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Licenciatura

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História da Música e Artes I

A música Hebraica – breve abordagem

1. Contextualização
Antes de iniciar o estudo, ainda que superficial da música judaica, importa
contextualizar historicamente a formação do povo hebreu. Trata-se de um povo formado
na Palestina, a partir de tribos nómadas de origem caldaica1, que assimilou a cultura dos
povos semitas, que habitavam a região do Crescente Fértil.

A cultura deste povo demarcou-se dos restantes, devido à sua religião, de carácter
monoteísta. Ainda assim, não são de descurar uma série de influências resultantes dos
contactos incessantes (livres ou forçados), com os povos vizinhos, entre os quais se destacam
os egípcios e os povos da região da mesopotâmia.

2. Fontes de informação

Se uma parcela significativa das práticas musicais na civilização grega da antiguidade


clássica permanece, ainda hoje, desconhecida, relativamente à música hebraica a situação é
agravada pelos seguintes factores:

- Da música hebraica não nos chegaram nem exemplos de melodias notadas, nem
obras de teoria musical;
- Não chegaram à actualidade quaisquer testemunhos iconográficos de relevo,
dada a proibição hebraica de fazer imagens;
- Os únicos achados são constituídos por um conjunto relativamente escasso de
instrumentos musicais encontradas no decurso de trabalhos arqueológicos na
Palestina, na Mesopotâmia e no Egipto.

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A Caldeia era uma região situada no sul da Mesopotâmia, mais precisamente na margem
oriental do rio Eufrates. Frequentemente, os termos caldeu ou caldaico são usados em
referencia a toda a planície mesopotâmica.

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Não obstante a sua dispersão e os problemas colocados pelas diferentes
interpretações textuais, os testemunhos mais importantes são oferecidos por passagens
bíblicas, que fazem referência a diversas práticas de culto, ligadas à música e à dança. Para
alem disso, a Bíblia contém numerosos exemplos de cânticos (Cântico do Mar Vermelho,
Lamento de David, Salmos ...).

Outro importante recurso para o estudo da cultura musical Hebraica é o Mishnah


(repetição, estudo), a mais antiga compilação pós-bíblica da lei oral hebraica, de acordo com
a qual foi operado o desenvolvimento ético e legal do judaísmo.
O Mishnah encontra-se dividido em 6 partes:

- Zeraim (sementes), onde estão estipuladas as leis agrícolas;


- Moed (estações), no qual se encontram determinadas as festividades relativas ao
povo judaico;
- Nashim (mulheres), que define as leis relativamente ao casamento, ao divórcio,
ao direito da família, etc.;
- Neziquin (danos), que define as bases da jurisprudência civil e criminal;
- Qodashim (coisas sagradas), define as regras do culto e as leis associadas à dieta;
- Tohorot (purificações), que determina as práticas relativas à purificação
espiritual e aos rituais.

Deve salientar-se ainda a influente descoberta dos “Manuscritos do Mar Morto”,


escritos em Hebraico, Aramaico e Grego, e que foram descobertos entre 49 e 56 d.C.

Uma análise cuidada dos textos bíblicos possibilitará encontrar abundantes


referências a instrumentos musicais.

- Em Génesis 4, 21: Yubal aparece retratado como o “pai de todos os tocadores de


lira (kinnor) e de flauta (ugab)”.
- Os livros seguintes apresentam-nos uma classificação dos instrumentos em 3
categorias, associadas às classes sociais: os cornes e as trombetas, reservados aos
sacerdotes, os instrumentos de cordas (liras, harpas e saltérios) tocados pelos
levitas, pífaros e flautas de palheta associados às práticas do povo. Os idiofones,
entre os quais as campainhas (pa ‘amon) e os címbalos de bronze (zilzal)
aparecem referenciados como instrumentos utilizados no templo, enquanto os

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tambores (tof) são geralmente associados às danças e conjuntos femininos (Ex.
15:20; Juízes 11:34).
- Da generalidade dos instrumentos apontados pela Bíblia salienta-se o shofar, o
corno de carneiro tradicionalmente associado ao sacrifício de Isaac. Trata-se do
único instrumento musical utilizado ainda hoje nas sinagogas, uma vez que após
a destruição do templo de Jerusalém (70 d.C.), os restantes instrumentos não
são tocados, em sinal de luto.
- O shofar, instrumento propício à evocação de forças sobrenaturais, aparece
ligado à revelação divina no monte Sinai (Ex. 19, 16-19), à queda do muro de
Jericó (Josué 6, 4-5, 20) ou à procissão da arca da aliança (II Samuel 6,15);

- Os instrumentos mais frequentemente citados nas passagens bíblicas são o


kinnor, uma lira trapezoidal e o nebel, harpa em arco, ambos de origem assíria.
Estes instrumentos tornaram-se os principais utilizados no Templo de
Jerusalém, desde aproximadamente 1030 a.C.
- O culto, nesta altura centralizado no Templo de Jerusalém, era solenizado por
grandes conjuntos corais e instrumentais. O Talmude2 refere, como
instrumentação típica, um grupo de 12 instrumentos: 9 liras, 2 harpas e um
címbalo.
- A organização das práticas musicais associadas ao culto religioso era rigorosa: a
instrução dos músicos tinha lugar na academia anexa ao templo e a tradição

2
O Talmud é uma compilação, que data de 499 d.C., de leis e tradições judaicas, sendo
constituída por 63 tratados de assuntos legais, éticos e históricos.

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musical era transmitida no seio das famílias levíticas, no sentido de garantir a sua
continuidade.

3. A música no templo de Jerusalém

Como já foi referido, é no Templo de Jerusalém que a música atinge um elevado


nível de organização. O Templo foi projectado pelo Rei David (Século XI a.C.), embora a
sua construção tenha sido levada a cabo pelo seu filho, o Rei Salomão, entre 972 e 932 a.C.

O serviço religioso era executado por sacerdotes, levitas, cantores e porteiros. Cada
um destes grupos tinha funções bem definidas, e era sustentado pelo povo. Trata-se,
possivelmente, da primeira visão do acto de fazer música enquanto profissão.

Os cantores do Templo viviam em bairros em torno de Jerusalém, sendo dirigidos


por um chefe. A Bíblia refere um conjunto de 288 cantores, distribuídos por 24 classes (em
paralelismo com as classes sacerdotais).

Relativamente aos instrumentos musicais, alguns deles já citados, refira-se que o seu
uso se reduzia, quase exclusivamente, ao acompanhamento das vozes, executando uma
heterofonia característica (oitavas, ornamentos, etc.).

Os solos instrumentais teriam apenas funções simbólicas: os címbalos marcavam o


início do canto dos levitas, as trombetas assinalavam o início dos sacrifícios da manhã e o

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final de cada secção do canto, o shofar indicava o início do ano, etc. Segue-se um breve
esquema dos instrumentos musicais utilizados para o culto judaico:

Instrumentos Nevel – harpa grande, originalmente sem caixa de ressonância;


de cordas Kinnor – harpa pequena ou lira, também sem caixa de ressonância;
Shofar – espécie de corno, utilizado com funções simbólicas. Apenas permitido aos
sacerdotes, é o único símbolo que persiste actualmente nas sinagogas.
Hasoserah – trombeta comprida, também reservada aos sacerdotes
Instrumentos Uggav – flauta de pequenas dimensões.
de sopro Halil – espécie de gaita de grandes dimensões, correspondente ao monoaulos grego,
de som agudo e penetrante.
Alamoth – flauta dupla, correspondente a instrumentos similares, das culturas grega,
assíria e egípcia.
Tof – pequeno tambor;
Instrumentos
Selselim – címbalos;
de percussão
Paamonim – campainhas.

De acordo com a Mishnah, existia no Templo um verdadeiro conjunto orquestral


permanente, no qual o número de instrumentos e, consequentemente, de instrumentistas,
era estipulado. O mesmo documento (considerado para-bíblico) refere que o coro seria
constituído apenas por homens, em número ilimitado, mas nunca inferior a 12. Os
elementos do coro do templo deveriam fazer um estágio de pelo menos um ano.

Em 587 a.C., o Templo de Jerusalém foi destruído por Nabucodonosor. A


população hebraica foi deportada para a Babilónia, sendo que este exílio foi responsável
pela alteração profunda da vida dos Judeus. A utilização dos instrumentos no culto foi
suspensa, como sinal de luto, e o culto colectivo do Templo foi substituído por uma liturgia
de carácter domestico, que resultaria no aparecimento da Sinagoga enquanto instituição.

Em 515 a.C. o templo seria reconstruído. No ano de 70 d.C., foi novamente


destruído pelos romanos, apenas restando, na actualidade, o conhecido Muro das
Lamentações.

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Para além das aclamações da assembleia e das preces e leituras cantiladas pelos
sacerdotes, o repertório do templo consiste essencialmente num vasto conjunto de salmos,
poemas sacros de louvor, súplica ou aclamação acompanhados por um instrumento de
cordas.

Os 150 salmos da bíblia encontram-se reunidos no chamado Livro dos Salmos, ou


Saltério (Antigo Testamento). A sua autoria é tradicionalmente atribuída ao Rei David,
embora se saiba hoje que a sua maioria foi composta durante o cativeiro na Babilónia (séc.
VI a.C.), logo, quase meio milénio após a sua morte.

A salmodia (termo que define a prática de execução dos salmos) está intimamente
ligada à estrutura poética e sintáctica do texto dos salmos, caracterizada por duas partes,
denominadas hemistíquios. A entoação melódica organiza-se em torno de uma nota central
repetida, com breves ornamentações, executadas no início, no meio e no final de cada
versículo.

Este procedimento possibilita a fácil adaptação da melodia à extensão variável dos


versículos dos salmos. A execução dos salmos poderia assumir três formas distintas:

- A forma antifonal, na qual o canto era executado do início ao fim do salmo,


dividindo a assembleia em duas partes;
- A forma responsorial, caracterizada pela alternância entre o solista e a
assembleia;
- A forma directa, na qual apenas participa um solista.

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Para além dos salmos, aparecem na Bíblia outros poemas musicais, denominados
cânticos. Formalmente, estes cânticos podem ser classificados como salmos, uma vez que a
sua estrutura poético-musical é a mesma.

A par com a salmodia, merece especial destaque a cantilação (lectio biblica), uma
forma primária da música hebraica, que consiste na leitura entoada do Pentateuco, uma
parte da Bíblia escrita em prosa. Esta leitura é guiada por um conjunto de acentos próprios,
denominados teamin, que são colocados sobre ou sob o texto. Estes sinais não indicam nem
a duração nem a altura própria dos sons, tendo a função de pontuar o texto, influindo sobre
o modo de entoação do mesmo.

Relativamente ao sistema musical do povo hebreu, pouco se sabe em concreto.


Estudos de musicólogos como Sachs, Lachmann e Idelsohn apontam para uma estrutura
predominantemente modal e tetracórdica.

Referências bibliográficas

BOFFI, G. (2006). História da Música Clássica (p. 10-15). Lisboa: Edições 70.

BORGES, Maria José e CARDOSO, José Pedrosa (2008). História da Música: da Antiguidade ao
Renascimento (p. 13-17; 57-59). Lisboa: Edições Sebenta.

GROUT, J. e PALISCA, C.V. (2005). História da Música Ocidental (p. 34-36). Lisboa: Gradiva.

PÉRGAMO, A. M. L. (1988). La Música Tribal, Oriental y de las Antiguas


Culturas Mediterrâneas (p. 119-128). Buenos Aires: Ricordi.

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