,
entrando em suas padarias favoritas e lojas de doces, e adentrando em algumas livrarias.
Sem surpresas, no momento em que chegou à Kavill’s, a melhor loja de modistas de
Forte da Fenda, Celaena já tinha gastado boa parte de seu salário mensal como Campeã
do Rei.
Esse era outro tópico que elas tinham concordado em ignorar durante o dia.
As duas jovens fizeram uma pausa na frente da loja, e Celaena correu um olho sobre
a vitrine emoldurada por uma rica madeira trabalhada, onde dois vestidos eram exibidos
– um era um vestido de baile tradicional azul, enfeitado com dourado e salpicos de
turquesa; o outro era de um ousado veludo vermelho, de mangas longas e enfeitado com
renda negra.
— Kavill’s — Nehemia leu a placa ornamentada da loja, balançando à brisa do rio
Avery. A Princesa franziu o cenho para Celaena. — É muito... extravagante — disse ela
em Eyllwe.
De fato, além do vidro e da exposição, Celaena podia ver um aglomerado de mulheres
bem vestidas oferecendo conselhos a uma companheira que parecia uma compradora
em potencial.
Celaena escondeu sua própria expressão. Elas deveriam ter um horário particular.
Não apenas pela segurança da Princesa, cujos guardas seguiam atrás delas, mas também
para facilitar as coisas para Nehemia, que odiava fazer compras, experimentar roupas
ou qualquer coisa “inútil”.
— Acho que estamos adiantadas alguns minutos — Celaena disse. Nehemia ainda
franzia o rosto para loja. — Nós poderíamos entrar em uma casa de chá se quiser, e...
— Não, não. Minhas mãos estão completamente congeladas — Nehemia respondeu,
os dedos enluvados se fechando. — Vamos só entrar e esperar.
Fazia um mês desde que Celaena havia sido nomeada Campeã do Rei – um mês
durante o qual ela tivera que enfrentar todas as dificuldades que a posição exigia -, mas
de algum modo, a ideia de entrar na Kavill’s com uma já irritada Nehemia fez os nervos
de Celaena estremecerem. Ela já sentia pena do próprio Lee Kavill... E de todos os outros
clientes lá dentro.
— Lembre-se — Celaena disse em Eyllwe, enquanto Nehemia andava em direção à
posta pintada de verde. — Eu sou Lilian Gordaina e sou só...
— Uma herdeira qualquer em Forte da Fenda, eu sei — Nehemia completou sem
olhar de volta para ela, e entrou na loja.
Celaena seguiu a Princesa, dando aos guardas de Nehemia um aceno conforme eles
iam para suas posições: um na frente da loja, o outro dando a volta no quarteirão para
guardar a porta dos fundos. Uma vez que a reunião começasse, ninguém entrava ou saía.
O cheiro de menta e lavanda dentro da Kavill’s era ao mesmo tempo familiar e
estranho. Familiar, uma vez que nos anos em que Celaena viveu em Forte da Fenda, esta
havia sido sua loja de modista favorita. E estranho porque o ano que passou em
Endovier, e os meses em que estivera no castelo de vidro, fizeram tudo daquela vida
anterior transformar-se em algo confuso e desconhecido.
Lee Kavill, a quem Celaena tinha visitado duas vezes desde que se tornara Campeã
do Rei, estava à espera do grupo de mulheres ao lado das cortinas dos provadores, seu
caderno de couro preto de croquis nos braços e uma caneta de vidro na mão.
Em seus quarenta anos, Kavill era um homem de boa aparência, com suas roupas
simples e elegantes, apesar das ofertas extravagantes de sua loja. Ele também era
silencioso. Não tímido, mas calmo. Equilibrado. Não era espalhafatoso, não forçava e
tinha os olhos de um artista para as cores, os cortes e as tendências em constante
mudança. Mas esses mesmos olhos distraíram-se com a visão delas disparando entre as
mulheres reunidas.
Seu compromisso de uma hora.
Nehemia parou assim que passou pela porta, mas Celaena adentrou alguns passos a
mais na loja acarpetada de vermelho. Kavill já estava diante delas quando Celaena sorriu
e estendeu as mãos.
— Estamos um pouco adiantadas — ela disse, como saudação. — Mas ficaremos mais
do que felizes em esperar — ela inclinou a cabeça para o divã circular verde e dourado
na sala; um lugar geralmente reservado para damas de companhia, maridos pacientes e
crianças entediadas.
Kavill tomou as mãos dela com um sorriso. Seus dedos eram tão calejados quanto os
dela, apesar de seus calos e cicatrizes serem fruto de anos com agulhas e alfinetes, não
lâminas.
— Marta avisou-me da reserva de uma hora de um convidado importante, mas eu
não fazia ideia de que receberia tamanha honra — ao terminar, olhou para Nehemia e
curvou-se. — As senhoritas são imensamente bem-vindas.
Claro que ele reconheceria a Princesa. Enquanto era consideravelmente fácil para
Celaena se misturar, não havia como esconder quem Nehemia era. Não por causa de sua
pele escura e cremosa, mas porque Nehemia portava-se como uma Princesa.
Não importava onde fossem ou como estavam vestidas, Nehemia sempre mantinha
a cabeça naquele ângulo e mostrava aquele brilho em seus olhos, como se tivesse saído
do útero sabendo que sangue real fluía em suas veias. Como se ela sempre usasse uma
coroa invisível. Celaena ainda não estava certa se a invejava ou apiedava-se da Princesa
por isso.
Nehemia fez um aceno superficial com a cabeça - tanto respeito quanto Kavill
merecia, se não mais, considerando que ele nascera como camponês e trilhara seu
caminho para cima.
— Posso oferecer a vocês meu escritório para esperar, se preferirem — Kavill disse
discretamente, especialmente quando as mulheres próximas às cortinas do provador
viraram-se para examinar as recém-chegadas. — Não deve demorar mais do que alguns
minutos.
Foi seu passo para o lado que finalmente o entregou – entregou o que ele estava
tentando esconder delas. E Celaena poderia ter fingido não ver se Nehemia também não
tivesse notado.
A garota poderia ser de Charco Lavrado ou de Eyllwe pela pele morena, mas eram os
braceletes dourados gêmeos – algemas – ao redor de seus pulsos que a marcavam como
escrava. Algemas de ouro, sem correntes, que haviam sido soldadas lá e nunca sairiam.
— Podemos ir para outro lugar — Celaena disse suavemente.
Nehemia apenas encarou a menina escrava, seu rosto inexpressivo. A garota estava
bem vestida e parecia bem alimentada, mas as algemas, tão terrivelmente bonitas,
cintilando na luz morna...
As mulheres estavam olhando para elas agora, mas a escrava manteve os olhos
baixos. Nem mesmo se virou de frente para elas. Celaena girou os punhos, uma pontada
de dor fantasmagórica passando pelas cicatrizes que marcavam onde seus próprios
grilhões – de ferro e que arranhava – estiveram.
Celaena pôs a mão no cotovelo de Nehemia.
— Nós podemos...
— Não — Nehemia interrompeu, desviando o olhar da menina e lançando a Kavill
um sorriso suave. — Devemos esperar. Por favor, retorne ao seu trabalho — falou ela
tomando um lugar no divã.
Celaena lentamente sentou-se ao lado dela, e Nehemia mostrou seu sorriso mais
brilhante.
Hoje elas haviam concordado, enquanto planejavam, que seria apenas sobre diversão
– sobre deixar Celaena enfeitar Nehemia. Hoje, elas eram duas garotas comuns e
perfeitamente felizes fazendo compras.
Celaena deu seu melhor sorriso como resposta.
Então Kavill voltou às suas clientes, a gentil Marta veio para levar suas capas e luvas
e substituí-las por chá de jasmim, biscoitos delicados e uma seleção de jornais e revistas
do dia.
— Tanto trabalho — Nehemia disse quando Marta se afastou para auxiliar Kavill a
tirar as medidas e verificar as necessidades das clientes. A Princesa correu os olhos ao
redor das paredes adornadas, os cabideiros com modelos de vestidos, as vitrines de joias,
sapatos, chapéus e sombrinhas. — Tanta opulência também.
Celaena, que observava uma das mulheres deliberar se um quarto de polegada
deixaria seu decote ousado demais, olhou para a Princesa.
— Se a faz sentir-se melhor, ele recusou o cargo de alfaiate real diversas vezes.
Nehemia levantou uma sobrancelha bem feita, as joias de ouro que usava reluzindo
à luz dos candeeiros com formato de lírios.
— Eu não quis ser... difícil — ela disse na língua comum, sem um traço de seu
carregado sotaque falso.
O sotaque, Celaena descobrira, era só para enganar a Corte Real – fazê-los pensar que
ela era idiota e falar mais abertamente quando achassem que ela não podia entender.
Mas Nehemia falava melhor que o mais refinado deles, e estivera usando o
conhecimento que ganhara com isso para descobrir qualquer informação sobre as tramas
que poderiam ajudar na situação de seu povo escravizado.
Por isso as duas foram às compras, em primeiro lugar; para encontrar vestidos que
permitissem a Nehemia ser acolhida pela Rainha e seu círculo pessoal, para tentar ajudar
Eyllwe convencendo a esposa do Rei de Adarlan.
— Vamos apenas aproveitar a companhia uma da outra — Celaena disse, tomando
um grande gole do chá de jasmim, quase suspirando pela absoluta perfeição dele, e então
ajustando as camadas de seu vestido verde-floresta. Uma peça que fora feita nessa
mesma loja – coisa que, ela tinha certeza, Kavill reparara.
As cinco outras clientes lançaram alguns poucos olhares na direção delas antes de
finalmente deixarem a loja em um redemoinho de capas de pele, luvas de pelica e
reclamações sobre o inverno infindável. A garota escrava não olhou para cima nenhuma
vez, e Celaena poderia jurar ter visto a mão de Nehemia se mover quando ela passou –
como se a Princesa tivesse considerado abordar a garota, mas tivesse pensado melhor
sobre isso.
Quando elas saíram, Marta fechou as cortinas da janela da frente, acendeu mais
alguns candeeiros e as acompanhou aos sofás de seda próximos aos provadores. O
próprio Kavill lhes trouxe outro ornamentado bule de chá de jasmim e encheu as duas
xícaras.
Depois de Celaena explicar que Nehemia precisaria de pelo menos quatro vestidos,
dois deles de baile e todos eles adequados para a realeza adarlaniana, Kavill cruzou as
mãos atrás das costas e marchou enquanto indagava as cores e tecidos que Nehemia
mais gostava ou odiava, sua opinião sobre o tamanho dos decotes, quanta mobilidade
desejava e continuou assim até Celaena começar a se perguntar se Nehemia explodiria.
Mas a Princesa apenas sorria para o homem esguio, respondendo-o com o sotaque
carregado e hesitante que usava com todos, menos Celaena. E então sentou-se
pacientemente durante a apresentação de cores, tecidos, bainhas e costuras de Kavill e
Marta. Não foi até que eles fossem para os fundos da loja – buscar uma amostra do
vestido azul na vitrine – que a Princesa se envergou levemente.
— Acho que simplesmente prefiro que a costureira real me traga alguma coisa — ela
falou lentamente. — Isso é realmente o que... o que você gosta de fazer?
Celaena estremeceu, mas sorriu.
— Quando estou no clima para isso, sim — e agora que ela tinha o ouro do Rei
queimando um buraco em sua bolsa, estava mais do que feliz em gastar a maior parte
dele. — Eu sempre gostei de coisas bonitas. Vestidos, joias, sapatos... Suponho que seja
fácil marcar isso como frívolo, mas um vestido como os que Kavill faz é arte. É arte, e
matemática, e economia...
As sobrancelhas de Nehemia se ergueram e Celaena deu de ombros, mas virou-se
para apontar o vestido justo de veludo vermelho na vitrine.
— Esse vestido de baile na vitrine... pense em como Kavill primeiro precisou inventar
um design, então encontrar medidas absolutamente corretas para igualar à imagem em
sua mente, e depois encontrar o fornecedor para prover o veludo vermelho e a renda
negra perfeitos. Pense sobre de onde esses tecidos vieram, o veludo do porto de Meath,
a renda de Melisande, a linha que conecta a coisa toda de um fiandeiro em Charco
Lavrado. Pense de onde as tinturas para o vermelho e o preto vieram. Pense em todas as
pessoas e lugares que tomaram parte na confecção desse vestido. É como um mapa do
continente, e cada parte dele conta uma história, e... — Celaena suprimiu-se e bufou. —
Bem, deixando de lado o mapa e a história, é bonito demais.
A Princesa riu baixinho.
— Acho que começo a entender. Embora eu ache que você também goste de
simplesmente estar mais bonita que todo mundo, minha amiga.
Celaena riu.
— Queria poder negar isso.
Nehemia sorriu.
— Não se incomode. É por isso que gosto de você.
O coração de Celaena se apertou com isso, seu sorriso ficando mais largo.
Kavill e Marta voltaram um momento depois, e Marta levou a Princesa ao provador
para experimentar o vestido azul. Tirar Nehemia de suas roupas e colocar o vestido
demoraria alguns minutos, então Celaena vasculhou a seleção de vestidos dispostos na
loja.
Um vestido de baile, cor de lavanda bordado com renda branca chamou sua atenção,
e ela parou para passar a mão na seda.
— Que cor maravilhosa — ela murmurou, mais para si mesma que para Kavill, mas
ele parou ao seu lado.
— Destacaria sua cor de pele — ele observou, segurando as mangas três-quartos. —
Posso fazê-las compridas, se quiser.
Ela percebeu o olhar dele para suas mãos – especificamente para as cicatrizes ao redor
de seus pulsos e antebraços, dos grilhões de Endovier.
No castelo ela não precisava mais fingir ser uma cortesã, e certamente não tinha
vergonha de qualquer uma de suas cicatrizes, mas... Elas realmente atraíam atenção. E
perguntas. Mangas e costas fechadas geralmente cobriam a maior parte do dano de
Endovier e de dez anos treinando como assassina – mesmo que só para evitar essas
perguntas. Ou olhares de pena.
— Pensarei sobre isso — ela disse, e moveu-se para o vestido de veludo vermelho na
vitrine.
Ela conhecia Kavill bem o suficiente para saber que ele não perguntaria sobre as
cicatrizes, não importasse o que poderia suspeitar. Ela sempre se perguntara se ele sabia
quem e o que ela realmente era – se refletira sobre sua relação com o home ruivo que
uma vez a acompanhara até ali, querendo mostrar sua afeição por sua mais talentosa
aluna.
Mas Arobynn não fazia mais parte da vida dela e, na primeira vez que fora ali como
Campeã do Rei, Kavill não perguntara por ele. E não perguntou onde ela estivera,
também. Por isso ela decidira trazer Nehemia para essa loja, além dos lindos vestidos.
Kavill não fofocava – nem se intrometia.
Ele tinha tentado evitar que elas vissem a menina escrava pelo bem de Nehemia, ou
dela? Ela não queria saber.
Nehemia emergiu do provador, já se retraindo, mas Celaena estava radiante. Até
Kavill deixou escapar um suspiro de aprovação.
— Bem, estou condenada — Celaena disse, colocando uma mão no quadril enquanto
sinalizava para Nehemia se virar. — Se você não comprar isso, eu nunca te perdoarei.
— É... diferente — Nehemia disse na língua comum, encarando Celaena novamente.
— Talvez algo mais discreto...
— Tolice — Celaena interrompeu, enxotando Marta e ajustando o vestido ela mesma.
— Você usará isso no próximo baile real e fará todos os homens suspirarem por você —
ela lançou uma olhadela significativa para o amplo busto de Nehemia. — E não ouse
cobri-los com um xale.
Nehemia riu, mudando para Eyllwe.
— Eu nunca ousaria desobedecer a uma ordem direta sua.
Celaena riu e respondeu na língua comum:
— Bom. Então vamos levar um desse — ela se virou para Kavill e Marta, que estavam
em pé silenciosamente a alguns metros, rabiscando anotações e medidas no livro-razão
de Kavill. — Alguma ideia de que tipo de joias podem melhor acentuar isso aqui?
Kavill abriu a boca, mas Nehemia interrompeu em Eyllwe.
— Eu tenho joias de Eyllwe.
— Não acho que combinariam.
Nehemia endireitou-se e disse, ainda em Eyllwe:
— Eu gostaria de algo em mim que ainda me lembre as pessoas de onde eu vim.
Os olhos delas se encontraram e, por um segundo, Celaena lembrou-se da noite em
que Nehemia tinha entrado em seu quarto após descobrir o massacre de quinhentos
rebeldes de Eyllwe. De como a Princesa chorou por seu povo, pelo desamparo dele, por
seu mundo escravizado.
Era por esse mundo que Nehemia lutava, a razão para ela comprar esses vestidos e
desempenhar o papel de confidente da Rainha.
Talvez Nehemia tivesse pensado no mesmo, porque soltou um longo suspiro e disse:
— Talvez você esteja certa, Elentiya.
Celaena não achava que Kavill ou Marta notariam o apelido que a Princesa lhe dera,
mas deu uma olhada para eles assim mesmo. Eles agora estavam apenas assistindo, seus
rostos inexpressivos, mas atenciosos. Dispostos a buscar as joias e acessórios a qualquer
momento. Nehemia virou-se para eles e disse, em seu sotaque perfeitamente falso:
— Mostrem-me suas joias.
E, simples assim, eles passaram por outra apresentação de colares e brincos e
braceletes, então luvas e broches e prendedores de cabelo. E, quando eles finalmente
decidiram o que ficava melhor, Nehemia foi medida e alfinetada mais algumas vezes, e
então levada ao próximo vestido. E o próximo, e o próximo.
O relógio batia quatro horas quando eles decidiram todos os modelos, joias e
acessórios que Nehemia compraria. Marta já havia levado diversas xícaras quentes de
chá para os guardas de Nehemia do lado de fora. Ela voltara um pouco pálida e abalada,
mas pelo menos as xícaras foram esvaziadas. Os guardas de Nehemia não eram do tipo
tagarela – e não eram pouco letais.
Nehemia estava empurrando biscoitos goela abaixo, enquanto Celaena passeava
novamente pela loja, assimilando os vestidos. Ela já tinha encomendado o lilás de renda
e, desde que Kavill possuía suas medidas mais recentes, não se incomodou em
experimentá-lo, a não ser segurá-lo contra o corpo para ter certeza de que realmente
amara a cor e o tecido.
Ela parou na frente do vestido de veludo vermelho exposto, correndo os dedos pelas
saias. Não havia anáguas nesse tipo de vestido, nem espartilhos – ela nunca havia visto
um vestido como aquele, na verdade. Nunca nem tinha ouvido falar num vestido de
baile daquele: as costas abertas revestidas com renda preta como a meia-noite, um decote
profundo e um corpete que mostrava as formas, deixando pouco para a imaginação, e
certamente viraria algumas cabeças.
— Você deveria experimentá-lo — Nehemia disse em Eyllwe, atrás dela, terminando
seu biscoito de castanhas caramelizadas. — Você esteve comendo-o com os olhos o dia
inteiro.
Celaena olhou por cima do ombro, as sobrancelhas erguidas.
— É... um pouco ousado. As pessoas ficariam escandalizadas.
A Princesa sorriu.
— Quem melhor para usá-lo, então?
Celaena viu-se sorrindo em resposta.
— Quem, realmente?
Assim, cinco minutos depois, Celaena encontrava-se experimentando o vestido em
exposição na frente dos três espelhos em ângulo da loja, girando lentamente sem sair do
lugar.
Ousado e escandaloso era só o começo.
Nehemia deu um assobio apreciativo do divã onde estava esparramada.
— O Capitão não vai saber o que fazer consigo mesmo.
Celaena fulminou-a com um olhar sobre o ombro.
— Ele não é meu problema — embora ela quase pudesse imaginar a cara de Chaol
quando visse o vestido: lábios apertados, olhos arregalados, um pouco confuso e mais
que um pouco irritado. Quase podia ouvi-lo também; as reclamações que faria sobre a
Campeã do Rei gastando quantias tão exorbitantes em um pouco mais que retalhos de
tecido, a reputação que ela precisava manter agora que era uma funcionária do rei... Ah,
ela deveria comprar o vestido, nem que fosse só para irritar Chaol.
Nehemia se aproximou, e Celaena desceu da pequena plataforma.
— Que tipo de história esse vestido te conta? — A Princesa perguntou em Eyllwe.
Celaena estava prestes a abrir a boca, mas ela percebeu a direção do olhar de Nehemia
nas costas abertas. A renda negra fazia um bom trabalho em esconder a pior parte das
terríveis cicatrizes, mas perto assim, era fácil ver a pele mutilada por baixo.
Seus olhos se encontraram e Celaena alternou para Eyllwe enquanto falava:
— Você acha que eu deveria cobri-las?
A atenção de Nehemia passou para as cicatrizes por detrás da renda. Depois de um
momento, ela negou.
— Não — Celaena virou de volta para o espelho, mas Nehemia falou novamente, sua
voz um pouco baixa demais. — Com que frequência você pensa sobre eles, sobre
Endovier?
Celaena observou o próprio reflexo no espelho, o rosto que, assim como a Kavill’s,
agora era algo familiar e estranho.
— Todo dia. Toda hora.
Era uma verdade que ela não havia admitido para ninguém – talvez nem para si
mesma -, até agora.
— Você os libertaria se pudesse?
Celaena voltou a cabeça para a princesa, energicamente.
— Que tipo de pergunta é essa? Claro que eu libertaria.
Elas haviam jurado – as duas juraram esta manhã – que não teriam esse tipo de
conversa. E Celaena sabia exatamente onde a discussão iria: Nehemia falaria da
escravidão, do império, de como era necessário que as boas pessoas se posicionassem e
lutassem.
Kavill e Marta faziam o melhor que podiam para parecer ocupados no balcão dos
fundos da sala principal. Os olhos de Kavill levantaram-se do caderno e, quando ela
encontrou o olhar dele, Celaena percebeu que ele sabia. Ele sabia exatamente quem ela
era, talvez sempre tivesse sabido. Ela não tinha certeza do porquê, mas isso a fez sentir...
triste. Surpreendentemente, absurdamente triste.
Ela voltou a atenção para a Princesa, que deu um sorriso forçado.
— Eu não deveria ter mencionado isso — Nehemia disse. — Hoje vamos nos divertir,
apenas ser jovens mulheres.
E, por algum motivo, ver esse sorriso forçado fez o peso em seu peito afundar um
pouco mais.
Nehemia tinha ido para a porta da frente avisar seus guardas que estava pronta, e
para encontrarem uma carruagem para alugar. O sol já desaparecera, junto com todo o
calor do dia, e nem Celaena nem Nehemia sentiam-se particularmente inclinadas a voltar
andando na noite gelada.
Celaena estava de pé ao lado do balcão de madeira polida, terminando as instruções
de onde e como entregar as roupas novas de Nehemia, e pagando por suas próprias
compras. Ela decidira levar o vestido vermelho, ousado e escandaloso como era. Mesmo
que não o comprar não a fizesse sentir-se derrotada, um sentimento de perda irreparável
a impedia toda vez que pensava em deixa-lo para trás.
Ela coletou a última moeda de ouro de sua bolsa e colocou no balcão, atrás do qual
Kavill as contava.
— O de veludo vermelho deve ficar pronto em duas semanas — ele falou, guardando
a última moeda. — Alguma ocasião especial em mente?
Ela deu de ombros, olhando de relance para Nehemia, que permanecia na porta, já
parecendo miserável pelo frio iminente. A própria Celaena não estava muito ansiosa
para deixar o calor da loja. Ela deveria ter trazido luvas e um casaco mais quente.
— Tenho certeza de que encontrarei algum uso para ele antes do verão.
Kavill acenou e fechou seu grosso caderno.
— Só me deixe saber se fizer alguém desmaiar, ou começar uma rebelião.
Ela riu soltando a respiração e virou-se para sair, enfiando as mãos nos bolsos e
torcendo para que seus dedos não caíssem no caminho para casa.
— Aqui — Kavill ofereceu, e ela se virou para encontrar um par cinza claro de luvas
chiques nas mãos dele. — Por conta da casa. Pelos muitos anos de preferência leal — seu
rosto exibia a máscara usual de calma educada e cortesia, mas seus olhos castanhos
brilhavam. — E um presente, por um ano passado sem nenhuma luva sequer.
Se antes ela ainda tinha dúvidas, agora não havia nem um traço restante. Ele sabia
quem e o que ela era, sabia onde ela passara um ano escravizada, sabia que tipo de
dinheiro pagava aqueles vestidos.
Ela não tinha palavras – nenhuma que fizesse jus a toda a bondade do gesto -, então
simplesmente acenou com a cabeça, pegou as luvas e saiu.
A carruagem não era muito mais quente que o lado de fora. Celaena e Nehemia se
amontoaram em um canto, xingando bastante, violenta e criativamente, o inverno
interminável.
A última invenção vulgar de Nehemia fez com que Celaena risse até gritar, tão alto
que um dos guardas viajando acima da carruagem bateu no teto duas vezes para
perguntar se elas estavam bem. Nehemia bateu três vezes para assegurá-lo de que não
havia nada errado, mas Celaena continuou rindo até seu estômago doer.
Quando tudo estava silencioso novamente, ela olhou para a amiga e enxugou as
lágrimas de riso dos olhos.
— Eu pagaria muito dinheiro para ver você falar isso na frente da Rainha Georgina.
Nehemia riu, mas o sorriso não chegou aos olhos.
— Obrigada, Elentiya, por me ajudar hoje. E-eu precisava dos vestidos. E sair um
pouco do castelo.
Celaena, séria, acenou com a cabeça. Elas passaram pelo bairro nobre, um borrão de
casas de alabastro e telhados de esmeralda, agora cobertos por gelo e reluzindo na luz
das lanternas.
— Obrigada por fingir. Por um dia, pelo menos.
Ela podia sentir os olhos de Nehemia sobre ela, mas continuou olhando para fora,
para as ruas molhadas e escorregadias de um dia de neve derretendo e que agora se
tornava gelo. Depois de um tempo, Celaena perguntou:
— Você já imaginou como seria se nós duas fôssemos realmente pessoas comuns?
A Princesa mordeu o lábio.
— Às vezes.
— Você já desejou ser? Comum, quero dizer.
Nehemia ficou em silêncio por um longo tempo, seus olhos distantes, como se
estivesse em uma terra longínqua, quente e vibrante, com campos de gramas ondulando
debaixo de um sol quente de verão.
— É o meu sonho, meu desejo mais egoísta... ser normal, comum, livre de minhas
responsabilidades.
Ela não tinha percebido estar segurando a respiração, não tinha percebido quão
importante a resposta de Nehemia era para ela, até ouvi-la.
Celaena suspirou.
— E ainda assim, nós não conseguimos fingir, nem por um único dia, estarmos livres
desses fardos.
— Eu sinto muito — Nehemia disse baixinho.
— Por que está pedindo desculpas? Foi uma coisa estúpida para pedir a você, de
qualquer modo.
— Queria que você pudesse simplesmente ter um amigo normal, não uma Princesa,
um Capitão da Guarda ou o filho de um Rei. Apenas um amigo comum, vivendo uma
vida boa e calma.
— Não estou interessada em amigos comuns. Mesmo se eu fosse somente uma
menina normal, não gostaria de ser rodeada por pessoas normais. Não, eu preferiria as
princesas rebeldes e os filhos de reis, os capitães rabugentos e prostitutas e ladrões a
qualquer outro. E escolheria você no lugar de mil garotas comuns.
O sorriso de Nehemia tremeu, apenas o suficiente para que Celaena virasse
novamente para a janela, antes que sentisse a pontada nos próprios olhos.
A carruagem fez uma curva na rua principal e o castelo de vidro ergueu-se na frente
delas, esverdeado e brilhante contra o céu noturno.
— Estou feliz que não sejamos comuns, Elentiya — Nehemia sorria na escuridão da
carruagem. — Seria tão chato se fôssemos.
Celaena sorriu.
— Incrivelmente chato.
— E, se serve de consolo, eu preferiria você a um milhão de amigos, comuns ou não.
Acho que mesmo que nós apenas nos encontrássemos na rua, mesmo se eu só a visse de
longe, eu saberia quem você é.
Celaena inclinou a cabeça.
— Uma assassina?
Os olhos escuros de Nehemia brilhavam conforme ela sacudia a cabeça.
— Minha irmã de coração.
Celaena teve que se virar. Quando olhou de volta, não sabia quem havia alcançado
quem, mas um momento depois, sua mão apertava forte a de Nehemia.
— Acho que eu saberia também — Celaena respondeu suavemente, encostando-se no
ombro da amiga.
Ambas sorrindo fracamente, a assassina e a princesa atravessaram a cidade pacífica
até o castelo de vidro à frente.
trono
de
vidro
HERDEIRA
DO FOGO
VOL 3
Meses depois de Aelin reclamar sua identidade há muito perdida como rainha de Terrasen, ela
ainda chamava a si mesma de Celaena Sardothien e era treinada para manejar sua magia reavivada
pelo príncipe feérico na fortaleza da montanha, em Wendlyn. Apesar de seu início brusco, Aelin e
Rowan finalmente formaram uma sólida amizade baseada em respeito mútuo, confiança, e mais
do que um pouco de sarcasmo. Mas apenas quando seu vínculo começa a se transformar em algo
que nenhum deles antecipa - algo muito mais profundo -, a fortaleza de Defesa Nebulosa recebe a
visita de três nobres feéricos. E um deles reivindica alguns laços muito, muito pessoais, ao próprio
Rowan.
Leia agora uma cena exclusiva de Herdeira do fogo, em que Aelin obtém seu primeiro
vislumbre da nobreza feérica de Doranelle, e onde um pouco mais da história de
Rowan é revelada a ela... com consequências ardentes.
— Qual sua comida favorita? — Rindo na borda de uma pedra como um lagarto no
sol, Celaena jogou uma noz no ar e a pegou com a boca.
— O que quer que me mantenha vivo no momento — disse Rowan ao lado dela, os
antebraços apoiados nos joelhos enquanto monitorava os sopés e os vales de Wendlyn
que ondulavam abaixo.
Ela estalou a língua.
— Você poderia ter mais de uma forma?
Ele deslizou um olhar em direção a ela, erguendo uma sobrancelha como se dissesse:
Você lembra qual é minha outra forma, não é?
Quando ela apenas franziu o cenho, ele suspirou.
— Há um vendedor ambulante em Doranelle que vende carne no palito.
— Carne no palito — Celaena disse, tão firme quanto podia, lutando para manter seus
lábios em uma linha reta.
— E eu suponho que queira algo feito de açúcar, ou algo inútil com um pouco de
açúcar.
— Doces não são inúteis. E sim. Eu rastejaria sobre brasas por um pedaço de bolo de
chocolate com avelã agora.
Mentira. A última vez que ela o comera, tinha sido com Chaol. Ela não tinha certeza
se poderia alguma vez comer o bolo novamente.
— Como isso poderia, de alguma forma, manter seu corpo forte? Com a sua magia,
você queimaria isso rápido e estaria com fome novamente dentro de meia hora.
Ela se apoiou nos cotovelos.
— Suas prioridades estão obscenamente fora de ordem. Nem toda comida é para
sobrevivência e fortalecimento. Você nem sequer tentou um dos chocolates da cidade.
Eu garanto que, no momento que o fizer, cada vez que eu virar as costas estará enfiando-
os garganta abaixo.
O pensamento de Rowan fazendo isso a fez apertar seus lábios novamente. Ela sabia
que ele a faria treinar no momento em que ela começasse a rir, então rapidamente
perguntou:
— Cor favorita?
— Verde.
— Estou surpresa que você realmente saiba.
Ele estreitou os olhos, mas disse:
— Qual é a sua?
— Por um tempo, eu me fiz acreditar que era azul, mas sempre foi vermelho. Você
provavelmente sabe o porquê.
Ele fez um som afirmativo.
Celaena se deitou e ergueu uma mão acima dela, tecendo uma linha de fogo entre
seus dedos. Ela a trançou entre os nódulos, depois deslizou-a pela palma da mão, até
que se enrolasse ao redor do pulso, retorcendo e deslizando pela pele.
— Bom — disse Rowan. — Seu controle está melhorando.
— Hmmmm.
Ela ergueu a outra mão e anéis de fogo cercaram seus dedos. Ela começou a trabalhar
esculpindo as chamas, forjando-as em padrões individuais.
— Tente comigo — Rowan disse, e ela virou a cabeça para ele e franziu o cenho
profundamente. — Faça.
Ele não se encolheu quando ela formou uma coroa de fogo para ele. Bem no topo da
cabeça. Ela levantou e ajoelhou-se diante dele, suas próprias joias ainda queimando
sobre suas mãos e pulsos, se concentrando enquanto ela moldava a coroa em uma coroa
de flores. Cada folha como uma chama individual. O dourado, o vermelho e o azul
brilhantes como qualquer pedra preciosa.
O cabelo prateado de Rowan brilhava sob elas.
— Movimento corajoso — ele disse enquanto ela continuava a acrescentar detalhes à
coroa. — Um que não tem muito espaço para erros.
— Estou surpresa que você não tenha coberto sua cabeça com gelo.
— Eu confio em você — ele disse baixinho, mas alto o suficiente para que ela olhasse
para seu rosto. Com a coroa de chamas, ele parecia realmente da realeza - um rei
guerreiro, tão brutal quanto as linhas de sua tatuagem. — E agora uma para você — ele
disse, e um arrepio delicioso desceu pela espinha dela quando uma coroa de gelo se
formou no espaço entre eles, suas pontas delicadas despontando alto.
Rowan levantou-a entre as mãos e colocou-a sobre a cabeça dela. Seu peso era leve, o
frio um bálsamo contra o calor de seu fogo.
Celaena sorriu para ele, e ele deu-lhe uma pequena elevação de seus lábios em
resposta. Mas então ela se lembrou - lembrou-se de que foi uma coroa que ele fizera para
ela. Uma coroa.
Suas chamas vacilaram quando ela se levantou e caminhou até a borda da rocha,
envolvendo seus braços em torno de si mesma. Um momento depois, a coroa de gelo se
dissolveu em névoa no vento da montanha.
— Teremos visitantes esta noite — disse Rowan, se aproximando.
— Devo me preocupar?
— Eu... eu preciso de sua ajuda.
— Ah. Então é por isso que você me deixou ter uma tarde de paz — ele rosnou, mas
ela ergueu uma sobrancelha. — Eu finalmente vou conhecer seus amigos misteriosos?
— Não. São nobres feéricos passando pela área. Eles solicitaram um lugar para passar
a noite, e chegarão por volta do pôr-do-sol. Emrys está fazendo o jantar, e sou esperado
para... entretê-los.
— Ah, não. Não — ela reclamou quando ele apenas olhou para ela.
— Eles não aceitarão jantar com semifeéricos e...
— Eu sou ainda menos aceitável que um semifeérico!
— Se eu tiver que bancar o anfitrião a noite inteira, provavelmente acabará em
derramamento de sangue.
Ela piscou.
— Eles não são seus favoritos?
— Eles são a típica nobreza, não guerreiros treinados. Eles esperam ser tratados de
uma certa... maneira.
— E? Você está no pequeno círculo de Maeve. E você é um príncipe, pode lutar as
próprias batalhas. Você não pode vencê-los?
— Tecnicamente, mas há políticas a serem consideradas. Especialmente quando eles
estão se reportando a Maeve.
Ela gemeu.
— Então o quê? Eu deveria ser a anfitriã?
Seu rosto era tão miserável quanto o dela.
— Não. Apenas me ajude a lidar com eles.
Outra pitada de confiança, ela percebeu.
— E o que eu vou ganhar com isso?
Ele apertou a mandíbula e ela, honestamente, pensou que ele ia dizer não vou chutar
sua bunda, mas ele apenas suspirou.
— Vou encontrar para você um bolo de chocolate com avelã.
— Não.
Quando ele ergueu as sobrancelhas, ela lançou um sorriso perverso para ele.
— Você só vai me dever. Um favor que eu possa reclamar quando quiser.
Ele suspirou, erguendo o olhar para o céu.
— Apenas apareça apresentável ao pôr-do-sol.
— Então, você e Remelle... — Celaena disse de onde ela estava descansando na cama
de Rowan, sua cabeça apoiada em uma das mãos.
De sua mesa de trabalho, onde ele estava afiando suas armas com um pouco mais de
interesse, Rowan rosnou.
Eles enxotaram os nobres para o banho, e pediram a Emrys para levar comida para
os quartos onde eles estariam. Três semifeéricos ficaram mais do que felizes em
desocupar seus grandes quartos, se isso significava sair do caminho dos visitantes. Eles
tinham uma hora até o jantar e, embora Celaena tivesse emprestado um vestido, ela não
sentiu que estava bem.
— Remelle foi... um erro muito, muito grande — Rowan disse, de costas para ela.
— Parece que ela não pensa assim.
Ele olhou por cima de um ombro.
— Foi há cem anos.
Deuses, às vezes ela esquecia quão velho ele era.
— Ela age como se você a tivesse posto de lado este inverno.
— Remelle só quer o que ela não pode ter. Uma condição que muitos imortais
desenvolvem para evitar o tédio — ele virou-se com a faca de caça em suas mãos
brilhando à luz do fogo.
— Ela estava praticamente agarrando você.
— Ela pode agarrar tudo o que quiser, mas eu não vou cometer esse erro novamente.
— Parece que você cometeu esse erro algumas vezes.
Rowan levantou um olhar irritado para ela.
— Foi ao longo de uma temporada. E então eu voltei a meus sentidos.
Ele cravou a faca na mesa e caminhou até a cama, até ficar cara a cara com ela. Celaena
estava com as sobrancelhas erguidas e os lábios apertados.
— Uma risada — ele advertiu. — Uma risada, e eu vou atirá-la no lago mais próximo
— ela tremeu com o esforço para manter sua risada presa. — Não. Se. Atreva — ele
rosnou, inclinando-se o suficiente para que sua respiração aquecesse a boca dela. — Se
você...
A porta se abriu e Rowan congelou, um grunhido baixo ressoou dele, tão violento que
ecoou em seus ossos, mas a ameaça era apenas Remelle, que piscou e exclamou:
— Oh!
Celaena levou um batimento cardíaco para perceber o que isso parecia. Ela estava
esparramada na cama, Rowan se debruçando sobre, perto demais para ser casual, mas...
— O que você quer? — Rowan disse, endireitando-se, mas não se afastando.
Remelle examinou o quarto, analisando os detalhes, que sugeriam que ele não era
apenas de Rowan: a escova na cômoda, as roupas de baixo que Celaena deixara jogadas
sobre uma cadeira - oh, como isso seria interpretado? -, as fitas que ela usava para
amarrar os cabelos, as botas pequenas ao lado das enormes de Rowan, e até mesmo os
vários itens pessoais que mantinham em suas próprias mesas de cabeceira.
— Queria apanhar você — disse Remelle, olhando para todos os lados, exceto Celaena
—, mas parece que está ocupado.
— Falaremos no jantar — disse Rowan.
Celaena pulou da cama.
— Tenho que ir ajudar Emrys com a refeição, na verdade — ela mal conseguiu
esconder seu sorriso perverso. — Por que não fica, Remelle?
Rowan poderia ter derretido seus ossos com o olhar que deu a ela, mas ela já estava
passando pela porta direto para o corredor, assobiando para si mesma. Rowan iria matá-
la. Assim que retomassem o treinamento, ele iria matá-la e depois assassiná-la
novamente.
Remelle ainda estava na entrada, franzindo a testa na direção em que Celaena tinha
ido. Quando se ela virou, um sorriso viperino dançava em seus lábios vermelhos.
— Isso também é considerado parte do treinamento dela?
— Saia — foi tudo que ele disse.
Remelle estalou a língua.
— É assim que você fala comigo hoje em dia?
— Eu não sei por que se incomodou em passar aqui, ou o que espera de mim.
— Ouvi que você estava aqui, e pensei em dizer oi e poupá-lo da tediosa companhia
de mestiços. Não percebi que você se importava tanto com eles.
Ele sabia exatamente com o que parecia quando ela invadiu o quarto. Negar isso só
causaria dor de cabeça, mas deixar Remelle assumir que ele estava compartilhando a
cama com Aelin era igualmente inaceitável. Ele não conseguia decidir como Maeve
interpretaria aquilo. A menos que...
— E quem disse que eu estava aqui?
— Maeve, é claro. Eu disse a ela que sentia sua falta.
A questão era saber se Remelle era uma espiã voluntária ou não. Ou se Maeve havia
enviado Remelle para saber que tipo de relacionamento Rowan havia desenvolvido com
a princesa.
— Como sua amiga, Rowan, eu tenho que dizer... a garota está bem abaixo de você.
Ele reprimiu uma risada. Aparentemente, Maeve não havia informado a ela quem,
exatamente, ele estava treinando. Remelle era incansável em sua perseguição por ele um
século atrás, conquistando-o com seu charme e sorrisos, mas ele realmente não se
importava com isso agora.
— Um — ele disse. — Você não é minha amiga. E dois, isso não é da sua conta.
Os olhos dela se estreitaram de uma forma que o fez perceber que Remelle faria cada
minuto antes que ela partisse um verdadeiro inferno para a princesa – sem saber o tipo
de predador que ela estava provocando. Então, ao invés de ver o sangue de Remelle
salpicado nas paredes antes do amanhecer, ele disse:
— Há uma grande escassez de quartos aqui, e tivemos que compartilhar a
acomodação — não era mentira, mas também não toda a verdade.
As sobrancelhas de Remelle permaneceram erguidas em sua pele branca como a lua.
— Bem, suponho que estas sejam boas notícias para Benson.
— O quê?
— Ele possui necessidades que também precisam ser atendidas, e a achou atraente o
suficiente. Maeve disse que estava mais do que bem se ela...
— Se Benson encostar um dedo nela, vai em breve se encontrar sem seus órgãos.
Maeve. Maeve havia sugerido que ela estava disponível para... Rowan apertou a raiva
que o cegava quando Remelle piscou.
— Honestamente, Rowan, o que você acha que a maioria dos mestiços acaba fazendo
em Doranelle?
Ele não tinha resposta, mais nenhuma palavra saiu assim que ela disse aquilo.
Ela deu de ombros.
— Benson será gentil com...
— Se Benson olhar uma segunda vez para ela, ele morre. Se olhar novamente para
qualquer fêmea nessa fortaleza, ele morre — as palavras estavam envoltas de um rosnar
tão feroz que mal podiam ser entendidas.
Mas Remelle entendeu.
Lorcan sabia? Ele mesmo era um semifeérico, e havia se provado meio milênio atrás.
Ele estava ciente do que acontecia na cidade deles? Isso era repugnante – pior que
repugnante. Os feéricos eram melhores do que aquilo. Mas Maeve...
— Me certificarei de que o aviso seja recebido — Remelle ronronou.
Celaena havia ido para a cozinha, onde ajudava Emrys a preparar a refeição. Luca
estava lá, tagarelando, mas então parou no meio da conversa.
Essar estava parada ao pé das escadas, sorrindo fracamente.
— O jantar não ficará pronto pelos próximos trinta minutos — Celaena disse,
limpando as mãos no pano de prato antes de se aproximar da lady.
Luca estava praticamente boquiaberto com a sua beleza, mas Essar deu a ele um
sorriso educado e ele imediatamente ficou interessado em o que quer que estivesse
fazendo.
— Eu posso lhe mostrar a sala de jantar, se quiser esperar lá.
Deuses, ser educada era... estranho.
— Ah, não, Benson está lá agora, e ele... Acho que estou me divertindo mais aqui.
Ela também deixava Emrys e Luca desconfortáveis, se o silêncio de ambos fosse
algum indício, mas Celaena se pegou dizendo:
— Aqui pode ser um caótico, barulhento e uma confusão.
— Eu sei como uma cozinha funciona — Essar disse. — Apenas me diga que trabalho
precisa ser feito, e eu farei.
Celaena olhou para Emrys, que se curvou e se apresentou com Luca, que ficou
vermelho como uma beterraba, e então se viu picando vegetais ao lado da dama.
Celaena disse para Essar alguns minutos depois:
— Então você está apenas... viajando por aí?
— Maeve nos deu uma tarefa, ao qual eu não posso falar a respeito, mas sim, isso
envolve viajarmos por um tempo. Nós estamos no caminho de volta para Doranelle, no
entanto, graças à deusa brilhante.
Celaena levantou uma sobrancelha.
— Mala?
Essar levantou uma mão, e chamas dançaram nas pontas de seus dedos.
— Não é um grande dom, mas pelo menos nos manteve aquecidos na estrada.
Celaena engoliu. Ela nunca havia encontrado outro portador do fogo antes.
Será que Rowan sabia?
— É difícil, controlar o fogo?
Essar deu de ombros.
— Eu era muito nova quando meu treinamento começou, e levou cerca de dois
séculos para controlar o pequeno poder que eu possuo. Além de algumas queimaduras
e bolhas, nunca fui capaz de causar danos, ou impressionar alguém, na verdade. Remelle
possui o poder mais interessante, sua magia é dominar qualquer idioma que ela ouve,
não importa o quão brevemente. É por isso que Maeve gosta de mandá-la aos lugares. E
Benson tem a habilidade de ficar invisível quando quiser, o que... — Essar estremeceu.
— Faz dele um bom ouvinte — Celaena completou. Essar deveria ser uma péssima
espiã se estava tão disposta a falar.
Essar escovou uma mecha de seu cabelo preto sedoso.
— Você deve possuir poderes impressionantes, se o Príncipe Rowan a está treinando.
— Eu...
— Os vegetais estão prontos? — Emrys perguntou, e um olhar para o macho fez
Celaena mandar um silencioso agradecimento. Ela entregou-lhe uma tigela de batatas,
então começou a trabalhar no item seguinte. Essar fazia perfeitos e limpos cortes – muito
lentos para ser útil, mas ao menos ela estava tentando.
Essar disse casualmente:
— Não consigo imaginar que Rowan seja um professor fácil.
— Pode-se dizer que está correta.
— Mas eles todos são assim; Rowan e seus companheiros que servem a rainha.
— Você os conhece?
Essar corou levemente.
— Me envolvi com Lorcan, o líder deles, por um tempo. Mas... seu estilo de vida é
muito diferente do meu.
— E como Lorcan se parece?
— Um semifeérico, como você.
Ele é? Rowan havia falhado em mencionar essa parte.
Essar continuou.
— Ele teve que se provar a cada dia, a cada hora, desde que nasceu. Mesmo que seu
poder não possa ser desafiado por nenhum dos outros, a não ser Rowan, ele... Lorcan
não é um macho fácil de se estar perto. Alguns dias me surpreendo que ele tenha amigos.
— E Rowan é amigo dele?
Essar lançou a ela um sorriso divertido.
— De certo modo. Eles podem acabam conosco, você sabe. Especialmente quando
estão juntos. Quando Rowan e Lorcan estão na mesma sala... Vamos apenas dizer que as
vezes eles não deixam o lugar intacto quando partem. Ou a cidade.
— E ainda sim Maeve os deixa trabalharem juntos?
— Ela seria uma tola se deixasse um dos dois partir. É por isso que os ligou a ela por
juramento de sangue. Eles já destruíram cidades para ela.
Um calafrio percorreu a espinha de Celaena.
— Destruíram cidades inteiras?
Essar assentiu seriamente.
— E ainda assim Remelle pensa que pode controlar Rowan e quer possuí-lo.
Rowan poderia acabar com Remelle com apenas meio pensamento, se fosse
provocado o suficiente.
— Ela é uma idiota.
— De fato. Mas poder é poder e, já que Remelle não consegue aceitar o passado de
Lorcan e sua linhagem de sangue mestiça, Rowan é sua única outra opção.
— Os filhos deles também pertenceriam a Maeve, da forma que Rowan pertence?
Essar inclinou a cabeça.
— Eu não sei. Nenhum de seus companheiros têm filhos, então não há como dizer o
que Maeve poderia fazer.
Celaena estremeceu.
— Você não parece falar com tanta reverência sobre ela como os outros.
— Nem todos os feéricos são seus escravos dispostos, sabe. E parte... parte do porquê
minha relação com Lorcan acabou foi devido a isso. Ele é jurado por sangue a ela, não
importa o quanto me importe com ele, estou certa de que nunca, nem jamais, eu faria o
juramento.
— Por que está me contando isso?
— Porque você está treinando com o macho feérico puro-sangue mais perigoso do
mundo, e ainda assim ele a trata como uma igual. Ele a apresenta como sua igual. Há
uma implícita questão aqui: Quem realmente é você?
Mas Celaena não conseguia responder.
— Acho que Rowan não queria lidar com Remelle sozinho.
— Provavelmente. Mas ele também sempre lidou com ela à sua própria maneira. E,
desde que Rowan não é do tipo que exibe suas companhias por aí apenas para esquecer
um amor antigo...
— Não tenho certeza de onde você quer chegar com isso.
— Acho tudo isso um pouco interessante.
— Acho que você tem visto coisas demais.
Essar deu um suave sorriso.
— Tenho certeza que sim.
O jantar foi bem pelos seis segundos que levou para andar da entrada até a grande
mesa na sala vazia. A mesa era tão grande que eles ocuparam cinco lugares e ainda
sobraram alguns, com Rowan no meio, assim como sua posição exigia.
O plano tinha sido Celaena sentar-se a sua esquerda, com Essar ao seu lado, deixando
Remelle com o assento oposto ao de Celaena, e Benson a frente de Essar. Mas Remelle
moveu-se mais rápido do que Celaena havia esperado, indicando Benson ao assento
destinado para ela, e sentando-se ao lado de Rowan, deixando Celaena com a opção de
se sentar ou ao lado da Lady com os cabelos loiros ou do macho desagradável.
Ela escolheu Benson.
Rowan observou sem comentários, sua atenção presa em Benson quando Celaena se
sentou ao lado do Lorde. Mas se Benson havia ou não percebido o brilho letal nos olhos
de Rowan – deuses, o que era aquele olhar? – o lorde não revelara nada. Então Celaena
não tinha nada melhor para fazer naquele silencio que tomar um gole de seu vinho, e
rezar para que a refeição fosse rápida.
O primeiro prato, uma sopa de frango assado para qual Remelle e Benson franziram
o cenho, veio rapidamente. O gosto era divino, e Celaena tomou uma deliciosa colherada
antes de Remelle se dirigir a ela.
— Então você é do Império de Adarlan.
Celaena de uma segunda colherada lenta de sopa.
— Eu sou.
— Eu pensei ter detectado o sotaque de Adarlan e... Terrasen, estou certa? Eles usam
suas palavras de forma tão brutal lá. Duvido que até mesmo anos a cure desse sotaque
tão grosseiro.
Celaena tomou outra colherada muito longa de sopa.
Essar disse:
— Eu acho o sotaque um tanto charmoso.
Benson grunhiu em concordância, lançando a Celaena um olhar muito longo, e
Celaena sentiu a urgência de mudar sua cadeira para um ou dois lugares de distância.
Ou usar sua colher para cravar nos olhos dele.
— Bem, você realmente tem uma educação muito provincial, Essar — Remelle disse
claramente. — Não me surpreende que você goste.
O rosto redondo de Essar se apertou, mas ela não disse nada. Contudo, quando
Remelle tomou um delicado sorvo de sua sopa, ela soltou um assobio e quase deixou
cair a colher. O liquido estava extremamente quente – mais quente do que de todos os
outros. Essar lançou a fêmea um inocente, e questionador olhar, mas Remelle disse:
— O cozinheiro bastado ferveu a sopa.
Celaena engoliu uma resposta. Especialmente quando o rosto de Rowan se tornou
uma máscara de calma. Uma que normalmente significava que algum tipo de violência
estava a caminho. Esse tinha sido seu pedido, não tinha? Mantê-lo longe de uma briga
que poderia ser reportada a Maeve?
Então Celaena acalmou sua própria raiva e disse para Essar:
— Você cresceu no campo?
Remelle rolou os olhos, mas Essar sorriu.
— Meu pai possuía um vinhedo no Sudeste de onde morávamos. Eu passei minha
juventude passeando pelos olivais e bosques silvestres. Mas mudei para Doranelle
quando chegou o tempo de entrar para a sociedade.
— Infelizmente, Essar foi muito azarada quanto a cumprir o desejo de seus pais e se
casar com um marido apropriado — Remelle disse.
— Marido? — Celaena se encontrou dizendo. — Não... parceiro?
Remelle estalou a língua.
— Claro que não. Um parceiro é raro... a maioria dos feéricos não os encontra.
Celaena não conseguiu se fazer olhar para Rowan, embora seu coração se esforçasse.
Remelle acenou com a mão.
— Então, nós casamos.
— E se você se casar, e então encontrar seu parceiro?
— Guerras começaram por esse motivo — Benson finalmente disse, seus olhos
escuros pareceram engoli-la por completo. — Mas se caso acontecer, é tratado muito
delicadamente.
— É uma bagunça, ele quer dizer — Essar esclareceu. — O macho sentira a
necessidade de matar qualquer pretendente de sua parceira, mesmo que esse
pretendente esteja casado com ela. Mesmo que estejam apaixonados. Pelo que somos,
ainda há instintos que não se podem ser controlados.
Celaena assentiu, terminando sua sopa. Remelle, contudo, sorriu para ela.
— Mas como mestiça, você não tem que se preocupar com tal coisa. Encontrar um
parceiro é ainda mais raro para os que não têm sangue puro, e nenhum de nós iria se
casar com você, de qualquer forma.
Celaena encarou a fêmea por um longo momento, mesmo quando poderia ter jurado
sentir as reverberações pela mesa quando Rowan rosnou baixo. Remelle se recusou a
desviar o olhar, Celaena tentou se estabelecer, acalmando a raiva que corria em suas
veias. Ela podia sentir a atenção de Essar, e quase podia ouvir as peças se encaixarem
em sua mente quando ela reconheceu a cor dos olhos de Celaena e murmurou:
— Remelle.
Mas Remelle olhou para Rowan e começou a falar algo no dialeto antigo, sorrindo
docemente. Quando Rowan não respondeu, Remelle virou para Benson, dizendo algo a
mais, ao qual o Lorde respondeu na mesma elegante, e adorável língua. Remelle abriu a
boca novamente, mas Rowan disse com uma calma letal.
— Fale a língua comum, Remelle.
Remelle colocou a mão em seu peito em um falso pedido de desculpas.
— Às vezes me esqueço, não é todo dia que estou na companhia de mestiços.
Essar engoliu com dificuldade, sua pele morena um pouco pálida enquanto encarava
Celaena e Remelle. Ah, sim. A dama havia descoberto que ela não era um tipo comum
sentado entre eles.
Emrys e Luca entraram, recolhendo o restante da sopa e trazendo o próximo prato:
travessas com carne assada e vegetais. Emrys ficou à beira da porta, e Celaena deu uma
mordida no coelho e gemeu, então virou em seu assento para assentir sua satisfação com
a comida do antigo cozinheiro. Ele sorriu, o rosto ruborizando.
Em seguida, Remelle disse:
— Rowan, deve ser uma pena para você ter que comer um dia sim, um dia não — ela
empurrou a carne em seu prato, e depois pousou o garfo.
Celaena não podia olhar para Emrys. Ela não se permitiu vislumbrar seu rosto.
Rowan disse:
— Eu como melhor aqui do que em Doranelle.
— Não há necessidade de ser agradável para ajudar — Remelle disse. — Se não
aprenderem do que gostamos, que serventia eles têm na capital?
Passos soaram atrás deles, e Celaena soube que Emrys havia descido as escadas.
Celaena disse calmamente.
— A próxima vez que insultar meu amigo, eu vou esmagar seu rosto em qualquer
prato que estiver em sua frente.
Remelle piscou.
— Bem, eu nunca...
— Remelle — Essar sussurrou.
Mas Remelle colocou a mão no antebraço de Rowan, agarrando com tanta
possessividade que Celaena enxergou vermelho quando a dama assobiou para ele.
— Você a deixará me insultar dessa forma? Fazer ameaças contra um membro da casa
real?
— Tire sua mão de mim — Rowan disse muito devagar.
Mas Remelle não largou Rowan quando se voltou para Celaena.
— Você está dispensada dessa mesa. Saia.
Celaena olhou para a mão branca que agarrava Rowan.
— Tire sua mão dele.
— Eu faço o que eu quiser, e se você tivesse algum senso, vai sair dessa sala antes que
seja chicoteada por seu...
Fogo explodiu e o grito de Remelle ecoou nas paredes. Chamas vivas em volta da
dama, não para queimar ou chamuscar, apenas... envolver. Até mão em Rowan estava
em chamas e, entre colunas de dourado e vermelho fogo, os olhos de Remelle estavam
arregalados quando virou para Essar e disse:
— Me solte.
Mas Essar apenas olhou para Celaena.
— Não é minha magia.
Rowan ficou perfeitamente imóvel quando Celaena fez o fogo ficar mais quente. Não
o suficiente para queimar, mas o suficiente para fazer Remelle suar. Então Celaena disse:
— Se você levantar um chicote para qualquer um, eu vou encontrar você, e terei
certeza de que essas chamas irão queimar.
Ela tinha que admitir, Remelle possuía uma quantidade pequena de coragem,
especialmente quando esbravejou:
— Como você ousa destratar a Senhora de Doranelle.
Celaena ria por baixo da respiração.
— A próxima vez que tocar Rowan sem sua permissão, eu vou lhe queimar até as
cinzas — ela virou a cabeça para Benson. — E se você olhar para mim ou para qualquer
mulher dessa forma novamente, irei derreter seus ossos antes que tenha a chance de
gritar.
Benson, sabiamente, assentiu e desviou o olhar. Essar estava pálida quando Celaena
mostrou os dentes com um grunhido e disse para ela:
— Você mantém tudo o que viu aqui para si mesma — Essar assentiu. Por último,
Celaena encarou Rowan, que parecia fazer o melhor para não sorrir, embora a diversão
ainda dançasse em seus olhos quando ela disse: — Eu já julguei para você, Príncipe.
Ele estudou Remelle, que mal se movia, mal respirava, então empurrou o queixo.
— Solte-a e vamos comer.
As chamas desapareceram tão rápido que fora como se nunca tivessem existido. No
silencio que se seguiu, Remelle inclinou-se sobre o braço da cadeira e vomitou no chão
inteiro. Celaena pegou seu garfo, mordeu um pedaço do coelho e sorriu.
— Se eu nunca os vir novamente, ainda vai ser cedo demais — Celaena disse na
escuridão do quarto deles.
Rowan soltou uma risada alta.
— Pensei que tivesse gostado de Essar.
— Eu gostei, mas... você deveria tê-la visto tentando me fazer conversar na cozinha.
— Sobre o quê?
— Sobre você. Sobre nossa... relação. Eu acho que você irá para casa com uma série
de rumores desagradáveis.
— Eu acho que o status de nossa relação será a última coisa que os rumores irão contar
depois dessa noite.
— Essar disse que você... que você e Lorcan dizimaram uma cidade juntos.
Ele sibilou.
— Ah, Sollemere.
— Eu nunca escutei a respeito dela.
— Isso é porque ela não existe mais.
Ela se virou, olhando para ele através da luz do luar que atravessava as cortinas.
— Você a limpou do mapa literalmente?
Ele deu a ela um longo olhar.
— Sollemere era um lugar tão perverso, cheio de pessoas monstruosas que fizeram
coisas que mal podem ser ditas e... até mesmo Maeve ficou enojada deles. Ela lhes deu
um aviso para parar, e disse que se eles... — ele apertou a mandíbula. — Há ações que
são imperdoáveis, e eu não vou sujar esse quarto mencionando-os. Mas ela jurou para
eles que se continuassem a fazer aquilo, ela os aniquilaria.
— Deixe-me adivinhar: eles não escutarem.
— Não. Nós salvamos quantas crianças podíamos com nosso exército. E, quando elas
estavam longe e a salvo, Lorcan e eu transformamos a cidade em pó.
— Você é tão poderoso assim?
— Você não parece chocada com isso.
— Você me contou um monte de histórias angustiantes. Se o que essas pessoas
fizeram foi tão horrível que até mesmo você não conseguia suportar, então digo que eles
tiveram o que mereceram.
— Tão sedenta por sangue.
— Isso é um problema para você?
— Eu acho cativante.
Ela lhe deu um empurrão brincalhão, mas Rowan pegou a mão dela e a segurou, seus
calos roçando os dela.
— Você poderia fazer isso, sabe? Uma cidade inteira queimar.
— Espero nunca precisar.
— Eu também — ele passou os dedos pelos dela e os levantou para examinar as
cicatrizes ao longo da mão e de seus dedos. — Mas eu nunca irei esquecer o olhar no
rosto de Remelle quando você disparou fogo pela boca e olhos.
— Eu não o fiz.
Ele riu, um ruído baixo que ecoou no peito dela.
— Parte mulher, parte dragão.
— Eu não cuspi fogo.
— Seus olhos se tornaram dourados.
Celaena incendiou os olhos para ele.
— Você irá me repreender?
Ele baixou suas mãos unidas sobre a cama, mas não a deixou ir.
— Por que eu deveria? Ela teve seu aviso prévio, e ignorou, então você o fez. Isso
segue os modos antigos, e você tinha toda a razão ao mostrar para ela quão sério estava
falando.
Ela considerou o que ele disse, e depois de um momento, falou:
— Me assustou o quão no controle eu estava. O quanto eu quis fazer isso. Me assustou
não estar assustada. Me assustou que... — ela se obrigou a olhar para ele. Seu rosto era
ilegível na luz fraca. — Me assustou que...
Me assustou que eu passei a me importar tanto com você que eu desenharia isso na areia. Me
assustou que eu queimaria e mutilaria e mataria por você, e ainda assim... ainda assim, no fim do
dia, você continuaria pertencendo a Maeve, e não há nada que eu possa fazer, não importa o quanto
eu possa queimar, mutilar e matar para mantê-lo comigo.
Ele liberou sua mão apenas para desliza-la por sua bochecha, o gesto tão inesperado
que ela fechou seus olhos e inclinou-se para ela, ouvindo as palavras não ditas em seu
toque.
Eu sei.
Sentados em volta da fogueira que Aelin acendeu horas mais tarde, protegidos pelos
emaranhados de Carvalhal, eles jantaram frutos frescos e peças de carne que Lysandra
comprara para eles. Uma rara atitude indulgente, quando eles podiam caçar por si
mesmos, mas... nenhum deles reclamou.
A metamorfa ficou em sua forma humana por tempo suficiente para devorar sua
parte, mas logo estava transformada em leopardo fantasma e deitada aos pés de
Evangeline. Ligeirinha, entretanto, sentava-se ao lado da menina, os olhos cravados no
pouco de carne que ainda restava nos dedos de Evangeline.
Evangeline parou de comer e disse a nenhum deles em particular:
— Um curandeiro pode me consertar?
— Não há nada o que consertar — disse Aedion, em voz baixa.
Lysandra grunhiu em acordo, mas parecia estar ouvindo, esperando uma resposta.
Todos eles olharam para Rowan, que franziu o cenho ligeiramente.
— O processo requer tratamentos extensivos, com... — Ele endireitou-se e disse
cuidadosamente: — Com as cicatrizes sendo tão profundas.
Lysandra tensionou-se. Aedion não era o único deles que se culpava pelo passado.
Evangeline correu os dedos pela lateral de seu rosto.
— Que tipo de tratamento?
Aqueles olhos amarelo-limão tão grandes, tão cheios de... esperança. Medo, sim, mas
esperança.
— Do tipo que a machucaria muito depois que as cicatrizes melhorassem.
— Mas elas sairiam?
— Possivelmente.
Aedion roçou as botas na terra.
— Você não precisa disso, Evangeline. Você é perfeita como é.
Evangeline sorriu para Aedion, larga e alegremente. Aelin olhou para Rowan, que
tinha a mesma aparência que ela – como se alguém tivesse perfurado suas tripas.
Lysandra estava apenas encarando sua jovem protegida, devastação em seus pálidos
olhos verdes. Devastação e ainda... Lysandra olhou para Aedion, que tinha se movido
para sentar ao lado de Evangeline e a olhava como se fizesse uma avaliação apropriada.
Aelin não deixou escapar a mudança na expressão de Lysandra, mesmo em sua forma
de leopardo fantasma, enquanto ela observava o guerreiro.
Aelin encontrou os olhos de Rowan novamente, e ele inclinou-se para pressionar um
beijo suave em seu pescoço. Ele falou, tão baixo que mais nenhum deles ouviria:
— Você falou para aquela menina vir a Orynth, não foi?
Ela acenou com a cabeça. Rowan se afastou para olhar seu rosto, para estuda-la. O
orgulho em seus olhos fez sua garganta apertar.
— É um orgulho servi-la.
Mas Aelin balançou a cabeça, olhando para ele, para Aedion, para Evangeline e
Lysandra, enxergando cada um deles.
— A honra é toda minha — ela respondeu suavemente.
fim