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Angelo Torre
ão
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od
pr
re
a
da
Este trabalho possui como referência explícita um dos últimos
bi
livros de E. Grendi (1996), Storia di una storia locale: um livro que obteve pouco su-
oi
cesso – foi superficialmente interpretado como um livro de história pátria –, mas
Pr
que é, pelo contrário, fruto de um trabalho em conjunto com alguns colegas ge-
_
noveses, por intermédio do “Seminário Permanente de História Local” (Grendi,
or
t
1996). Pretendo defender a importância deste livro, tendo em vista o recente in-
au
fontes, não tanto como testemunhos, mas como modificações das situações que
re
descrevem. Tal leitura torna-se essencial, em minha opinião, para observar como,
ra
pa
gunda parte deste artigo, é possível encontrar e observar somente por meio de uma
rs
análise da localidade, que se delineou nos últimos trinta anos. Tal ilustração terá
z
Vo
um duplo objetivo: por um lado permitirá entender as razões da pouca sorte do li-
vro de Grendi; por outro, permitirá formular indicações de método para uma nova
e
tra
historiografia da localidade.
Le
1. Título original: “La produzione storica dei luoghi”. O presente artigo é uma tradução do artigo publicado em
língua italiana na revista Quaderni Storici, em agosto de 2012. Tradução: Leonardo de Oliveira Conedera e
Francesco Santini. Revisão técnica: Alexandre Karsburg.
1. Storia di una storia locale (de agora em diante, SSL) surge a partir de uma refle-
xão sobre o specialismo2 historiográfico: a postura dos historiadores de fracionar as
realidades do passado segundo uma ideologia que Grendi define como colecionís-
tico-classificatória (collezionisco-classificatoria), mais ou menos camuflada de mé-
todo filológico. Trata-se de uma ideologia que impede de enxergar os nexos entre
ão
fontes diferentes e de estudar, por consequência, o verdadeiro objeto de análise do
uç
historiador, a interdependência entre os fenômenos sociais e culturais do passado.
od
Frente às convicções que Grendi (2004) havia já longamente exposto e discu-
pr
tido, e que deram origem, por meio da noção de microanálise histórica, à chama-
re
da “micro-história”, a SSL dá nova ênfase à dimensão topográfica como base do
a
projeto de etnografia histórica no qual ele, Grendi, estava trabalhando. Tal ênfase,
da
até o momento, não ganhou atenção suficiente. De fato, quero demostrar como tal
bi
perspectiva condensa uma fase da produção historiográfica de Grendi ainda não
oi
devidamente reconhecida, que se concentra sobre as temáticas espaciais. Assim,
Pr
vejamos, de forma extremamente sintetizada, os aspectos essenciais da SSL.
_
O livro surge da contraposição entre a tradição italiana de história pátria,
or
t
exemplificada por intermédio do caso lígure, e o percurso historiográfico da cha-
au
mada english local history ou “escola de Leicester” (de agora em diante ELH). Para
do
estudo de campo, baseava-se em uma “experiência crítica visual” (SSL, 13) que per-
re
mitiu aos seus praticantes superar tanto os “antigos tratamentos descritivos fra-
ra
inversão total de rota. Marcada por uma conjuntura historiográfica que via o pri-
_
2. N.T. Termo utilizado em italiano, com relação ao mundo acadêmico, para indicar, de modo polêmico, uma
excessiva tendência a se especializar, e por este motivo é usado no lugar de specializzazione (especialização).
ão
aquele da história pátria, que Grendi define como “colecionístico-classificatório”
uç
e que ele contrapõe à abordagem topográfica: esta última, de fato, “garante a plena
od
recuperação das complexidades documentárias do ambiente”, força a multiplicar
competências e saberes do território, os quais são os únicos que asseguram uma
pr
re
leitura não classificatória das fontes por parte do estudioso local.
a
Por esse motivo as guinadas conhecidas pela ELH são refutadas por Grendi
da
(1995), que nelas identifica o ressurgir de uma pretensão classificatória: a ELH, de
bi
fato, abandonou o paradigma topográfico em favor de uma visão holística e tota-
oi
lizante da história de comunidade. Tal visão estaria relacionada ao surgimento de
Pr
interesses histórico-culturais e à adoção de temas emprestados da sociologia histó-
_
rica da família e do “Cambridge Group”. Phythian-Adams chamou “história socie-
or
tal” à reconstrução das cadeias relacionais que unem, ou fundem, a história local e
t
au
A crítica de Grendi (1975) à ELH não é, como falávamos, ocasional, mas repre-
pa
liação da dimensão espacial presente na trama das ações; isso desde 1975, ano da
ã
rs
rial do “sistema político local” (Grendi, 1981; 1992). A magistral análise da “práti-
Vo
ritual, representam os pontos mais altos dessa abordagem etnográfica para com
Le
3. O parecer concorda com aquele de um recente institucionalismo medieval influenciado pela “geografia e
estrutura das fontes escritas”. Ver: Cammarosano, 1991; Keller, 1988.
4. N.T Espécie de consórcios de famílias nobres ligadas por vínculos de sangue ou interesses econômicos em
comum, e que frequentemente moravam em prédios próximos.
ão
Permanente de História Local (1997); e por fim, pelas comunicações, ocasionais,
uç
mas densas, sobre a história topográfica da cidade renascentista (e alguns capítulos
od
dos Balbi) e sobre as novas arqueologias (Grendi, 2000a, 2000b).
pr
re
2. Seria enganadora uma leitura de SSL que visse nela uma nova proposição,
a
com meio século de atraso, das temáticas da ELH. O livro acerca da história local
da
compreende-se somente à luz da discussão conduzida por Grendi relativamente
bi
à tríplice forma de reducionismo historiográfico que caracterizou o último quar-
oi
tel do século XX, ou seja, funcionalismo, estruturalismo e interpretativismo. Isto
Pr
pode ser inteiramente observado quando pensamos as trajetórias conhecidas pelas
_
análises históricas e sociais da localidade. Portanto, para discutir o livro de Grendi
or
e apreciar seus pressupostos polêmicos, é preciso partir de outro livro, mais afor-
t
au
cult, rompeu barreiras culturais sem uma verdadeira discussão. Essa obra impôs-se
s
Na realidade, o livro de Anderson deve seu sucesso ao tom crítico com o qual re-
ra
pa
jeita qualquer base social, cultural e política das ideologias nacionalistas do século
XIX: “as comunidades devem ser distinguidas, não por sua falsidade/autenticida-
ã o
de, mas pela forma como foram imaginadas”. Trata-se de uma postura que, com
rs
desenvoltura, faz referência a “sistemas culturais” não menos artificiais que aque-
Ve
les sociais e, com certeza, igualmente condicionantes: são esses sistemas o cenário
_
XX, segundo a qual “o nacionalismo se mascara sob falsas aparências”, ideia que
Le
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da imaginação. Mesmo com alguma hesitação, o limite era posto a nível “local”:
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na verdade, qualquer comunidade maior que a aldeia primordial do contato face
od
a face (e talvez mesmo ela) é imaginada. As ideias do autor mencionado devem ser
pr
entendidas como expressão extrema e significativa de uma virada cultural, e por
re
isso é necessário começar a criticá-las. Em primeiro lugar, a “aldeia primordial”,
a
à qual ele se refere, nunca existiu, e muito menos na área geográfica analisada (a
da
Europa, região não carente de imaginações nacionalistas). De certa forma, preci-
bi
samente como parece sugerir Anderson, tal aldeia é fruto de imaginação, exata-
oi
mente como as comunidades mais amplas, que ele prefere. Só que se trata de uma
Pr
imaginação que não pode ser circunscrita na esfera das representações, dos mitos
_
e dos sistemas de significado, como acredita Anderson.
or
t
Quero demonstrar como, pelo contrário, a imaginação que determina a forma
au
das comunidades políticas seja a ação. Para captar tal natureza, prática e criativa
do
te para a escala da qual ele exclui a criatividade. Pretendo mostrar como a escala
vi
nal. Sustentarei também que, para estudar o local, sem o desfigurar e mutilar, é
pa
Disso tudo o título do trabalho que aqui apresento: produção histórica dos lu-
z
Vo
ão
na pesquisa social (Agnew, 1987, 1989, 1995). É uma reação heterogênea, na qual
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confluíram críticas à modernização da matriz cognitiva e fenomenológica (Butti-
od
mer, 1980; Richardson, 1984, p. 1; Fernandez, 1984, p. 40) que insistem substan-
pr
cialmente sobre uma visão “de dentro” da dimensão local (Basso; Feld, 1996).
re
Por fim, a teoria literária pós-estruturalista inseriu-se numa sólida tradição de
a
estudo temático da localidade6 e viu no local uma estratégia retórica de organiza-
da
ção do discurso: uma abordagem que está influenciando profundamente a pesqui-
bi
sa antropológica.7 Essas posições analíticas, mesmo variadas, possuem em comum
oi
a ênfase na construção cultural e social inerente à noção de “lugar” e, de tal manei-
Pr
ra, abrem novas possibilidades de análise histórica da localidade. Isso não apenas
_
porque estimulam a pesquisar o local por intermédio das suas relações com os sis-
or
t
temas – culturais, econômicos, etc. – globais (Massey, 1995; Ead, 1994, 1999); mas,
au
locais serem produtos frágeis, que precisam ser constantemente reativados. Pode-
ão
titária. É preciso, portanto, assinalar com força uma vistosa exceção, aquela do
Ve
nova definição de localidade e dos estudos relativos a esta: uma dimensão da vida
z
Vo
e
5. Tentei uma reconstrução, parcial, em “Placing History. Sources, Transcriptions and The Analytical Problem of
tra
the Local” (2000). S. Gunn (2001) tentou uma reconstrução dos desenvolvimentos recentes dos estudos sobre
a identidade local urbana que concorda com a genealogia por mim proposta, mesmo colocando-se em uma
Le
ão
mentos e de técnicas para a “produção” de localidade. Em outros termos, esta últi-
uç
ma não é apenas “gerada por um contexto”, ela é também “geradora de contexto”:
od
rituais, representações, etc. se desenvolvem no interior das próprias localidades e
são influenciadas por estas, mas por sua vez acabam por constituir a localidade em
pr
re
si. Nas palavras de Appadurai, “a localidade é uma conquista social em constante
perigo, e, sendo intrinsicamente frágil, (...) [ela] necessita de uma atenta manuten-
a
da
ção que a proteja de uma série de perigos”. Nesse sentido, a produção de localidade
bi
pode ser entendida como um processo que gera cidadania, o qual produz “sujeitos
oi
locais” (...) que aprendem a pertencer de modo adequado a uma comunidade as-
Pr
sentada de parentes, vizinhos, amigos e inimigos”. As técnicas rituais são “técnicas
_
sociais de produção dos ‘nativos’”. or
Trata-se de uma formulação de grande interesse, cuja explícita indiferença
t
au
para com a dimensão histórica não pode passar sem ser notada. A única história
do
que Appadurai (2001, p. 17) menciona é aquela dos textos antropológicos: a con-
juntura histórica dos escritos que nos antecedem, o diálogo no tempo entre textos
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conceito anti-historicista, mas não se pode negar que a contribuição dos historia-
pa
dores à discussão sobre a localidade, mesmo não irrelevante, foi parcial e redutora.
o
Tal limitação ocorreu porque a cultura histórica pagou o fato de ter partido de uma
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rs
fundamente marcada por uma reflexão acerca desse. Uma reflexão bem conhecida
z
não representava um problema: ou seja, não se pensava que o espaço fosse uma
tra
“produção” histórica, mas sim uma moldura,9 dentro da qual as coisas aconteciam.
Le
Isso é válido tanto para as considerações da historiografia dos Annales, que mais
desenvolveu uma relação com a dimensão geográfica, quanto para a historiografia
ão
quarenta e cinquenta. Mediterrâneo, de Fernand Braudel, teve o mérito indiscutí-
uç
vel de pôr para os historiadores o problema do espaço, mas o fez por meio da hie-
od
rarquização das dimensões da análise histórica. Por intermédio da longa duração, o
pr
espaço era colocado em relação à modificação lenta ou, no limite, com a imobili-
re
dade. O espaço era, de fato, legível somente através da longa duração: na história
a
braudeliana não havia lugar para uma “história factual do espaço”. Dessa forma,
da
como muitos críticos devidamente destacaram, o espaço é alçado a nível de “estru-
bi
tura”, a qual não pode ser afetada pelas dinâmicas locais e de curta duração.
oi
No caso dos estudos de comunidades, constatou-se a influência convergente
Pr
dos modelos de residência e de interação social de pequena escala, tanto acerca
_
dos estudos sobre a segregação espacial nas cidades oitocentistas, quanto no que
or
diz respeito à tradição mais propriamente sociológica dos estudos da família e do
t
au
tão amplo e difuso, que envolvia a própria reação à história social. Por esta razão,
vi
o mínimo interesse em reverter a hierarquia das relevâncias, com a qual nos apro-
ra
ximamos do estudo da localidade. Como se sabe, nos últimos vinte anos, foi colo-
pa
Tal impressão é sugerida com força e clareza extremas por um exemplo pionei-
z
Vo
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guísticas torna-se possível e, em certo sentido, legitimado, pela utilização da obra
uç
de G. Dumézil, graças ao qual De Certeau descobre o papel do ritual (romano) de
od
fundação dos lugares e se convence de que este preceda as realizações históricas.
pr
Consequentemente, De Certeau interpreta as situações examinadas pelos juízes
re
como histórias, como substitutos repetitivos do ritual, e chega a afirmar que “as
a
narrativas antecedem as práticas sociais para abrir a estas o caminho. Decisões e
da
combinações jurídicas aparecem só posteriormente”. A primazia da narração é
bi
explícita: “antes do julgamento regulador, há o conto fundacional” (De Certeau,
oi
1980, p. 220-221).
Pr
Trata-se de uma atitude compartilhada pela cultura britânica e estadunidense.
_
Reconhece-se hoje que o linguistic turn, tanto na história como na geografia, tenha
or
tido “implicações potencialmente profundas para a compreensão da estrutura e
t
au
da ação nos processos históricos” (Gunn, 2001). No campo dos “community studies”,
do
sentido único, partindo das narrativas e das categorias culturais deduzidas da te-
Le
ão
ção à documentação histórica. Em particular, a abordagem topográfica permite
uç
perceber os processos locais de gênese das fontes. A consciência desse processo
od
muda profundamente nosso modo de ler os conteúdos da própria documentação.
pr
O conteúdo local de uma prática ou de uma instituição é geralmente tido como um
re
elemento no qual é necessário purificar os relativos testemunhos. Para atestar sua
a
autenticidade, acaba-se por descontextualizar o que acontece. Com o objetivo de
da
legitimar as reconstruções dos eventos e as interpretações do passado, os fenôme-
bi
nos locais são reduzidos (ou elevados) a exemplificações de tendências ou proces-
oi
sos que se entendem tanto mais legítimos – ou seja, relevantes –, quanto mais são
Pr
abstratos e rarefeitos.
_
Ao contrário, se se toma em consideração o processo local – ou no máximo topo-
or
t
gráfico – de gênese das fontes, é possível observar dimensões inéditas da dinâmica
au
social do poder. Processos de legitimação cruzada dos detentores de poder e das po-
do
pulações sujeitas a estes (Raggio, 1990; Torre, 1995) desenvolvem-se por meio da
ão
cessos de legitimação das práticas sociais que estão na base da produção de uma
rs
uso prático das instituições e sua relevância na modificação da realidade, que apa-
_
e ouvintes, em um contexto do qual esse dado deriva, aliás, pelo menos uma parte
do seu significado.
E o que se dá a compreender são, em geral, ações, com o objetivo de obter o reco-
nhecimento de sua validade. Poder-se-ia até mesmo afirmar que as ações reconhe-
ão
“dadas para compreender” aos espectadores, cuja resposta concorre na definição
uç
do significado contextual de tais atos. Estudando os procedimentos da justiça do
od
trabalho na França pós-revolucionária, A. Cottereau (1987, p. 30-33) chamou esta
pr
sequência de “instituir um precedente”: nas controvérsias, as ações dos litigantes
re
são reciprocamente interpretadas como “jogadas” que, se reconhecidas como legí-
a
timas, modificariam as prerrogativas de quem as realizou.
da
O mesmo Cottereau (1987, p. 30-33) demonstrou como este quadro interpreta-
bi
tivo permite a efetivação de uma maneira nova de se aproximar da documentação
oi
histórica: de chegar a uma “compreensão interna” das fontes que supere as meras
Pr
esperas de regularidade, para alcançar a definição “do sentido dado em uma situa-
_
ção” para uma ou mais ações. Segundo Cottereau (1987, p. 30-33), corremos o risco
or
de nos confundir no uso de uma fonte se não nos interrogamos sobre “les fins prati-
t
au
ques des situations à partir des fins pratiques de leurs transcriptions”12. Trata-se de uma
do
mentação histórica nos coloca em contato com atores inspirados por fins práticos
s
vi
de legitimação, mas não são estes quem se ocupa da redação dos documentos que nós
re
analisamos. Estes são produzidos por uma ulterior sequência: a interação entre situ-
ra
documentação histórica e que precisa estar presente na maneira por meio da qual
Ve
tura das fontes. Porém, o segundo aspecto – os fins práticos de quem transcreve – é
e
bem menos óbvio. Para entender tais fins, é necessário refletir, mesmo que bre-
tra
12. Note-se a distância entre esta formulação – que precede um processo de legitimação dos atores por meio do
documento – e aquela de que fala Spiegel (1990), onde o problema é muito mais a “transparência” da lingua-
gem que caracteriza os textos.
ão
dução. A historiografia jurídica nos permite, hoje, reconhecer na jurisdição a ca-
tegoria por meio da qual as populações da Europa medieval e moderna percebiam
uç
e identificavam o poder (Raggio, 1990). A. M. Hespanha (1993) enfatizou muitas
od
vezes, com base em P. Grossi e P. Costa, como, na cultura popular, a expressão mais
pr
visível do poder fossem a administração da justiça e a declaração do direito, e como
re
o modo de organizar o exercício do poder fosse normalmente próximo ao processo
a
da
jurisdicional. As situações sociais – desde as patrimoniais, até as rituais – eram juri-
dicamente tuteladas, e a sua proteção podia ser reivindicada no tribunal. Por isso,
bi
oi
o formalismo documental e o litígio judicial aparecem, assim, como fenômenos
Pr
marcantes, identificáveis também a nível popular, no “direito dos camponeses”
_
(Hespanha, 1993, p. 43; Hespanha, 1999, p. 44-9). or
Essa concepção jurisdicional do poder afirmava-se num quadro em que coe-
t
au
cionamento demandada pelo exercício da função que lhes era atribuída na econo-
ão
mia do todo. Sobretudo, como mostrou B. Clavero (1979), o pluralismo era apoiado
s
vi
por uma literatura jurídica que não falava do Estado, mas de uma pluralidade de
re
tivas (desde a moral religiosa, até os deveres de amizade). Além disso, o direito, não
pa
sendo produzido pelo Estado, mas por uma tradição literária, possuía fronteiras
fluidas e móveis com os outros saberes normativos (éticos e teológicos). Por fim,
ã o
estabelecidos e, portanto, de manter a ordem em seus vários níveis – era vista como
dispersa na sociedade, sendo a summa iurisdictio nada mais do que a possibilidade
_
ão
do uso prático das instituições. Trata-se de uma dimensão que, a meu ver, muda de
uç
forma radical o significado e a interpretação que podemos dar às posições insti-
od
tucionais. Pesquisas históricas sobre o procedimento judiciário procuraram iden-
pr
tificar a prática das instituições possibilitada pelo pluralismo jurisdicional (Ago;
re
Cerutti, 1999), fazendo emergir alguns importantes eixos analíticos:
a
a) Práticas de certificação: como mostra uma pesquisa sobre os procedimentos
da
de justiça na Roma barroca, os sujeitos buscam um julgamento oficial para certi-
bi
ficar, tornar público, um direito próprio. Posteriormente, abandonam esse cami-
oi
Pr
nho, sem ativar o procedimento que deveria conduzir a sentença. Além disso, exis-
tem normas que conferem aos postulantes tal prerrogativa, sem necessidade de
_
ativar o ordo iudiciarius. A função que assim se atribui ao juiz é muito mais parecida
t or
com aquela de um notário que com aquela de um iusdicente. O uso da justiça deve
au
contrário, a própria justiça régia baseia-se sobre esse uso certificatório da justiça
pa
central, nos seus mais altos graus de julgamento. No mesmo sentido direcionam-se
aqueles procedimentos, explicitamente previstos pela mesma codificação do sécu-
ã o
mavam a própria posse de bens ou direitos”, estavam na base da prática dos magis-
_
trados, tanto no centro quanto na periferia de um Estado, como aquele dos Savoia,
z
Vo
e eram previstas por uma das primeiras formas de codificação moderna (Silvestri-
ni, 1997, p. 52-53). Tais modalidades eram análogas em todos os contextos sociais
e
tra
e políticos: valiam tanto para eminentes abades que propunham reivindações jun-
to a uma entidade eclesiástica, quanto para clérigos menores que reivindicavam
Le
ão
fontes de registro, atos nos quais mais de uma parte expressa o consentimento em
uç
compor um corpus, compartilhando os custos e os benefícios deste. Trata-se de fon-
od
tes que são geralmente lidas exclusivamente por aquilo que contêm e das quais se
pr
pressupõe uma representatividade total da realidade que representam ou na qual
re
se desenvolvem. Seria talvez mais interessante lê-las por aquilo que não contêm e
a
para ver quem, nelas, são os excluídos. Isso é especialmente evidente na documen-
da
tação relativa à propriedade fundiária proveniente dos campos dos séculos XVI e
bi
XVII. Existem casos nos quais os administradores dos recursos coletivos de uma
oi
localidade estabelecem relações com grupos de residentes, associações e poderes,
Pr
com o objetivo de definir a continuidade e legitimidade da posse de bosques, pas-
_
tagens, lotes. Fazem-no por intermédio de assegne, procedimentos de certificação
or
da posse dos quais encontramos os vestígios, atualmente, no antigo catasto.13 De
t
au
outro tipo de fonte, a disputa territorial, que somente há pouco tempo entrou no
re
descrevem, e não como suas reproduções mais ou menos transparentes: são o fruto
_
de uma interação entre atores e poderes que visa a atestar e legitimar ações mate-
z
13. N.T. A palavra surge para indicar em geral um cadastro, mas adquire com o tempo, na Itália, o significado
de registro de bens imóveis.
ão
que lhes atribuíam protagonistas e observadores: o primeiro de todos, a constru-
uç
ção no plano cerimonial daquela comunidade que tensões e assimetrias de poder
od
deixam somente entrever. O objetivo das páginas que seguem será, portanto, o de
pr
analisar alguns conteúdos e as formas mais difusas da produção histórica dos luga-
re
res no Piemonte rural durante a Idade Moderna.
a
da
Contrade
bi
O olhar etnográfico sobre a Europa rural sancionou o abandono de um dos
oi
Pr
mais poderosos mitos historiográficos do século XX, aquele da comunidade cam-
ponesa como organismo de base da sociedade rural. Numerosas análises em escala
_
or
topográfica das aldeias italianas – piemonteses, lígures, toscanas e da Campânia14
t
– colocaram em evidência sua fragmentação interna, uma condição da qual ainda
au
revela, por exemplo, áreas de persistência dos bairros de linhagem periféricos. Mais
ão
em geral, descreve a dispersão de muitas aldeias em borgate, vilas, bairros. Junto com
s
que seguem geografias que ainda devem ser determinadas com precisão.
O modelo de aldeia como habitat fragmentado (ou multicêntrico) na área lí-
ra
pa
gure-piemontesa (mas nem a área lombarda parece estar imune a esta tipologia)
permite lançar algumas considerações gerais (Toubert, 1960). A primeira refere-
ã o
para si o acesso aos recursos materiais e, como veremos, também aos simbólicos.
14. Sobre esse assunto ver: Grendi, 1993; Levi, 1985; Torre, 1985; Raggio, 1990; Angelini, 1996; Pazzaglie,
1996; Delille, 1989; Ciufreda, 1988; Lombardini, 1996.
ão
uma conflitualidade violenta, fundada no instituto da vingança, que é registrada
uç
nas áreas de assentamento disperso, coexiste com diversas ações institucionais
od
(Raggio, 1990) – a república aristocrática dos genoveses para as aldeias lígures, o
pr
Sacro Romano Império para os feudos imperiais das Langhe ou o Ducado de Savoia
re
para as aldeias dos distritos urbanos de Ceva e Mondoví.
a
Em um processo que aqui não é possível apresentar com muitos detalhes, di-
da
versos fatores estão em jogo: desde a formação das vilas francas tardo-medievais
bi
(Guglielmotti, 2001), à criação do feudo15 e à dissolução do enquadramento reli-
oi
gioso baseado na pieve.16 Este último, em particular, está ainda plenamente presen-
Pr
te durante a Idade Moderna e está à base da incessante competição para o controle
_
da prática sacramental das populações locais, que se desenvolve entre os diversos
or
t
segmentos territoriais e as diversas jurisdições que aí estão presentes. A “territo-
au
rialização dos direitos de sepultura”, que foi identificada como a base do processo
do
de criação do município rural toscano entre os séculos XI e XII, parece ter ocorrido
ão
lização da igreja paroquial – seja enquanto edifício, seja enquanto sede adminis-
vi
de conflito e incerteza (Wickham, 1995). Neste período, a maioria das aldeias pie-
ra
pa
montesas possui mais de uma igreja que pode ostentar tal prerrogativa, ou por ser
detentora de direitos de cobrança do dízimo, ou por ser sede de cuidado das almas,
ã o
Devemo-nos perguntar quais são as formas políticas das linhagens. Foi suge-
rido por G. Levi (1985) que estas, onde não tenham um claro deslocamento terri-
_
15. Sobre o feudalismo na região do Piemonte, ver pelo menos: Bordone, 1980a, 1980b; Guglielmotti, 1990;
Provero, 1992.
16. N.T.: Circunscrições eclesiásticas menores da Itália setentrional, durante o medievo.
ão
pode adquirir o status de um corpo formal na aldeia. De fato, não é casual que em
uç
uma das regiões majoritariamente caracterizadas por assentamentos fragmentados
od
e multicêntricos sejam apontadas as ações previstas pelo direito comum para trans-
pr
formar um grupo de vizinhos em uma “borgata17”. É suficiente, segundo Losa, que
re
cinco chefes de família o peçam para que o conselho municipal possa acatar o seu pe-
a
dido. O jurista piemontês não especifica o motivo pelo qual seria desejável tal status,
da
mas basta considerar por um momento os mecanismos fiscais locais do Antigo Regi-
bi
me para compreender: adquirir um status territorial é vantajoso em um regime fiscal
oi
que é, na ausência de um regime de propriedade exclusiva da terra, intrinsicamente
Pr
territorial. Tornar-se borgata implica transformar-se em uma das articulações da
_
vida pública da aldeia e, portanto, participar do distaglio18 dos impostos, da definição
or
dos critérios com base nos quais se compõe o conselho municipal, etc., do registro das
t
au
almas e assim por diante. Surpreende, também, o baixo número de chefes de família:
do
Apparrocchiamento 19
z
Vo
tensões que animam a organização dos grupos e dos poderes. Para propor alguns
Le
ão
esfera eclesiástica importantes canais de expressão (Torre, 1985, p. 164-72; 1992).
uç
Mas também canais de institucionalização: é possível identificar uma política
od
das parentelas análoga àquela da borgata no apparrocchiamento. O direito canôni-
pr
co prevê, não diferentemente do direito comum, a necessidade de um pequeno
re
número de chefes de famílias para a concessão episcopal da instituição paroquial
a
(Prosperi, 1996, p. 310-311). Assim, por intermédio de uma ponderada dosagem
da
de legados, benefícios e gestão local dos sacramentos, as capelas das linhagens po-
bi
diam se transformar em instituições paroquiais. Permito-me dar um exemplo: a
oi
Pr
capela de Santa Croce di Briaglia é objeto de uma série de legados por parte de uma
_
das parentelas locais, os Borsarello, a partir de 1614. Outros legados do Seiscentos,
or
no período de 1619 a 1666, por parte de ramos diferentes da família, levam à fun-
t
au
dação de uma capelania. Na metade do século XVIII, a parentela tira dos bispos de
Mondovì o direito de batizar sem se valer do pároco de Vico, do qual os Borsarello
do
de Agonizzanti, depois de umiliate dela Concezione dela Beata Vergine e por fim del Su-
re
mos tratar neste texto: elas passam através da concentração dos legados em luga-
Ve
20. N.T.: Tipo de documentação que corresponde a uma herança deixada em favor de entidades eclesiásticas.
Confrarie
As considerações apresentadas são essenciais para a compreensão da associa-
ão
ção mais difícil de ser definida entre aquelas aldeias da Idade Média tardia e da
uç
Idade Moderna: a confraria21 (do latim confratria) di Spirito Santo. Por meio de raros
od
legados dos séculos XIII e XIV e de lacônicas descrições das visitações episcopais
pr
pós-Concílio de Trento, é possível observar a existência de uma instituição me-
re
dieval voltada à redistribuição simbólica de recursos derivados de legados de de-
a
funtos, durante as festividades de Pentecostes, por intermédio de um banquete de
da
leguminosas preparadas em um edifício profano para exclusivo uso cerimonial.
bi
Sua presença em todo o Mediterrâneo setentrional – de Portugal à Itália centro-
oi
-setentrional, passando por muitas regiões francesas e alpinas – deveria ter levado
Pr
a considerá-la dentro do inteiro panorama das instituições locais. Ao contrário,
_
perseguiu-se o mito das suas origens e se ignorou sua distribuição capilar nos sé-
or
culos XIII-XV: assim, acabou-se por confundi-la, no decorrer do tempo, com uma
t
au
de perdurar por todo o Antigo Regime e, em alguns casos, de conservar intacto seu
ã
rs
21. N.T.: Na versão original, o autor utiliza exatamente o termo confraria, que no italiano atual não é de uso
e
corriqueiro. De fato, o termo que corresponde à confraria do português é confraternita, e, por este motivo,
tra
preferimos deixar o termo em itálico, pois o entendemos na versão original do autor, que o usa com base na
Le
ão
da confraria – mesmo onde se tenta mantê-la oculta – pedindo para “visitar onde se
uç
fazia o Pentecostes”.24
od
Se observamos – considerando o limite permitido por uma documentação
pr
reticente – as práticas concretas do banquete do Pentecostes, podemos descobrir
re
que, precisamente em virtude da variabilidade local, elas dão voz a segmentos da
a
população que, de outra forma, seriam silenciados: grupos de vizinhos ou paren-
da
telas, conforme a natureza dos assentamentos (Comino, p. 687-689; Torre, 1999,
bi
pp. 81-97). Compreendida desse modo, a confraria parece expressar, sobretudo, a
oi
identidade de um grupo local por intermédio da redistribuição de comida entre os
Pr
próprios membros.
_
Na realidade, a prática do banquete de Pentecostes oscila ao longo de um conti-
or
nuum muito amplo que vai de uma única cerimônia por comunidade, até alcançar
t
au
uma dispersão mais ou menos ampla (em casos extremos, até sete ou nove confrarie
do
por unidade administrativa). Entre esses dois polos estão infinitas práticas que po-
ão
direção à parte inferior, devam eleger os outros dois Procuradores para o go-
Ve
ligadas, pelo privilégio acordado pelos testemunhos literários, que em relação à confraria resultam escassas
(enquanto, surgem abundantemente aquelas administrativas).
24. Relação dos bens do Santo Espírito de S. V. Cardé. Arquivo da Ordem Mauriziono, Torino, Confrarias m.1, n. 24.
25. ASVS, Congregazione di Carità, Agnona, b.1 “Libro di Carità di Santo Spirito”.
ão
famílias por “terzieri26” (e na realidade, não podemos excluir que seja o próprio re-
uç
dator a propô-los como tais, a inventá-los e a legitimá-los com a própria escritura):
od
por três anos a gestão da caridade “local” pertencerá a Lebbia e Limio, depois a Cro-
pr
bia e Malmo27. Mas o documento segue, revelando a prática à qual está obedecen-
re
do: “por memória que tendo reconhecido as casas habitadas em Gabbio superior
a
e inferior são 30 e em Crobia são 10. (...)”. A densidade de habitação é, portanto, o
da
critério capaz de movimentar o equilíbrio, as orientações e as gravitações entre os
bi
“lugares”. Trata-se, é claro, de um fator que muda no decorrer do tempo e por efeito
oi
de outras práticas, como aquelas de sucessão ou os fluxos migratórios.
Pr
Porém, a confraria (que, lembremos, é definida contextualmente como uma
_
jurisdição) não se limita a registrar vizinhanças, mas modela o território segun-
or
t
do a vontade dos membros: a plasticidade está assegurada, nos informa nossa tes-
au
temunha de Valduggia, pelo fato de que, “quando há algum novo lar, ou irmãos
do
aqueles”: novos lares, novos cargos. Não é casual, portanto, que o anônimo redator
s
nesse período, a atração local está adquirindo novos significados: após alguns de-
Ve
(de Cantone e Zuccaro) uma emigração que percebia como definitiva, utilizando o
Vo
ão
com forte presença senhorial, por uma gestão unitária do banquete – independen-
uç
temente da coesão do assentamento (Torre, 1985, p.102-103). Porém, sobretudo,
od
por intermédio das confrarie, é possível encontrar uma difusa estrutura de aldeia
pr
que poderíamos chamar de federativa. Ela coloca-se ao lado daquela já conhecida,
re
mas circunscrita, das ditas “comunidades de vale”29. Uma análise mais aprofunda-
a
da das estruturas federativas permitiria identificar na confraria uma das matrizes
da
da paróquia rural: ainda durante a metade do século XVII, de fato, a duplicação das
bi
confrarias implica uma duplicação das paróquias, e não vice-versa30.
oi
Desse modo, deveríamos identificar na confraria di Santo Spirito uma simples
Pr
variável da morfologia de assentamento das aldeias do Mediterrâneo? Na realida-
_
de, a escolha das linguagens com as quais celebrar o Pentecostes, as categorias in-
or
terpretativas adotadas para descrever as atividades da confraria e também os sím-
t
au
com a qual manifestá-la parece ser somente uma: a caridade. Mostrei, em outro
ra
capé, bispo de Novara. Um nexo que confirma, sem sombra de dúvida, a hipótese,
ã
rs
formulada mais vezes pela historiografia social dos últimos trinta anos, pela qual
Ve
29. São as primeiras conclusões de uma pesquisa coletiva sobre a origem das fronteiras municipais, conduzida pela
região do Piemonte e coordenada por Renato Bordone. Ver: Vaccari, 1963; Santini, 1964; Valetti Bonini, 1976.
30. CDC,Valduggia, b.1, “Transazione nella causa vertente tra gli uomini di Valduggia e S. Maria per la Carità
di Spirito, 1660. ASVS.
31. Ver: Trexler, 1973, p. 64-103, 1973; Henderson, 1992, p. 9.
ão
um “quase-ius”.33 Ele parece assumir uma personalidade jurídica que o coloca em
uç
condições de coletar, de distribuir, de receber legados, de possuir: de resto, vimos
como na Valsesia, da qual estamos tomando grande parte desses exemplos, fala-
od
-se explicitamente de “jurisdição” da confraria.34 Nesse sentido, esta última é uma
pr
re
instituição da vizinhança, que expressa solidariedades territoriais eventualmente
fragmentárias frente à organização da estrutura administrativa formal: a frag-
a
da
mentação, em outros termos, pode-se manifestar também em localidades admi-
nistrativas aparentemente unitárias – por exemplo, compreendidas em um úni-
bi
oi
co feudo ou que constituem somente uma única unidade administrativa (Torre,
Pr
1985, p. 119-20).
_
or
7. Os exemplos anteriores mostram suficientemente como o entrelaçamento e
t
au
a sobreposição dos laços entre diferentes cantoni35 descrevem uma forma de orga-
do
nização política (Lombordini; Torre, 1994). Tal organização interage com os pro-
cessos de transformação social: seja com aquele de formação do Estado, seja com
ão
Mosso, um pequeno vale piemontês contíguo à região de Valsesia (de onde toma-
o
32. O material das dioceses de Mondovi e Novara (Valsesia) permite individuar na confraria uma instituição,
e
às vezes na construção de lugares. Ver: Torre, 1985, p. 130-132. O espaço que esses desenham não corresponde
tra
às circunscrições existentes.
Le
33. A expressão é usada em 1667 pelo Mons. Della Chiesa no Cairo. “Visita Mons. Della Chiesa”, s.v. m. 28.
Arquivo da Cúria Vescovile di Alba.
34. CDC,Valduggia, b.1, “elenco delle famiglie domiciliate nella giurisdizione della Carità di Spirito Santo di
Valduggia per la scelta dei confrari, 1699-1806”. ASVS.
35. N.T.: Cantone ou cantoni (no plural) refere-se a um tipo de divisão administrativa que abrangia uma deter-
minada área, utilizado prevalentemente com relação a antigos estados.
ão
vale, distanciando-os de outros.
uç
As relações internas do vale (e, obviamente, com os vales adjacentes) foram re-
od
gistradas, quase exclusivamente, pelo Estado dos Savoia, que, desde o século XIV,
pr
atua sobre aquele território, e tem a jurisdição incontestável com um objetivo pre-
re
ciso, embora audacioso: obter, para escopos ficais, o desmembramento da antiga
a
unidade dos vales, o Mandamento de Mosso, rumo à constituição de comunidades
da
responsáveis fiscalmente. Muito esquematicamente, o processo conheceu uma sé-
bi
rie de três séculos de fracassos: mas a resistência das populações locais deveu-se,
oi
não tanto à “distância cultural” de Turim, mas principalmente à complexidade do
Pr
regime possessório.
_
A exigência dos Savoia de desmembrar o Mandamento surge a partir de dificul-
or
t
dades financeiras. Nos anos 20 do século XVII, o Estado dos Savoia conhece uma
au
crise gravíssima, que desemboca na guerra civil de 1639-1642 (ainda pouco co-
do
nhecida) (Cerutti, 1992). Para obter dinheiro, Carlo Emanuele I propõe criar seis
ão
ploração dos pastos: aqueles mais altos, ditos “disgiunti” (distantes, separados dos
re
cantoni) são alugados, enquanto aqueles próximos aos cantoni, ditos “simultenenti”,
ra
36. Dados dos censos atuais apresentam, obviamente, uma estimativa inferior muito superior àquela, parcial,
da primeira apresentação gráfica do Valle, de 1802, (ignoro os motivos que precedem a sua redação).
37. Na realidade, sabe-se que existia outro tipo de pastagem, aquele “não dividido”, que escapou do olhar tori-
nese. É o destino das pastagens “não divididas” que dará origem a uma particular configuração administra-
tiva, formando territórios municipais, conhecidos como “ilhas administrativas”, que caracterizam a região
Subalpina no panorama italiano.
ão
presenta, sozinha, um quarto dos Ducados, pagando apenas um sexto da carga fis-
uç
cal. Entretanto, esses não são os únicos critérios de identidade e de representação
od
existentes. Paralelamente, existem as confrarie di Santo Spirito, que podemos defi-
pr
nir como anfíbias, pois podem (e isso depende da confraria) tanto ter uma base can-
re
tonale (1 confraria = 1 oratório = 1 cantone), quanto prever uma base pluricantonale
a
(por exemplo, existe uma confraria, chamada de Santa Maria, que une os cantoni
da
de Pistolesa, da própria Santa Maria e de Valle Superiore: B+E+F). Outros cantoni são
bi
caracterizados por práticas de registro em comum: como, por exemplo, os de Valle
oi
Superiore e Valle Inferiore (D/F), que redigem os catasti em comum. A geografia das
Pr
paróquias não coincide de modo nenhum com aquela dos cantoni e das confrarie.
_
Além disso, existem algumas divisões e solidariedades geradas pelo uso de re-
or
t
cursos. Obviamente, é impossível neste texto dar conta do emaranhado, quase
au
as pastagens – em especial, aquelas localizadas nas partes altas – podiam ser arren-
s
totalidade das pastagens, seria superior àquele das partes individuais. Além disso,
ra
o fato de as pastagens, assim como os bosques, serem possuídas também pelas con-
pa
frarie e instituições de caridade com base cantonale ou intercantonale (mas não co-
ã o
munal), implica que sua venda por parte das comunas seja relativa a bens e direitos
rs
Os bosques, por exemplo, são utilizados para produzir madeira (cedui38). Esta é
_
-prima para a tinturaria. Ademais, tais aplicações contrastam tanto com o uso dos
bosques de faia para pastagem, quanto com o cultivo dos bosques de castanheiros,
e
tra
aos criadores, sobretudo do ponto de vista fiscal. Por fim, não devem ser esque-
38. N.T.: Bosque que é explorado periodicamente para obter madeira ou para explorar ramos, etc. deixando os
tocos para uma futura brotação.
ão
em presença do intendente da província de Biella, a extensão dos respectivos ter-
uç
ritórios.39 O uso legitimador do procedimento é tão partilhado que o intendente,
od
diante da dificuldade de impor mesmo um só dos critérios de divisão do território,
pr
propõe para as populações a possibilidade de escolha autônoma, tendo como resul-
re
tado um fracasso amplamente previsível. Por outro lado, o registro da negociação
a
de 1773 produz um documento, “sabaudo”,40 que comprova a jurisdição de Turim
da
sobre as instituições de caridade (formalmente eclesiásticas) e paroquiais e sobre o
bi
destino dos arrendatários criadores-empreendedores. Contudo, o processo fracas-
oi
sa, porque Turim escolheu os interlocutores errados: não é a comuna a ser unidade
Pr
territorial de base do Valle (e do território de Biella em geral), mas o cantone.
_
O cantone é o protagonista também das sucessivas transformações. Um estudo
or
inovador, que devemos a Franco Ramella (1984), mostrou como as populações dos
t
au
controle acontecia, tanto por intermédio de uma precisa forma de produção do-
s
vi
méstica quanto, mais tarde, atribuindo uma base parental-cantonale para o mer-
re
o objetivo era desfrutar do seu maior peso político (os Ducados) para obter uma
e
39. Somos devedores ao topógrafo G. Torreri, inspetor do Comissariado da Liquidação dos USI Cívicos pelo
Piemonte e o Valle D’Aosta, por ter encontrado isso, e outros extraordinários documentos. Exprimo aqui mi-
nha estima pelo seu trabalho de historiador (local), e espero que as cartas de seu arquivo sejam bens colocados
à disposição dos estudiosos.
40. N.T.: Relativo aos Savoia.
ão
os seus cantoni inferiores (e meridionais) tentam unir-se com o cantone situado ao
uç
longo do rio, no qual se estavam concentrando as novas atividades manufatureiras
od
(Valle Inferiore). Trata-se, visivelmente, de uma retomada de iniciativas das paren-
pr
telas que dominam os oito cantoni secessionistas. Esta questão encontrará sucesso
re
nas reformas territoriais fascistas, que, em 1934, procedem a uma aglomeração.41
a
A linguagem com base na qual os secessionistas ganham é aquela do ritual.
da
De fato, esses distritos, compostos por grupos parentais, deram vida a uma
bi
nova paróquia em 1954 e, ainda em 1963, o bispo de Biella incluía na jurisdição
oi
Pr
paroquial outro oratório com o distrito homônimo. O novo pároco tinha, mesmo
assim, a obrigação de levar para os oratórios a missa festiva e de confirmar as tra-
_
or
dições “antigas” em relação a sepulturas e casamentos (LEBOLE, 1972). É como
t
dizer que a presença de uma mais ampla unidade paroquial não deve desmentir a
au
apenas na esfera ritual, como também na esfera da caridade que constitui, desde
pa
séculos, – por intermédio das confrarie dello Spirito Santo – a identidade política lo-
cal. Quando os cantoni acima citados pedirem (em 1890-93) o desmembramento
ã o
de Croce, Valle Inferiore os apoiará, pois os seus habitantes participam já dos pri-
rs
vilégios assistenciais dos quais a rica comuna era detentora. A mudança do nome
Ve
em 1916 (de Valle Inferiore para Valle Mosso: D+H) parece traduzir esta mudança
_
são apresentadas outras, definidas como “topográficas”: o povoado das duas co-
munas mescla-se, formando “um único mosaico de construções (...) todos acredi-
e
tra
são aquelas “que reúnem toda a indústria de Pannilani (...) na esfera de influência
41. A natureza das reformas administrativas fascistas pedem uma verdadeira e profunda releitura, ao menos
daquele ponto de vista.
ão
neiro da modernidade, aquele que soube introduzir no vale as máquinas a vapor
uç
precursoras da nova industrialização, quando da sua morte, recebeu uma lápide
od
em Valle Mosso, o cantone industrial. Isso suscitou as reações dos excluídos, que
pr
se traduziram em um livro comemorativo. Houve quem propusesse erigir “pelo
re
menos quatro lápides” em sua homenagem, já que eram vários os cantoni que sua
a
existência havia influenciado. Aquele onde havia nascido (Valle Superiore, hoje Se-
da
lla di Mosso, na paróquia de Mosso Santa Maria), aquele em que havia desenvolvido
bi
suas atividades industriais (a “máquina Velha” a Croce Mosso) e aquele em que fora
oi
sepultado (Mosso Santa Maria).
Pr
De qualquer forma, não se trata de um passado esquecido, mas de um sistema
_
or
político ainda plenamente vigente: isto é, sugerido pela fusão das comunas de Pis-
t
tolesa e Mosso Santa Maria, iniciada no segundo pós-guerra e concluída com um
au
ção histórica da cidadania e à sugestão das lealdades territoriais por parte das ins-
s
tituições locais. Um episódio de 1835 ilustra bem esse aspecto: quando se decide
vi
re
lecer se a despesa com o cemitério deveria ter “por base o tributo predial, ou seja, a
população”. Nesse caso, “equidade e justiça” recomendam concordar com a popu-
ã o
8. O Valle Mosso e o Valsesia não podem ser, e certamente não são, os únicos
tra
42. Pesquisa de difusão com Mosso S. Maria (1998) depositada junto ao Assessorato di Enti Locali della Regio-
ne del Piemonte. (Foglio informativo”, p.5); Soprintendenza Archivistica per il Piemonte e la Valle d’Aosta,
s.v. Pistolesa. Um anônimo manifestava a convicção de uma iminente fusão dos dois municípios já em 1958.
ão
novas dinâmicas territoriais em pequena escala. Seremos capazes, também, de
uç
identificar sistemas políticos que ficariam, de outra maneira, sem nome, mas que,
od
mesmo assim, parecem capazes de incidir ainda hoje sobre a realidade política e
pr
administrativa. A produção histórica dos lugares, tão ativa nos vales piemonteses,
re
possui como protagonistas unidades sociais inesperadas e pouco conhecidas, que
a
não parecem dispostas a desaparecer e que, talvez, não conhecem a nostalgia. É o
da
momento de nos equiparmos para conhecer sua história, ao invés de nos surpreen-
bi
dermos frente às ações de um mundo que achamos difícil não considerar fantas-
oi
magórico, trocando-o cada vez mais por uma realidade residual ou xenófoba, ra-
Pr
cista ou progressista, que simplesmente ainda nos escapa.
_
t or
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