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O GRITO PRIMAL - Arthur Janov A5
O GRITO PRIMAL - Arthur Janov A5
O GRITO PRIMAL
TERAPIA PRIMAL: A CURA DAS
NEUROSES
editora artenova SA
rua prefeito olímpio de melo, 1774
tels. pbx 228-7124 228-7125
end. telegráfico ARTNOVA
são cristovão rio gb
departamento jornalístico
departamento gráfico
departamento editorial
Mas existe uma pessoa que tornou possível este livro: minha esposa Vivian que, trabalhando
como diretora de treinamento no Instituto Primal, auxiliou-me na elucidação e no
desenvolvimento de muitas teorias cruciais.
Sumário
Alguns anos atrás eu ouvi algo que iria mudar o curso de minha vida
profissional e as vidas de meus pacientes. O que ouvi, e que mudou a
natureza da psicoterapia atual, foi um grito fantástico que irrompeu de
dentro de um jovem, deitado no chão, durante uma sessão de terapia, e
que só podia ser comparado ao que escapa de uma pessoa prestes a ser
assassinada. Este livro é sobre aquele grito e o seu significado no
esclarecimento dos segredos das neuroses.
O jovem que emitiu o grito será aqui chamado de Danny Wilson, um
estudante de vinte e dois anos. Ele não era psicótico e nem tampouco
histérico. Era um estudante medíocre, ensimesmado, susceptível e calado.
Durante uma pausa em nossa sessão de terapia de grupo, ele nos contou a
história de um homem chamado Ortiz que representava nos palcos
londrinos uma peça na qual ele se apresentava de fraldas, bebendo leite na
mamadeira. Durante todo o espetáculo Ortiz gritava: "Mamãe! Papai!
Mamãe! Papai!" em altos brados. No final do ato ele vomitava. Oferecia -
se, então, aos espectadores sacos plásticos para que pudessem seguir o
exemplo do ator.
A fascinação de Danny pela peça levou-me a uma tentativa elementar, que
antes não me ocorrera. Pedi-lhe que gritasse "Mamãe! Papai!" Ele recusou,
alegando que não via sentido em tal criancice, coisa com a qual eu
concordava. Mesmo assim insisti e ele acabou cedendo. Quando começou
a chamar pelos pais, foi se transformando. Subitamente pôs-se a
espernear, contorcendo-se no chão, em agonia. Sua respiração era rápida
e espasmódica: "Mamãe! Papai!" gritava quase involuntariamente, em
altos brados. Parecia estar em estado de coma ou de hipnose. As
contorções foram substituídas por pequenas convulsões, até que
finalmente ele soltou o grito de agonia mortal, lancinante, que abalou as
paredes de meu consultório. Todo esse episódio durou apenas alguns
minutos, e nem Danny nem eu tivemos uma noção exata do que
acontecera. Tudo que ele depois conseguiu dizer foi o seguinte: "Consegui!
Não entendo muito bem, mas sinto-o!"
O que acontecera com Danny deixou-me perplexo durante meses. Eu já
fazia terapia de insight havia dezessete anos, como assistente social
psiquiátrico e como psicólogo. Trabalhei numa clínica psiquiátrica
freudiana e também num departamento da Administração dos Veteranos,
de tendência menos freudiana. Durante muitos anos fiz parte da equipe do
departamento de psiquiatria do Hospital Infantil de Los Angeles. Nunca,
durante todo esse tempo, havia presenciado coisa semelhante. Como eu
gravara a sessão de grupo naquela noite, tive oportunidade de ouvir várias
vezes o que se passara durante os meses seguintes, numa tentativa de
entender o que havia acontecido. Mas tudo foi inútil.
Algum tempo depois consegui afinal compreender um pouco mais.
Um homem de trinta e nove anos, a quem chamaremos de Gary Hillard,
contava com muito sentimento como seus pais o criticavam, não podendo
amá-lo e prejudicando-lhe a vida. Insisti com ele para que gritasse por eles.
Resistiu, dizendo que sabia que não o amavam, e portanto não fazia sentido
chamar por eles. Pedi-lhe que satisfizesse o meu capricho. Meio
contrariado ele começou a chamar "Papai! Mamãe!" Logo sua respiração
acelerou-se, ficando mais profunda. Seu apelo transformou-se em uma
representação involuntária, na qual ele se contorceu em convulsões, até
chegar a um grito.
Ambos ficamos chocados. O que eu pensara ser um acidente, uma
idiossincrasia de um paciente, acabava de se repetir de um modo idêntico.
Mais tarde, quando se acalmou, Gary sentiu-se inundado de insights. Disse-
me que toda sua vida parecia subitamente tomar um sentido. Esse homem,
geralmente sem sofisticação, começou a se transformar diante de meus
olhos numa outra pessoa. Tornou-se alerta. Seu aparelho sensorial
desabrochou. Parecia compreender o que se passava com ele.
Em virtude da semelhança das duas reações, comecei a ouvir cada vez mais
com maior atenção as gravações que fizera das duas sessões. Tentei
analisar quais os fatores comuns ou quais as técnicas que haviam produzido
tais reações. Vagarosamente comecei a perceber um certo significado.
Durante os meses seguintes tentei várias modificações e táticas para pedir
aos pacientes que chamassem por seus pais. Todas as vezes repetiu-se o
resultado dramático. Agora eu entendo que aquele grito é a consequência
da dor central e universal que habita todos os neuróticos. Chamo-a de Dor
Primal por ser a dor original, primeira, sobre a qual crescem as neur oses
posteriores. Em minha opinião essa dor persiste permanentemente em
todo o neurótico, seja qual for a forma de sua neurose. Ela geralmente não
é consciente sendo difundida através de todo o organismo e afetando os
órgãos, os músculos, o sistema venoso e linfático e, finalmente,
destorcendo nosso comportamento.
A Terapia Primal tem por objetivo erradicar tal dor. É uma terapia
revolucionária porque implica no desmoronamento do sistema neurótico
em virtude de um impacto brutal. Na minha opinião as neuroses só podem
ser eliminadas por um processo como esse.
A Terapia Primal é um desenvolvimento de minhas observações a respeito
dos motivos das transformações específicas. Devo acentuar que nenhuma
teoria precedeu à experiência clínica. Quando observei Danny e Gary
contorcendo-se no chão vitimados pela Dor Primal, eu não sabia como
encarar tal fenômeno. A teoria foi ampliada e aprofundada pelos
frequentes relatórios dos diversos pacientes que foram curados das
neuroses. Esse livro é um convite para a exploração da revolução que eles
começaram.
1 - O PROBLEMA
1
D. Krech, C. Bennett, M. Diamonde M. Rosenzweig, "Chemical and Anatomical Plasticity of
Brain", Science, Vol 146 (outubro de 1964), pp. 610-1 9.
A neurose não começa no momento em que a criança suprime seu primeiro
sentimento, mas podemos dizer que o processo neurótico começa então.
A criança fecha-se por etapas. Cada repressão e negação de uma
necessidade faz com que a criança se feche um pouco mais. Acontece,
então, um momento em que ocorre uma mudança crítica na qual a criança
se desliga, na qual ela é mais falsa do que verdadeira, e ao atingir esse
ponto crítico nós podemos considerá-la neurótica. Daí em diante ela
operará em um sistema de personalidade dupla. O verdadeiro eu são as
necessidades e os sentimentos do organismo. O falso eu é o disfarce desses
sentimentos e vai se transformar na fachada que é necessária aos pacientes
neuróticos a fim de conseguirem satisfazer suas próprias necessidades. Pais
que se sintam inseguros por terem sido constantemente humilhados por
seus pais, podem exigir dos filhos um respeito e uma submissão total. Um
pai imaturo pode exigir que o filho cresça rapidamente, a fim de poder fazer
o seu trabalho, e a criança torna-se, então, adulta, muito antes de estar
pronta para tal, para que o pai continue a ser cuidado como criança.
As exigências que tornam a criança falsa nem sempre são muito explícitas.
No entanto, a necessidade de ter pais é uma exigência implícita da criança.
A criança nasce de uma necessidade dos pais e começa a lutar para atendê-
los desde o momento em que nasce. Ela pode ser obrigada a sorrir (para
parecer feliz), a balbuciar, a acenar com as mãos, a sentar e a andar, antes
do tempo, para que os pais possam dizer que têm um filho esperto. À
proporção que a criança se desenvolve, essas exigências vão se tornando
mais complexas. O menino terá que ser bom aluno, terá que ser prestativo
e ajudar nas tarefas domésticas, terá que ser calmo e sem exigências, não
deverá falar demais, deverá dizer coisas muito inteligentes e praticar
atletismo. O que não poderá fazer é ser ele mesmo. A grande quantidade
de transações que ocorrem entre as crianças e seus pais negarão a
necessidade Primal natural da criança e ela sofrerá com isso, não podendo
ser quem é e ser amada. A essas dores profundas eu chamo de Dor Primal
(ou Dores). A Dor Primal engloba as necessidades e sentimentos que são
reprimidos ou negados pela consciência, fazendo sofrer por não poderem
ser exprimidos ou satisfeitos. Todas essas Dores podem ser resumidas
nesta frase:
Eu não sou amada e nem posso ter esperança de receber amor enquanto
for eu mesma.
Cada vez que uma criança não é acalentada quando necessita sê -lo, cada
vez que se exige seu silêncio, cada vez que é ridicularizada, ignorada ou
obrigada a um comportamento além de sua capacidade, aumenta o volume
de seu poço de sofrimentos, que chamo de Poço Primal. Cada adição a este
poço torna a criança mais falsa e neurótica.
À proporção que aumentam os assaltos ao sistema, a verdadeira
personalidade começa a ser destruída. Um dia acontecerá alguma coisa
que, mesmo não tendo um conteúdo traumatizante, poderá perturbar o
equilíbrio entre o eu falso e o verdadeiro, tornando a criança neurótica. A
tal acontecimento eu dou o nome de Cena Primal principal. É nessa época
da vida da criança que todas as humilhações passadas, as negações, as
privações se somam numa compreensão incipiente: "Não há esperança de
ser amado pelo que sou." Então ela se defende contra essa catastrófica
descoberta, dissociando-se de seus sentimentos, e entregando-se à
neurose. Essa descoberta não é consciente, e a criança até começa a
comportar-se, tanto em casa como socialmente, do modo desejado pelos
pais, falando e fazendo como eles. Quando se comporta desse modo, está
agindo de forma falsa, isto é, não age de acordo consigo mesmo, com suas
próprias necessidades e desejos. Dentro de pouco tempo o comportamento
neurótico se torna automático.
A neurose implica no desligamento, no split, dos próprios sentimentos.
Quanto maior for a violência dos pais sobre a criança, mais profund o será
o abismo entre o eu verdadeiro e o falso. A criança começará a andar do
modo indicado, só tocará seu corpo nas áreas permitidas, não será
exuberante ou triste, conforme a exigência, e assim por diante. O split é,
contudo, necessário a uma criança fraca. É o modo reflexivo (isto é,
automático) do organismo manter sua sanidade. A neurose é pois a defesa
contra a catástrofe da realidade a fim de proteger o desenvolvimento e a
integridade psicofísica do organismo.
A neurose implica em ser o que não se é, a fim de se obter o que não existe.
Se existisse amor, a criança seria o que é, pois é isso o amor: deixar que a
pessoa seja aquilo que é. Portanto não é necessário acontecer nada
terrivelmente traumatizante para produzir uma neurose, já que ela pode
aparecer quando se força uma criança a dizer "por favor" e "obrigada"
sempre que pronunciar uma frase, a fim de provar que seus pais são
pessoas finas e educadas. Também pode aparecer como uma consequência
de não se permitir que a criança se queixe ou chore quando se sente infeliz.
Os pais podem se precipitar para a criança e consolá-la por ansiedade.
Podem não permitir que demonstre raiva, "meninas bem educadas não
fazem cenas", "meninos bem educados não respondem aos mais velhos".
Também pode ser uma fonte de futuras neuroses o hábito de se exigir da
criança que recite poesias nas reuniões em casa de amigos, ou de obrigá -la
a resolver problemas abstratos. Qualquer que seja a forma que tome a
exigência, a criança logo compreenderá o que se espera dela. Ou concorda,
ou então é castigada: não recebe amor, ou o que passa por ser amor,
aprovação, carinho, um sorriso. A criança acaba habituando-se a
representar e sua vida se transforma em um ritual a serviço das exigências
paternas.
O que causa o split é o amargo desespero de não ser nunca amada. A
criança tem, então, que negar essa compreensão de que suas necessidades
não serão nunca satisfeitas, por mais que se esforce. Ela não pode viver
sabendo que é desprezada ou que ninguém está realmente interessado
nela. Para ela é intolerável saber que não há um meio de fazer com que o
pai seja menos crítico e a mãe mais amorosa. A única maneira que encontra
para se defender disso tudo é desenvolvendo necessidades substitutas que
são neuróticas.
Tomemos como exemplo um menino que está sempre sendo censurado
pelos pais. No colégio ele poderá falar sem parar (e sofrer a repreensão do
professor); no recreio ele poderá se vangloriar ininterruptamente
(alienando as outras crianças). Mais tarde, poderá desenvolver um desejo
incontrolável e exigir em altos brados algo que seja tão patentemente
simbólico (para os que o observam) como "a melhor mesa do salão" em um
restaurante de luxo.
O lugar na mesa não poderá desfazer a "necessidade" que ele tem de se
sentir importante. Se assim for ele não precisará comportar-se de tal forma
toda vez que entrar num restaurante. Dissociado de sua verdadeira
necessidade inconsciente (a de ser reconhecido como um ser humano
digno de atenção), ele procura dar "sentido" à sua existência sendo
cumprimentado pelo nome nos vários restaurantes e hotéis de luxo que
frequenta.
As crianças nascem, pois, com necessidades biológicas reais 2 que, por um
ou outro motivo, seus pais deixam de satisfazer. Pode ser que alguns pais
e mães não reconheçam as necessidades de seus filhos ou que tais pais,
com o desejo de não cometerem qualquer erro, sigamos conselhos de
alguma célebre autoridade em educação e só segurem os filhos em horas
certas, alimentando-os pelo relógio, com uma pontualidade que faria
inveja a uma companhia de aviação, desmamando-o segundo uma tabela
prescrita, e educando suas necessidades fisiológicas o mais cedo possível.
No entanto eu não acredito que a ignorância ou a metodologia possam ser
responsáveis pela prodigiosa safra de neuroses que a humanidade vem
produzindo desde que a história começou. A principal razão das crianças
tornarem-se neuróticas, segundo pude descobrir, é que seus pais estão
empenhados em uma luta contínua contra suas próprias necessidades
infantis insatisfeitas.
Sendo assim uma mulher pode engravidar a fim de ser acalentada, que é
realmente o que ela sempre quis durante toda sua vida. Enquanto for o
centro de atenção, ela sentir-se-á feliz. Quando tiver a criança, poderá
sentir-se deprimida. A gravidez servirá à sua necessidade, não tendo
relação alguma com o parto de um novo ser humano sobre a terra. A
criança poderá até sofrer por ter nascido, privando sua mãe de gozar a
única época de sua vida em que conseguiu fazer com que outras pessoas se
2
Muitos pais cometem o erro de não tirar do berço a criança com medo de "estragá-la", e é
exatamente isso que acontece quando a ignoram. Mais tarde a criança irá exigir deles, de um
modo insaciável, substitutos simbólicos desses gestos, até o momento em que os pais se cansem
de atendê-la. E a consequência disso é tanto inevitável como terrível .
interessassem por ela. Como ela não está preparada para a maternidade,
seu leite poderá secar, deixando o recém-nascido com a mesma sensação
de privação que ela mesma sentiu.
Dessa maneira os pecados dos pais recairão sobre os filhos em um ciclo
aparentemente interminável.
Eu chamo de luta a tentativa da criança para agradar aos pais. Essa luta
começa com os pais e mais tarde se generaliza e abrange todo o mundo,
espalhando-se para além da família pois o indivíduo carrega consigo suas
necessidades insatisfeitas, que têm de ser equacionadas. Ele procurará pais
substitutos com os quais representará seu drama neurótico, ou fará com
que qualquer pessoa (até mesmo seus filhos) tome o lugar dos pais que
satisfarão suas necessidades. Se o pai foi um indivíduo reprimido, que
nunca pôde manifestar-se verbalmente, seus filhos saberão ouvi-lo. Eles, a
seu turno, sendo obrigados a ouvir, procurarão alguém que os ouça para
satisfazerem sua necessidade suprimida. Esse alguém poderá muito bem
ser o seu próprio filho.
O campo da luta pode se transferir da necessidade verdadeira para a
neurótica, do corpo para a mente, pois as necessidades mentais ocorrem
quando as necessidades básicas são negadas. Mas as necessidades mentais
não são necessidades reais. Em verdade, não existem necessidades
puramente psicológicas. As necessidades psicológicas são necessidades
neuróticas porque não atendem às verdadeiras exigências do organismo.
Por exemplo, o homem que tem que ter a melhor mesa do restaurante para
se sentir importante está agindo baseado em uma necessidade que se
desenvolveu devido à falta de amor em sua vida, porque seus esforços
verdadeiros foram ignorados ou suprimidos. Ele pode ter necessidade de
ser reconhecido pelo nome pelos maîtres porque anteriormente ele era
apenas mencionado numa categoria como "filho". Isso quer dizer que ele
foi desumanizado pelos pais e está tentando obter simbolicamente uma
reação humana através de outras relações. Se tivesse sido tratado por seus
pais como um ser humano único, seria menor sua necessidade de se sentir
importante. O que o neurótico faz é dar rótulo novo (a necessidade de se
sentir importante) às antigas necessidades inconscientes (ser prezado e
amado). Com o tempo eles acabarão acreditando que esses rótulos são
sentimentos verdadeiros e que sua busca é necessária.
A fascinação de vermos nossos nomes em letreiros luminosos ou nas
páginas de publicações é uma das indicações de uma profunda privação de
reconhecimento como indivíduo. Essas realizações, não importando seu
valor real, são uma busca simbólica do amor dos pais. A luta passa a ser a
tentativa de agradar a uma determinada plateia.
É essa luta que faz com que uma criança não se sinta impotente. Ela pode
ser representada pelo excesso de zelo nos estudos ou no atletismo. A luta
é a esperança do neurótico de receber amor. Em vez de ser ele mesmo, ele
luta para ser uma outra versão de si mesmo. Mais cedo ou mais tarde a
criança passa a acreditar que essa versão é o seu verdadeiro eu. O "ato" já
não é mais voluntário e consciente mas sim neurótico.
A Cena Primal
3
A esperança é amplamente inconsciente e geralmente nem é percebida. Ela é, em verdade,
exteriorizada na luta.
aparentemente sem gravidade ou uma pequena surra pode ser
subjetivamente tão traumatizante como ser mandada para o orfanato.
O Eu Verdadeiro e o Falso
4
E. H. Hess e J. M. Polt, "Pupil Size in Relation to Interest Value of Visual Stimuli", Science, Vol.
132 — 1960.
estímulo doloroso depois de hipnoticamente informadas que nada
sentiriam. Diziam então não sentir dor alguma, embora todas as medidas
físicas indicassem que estavam reagindo a ela. Em outras experiências
ocorriam mudanças eletroencefalográficas em pessoas hipnotizadas e
submetidas à dor embora informassem nada sentirem. 5
O que isso indica em termos de Teoria Primal é que o corpo e o cérebro
estão constantemente reagindo à dor, até mesmo quando a pessoa não se
dá conta que está sendo atacada por ela. As medições fisiológicas mostram
que os corpos das pessoas continuam a reagir aos estímulos dolorosos
mesmo depois de estarem sob a ação de analgésicos. A reação física à dor
e o fato de a percebermos são dois fenômenos distintos.
Quando o corpo reage fechando-se contra uma dor intolerável, ele precisa
de alguma coisa para conservar escondidas e suprimidas as Dores Primais.
A neurose desempenha essa função. Ela desvia o sofredor de sua Dor
incutindo-lhe esperança, isto é, sobre o que ele pode fazer para satisfazer
suas necessidades. Uma vez que o neurótico tem necessidades tão
urgentes, embora não realizadas, suas percepções e cognições devem ser
afastadas da realidade.
O conceito do bloqueio da dor é importante para a minha hipótese, porque
eu acredito que o sentimento, ou a sensação, é unitário, é um processo
total do organismo, e quando nós bloqueamos grandes sensações críticas
como as Dores Primais, nós estamos também criando dificuldades à nossa
possibilidade de sentir.
As sensações primais são como um depósito gigantesco de onde nos
servimos. As neuroses são o tampo desse depósito. Elas servem para
suprimir quase todas as sensações, todos os prazeres e todas as dores. É
por isso que todos os pacientes que já passaram pela Terapia Primal dizem
sempre que já estão novamente em condições de sentir. Dizem que
realmente sentem prazer novamente, pela primeira vez desde a infância.
Essa noção de um depósito de Dor dentro do neurótico é mais alguma coisa
5
T. X. Barber e J. Coules, "Electrical Skin Conductance and Galvanic Skin Response During
Hypnosis", International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, Vol. 7 (1959).
do que uma simples metáfora, pois é o que geralmente dizem os pacientes
Primais de uma forma ou outra, como se carregassem dentro deles um
depósito de dor devidamente esterilizado. Por exemplo, cada vez que o pai
espanca o filho, o que ele sente é: “Papai, por favor, seja bom para mim!
Por favor, não me faça ter medo de você!'' Acontece, porém, que a criança
não diz isso por diversas razões. Geralmente ela está tão preocupada com
a situação que não chega a se dar conta de seus sentimentos, e mesmo que
se desse, a sua sinceridade ao confessar ao pai que tem medo dele
redundaria talvez em um maior castigo. Sendo assim, ela esconde seus
sentimentos mostrando-se mais disposta a submeter-se, a agradar
comportando-se com mais delicadeza.
As Dores Primais vão-se armazenando uma a uma em lâminas empilhadas
de tensões que procuram libertar-se, mas isso só pode acontecer desde
que haja ligações com suas origens. Não será preciso reviver cada
incidente, mas é preciso que exista a sensação geral ligada aos
acontecimentos. No caso acima, quando a sensação está ligada ao pai, a
pessoa será bombardeada com uma lembrança depois da outra, de quando
teve medo de seu pai, já que todas elas estão armazenadas no “depósito."
Isto é uma prova da existência de Cenas Primais de importância capital que
representam muitos acontecimentos, cada um deles ligados à sensação
central.
O processo Primal é um esvaziamento metódico do depósito das Dores.
Quando o depósito se esvazia eu considero a pessoa curada.
Por baixo de todas as Dores Primais está a necessidade de sobreviver. A
criança faz o que os pais mandam tentando agradar-lhes. Um paciente
explicou: "Eu me eliminei de mim mesmo. Matei o pequenino Jimmy
porque ele era bruto, selvagem e barulhento e eles queriam uma coisa
mansa e delicada. Fui obrigado a livrar-me de Jimmy para poder sobreviver
com os pais loucos que tinha. Matei o meu melhor amigo. Fiz um mau
negócio, mas não podia fazer outra coisa."
Desde que nós somos seres humanos unificados, o verdadeiro eu sempre
virá à superfície para estabelecer essas ligações mentais. Se não houvesse
uma necessidade intrínseca de ser íntegro, então poderíamos nos descartar
em definitivo do verdadeiro eu que ficaria tranquilamente dentro de nós
sem jamais tentar intrometer-se no nosso comportamento. O que alimenta
a neurose é a necessidade de ser novamente íntegro, a necessidade de
sermos nós mesmos. O eu que não é real representa uma barreira,
representa o inimigo que deve ser finalmente destruído.
É preciso um grande esforço de parte do Terapeuta Primal para obrigar o
organismo a repetir as Dores primeiras. Por mais que o paciente deseje ver -
se curado, existe sempre uma forte resistência contra a possibilidade de
sentir novamente todas aquelas sensações dolorosas. Aliás, muitos
pacientes sentem medo pensando que vão ficar loucos quando estão à
beira de novamente sentir essas Dores.
Para os nossos propósitos, o aspecto mais significativo da Dor Primal é que
ela permanece encapsulada internamente tão pura e intensa como no dia
em que começou. Permanece a salvo das contingências da vida quaisquer
que tenham sido os acontecimentos. Pacientes com quarenta e cinco anos
de idade continuam a experimentar as mágoas primitivas com a mesma
intensidade devastadora, como se lhes estivesse acontecendo pela
primeira vez aquilo que já lhes acontecera quarenta anos antes. E eu
realmente acredito que assim seja. A Dor nunca foi sentida em toda a sua
extensão pois foi abortada e oculta antes que todo o seu impacto se fizesse
sentir. Mas essa Dor é terrivelmente paciente. Fica nos acicatando,
mostrando-nos que ainda existe, pelas formas mais sutis durante toda a
nossa existência. Raramente pedirá para ser libertada.
O que é mais comum é a Dor passar a fazer parte da tessitura do sistema
da personalidade, onde continua sem ser sentida e até mesmo
irreconhecível. É então que o sistema neurótico faz surgir a Dor.
Isso acontece automaticamente, já que a Dor precisa ser liberada de
alguma maneira, seja ela reconhecida ou não. Essa liberação pode vir
naquele sorriso perpétuo que diz "Seja bom para mim" ou na doença física
que importuna com um "cuide de mim." Pode também mostrar-se
ostensivamente numa reunião social para dizer “tome conta de mim,
papai!" Qualquer que seja a posição atingida por um homem, por mais que
estejam amadurecidas as suas defesas, sempre que arranho um pouco o
verniz da superfície, eu logo encontro por baixo uma criança magoada.
Faço questão de chamar a atenção para o fato da experiência com a Dor
Primal não ser apenas tomarmos conhecimento dela. É o fato de se tratar
da Dor. Uma vez que somos entidades psicofísicas, eu acredito que
qualquer método que separe essa unidade está destinado ao fracasso. As
clínicas dietéticas, as clínicas de locução e até mesmo as clínicas de
psicoterapia são exemplos de isolamento de sintomas para tratá -los como
se fossem isolados do sistema total. A neurose é tanto uma doença
emocional como mental. Para ficar novamente em forma é necessário
reconhecer e sentir o split e soltar o grito que signifique a ligação para
tornar a pessoa novamente unificada. Quanto mais intensamente for
sentido o split mais intensa e intrínseca será a experiência da unificação.
A hipótese Primal se relaciona com o Conglomerado da Dor Primal em tudo
aquilo que nos dói hoje e que não esteja conforme a realidade. A existência
desse conglomerado é o que faz com que as sensações desagradáveis
permaneçam por mais tempo do que seria de se esperar de alguma coisa
trivial embora desagradável.
Nós todos, certamente, conhecemos pessoas de mau gênio que já
amanhecem hostis sem qualquer razão aparente. De onde lhes vêm tais
sentimentos diários? Eu acredito que se abastecem no reservatório das
sensações Primais.
Tudo aquilo que rompe a frente irreal atinge esse conglomerado e produz
uma Dor sempre crescente. Temos um exemplo na paciente cuja mãe
sempre lhe fazia sentir que não era bonita, cujo namorado achava e dizia
com toda a naturalidade que seus bonitos olhos azuis não combinavam com
seus cabelos negros. Essas coisas todas insignificantes despertaram nela o
sentimento de estar sendo rejeitada e do qual não conseguia se livrar,
mesmo sabendo que ninguém lhe queria mal. Usei essa situação para poder
chegar até à sua Dor a que chamo de Primal.
Uma pessoa pode receber dezenas de cumprimentos e elogios numa noite,
mas uma pequena crítica praticamente liquidará todos eles porque terá
servido para despertar sentimentos desde muito guardados de ser ela
desprovida de valor, desprezada, mal querida, etc. Muitas vezes os
neuróticos são atraídos para as pessoas que gostam de criticar,
simplesmente porque podem lutar simbolicamente com representantes de
pais críticos para resolver então problemas anteriores. Esse é o mesmo
processo dinâmico pelo qual alguém pode se ligar a uma pessoa fria e
alheada para, por meio dela, tornar os pais simbolicamente mais calorosos.
Essa é a essência da luta neurótica, ou seja, arquitetar uma situaç ão que se
pareça com a de sua casa para tentar então resolvê-la; casar com um
homem fraco e provocá-lo para tornar-se forte; encontrar um homem forte
e castigá-lo impiedosamente até ele tornar-se fraco e impotente. Por que
será que as pessoas simbolicamente “casam-se" com suas “mamães" ou
“papais"? É para transformá-los em pessoas reais e amadas. Já que isso não
pode acontecer, o resultado é que a luta continua.
Podemos, no entanto, chegar a uma dúvida nesse ponto. “Como vamos
saber que o neurótico sofre realmente uma intensa dor?" Em todos os
casos que vi, independentemente do diagnóstico psiquiátrico, a Dor só
surge depois que a defesa tenha sido esmagada. A Dor está sempre
presente e encontra- se espalhada em todo o corpo num estado tenso
generalizado.
Mas poderá surgir ainda uma outra dúvida. “Como podemos saber que a
pessoa não está simplesmente reagindo ao mal que lhe causa o terapeuta?"
Em primeiro lugar, o terapeuta não causa nenhum mal. É o ataque à defesa
que permite ao paciente sentir a si mesmo, as suas necessidades, seus
desejos e suas mágoas. Segundo, logo que a maior parte da barreira
pensamento-sensação é destruída, a sensação desponta constantemente
de forma espontânea. Terceiro, a dor leva o paciente imediatamente de
volta à sua vida e quase nunca se centraliza no terapeuta.
Por uma curiosa deturpação da razão, nós chegamos ao ponto de acreditar
que aquele que mais tolera a dor é, sem dúvida, o mais forte e o mais
virtuoso. A pessoa que sofre em silêncio é um homem de verdade, é um
durão. No entanto, acontece justamente o contrário, pois o homem que
não é de verdade é quem melhor suporta porque está imune à dor. O que
parece estarmos dizendo é que aquele que mais se sacrifica, que melhor
sabe sofrer, é certamente o ganhador da Corrida Neurótica. Parece existir
uma relação direta entre o autossacrifício e a virtude no homem ocidental,
não somente na nossa vida religiosa onde se exalta a renúncia como
também no costume do homem comum que trabalha duro para sustentar
a família e que talvez morra moço ainda devido ao sacrifício. Essa pessoa
que não encontrou tempo para cuidar de si mesmo, que sempre se
sacrificou, termina a sua vida num autossacrifício. É somente nesse
sentido, creio eu, que se poderia dizer que a irrealidade mata.
4 - A DOR E AS LEMBRANÇAS
Quando o neurótico sofre seu primeiro split, parece que surge uma divisão
no seu sistema de lembranças. Existem lembranças reais que estão
armazenadas junto com a Dor e outras associadas ao sistema irreal. A
função do sistema irreal é separar, filtrar ou bloquear as lembranças que
possam causar a Dor. Cada nova Cena Primal força a criança muito nova a
apagar um pouco a sua experiência, de forma que cada Dor grande tem em
torno dela um aglomerado de associações que são bloqueadas excluindo -
se da plena consciência. Quanto maior for o trauma maiores serão as
probabilidades que ele venha afetar alguns aspectos das lembranças.
A hipótese Primal é que essas lembranças estão armazenadas junto com a
Dor e que reaparecem quando ela é sentida. Os pacientes Primais estão
sempre encontrando surpresas na forma como a terapia consegue reavivar
as lembranças. Houve um caso em que uma mulher começou a sua terapia
revivendo experiências de seus seis meses de idade e em todos os dias
subsequentes durante o tratamento, ela ia revivendo o ano seguinte até
chegar à sua idade na ocasião. Durante todas as sessões as suas lembranças
iam aumentando muito, sem contudo ultrapassar a idade que estava sendo
objeto de exame naquele dia. Assim, quando se lembrava de haver ficad o
no berço, ela também lembrava-se da casa em que morava naquela
ocasião, de seus avós virem brincar com ela e de seu irmão beliscando -a
quando ela não podia reagir.
A lembrança está intimamente associada à Dor. Existe a tendência para se
esquecer aquelas que são por demais dolorosas para serem integradas e
reconhecidas conscientemente. É por isso que o neurótico tem lembranças
incompletas em algumas áreas críticas.
Vou citar algumas sessões em que pacientes reviveram Cenas Primais. Cena
número um: Uma professora primária de trinta e cinco anos vai
desdobrando a cena num crescente frenesi. Está sendo levada num
carrinho pelo corredor. Está escuro. Está sendo carregada para a cama. Está
só. Solta um grito. (Nessa altura ela se curva como se tivesse sido ati ngida
na barriga.) Meu Deus! Vou ficar três anos na cama. Não aguento! Não
aguento!
Essa cena aconteceu na sua lembrança durante o quarto mês da terapia.
Chegara perturbada naquele dia sem saber a razão. À medida que falava e
sentia, sua perturbação aumentava e começou então a falar na terceira
pessoa. "Ela está sendo levada no carrinho pelo corredor." De repente
curvou- se ao mesmo tempo que passava da terceira para a primeira
pessoa. Ocorrera a mudança do eu dividido para o eu singular. E quando
gritou "Não aguento!" já estava se contorcendo de dores. O dia a que ela
se referia era quando havia constatado estar sofrendo de reumatismo
cardíaco e ficara na cama desde os cinco até os oito anos. Aquilo era uma
experiência tão tremenda que ela recorreu ao split para torná-la mais
tolerável, e desde então viu-se vivendo como se fosse duas pessoas
diferentes. Aquilo era como se dissesse: "Isto não está acontecendo
comigo. Está acontecendo com ela."
(Como mostrei acima, nem toda Cena Primal envolve diretamente os pais,
mas se eles forem bons e dedicados, então, qualquer que seja o trauma, eu
acredito que não haverá um split neurótico. Recordo-me da mulher que
lembrava-se das bombas caindo no seu orfanato na fronteira da Itália com
a Iugoslávia. O seu sentimento principal ainda era: "Estou com medo,
mamãe. Onde está você? Volte para me proteger, por favor!" Ela discutiu
esse ponto depois da Primal e disse que a guerra exercera sobre ela um
efeito terrível pois não tinha quem lhe explicasse o que estava
acontecendo, ninguém para agasalhá-la ou protegê-la. Não conseguia se
aguentar sozinha numa idade tão tenra.)
A cena descrita pela mulher com o reumatismo cardíaco era apenas uma
lembrança muito apagada. Lembrava-se de colorir livros, de tomar o leite
na cama, mas nada de substancial. A Dor havia carregado com ela os
aspectos mais profundos das lembranças levando-as para uma área
submersa. Depois de reviver essa cena, ela disse que sentia os músculos da
perna e os ossos dos pés. Reconheceu, de repente, por que sempre e vitara
tudo que era físico em sua vida. Ela havia realmente amortecido não
somente o desejo consciente como também as pernas que serviriam para
satisfazer os seus instintos de correr e brincar.
Foram necessários quatro meses de terapia para despertar essa s
lembranças, mas quando isso aconteceu, tudo foi quase automático, como
se o corpo já estivesse pronto para suportar uma Dor ainda maior e resistir
galhardamente ao impacto. As lembranças vieram no sentido contrário de
como haviam começado. Primeiro havia a lembrança de uma experiência
de split na qual ela conta o que era e o que estava lhe acontecendo. Depois
vieram partes fragmentadas e discretas. Andando no carrinho pelo
corredor, sendo levada para a cama, etc. Essas lembranças soltas eram
como uma espoleta que ia deflagrando uma outra até que vinha então o
momento decisivo e explosivo em que se manifestava o split (quando "ela"
passava a ser "eu") e ela tornava-se novamente íntegra.
Cena número dois. Uma mulher de vinte e três anos recordou-se do
seguinte na sua segunda semana de terapia. "Eu tinha sete anos quando
me levaram para visitar minha mãe num hospital ou coisa parecida. Ainda
vejo o seu roupão azul e os lençóis muito brancos. Vejo seus cabelos
desgrenhados como se não tivessem sido penteados. Sento-me na cama...
Não sei. É só o que consigo lembrar-me." Insisto com ela que, então,
prossegue. "Acho que me sentei ao lado de minha mãe. Olhei para ela...
Meu Deus! Os seus olhos! Os seus olhos! Não sabe quem eu sou. Minha
mãe está louca. Ela está louca!"
A memória ficou muito mais clara. Ela sempre pensara haver sonhado que
a mãe tentara matá-la, mas depois já se lembrava que ela realmente tivera
uma crise em que tentara matar os filhos. Suas lembranças dos
acontecimentos logo se expandiram. Ficou sabendo que sua mãe estava
num hospício. Sempre se lembrava de certos aspectos dos acontecimentos
quando ia ao hospício, quando subia no elevador, etc., mas não conseguia
realmente lembrar de ter visto a mãe e de saber a verdade sobre suas
condições.
Os splits que tiveram lugar nessas cenas podem ser equiparados com
estados de amnésia, não tão dramáticos e completos como os casos de
amnésia que chegam ao nosso conhecimento, mas, se a situação for
completamente inaceitável, como, por exemplo, ao ser violentada pelo pai
(como aconteceu em um de nossos casos Primais), pode haver grandes
áreas onde a Dor desapareceu durante um ou dois anos depois de um
acontecimento. Algumas vezes a hipnose consegue recuperar certas
lembranças antigas pela supressão do fator Dor, mas eu não creio que ela
possa atingir áreas e lembranças onde a Dor seja muito grande. A paciente,
que foi violentada pelo pai quando ainda muito moça, só conseguiu chegar
a tal lembrança depois de umas trinta sessões Primais, e assim mesmo por
estágios.
Um rapaz com vinte e sete anos estava rememorando sua infância durante
a terapia quando tropeçou numa lembrança de haver sido atingido por um
balanço, fato que ele esquecera completamente. A lembrança não era da
mesma intensidade da Dor que então sofrerá. Reviveu a cena na seguinte
ordem: "Não sei por que me sinto tão mal. Ninguém veio me acudir. Eu
fiquei sempre só e ninguém cuidou de saber onde eu estava. Oh, mamãe!
Mamãe! Quero que você goste de mim. Por favor!" Disse então que a razão
por que se esquecera de tal época no lugar em que moravam era porque
não queria se dar conta do quanto era rejeita. E por isso esquecera o
episódio do balanço. A lembrança do balanço atingindo-o não era muito
importante em si. O significado em torno do incidente era catastrófico, e
foi aquela sensação de não haver alguém que o amasse que fez com que
passasse toda a sua vida procurando ser amado. Quando ele, afinal, se deu
conta que sua mãe nunca lhe dera a menor atenção, a lembrança do
balanço voltou então com toda a força e realidade.
As lembranças neuróticas muitas vezes se parecem com sonhos, e a pessoa
pode ter tanto trabalho e dificuldade para lembrar-se de sua infância como
aquele que tem quando se lembra de alguns sonhos. Eu acredito que para
haver lembranças concretas será preciso que haja acontecimentos também
concretos, isto é, o indivíduo deve estar completamente envolvido na sua
experiência e não afastado dela pelo medo ou agitação. Muitos pacientes
passam pela vida sem se dar conta do que se passa em torno dele s. Muitas
vezes chegam a reclamar que a vida passou por eles sem tocá-los. Ela só
aconteceu para a parte irreal deles. Apenas atravessavam a vida sem
participar dela. Geralmente vivem dentro de alguma espécie de barreira
que amortece o impacto da experiência só deixando o que for confortável.
À medida que o paciente Primal começa a penetrar nessa barreira, ele pode
começar a vislumbrar o que realmente significam suas experiências e seu
comportamento que eram antes amortecidos pela Dor.
Eu acredito que as lembranças são suprimidas até o ponto em que elas são
a repetição de elementos parecidos com as Dores das Cenas Primais. Se um
insulto insólito deflagra uma mágoa antiga reprimida, como de sentir -se
estúpido, esse acontecimento pode ser esquecido ou então apenas
vagamente lembrado. A intensidade da lembrança dependerá da relação
que existir entre os sentimentos atuais e a mágoa antiga.
Há muita coisa insinuando que o sistema de lembranças irreais começa com
a inicial e mais importante Cena Primal. Por exemplo, um neurótico pode
ter uma memória fenomenal para datas, lugares e fatos históricos, e até
mesmo para sua própria vida, embora isso só sirva para esconder a frente
irreal que diz, "Vejam como sou um brilhante atuante". Os aspectos mais
profundos de sua memória podem estar totalmente bloqueados. As
lembranças do eu irreal são seletivas e aderem à mente para aliviar a
tensão, para exaltar o "ego". Isso significa que a suposta boa memória de
um neurótico e apenas uma defesa contra a verdadeira memória.
Um caso poderá servir para esclarecer a relação da Dor com a memória.
Uma certa jovem com vinte e poucos anos estava indo muito bem na
Terapia Primal e já tinha tido duas sessões em que se mostrara bem
compreensiva. Ao fim da segunda semana sofreu um sério desastre de
automóvel, fraturou alguns ossos e o diagnóstico era de uma concussão
traumática no cérebro. Depois de recuperar os sentidos nada mais
lembrava do acidente. Os seus médicos duvidavam que viesse a recuperar
a memória do trauma e disseram-lhe que se não se lembrasse do acidente
dentro de algumas semanas, o mais provável seria que nunca mais se
lembraria.
Depois de algumas semanas ela já estava boa o bastante para reiniciar a
terapia. Antes da visita ela começou a ter cólicas de estômago e os
intestinos ficaram paralisados durante três dias. Depois de uma Primal a
respeito de uma grande Dor na sua primeira infância, ela foi
automaticamente lavada à sua dor mais recente que fora o acidente do
automóvel, sem que houvesse qualquer interferência estranha. Passou por
todo o trauma, do princípio ao fim, com todos os detalhes, sem que fosse
preciso qualquer esforço consciente. Viu o carro aproximar-se, ouviu a
colisão, sentiu a pancada na cabeça e deu então aquele grito terrível que
não conseguira dar antes. Discutia sem hesitação todos os detalhes do
acidente.
O que isso indica é que o efeito físico da concussão sozinho não pode
chegar a obliterar a memória mas a Dor que o acompanha pode contribuir
para apagar as lembranças dos acontecimentos catastróficos. Se esta
premissa estiver certa, será possível fazer com que uma pessoa chegue a
recuperar a lembrança de traumas muito sérios, como o estupro, por meio
da Terapia Primal.
Eu não acredito que um neurótico consiga manter um completo sistema de
memória enquanto não se liberar da Dor Primal. Logo depois de passar pela
Terapia Primal parece haver uma nítida melhoria na memória e a maioria
desses pacientes encontram certa facilidade em voltarem para os primeiros
meses de vida para lembrarem-se sucessivamente de todos os incidentes.
É como se todo o sistema da memória fosse de repente escancarado com a
experiência da Dor.
5 - A NATUREZA DA TENSÃO
Em termos Primais, não existe neurose sem tensão. Com isso quero me
referir à tensão que não é natural, que não encontra lugar no ser humano
psicologicamente normal, e não à tensão que é natural e que todos nós
precisamos ter para as atividades de rotina. A tensão não natural é aquela
que é crônica, é a pressão de sentimentos ou necessidades que rejeitamos
ou que não resolvemos. Sempre que discutir a tensão eu estarei me
referindo à tensão neurótica. Eu chamo de graus de tensão àquilo que o
neurótico sente em lugar de suas sensações reais. Quando a tensão é
menor a sensação é boa, para tornar-se má logo que ela aumenta. O
comportamento do neurótico é sempre orientado para que ele se sinta
melhor.
De onde vem a tensão e qual é a sua função? Eu acredito que a tensão,
como parte da neurose, é um mecanismo que sobrevive e que mobiliza
todo o corpo para atingir a um fim ou uma necessidade ou então para
proteger o organismo para que ele não se dê conta de sensações
catastróficas. Em ambos os casos ela tenta sempre manter a continuidade
e a integridade do organismo. Quando não somos alimentados, por
exemplo, isso faz nascer a tensão que nos galvaniza no sentido de ir
procurar alimento para satisfazer nossa necessidade. Se não formos
contidos nem estimulados, a necessidade nos obriga à ação. Se a
necessidade continua nos nossos primeiros meses ou anos, a falta de
satisfação torna-se dolorosa e intolerável, e para suprimir a dor a
necessidade é suprimida, mas continua a existir sob a forma de tensão.
Continuará sendo isso até que seja ligada à consciência e resolvida. Um
movimento suprimido, como parar de correr ou ficar sentado, também
permanecerá sob a forma de tensão até que seja ligado ou resolvido.
Em resumo, qualquer supressão crítica de um movimento ou sensação no
princípio da vida transforma-se em necessidade até que seja sentida e
manifestada e, por aí, resolvida.
O desligamento é mantido pelo medo. O medo se mostra quando a Dor (a
necessidade ou sensação que possa resultar em Dor) está perto do
consciente. O medo provoca para a ação todo o sistema de defesa e produz
todas as maquinações variadas para conservar afastada a necessidade. O
medo é uma reação automática que faz parte do mecanismo de
sobrevivência. Ele prepara o organismo para se defender contra o golpe,
da mesma forma que ficamos tensos quando nos vão dar uma injeção.
Quando o sistema não pode afastar a Dor surge um medo consciente, isto
é, a ansiedade. O medo também não é geralmente sentido de forma
consciente.
Ele torna-se parte do complexo geral de tensões.
Nós sentimos a ansiedade, mas já não sentimos o medo se ele for
corretamente focalizado. Recorremos à ansiedade quando se enfraquece o
sistema de defesa permitindo que o temido sentimento se aproxime da
consciência. Desde que o sentimento não tenha ligação, a ansiedade fica
muitas vezes fora de foco. A base da ansiedade é o medo de não ser amado.
Muitos de nós mantemos afastada a ansiedade criando as espécies de
personalidades que não nos deixem sentir o quanto não somos amados.
A personalidade é o resultado da necessidade de proteção. A função da
personalidade é satisfazer as necessidades da criança. Isso significa que ela
vai tentar ser aquilo que "eles" desejam para que ela possa ser amada
finalmente. A tensão nasce quando ela procura ser "eles", e é eliminada
quando acontece o contrário, isto é, quando a criança tenta ser ela mesma,
e isso significa ser íntegra em corpo e espírito. Vamos supor que um menino
pequeno precise ser acariciado pelo pai, mas o seu pai acha que "homens"
não se abraçam nem beijam. O menino tenta então mostrar-se homem para
o pai, nega a sua necessidade e comporta-se com grosseria. Essa
personalidade grosseira produz e conserva a tensão. O menino cresce, tem
uma úlcera é tratado pela psicoterapia.
No começo de seu tratamento ele mostra-se enfadonho. Logo torna-se
ansioso. Eu descubro o que ele tem, isto é, localizo sua necessidade
reprimida que pode ter-se tornado um latente sentimento homossexual.
Pode tornar-se zangado quando eu der o nome aos bois, mas sua zanga é
apenas um disfarce para a verdadeira mágoa, é uma defesa contra a
sensação daquilo que ele quer. A sua zanga é uma forma de aliviar a tensão.
A razão para o menino haver-se tornado grosseiro, em primeiro lugar, era
porque queria ser amado pelo pai, mas essa motivação já foi, desde muito,
sepultada. Desde que não lhe permitam ser grosseiro isso representa, para
ele, a perda do amor e da aprovação. É o desespero Primal.
Deve ser considerado simbólico qualquer comportamento presente que
tenha por base sensações negadas no passado (inconscientes). Isso
significa que a pessoa está tentando satisfazer uma velha necessidad e por
meio de alguma confrontação atual. Eu chamo de representação simbólica
qualquer comportamento atual que tenha por base tais necessidades
inconscientes. Nesse sentido, a personalidade é no neurótico a
representação simbólica. Todo seu comportamento representa uma reação
a velhos sentimentos sepultados.
Só a ligação pode deter a tensão neurótica crônica. As outras atividades
aliviam momentaneamente a tensão mas não servem para resolvê-la. Na
minha opinião, não existe uma inata tensão básica nem tampouc o
ansiedade. Isso tudo são apenas consequências surgidas de anteriores
condições neuróticas. O neurótico é tenso consciente ou
inconscientemente.
A neurose não é sinônimo de defesa. É um termo muito mais amplo que
mostra como são ligadas as defesas. Os tipos neuróticos são simplesmente
uma determinada constelação das defesas de alguém. Desde que um
neurótico pode usar todas as espécies de defesas na sua vida cotidiana, não
existe um tipo puro. Geralmente, eles escolhem um estilo, como, por
exemplo, de ser superintelectual, que, por conveniência, poderemos
chamar de uma certa espécie de neurose. Toda neurose significa que existe
um sistema irreal que está convertendo os verdadeiros sentimentos em
tensões. A maior parte dos sentimentos e das necessidades humanas são
bastante parecidas. O que é complicado é a nossa forma de defesa. Não
temos, no entanto, necessidade de tratar dessas complicações desde que
consigamos chegar ao que está por baixo.
Enquanto existirem as Dores Primais o neurótico terá sempre que e star
tenso contra elas. A sua personalidade é a forma mais ou menos
estabilizada que ele encontrou para defender-se. Para eliminar essas Dores
teríamos que eliminar também a personalidade.
Vamos considerar isso em termos de energia. Sabemos pela lei da
conservação da energia que ela não pode ser destruída. Só pode ser
transformada. Eu considero as sensações Primais como energia
essencialmente neuroquímica que se transforma em energia cinética ou
mecânica que impele o movimento físico constante ou a pressão interna.
O objetivo da Terapia Primal é mudar essa energia transformada de volta
para o seu estado original de forma que deixe de existir uma força interior
impelindo a pessoa para uma ação compulsiva. É por causa dessa sensação
de pressão que tantos neuróticos sentem-se agitados, porque não
conseguem ficar sentados tranquilamente e porque sentem necessidade de
estar sempre fazendo alguma coisa. Não devemos esquecer que a tensão é
um fenômeno inteiramente corporal. Cada novo sentimento bloqueado ou
necessidade não realizada serve apenas para aumentar as pressões
internas que afetam todo o sistema.
É possível fazer desaparecer a tensão mecanicamente jogando tênis,
futebol ou correndo, e na verdade, a maior parte das pessoas que estão
gastando as energias nervosas estão também esgotando suas tensões. Mas
não há uma forma de fugir das sensações Primais, e sendo assim, a tensão
parece ser perpétua. Eu comparo as pessoas que estão sempre ocupadas
em gastar as tensões com a galinha decapitada que continua a se de bater.
Num certo sentido, o neurótico também é um decapitado até que possa
ligar seu corpo com as razões específicas para tais ações.
Em vista da variedade de reações do corpo às tensões, são inúmeras as
formas que existem para medi-las. O investigador E. Jacobson define a
tensão em termos de contração muscular. 6 Ele acredita que a tensão
prepara o corpo para uma certa espécie de locomoção (fuga) e isso resulta
6
E. Jacobson, "Electrophysiology of Mental Activities", American Journal of Psychology, Vol. 44
(1932); "Variation of Blood Pressure with Skeletal Muscle Tension and Relaxation," Annals of
International Medicine, Vol. 13 (1940); "The Affects and Their Pleasure-Unpleasure Qualities in
Relation to Psychic Discharge Processes," em R. M. Loewenstein, ed, Drives, Affects and Behavior
(New York, International Universities Press, 1953).
na contração das fibras dos músculos. A mudança que se opera nessas
fibras resulta, por sua vez, em um aumento de voltagem, ou pressão
elétrica, que pode ser medida por um instrumento eletrônico conhecido
como eletromiógrafo que, no entanto, ainda não é bastante preciso para
medir as minúsculas mudanças. Não obstante, o que Jacobson está
tentando mostrar é que toda a nossa musculatura torna-se envolvida nas
tensões e fadigas do indivíduo, esteja ele acordado ou dormindo. Isso ajuda
a explicar por que o neurótico muitas vezes acorda ainda mais exausto do
que quando adormeceu.
A tensão, além de ser um fenômeno total, também tenta concentrar-se em
áreas vulneráveis. Malmo, nas suas investigações, verificou que nós em
geral temos áreas vulneráveis específicas que mostram aumento no nível
de tensões quando debaixo de pressão 7.
Se uma pessoa sofre de dor crônica no lado esquerdo do pescoço, por
exemplo, uma situação de pressão viria criar uma tensão muito maior no
mesmo lado e não no oposto.
Embora a tensão seja a pressão interna que resulta da negação de
sensações, cada um de nós a experimenta de modo diferente. Pode ser um
tremor, um nó nos músculos do estômago, uma tensão nos músculos do
corpo, um aperto no peito, os dentes rilhando, uma intranquilidade, um
sentimento de acontecimento infausto, uma sensação de náusea, um nó na
garganta ou dores no estômago. A tensão mantém a boca em movimento,
aperta os músculos das mandíbulas, faz os olhos piscarem, dispara o
coração, os pés começam a bater e os olhos a faiscar. Não precisamos nos
alongar sobre esse ponto. A tensão é intolerável e se mostra das mais
diferentes maneiras.
São tantos os que sofrem de tensões que nós já chegamos ao ponto de
acreditar que elas são uma exigência do ser humano. Tenho a certeza que
isso não é assim. Infelizmente, no entanto, inúmeras teorias psicológicas
baseiam as suas suposições na inevitabilidade da tensão. O sistema
7
R. B. Malmo, Experimental Foundations of Clinical Psychology, ed. A Bachrach, New York, Basic
Books, 1962.
freudiano, por exemplo, afirma a existência de uma ansiedade básica em
torno da qual temos que situar defesas para nos conservarmos sãos. Eu
creio que essa ansiedade é exclusivamente uma função da não-realidade
da pessoa.
Foram feitas muitas experiências com animais e pessoas em que uma
cigarra tocava sempre que o sujeito era submetido a um ligeiro choque
elétrico. Depois, somente o ruído da cigarra era o suficiente para produzir
a mesma espécie de ameaça antecipada e um alto nível de ativação física.
Essa espécie de experiência é chamada de condicionamento do sujeito a
alguma coisa que geralmente não deveria conter ameaça alguma, isto é, a
cigarra. Da mesma forma, os sujeitos podem ser descondicionados
juntando ao estímulo inócuo (a cigarra) uma recompensa ou situação sem
choque.
A Teoria Primal também trata do choque. Muitas vezes esse choque é uma
primitiva realização que, se fosse sentida em toda sua extensão, teria
resultados catastróficos. O choque é reprimido e aproveitado, produzindo
anos de comportamento tenso depois de já não haver perigo. Uma criança
de seis anos desprezada pelos pais, uma coisa que ela sente pois tais
sentimentos raramente são ostensivos, pode estar em perigo sério tanto
física como psicologicamente, mas já um adulto de trinta anos, que
compreende agora ter sido desprezado pelos pais, realmente não está mais
em perigo, embora todo o seu comportamento de adulto tenha-se baseado
mais no medo do que no sentimento.
Para compreendermos por que trinta anos depois de se haver defrontado
com a triste realidade uma pessoa ainda reage a ela, devemos ter em mente
que a criança em tenra idade é completamente inerme, e isso significa que
ela pode perceber tudo de forma mais direta. Procura então cobrir-se.
Poderá desenvolver sintomas ou embotar seus sentimentos, mas, mesmo
assim, a dolorosa percepção continua a existir esperando a hora de vir a
ser sentida. Em um caso, uma criança com dois anos e meio viu no rosto
dos pais uma completa indiferença. Ela começou a perceber a completa
falta de significação da existência das pessoas que a cercavam e da sua
própria. Não sentia aquilo completamente. Ficou com asma. Aquela
indiferença em torno dela só podia ser sentida mais tarde quando já
estivesse fora de seu domínio. Aquela indiferença significava que ela teria
que "morrer" para poder sobreviver com os pais. Foram necessárias muitas
sessões Primais para sentir aquilo completamente. Uma vez sentido ela
voltou à vida.
O choque psicológico original trouxe consigo o medo, e isso converteu a
sensação numa tensão vaga e generalizada. A pessoa discutida acima não
era conscientemente ansiosa. Fingia de morta como um meio inconsciente
para evitar a ansiedade. Os seus movimentos e expressões sem vida eram
os meios que encontrava para despistar os pais. Enquanto estivesse
"morta" ela estaria tensa mas não ansiosa. Na maioria das vezes a neurose
(representação simbólica) amarra a tensão de tal maneira que o neurótico
nem mesmo percebe que está tenso. 8 A diferença entre medo e ansiedade
é uma questão de contexto e não de fisiologia. Os processos fisiológicos do
medo e da ansiedade podem ser idênticos, mas no medo a pessoa reage à
situação atual ao passo que na ansiedade reage ao passado como se ele
fosse o presente. É no ponto em que a tensão se torna perceptível como
ansiedade que as pessoas geralmente recorrem à psicoterapia.
O verdadeiro medo é quando a vida se sente ameaçada. Isso ocorre sem
tensão ou sem o embotamento dos sentidos ou da mente. Com o
verdadeiro medo o organismo sente-se completamente preparado para
enfrentar a ameaça. O medo Primal embota porque é de aspecto
catastrófico. O medo Primal existe quando também existe a Dor Primal
("eles não me amam"). Isso significa que o velho medo continua no
presente transformando o medo em ansiedade. A ansiedade é o velho
medo sem ligação porque essa ligação significa a Dor Catastrófica.
8
É muito provável que na mais tenra idade, a criança não possa diferençar entre um dano físico
ou emocional desde que seu nível conceituai não esteja suficientemente maduro para permitir
estabelecer uma distinção entre a dor psicológica e a física. Quando chegar a distingui-las, já terá
talvez coberto suas Dores Primais com a neurose. Uma criança pequena, por exemplo, pode não
saber que está sendo humilhada e sim apenas sente-se pouco à vontade quando seus pais lhe
falam de certa maneira. Essa experiência é a dor não diferenciada. Será talvez somente mais
tarde, em uma Terapia Primal, que ela perceberá primeiro aquelas dores vagas outra vez e poderá
compreender o seu significado.
(Discutiremos isso com maiores detalhes no capítulo sobre o medo.) A
reação a um caminhão que se precipita sobre nós é o medo. A ansied ade é
quando sentimos que o caminhão poderá nos atropelar.
Um bebê ou uma criancinha sente o medo diretamente e são governados
por seus sentimentos. Com o corre do tempo, contudo, até mesmo uma
demonstração de medo pode ser criticada por pais neuróticos quando
dizem, "Pare com este choro. Você sabe que não há nada para ter medo."
Dessa forma, o medo lhes é negado e passa a situar-se no Conglomerado
Primal como mais tensão. Esse medo proibido significa que a pessoa não
pode agir diretamente e de forma apropriada quanto aos seus sentimentos.
Deve então inventar objetos para seu medo como sejam os negros ou
outros problemas para poder centralizar seus sentimentos e aliviar a
tensão.
É quando forçamos o paciente neurótico a sentir, em lugar de demonstrar
seus medos Primais, que nós podemos auxiliá-los para compreenderem os
sentimentos que lhes causam pavor. É no ponto em que o levamos para
dentro e para além de seus temores que nós o encaminhamos também às
suas Dores Primais.
O estudo publicado em Psychology Today (junho 1969) de autoria de Martin
Seligman tem certa relação com esta noção de choque prematuro.
Seligman conta sobre uma experiência de R. L. Solomon em que arreios
foram amarrados em cachorros que depois receberam choques elétricos.
Mais tarde foram colocados numa caixa com dois compartimentos onde
deviam aprender a escapar do choque simplesmente pulando sobre uma
barreira baixa da seção em que tomavam o choque para a outra onde não
havia aquilo. Verificou-se depois que se um deles recebesse primeiro o
choque quando ainda amarrado para não poder escapar, acontecia uma
coisa estranha. Durante episódios posteriores com choques, mesmo
quando estavam livres para saltarem sobre a barreira, os cachorros ficavam
na seção do choque até que fossem arrastados para fora. Outros, que não
estavam amarrados logo que recebiam o primeiro choque, aprendiam a
saltar e fugir. Em muitos casos, a criancinha sente-se amarrada a uma
situação sem saída para o trauma, e sente-se então tão desamparada como
os cães amarrados. Também a criança nada pode fazer para escapar à dor
constante e muitas vezes não consegue aprender mais tarde como agir em
certas situações para evitar magoar-se. Quando uma criança nada encontra
que lhe possa valer para alterar a situação, ela muitas vezes nada mais pode
fazer senão desligar-se internamente continuando passiva e magoada
como os cães amarrados que não conseguiam escapar ao primeiro choque
recebido em suas vidas. Notamos também das experiências de Solomon
que se os cães eram submetidos ao choque numa situação sem saída, e
mais tarde amarrados outra vez para o choque, quando mais uma vez
recebiam o choque e podiam reagir livremente, logo aprendiam como
escapulir. Seligman mostra que se uma criança chora para ser alimentada
e não há ninguém por perto para atendê-la, então o choro torna-se uma
reação irrelevante e pode ser eliminada com o tempo apenas porque o
choro em nada alterou uma situação desagradável. A Teoria Primal indica
que a Dor continuada por não receber, ou nunca haver conseguido
satisfazer suas necessidades primitivas, tem a tendência a desligar a reação
até que o indivíduo volte ao passado e atreva-se a chorar outra vez como a
criança.
Os efeitos das Dores Primais são considerados permanentes até que sejam
sentidos, e uso esta expressão num sentido global. Isto significa que as
Dores Primais não podem ser condicionadas fora do organismo. Assim,
embora se possa punir ou recompensar as manifestações superficiais das
Dores (fumo, bebida, drogas) isso não significará qualquer mudança.
Continuarão a exigir saídas neuróticas de uma forma ou outra até que
sejam completamente sentidas.
O neurótico aplica-se a comportamentos singulares e simbólicos para
aliviar a tensão. Assim ele pode praticar o sexo compulsivo para sentir -se
amado sem jamais reconhecer as sensações primitivas de não ser amado.
Embora a tensão se faça sentir em toda a parte, parece haver um
determinado órgão em que ela se situa com mais força. É o estômago.
Parece que a melhor maneira do neurótico aliviar suas dores internas é com
a contração dos músculos do estômago e de toda a área abdominal.
Wilhelm Reich fez esta descoberta muitas décadas atrás e uma grande
parte de sua terapêutica girava em torno do alívio das tensões abdominais
de seus doentes. 9
É no estômago que a maioria dos pacientes neuróticos situam o foco de
suas tensões, e são inúmeros os provérbios que mostram isso como quando
dizem, "Tive que engolir minhas palavras", "Isto está difícil de engolir" e
outros.
As palavras parecem ter sido literalmente empurradas pela garganta
abaixo. Na grande parte dos casos, o paciente antes do Primal não se dá
conta do que existe de tensão em seu estômago até que começamos a
arrancar tudo aquilo. Durante a Terapia Primal é comum constatarmos a
tensão abandonando o estômago para vir subindo. A pessoa vai então
queixando-se de um aperto no peito ou na garganta, os dentes rilham e os
maxilares doem. Depois, quando as palavras importantes já foram todas
pronunciadas, tudo isso desaparece.
Eu tenho certa hesitação para expressar-me desse modo, mas temos
documentação em video-tapes que mostram o fenômeno da ascensão.
Durante a Terapia Primal as sensações que iniciam a ascensão fazem tremer
toda a região abdominal. É como se elas estivessem se libertando da
pressão abdominal. Movimentam-se pelo corpo acima e saem pela boca em
forma de Gritos Primais. Quando isso acontece, os pacientes dizem que,
pela primeira vez, estão sentindo o estômago livre quando antes estavam
bloqueados pelas tensões que nem mesmo permitiam a digestão dos
alimentos.
Nem sempre a tensão traz como consequência a incapacidade de comer.
Em alguns casos acontece até mesmo o contrário, quando as pessoas
tensas se entopem de comida. Aí acontece o fenômeno duplo de subir e
descer. A tensão em ascensão ocorre quando o sistema de defesa se
enfraquece e as sensações se aproximam do consciente. Ela muitas vezes
impede ou torna difícil a ingestão de comida. A tensão descendente, por
outro lado, permite que o neurótico controle seus sentimentos por meio
de alimentos, de forma que ela nunca se transforma em estado ansioso. De
9
Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone, New York, Noonday Press, 1948.
um modo geral, as pessoas muito gordas ou pesadas são portadoras de um
conjunto de Dores muito profundas e escondidas. Parece que as camadas
de gordura contribuem para formar uma parede protetora.
6 - O SISTEMA DE DEFESA
10
Anna Freud, em seu Ego and the Mechanisms of Defense, diz: "Os esforços do ego infantil para
evitar a 'dor' por meio da resistência direta às impressões externas pertencem à esfera da
psicologia normal. Suas consequências podem ser importantes para a formação do ego e do
caráter, mas elas não são patogênicas." (Os grifos são meus.)
descarga. O aperto dos músculos do estômago contém as sensações e
resultam em tensão. Molhar a cama durante a noite, quando as defesas
conscientes são menores, é uma descarga involuntária da tensão. Outras
formas involuntárias são o rilhar os dentes, suspirar, atravessar pesadelos.
As defesas voluntárias entram em cena quando o mecanismo de descarga
involuntária deixa de funcionar. Alguns exemplos de defesas voluntárias
são fumar, beber, usar drogas e comer demais. Podem ser dominados p ela
força de vontade. As defesas voluntárias são necessárias para aliviar a
tensão em excesso. O propósito das duas formas de defesa é bloquear o
sentimento verdadeiro.
As defesas funcionam ininterruptamente dia e noite. O homem efeminado
não se torna de repente masculino durante o sono. Sua feminilidade é um
acontecimento psicofísico que existe tanto dormindo como acordado. Faz
parte do organismo. Isso significa que as ações não naturais tornam -se a
norma porque a pessoa não pode sentir suas inclinações naturais. Ele não
poderá andar, falar ou comportar-se de qualquer outra forma até que
recupere o seu eu natural.
As defesas são, de um modo geral, aquilo que os pais exigem da criança.
Uma delas pode falar o tempo todo e usar palavras complicadas, ao passo
que a outra se faz de boba. Ambas estão reagindo a uma exigência dos pais
e ambas estão fechando uma parte delas.
As defesas entram em cena como um mecanismo de adaptação para
manter o organismo em funcionamento. Dessa forma a neurose é
considerada como parte do equipamento de adaptação que nós todos
herdamos. Sendo a neurose adaptável, nós não podemos simplesmente
destruí-la com uma máquina de choque. É preciso desmantelar as defesas
numa sequência ordenada, pouco a pouco, até que a pessoa esteja em
condições de passar sem elas.
A criança fecha-se nos primeiros meses e anos porque não tem outra
escolha. Uma criança que goste de falar muito e alto pode logo ser
reprimida pelos pais que desejam vê-la bem educadinha e submissa.
Recorrerão até à pancada para conseguirem o que desejam. Assim, a
criança tem que condenar uma parte de si mesma durante toda a vida. Deve
fazer o que eles querem e não o que ela quer. Essa mesma espécie de
comportamento pode resultar de pais que fazem muito pelos filhos que,
então, quase não precisam fazer esforço algum em proveito próprio. Ficam
afogados pela bondade dos pais.
Se as aparências falsas não funcionarem, se não puderem despertar nos
pais uma reação humana, então a criança será forçada a recorrer a defesas
mais desesperadas. Ela poderá então desligar-se de tudo à sua volta para
não desagradar aos pais ou para torná-los carinhosos. Poderá começar a
falar como um autômato, seus pensamentos poderão se tornar reduzidos
e estreitos e seus olhos se apertarão. Em resumo, ela poderá se
desumanizar completamente numa tentativa para humanizar os pais.
Poderá, até mesmo, transformar-se completamente só para agradar-lhes,
e então um menino pode passar a ser uma "menina".
A reação completa é um conceito crucial. A necessidade de amor não é
apenas alguma coisa cerebral que pode se transformar com uma mudança
de ideias. Essa necessidade está em todo o sistema destorcendo o corpo e
a mente. Essa distorção específica é a defesa.
Se a personalidade não pode conter a tensão, os sintomas logo surgirão. A
criança poderá se masturbar, chupar o dedo, roer as unhas ou molhar a
cama. São os caminhos que escolhe para se aliviar ainda mais. Muitas
vezes, pensando erradamente que estão ajudando aos filhos, os pais
tentam corrigir essas válvulas de escape e assim complicam o problema
pois a criança recorre a meios ocultos. Um paciente contou-me que peidava
constantemente porque os pais pensavam que ele tinha alguma coisa de
estômago e aceitavam então aquilo pensando que era involuntário.
A criancinha não pode nunca compreender que os perturbados são os pais.
Não sabe que o problema deles existe independentemente de qualquer
coisa que ela possa fazer por eles. Ela não sabe que não pode interferir e
tudo faz para viver em paz. Já que é ridicularizada desde que se entende,
ela começa a acreditar que há qualquer coisa de errado e tudo tentará para
agradar, mas a tragédia é que não sabe o que fazer porque também os pais
estão na mesma condição. Já que os pais não o fazem feliz, ela só pode
contar com seus próprios recursos. Passa então a comer tudo que lhe fica
ao alcance da mão, chupa o dedo quando não estão olhando, masturba -se
e, mais tarde, enche-se de drogas para aliviar os sofrimentos já que
ninguém antes tentou fazer isso por ela. Já não se mostra mais neurótica
pois a neurose tomou conta dela.
O viciado em drogas é um exemplo de alguém que já não dispõe mais de
defesas internas. É geralmente alguém que já esgotou tanto suas sensações
que não dá mais importância à existência. Uma vez que não consegue
defender-se como fazem outros neuróticos, ele estabelece uma relação
definitiva com a agulha: Dor... agulha... alívio. Sem a agulha surge de novo
a Dor, O pênis serve ao mesmo fim para o homossexual. Ambos
representam um alívio da tensão. E uma ligação externa que surge para
tomar o lugar da interna que nunca foi feita.
Sem levar em conta a dor que existe com o uso da agulha ou nas relações
dos homossexuais, a sensação simbólica é o prazer ou, mais corretamente,
o alívio. A dor verdadeira e física, a dor experimentada pelo próprio, filtra-
se através do sistema de defesa onde passa a ser interpretada como prazer.
As variedades de formas que os neuróticos encontram para se defenderem
já foram classificadas por profissionais e catalogadas em diagnósticos. Eu
quero tornar claro, mais uma vez, que o sistema de defesa só é importante
porque serve para esconder a Dor. Dentro da hipótese Primal só a Dor é
importante.
Para o neurótico, toda a sua experiência deve passar através do labirinto
de suas defesas onde o que está acontecendo não é visto, não é
compreendido ou então é exagerado. O mesmo processo destorcido
influencia as atividades de seu corpo de forma que, finalmente, ele já não
consegue interpretar ou compreender as espécies de transformações que
estão se passando em seu corpo. Ele precisa então situar-se numa posição
enigmática de ir procurar um estranho profissional para ajudá-lo a
compreender tudo que sente dentro de si mesmo.
Os sistemas de defesa tornam-se mais complicados conforme for a situação
da família da criança. Quando os pais são brutais, a defesa é direta e está
na superfície. Quando as relações de família são mais sutis, o sistema de
defesa também torna-se mais sutil.
Os mais difíceis de curar são os indivíduos que conseguiram criar camadas
de defesas sutis e intelectuais. A terapia de insight tem sido o tratamento
central da classe intelectual. Qualquer método que complique mais a
cabeça desses neuróticos só pode servir para tornar o problema mais sério.
Reich mostrou-nos insights para as defesas do corpo algumas décadas
atrás: "Nós podemos dizer que toda rigidez muscular contém a história e a
significação de sua origem. Assim, não é necessário deduzir de sonhos ou
associações a forma como se desenvolveu a armadura muscular. Ao
contrário, essa própria armadura é a forma pela qual a experiência infantil
continua a existir como um agente perigoso." 11
Reich explicou que a rigidez muscular não é apenas o resultado de
repressão já que representa "a parte mais essencial do processo de
repressão." Ele mostrou ainda que a repressão era um processo dialético
no qual o corpo não apenas se torna tenso pela neurose como também
serve para perpetuar essa neurose por meio da musculatura tensa. Ele não
explicou bem o que mantinha o corpo tenso durante anos seguidos, mas
acreditava que a neurose poderia ser bastante afastada por certos
exercícios ou técnicas destinados a reduzir as tensões musculares e mais
especificamente a tensão abdominal.
De conformidade com a opinião Primal, as necessidades e as sensações
bloqueadas começam virtualmente com o nascimento e muitas vezes antes
mesmo que possam ser verbalizadas. A criança que não é levada ao colo
suficientemente nos seus primeiros meses, não sabe conscientemente o
que está lhe faltando, mas, mesmo assim, sente-se magoada. Sente isso em
todo o seu corpo que é exatamente onde reside a necessidade. Essa
necessidade não é então apenas alguma coisa mental armazenada no
cérebro. Está codificada nos tecidos do corpo exercendo uma força
constante em busca de satisfação. Essa força não é uma tensão. Podemos
dizer que o corpo "recorda-se" de suas privações e necessidades da mesma
11
Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone (New York: Noonday Press, 1942).
forma que o cérebro. Para livrar-se das tensões as pessoas terão que sentir
as necessidades no núcleo de tais tensões, em outras palavras,
organicamente, que é exatamente onde elas se encontram. As
necessidades são encontradas na musculatura, nos órgãos e no sangue.
Não é bastante conhecermos nossas sensações ou necessidades
inconscientes. Uma grande parte de psicoterapia moderna funciona dentro
do pressuposto que é bastante tornar conscientes as sensações
inconscientes para transformar uma pessoa. Eu encaro isso de modo
diferente. Acho que a consciência é o resultado de um processo de
sensação orgânica e que é o processo da sensação que muda uma p essoa,
e não apenas o simples fato de saber quais são as necessidades. Na minha
opinião, o conhecimento não se livra disso. Nós ainda não avaliamos
bastante o quanto há de privações nos primeiros meses de vida e como isso
afeta toda a nossa existência. Os adeptos da escola de Reich reconhecem
que uma grande parte das sensações nada tem a ver com a palavra e
tentam tratar das sensações reprimidas com manipulações físicas do corpo.
A Terapia Primal defende a ligação das necessidades do corpo com as
lembranças inconscientes armazenadas, o que representa a unidade da
pessoa. As terapias de danças, yoga, movimentos do corpo, ou os exercícios
destinados a libertar o corpo de tensões, de pouco servirão porque elas
estão irremediavelmente entrelaçadas com lembranças Primais em
acontecimentos orgânicos unitários. Os insights de encorajamento cindem
o indivíduo de uma forma e a terapia de movimento do corpo faz o mesmo
de outra forma. Aquilo que necessitamos é alguma coisa total, uma reunião
imediata do corpo com a mente. Não há maneira para curar de forma
permanente com massagens as lembranças que causaram uma torção do
ombro quando elas o atingiram abaixo do nível consciente.
Talvez se possa compreender isso melhor examinando como nos
desenvolvemos. A criança pequena tem pouca condição para abstrair ou
para raciocinar a respeito de seus problemas. Ela não pode transformar
suas necessidades em fantasias específicas nem pode se livrar delas
simbolicamente durante a infância. O seu corpo tem que organizar as
defesas. Assim, para ela não é uma questão da mente controlar o corpo já
que a criança aparentemente não desenvolveu ainda sua capacidade
mental nos primeiros meses. Em lugar disso, o que parece acontecer é que
algumas crianças precisam defender-se fisicamente logo depois de
nascidas.
Lembro-me de uma paciente que nasceu num orfanato onde não havia
ninguém para cuidar dela. Durante suas sessões de terapia, mais tarde, ela
tornou a viver seu tempo de berço no orfanato e lembrava-se que ficava
chorando muito tempo antes que viesse alguém para atendê-la. Tornou a
viver o que fez nessa ocasião. Lembrava-se que ficava sentada, com cerca
de oito meses, depois de chorar durante muitos minutos, e que olhava em
volta mas não via ninguém para cuidar dela, e então começava a sentir o
corpo mole e finalmente adormecia. Logo aquilo tornou-se um hábito.
Acordava sentindo falta de alguma coisa, começava a chorar, calava -se e
deitava-se de volta no berço. Esse embrutecimento tornou-se automático
nos primeiros dois anos de sua estadia no orfanato. Mais tarde, quando
saiu de lá, isso se transformou e ela procurava tornar- se insensível sempre
que se sentia inconfortável ou apavorada. Dizia que "era como se tivesse
sido absorvida de volta num estado de estupefação. Conseguia amortecer
todo o meu ser e ficava meio adormecida até mesmo quando andava." Essa
apatia e falta de vida, incidentalmente, é muito notada pelos que
investigam as crianças recolhidas a asilos. Acho que elas são obrigadas a se
amortecerem para assim criarem uma barreira que permita a sua
sobrevivência.
O que aconteceu com essa mulher lá no seu orfanato foi o resultado do
sistema de proteção do corpo. As defesas corporais que a acompanharam
durante sua vida tinham se desenvolvido porque o seu trauma e split
haviam começado antes do desenvolvimento do intelecto e a possibilidade
de defesas intelectuais. Eu não acredito que houvesse exercícios que mais
tarde pudessem reavivar o seu sistema muscular. Depois de sua terapia,
em que reviveu os traumas infantis que haviam enrijecido e tolhido a sua
musculatura, ela sentia-se liberada e "leve." Pela primeira vez podia dançar
com desembaraço sem sentir-se tolhida e morta como vinha acontecendo
desde que nascera. Tornara-se mais viva depois de verificar como estivera
morta.
Recentemente tivemos em nossa Terapia Primal um atleta levantador de
pesos. Tinha o vício de namorar seu corpo num espelho. Tudo que via era
uma tensão cuidadosamente construída. Contemplava o seu sistema de
defesa e tentava construí-lo fisicamente, tudo para fugir à impressão de ser
fraco e desamparado. Sua atitude inconsciente funcionava da seguinte
maneira: "Não tenho quem tome conta de mim. Tenho que ser forte para
proteger-me." O simbolismo é: "se eu agir e tiver a aparência de um
homem, eu então serei um homem." Na Terapia Primal ele começou a
sentir-se como o menino fraco e desprotegido que realmente era. Tivemos
que suspender todos os seus exercícios com pesos, ou seja, deixá -lo sem
proteção o bastante para que ele sentisse essa fraqueza.
A cura da neurose deve sempre atentar para todo o sistema. Nós,
terapeutas, passamos décadas falando para a fachada irreal de nossos
pacientes pensando ser possível convencê-los a abandonar as necessidades
e as Dores que a produziam. Não há força na terra que consiga fazer i sso.
Talvez possa haver quem diga que isso não faz diferença. Que o principal é
a pessoa sentir-se bem e que não há razão para achar que pode ficar melhor
do que está simplesmente porque alguém diz que isso é possível. É claro
que a coisa não é assim. Eu estou pensando em muita gente como os
homossexuais, por exemplo, que acabaram resignando-se com a sua
doença porque chegaram à conclusão sincera de não haver outra
alternativa. Embora a maioria dos neuróticos não esteja satisfeita, eles
sofrem apenas um ligeiro mal-estar enquanto suas defesas funcionarem.
Mas é preciso que eles saibam que há uma alternativa, que há uma
condição de bem-estar que eles nem podem imaginar. É possível que
tenham se valido do LSD em algum período de sua vida para atingir um
estado de incrível magnitude. Talvez tenham atribuído à droga essa
sensação. Eu não concordo. As drogas não trazem sensações. São as
pessoas que as sentem. Isto é, são as pessoas sem neuroses, e eu creio que
a maior contribuição da Terapia Primal é permitir que as pessoas
experimentem suas próprias sensações.
Discussão
Os comportamentos neuróticos são as formas de idiossincrasias que todos
nós encontramos para aliviar a tensão. Não há alteração na neurose pelo
simples fato de suprimirmos um comportamento superficial. O
desenvolvimento de "bons" hábitos, como, por exemplo, não comer
demais, deve sempre constituir um esforço desde que a neurose exista, e
isso porque a pessoa está tentando afogar a Dor Primal.
A neurose é a Dor congelada. No decorrer de nossas vidas nós encontramos
muitos obstáculos dolorosos que precisamos transpor, mas não existe um
fim para a Dor Primal porque ela não é sentida, mas, apesar disso, podemos
frequentemente ver essa Dor estampada no rosto dos neuróticos,
contorcendo-o e transformando-o de tal modo que quase ficam
irreconhecíveis.
Embora os neuróticos nem sempre se deem conta de tudo que lhe dói, eles
são sempre um feixe de nervos destroçados. Podem ser aquele médico que
anda às carreiras de um gabinete para outro ou a mulher que está sempre
se queixando de alguma doença. O neurótico está sempre tão ocupado
tentando se afirmar que não tem tempo para perceber quem é.
A neurose começa como uma forma para apaziguar pais neuróticos
procurando esconder deles certas coisas na esperança que "eles"
finalmente terminem por amá-lo. Não importa os anos que passem, a
esperança é sempre eterna. Tem que ser porque as necessidades também
são. Essas necessidades fazem com que o neurótico se comporte de forma
irracional porque a verdade racional é por demais dolorosa. Enquanto a
pessoa não tiver sofrido todas as suas Dores completamente ela não pode
perder a esperança. Na Terapia Primal a pessoa sente todo o desespero da
infância e com isso destrói todas as esperanças falsas que constituem o
fundamento da luta contra a neurose.
Quando começa a neurose? Em qualquer idade bem tenra. Com um, cinco
e dez anos. O importante é que ela tem um começo, a ocasião em que a
criança se divide de seu próprio eu e passa a levar uma existência dupla.
Será que isso significa que uma cena ou um acontecimento podem
transformar alguém em neurótico? É claro que não. A cena decisiva não é
senão a culminação de anos de relações muito ruins entre pais e filhos.
Muitos neuróticos se desligam por volta da idade de seis ou sete anos
porque é então que podem perceber bem o que se passa em suas vidas.
Tornaram-se dissociados ou split e não podem se integralizar novamente
mediante um esforço consciente, isto é, não podem desfazer a tensão
neurótica.
A neurose pode ter início com um ano de idade se o trauma for muito sério
e se a história pregressa o justificar. É claro que o split em muitos
indivíduos ocorre antes da idade de seis anos porque os gagos de quem
tratei sempre reclamavam que sua deficiência começara logo que haviam
pronunciado as primeiras palavras, entre os dois ou três anos. Outros
informam que o split se deu por volta dos doze. Um paciente contou -me
que conseguiu se manter bem até os treze anos quando seus pais se
divorciaram e o pai tornou a casar. Exigiram que o menino chamasse a
madrasta de "mamãe" e que a tratasse como tal. Em lugar de enfrentar a
perda de sua verdadeira mãe ele preferiu fechar-se.
Por que a neurose começa mais cedo e não até antes dos vinte, por
exemplo? É porque nesses primeiros meses a criança está completamente
desamparada e depende de seus pais. Representam o mundo para ela. O
que eles fizerem vai decidir o caminho da criança e isso logo se tornará
rígido e determinará sua maneira de enfrentar o mundo.
Geralmente, quando chega a hora de começar a escola ela já está desligada
e neurótica, e a sua neurose determina a sua forma de agir para com seus
mestres e colegas. Uma criança tornada rígida e que foi tornada tímida e
obsequiosa pelos pais muito autoritários, sentir-se-á inclinada a se
comportar do mesmo jeito com os outros. O split não é geralmente uma
explosão ou um acontecimento cataclísmico. Chega o dia em que a criança
simplesmente torna-se mais irreal do que real. A razão para isso acontecer
antes dos treze aos dezenove é que, geralmente, se a criança conseguisse
isso dentro desse período sem neurose, ela poderia também encontrar
algum outro apoio, como, por exemplo, o amor de alguém do sexo oposto
ou algum mestre compreensivo que a ajudasse a enfrentar a pressão e as
dificuldades no lar. Geralmente, quando chega nessa faixa de idade ele já
se transformou numa personalidade neurótica que não pode mais ser
anulada por tal ajuda mas sim apenas ser tratada por paliativos provisórios.
Por que a neurose não surge com a rejeição para entrar em algum clube
social, pela repetição de ano escolar ou por ser repudiado pelo namorado?
Por que os acontecimentos isolados, mesmo em casa, não produzem
reações tão fortes que cheguem a causar o split? Uma criança normal
rejeitada por um mestre poderia atribuir o fato à sua pouca aplicação ou
mau comportamento, e perceberia isso sem qualquer outra consequência.
O trauma, em termos Primais, não é um acontecimento penoso como o de
ser rejeitado por um clube ou uma escola. O trauma é aquilo que não é
experimentado. Isto é, significa uma reação tão forte e dominadora que
chega a fazer com que uma parte do acontecimento seja apagado do
consciente. Soluçar nos ombros da mamãe carinhosa por haver sido
rejeitado é muito diferente de perceber o quanto se é odiado pela pró pria
mãe e quando não se tem um outro ombro amigo para consolar. Nenhuma
conferência de família, mais tarde, desmanchará isso. A criança poderá
compreender por que sua mãe a rejeitou antes, mas isso não modificará os
seus problemas primitivos.
Será que a Cena Primal significa que uma pessoa é, sem dúvida, neurótica
e para todo o sempre? A Cena Primal representa o salto qualitativo, a
mudança para um novo estado, para a neurose. Nenhuma quantidade de
amor, de garantia ou de atenções daí em diante cancelará a neurose. Ela
irá se aprofundando em cada novo trauma ou supressão de parte dos pais.
Mesmo que, por exemplo, um pai amoroso surgisse de repente quando a
criança tivesse uns oito anos, o dano anterior ainda teria que ser resolvido.
Um tal pai amoroso, naturalmente, sempre adianta alguma coisa porque
ele não aprofunda a neurose, mas tampouco pode cancelá-la. Só a Dor pode
fazer isso. Só a Dor que exigiu uma parte do próprio ser para que fosse
abafada.
7 - A NATUREZA DO SENTIMENTO
12
O sentimento não é sinônimo de emoção, embora essa possa ser a expressão daquele, das
coisas que uma pessoa faz quando sente. A maioria das emoções é atravessar todas as condições
de sentimento sem o mesmo. Infelizmente, muitos neuróticos consideram a emoção como um
sinal do sentimento, e a não ser que alguém seja efusivo e exagerado, eles inclinam-se a crer que
a pessoa não está realmente sentindo. Os pais neuróticos raramente contentam-se com um
simples "muito obrigado" pelos presentes que dão. Sentem necessidade de grandes
demonstrações de emoção para terem a certeza de que foram devidamente apreciados. Dentro
dessas sutilezas as crianças não se contêm e reagem com naturalidade. Precisam, aliás, exagerar
porque as reações muito sinceras podem ser consideradas pelos pais como um sinal de rejeição.
Somente a ligação transforma uma sensação de dor em um verdadeiro
sentimento. Reciprocamente, a desligação do pensamento do conteúdo de
seus sentimentos nos primórdios da vida produz sensações contínuas e
desconfortáveis como dores de cabeça, alergia, dores nas costas. Persistem
porque não são ligadas. É como se os sentimentos dolorosos fossem
desligados do conhecimento ("Eu estou inteiramente só. Não há ninguém
que me compreenda.") e passassem a ter vida própria dentro do corpo,
surgindo aqui e ali em forma de dores e incômodos.
Quando a dor se transforma numa Dor sentida, ela já não é mais dolor osa,
e o neurótico pode, então, senti-la. Tudo que desperte verdadeiros
sentimentos em um neurótico deve também despertar a Dor. Qualquer
suposta experiência de profundo sentimento que não traga Dor é apenas
um pseudo-sentimento, uma representação sem qualquer ligação.
Uma quantidade de pacientes, quando em fins de tratamento, informa que
o ato sexual muitas vezes leva involuntariamente a uma Primal. Um deles
explicou o seguinte:
"Antes de me submeter à terapia, eu tinha toda a sorte de sentimentos
reprimidos que extravasava por meio do sexo. Pensava que era muito
sexual. Estava sempre em condições de praticá-lo. Agora eu sei que aquela
minha exagerada necessidade de sexo era devida a todos os outros
sentimentos procurando uma saída qualquer. Eu servia-me do pênis para
isso. Costumava pensar que era natural o fato do orgasmo ser doloroso.
Chegava a ele muito depressa porque a pressão de todos os outros
sentimentos ocultos era muito grande já que todos eles queriam sair ao
mesmo tempo. Nos meus primeiros anos isso se manifestava levando-me a
molhar a cama, mas eu não precisava de controle tanto para não molhar a
cama como para a ejaculação prematura. Eu tinha necessidade de sofrer
todos aqueles sentimentos suprimidos para conseguir livrar-me das
horríveis e constantes pressões."
Quando já não podia mais transformar em sexo os seus antigos
sentimentos, ele modificou sua atitude a tal respeito diminuindo
radicalmente a sua mania de perseguição. Aquela mesma pressão poderia,
com igual facilidade, desde que houvesse as condições certas nos
primórdios, ter-se transformado numa constante necessidade de falar, de
usar a boca para dar saída à tensão. As pessoas geralmente não falam
porque sentem necessidade e sim para aliviar uma tensão. É fácil perceber
a diferença porque também é fácil perder o interesse por alguém que fala
sem parar e sem propósito, apenas para satisfazer uma necessidade íntima,
assim como é difícil perder o interesse por alguém que realmente sente o
que diz. O falastrão neurótico não fala para mais ninguém a não ser para a
sua necessidade, em realidade para os seus pais. Aqui outra vez nós nos
defrontamos com o cruel paradoxo. Uma pessoa é obrigada a falar porque
nunca foi ouvida, e a sua verbalização neurótica afasta todo mundo e só
serve para aumentar sua necessidade (e compulsão) para ainda falar mais.
Não pode sentir o que diz até acabar de falar tudo que estava acumulado,
e não pode fazer isso até que sinta a grande Dor dessa necessidade.
O neurótico caminha em busca de sensações até a hora de sentir. Ele pode
buscar sensações agradáveis para aliviar as desagradáveis do inconsciente,
ou poderá senti-las aqui ou ali em seu corpo pensando que sofre de alguma
doença física. Os que recorrem ao álcool para aliviar o nó no estômago
podem estar escondendo alguma coisa mais séria, como talvez uma úlcera.
Aqueles que não encontram bastantes saídas para as dores interiores são
obrigados a sofrê-las fisicamente. O neurótico pode não recorrer ao álcool
mas passa então a usar remédios para matar as dores. Tudo é a mesma
coisa, e isso porque todos os sentimentos reprimidos são dolorosos por
definição. Assim, quer o neurótico esteja se deliciando com as cores de um
quadro, com a euforia do álcool ou o alívio de uma pílula, ele está sempre
no processo constante de trocar uma sensação por outra. Até que encontre
uma ligação para o que sente ele terá que passar a vida a procurá -la.
E isso pode ser encontrado em tudo que for compulsivo. O orgasmo, para
o neurótico, logo se torna um narcótico, um sedativo. Se retirarmos a
representação simbólica (o sedativo) é o organismo que sofre.
Por que será que o neurótico anda sempre à procura de sensações? É
porque ninguém reconhece seus sentimentos. As crianças podem passar
por dores permissíveis, como as de estômago, por exemplo, mas não pelas
que tragam a tristeza. Assim, a mágoa da criança é dirigida. Ela deve
representar simbolicamente quando tudo que está tentando dizer aos pais
é que "está triste."
Como exemplo disso vou citar um incidente da vida de um de meus
pacientes. Estamos no casamento de um rapaz e ele é surpreendido por um
senhor de idade, um velho amigo que o abraça com ternura desejando -lhe
felicidades. O rapaz sente-se inexplicavelmente tomado de uma profunda
tristeza e desaba num pranto incontido abraçado ao seu amigo, mas não
faz a menor ideia do que se passa com ele.
A Teoria Primal diria que o abraço do mais velho tocou numa velha ferida
do rapaz. O paciente contou-me que seu pai nunca fora carinhoso com ele,
e nunca tivera quem sinceramente lhe desejasse a felicidade. Aquele vazio
profundo vinha sendo carregado por ele sem sentir até a hora que o carinho
do velho deflagrou a Dor.
O que ele sentia era o fragmento de um sentimento total que, se fosse
completamente percebido, iria inundá-lo de Dor além da profunda tristeza
que sentia no momento. Os carinhos que recebeu naquele dia não
alteraram a Dor que ele sentia até que pudesse descansar para sentir tudo
e poder então formar um conceito de sua mágoa. A sua luta começou
quando pela primeira vez percebeu que não tinha um pai carinhoso.
Começou a mostrar-se independente como se, realmente, não precisasse
dos carinhos do pai. Enquanto conseguisse evitar o carinho, do qual tanto
precisava, ele podia também evitar a dor. O repentino carinho do velho
amigo pegou-o desprevenido num momento vulnerável de emoção que era
o seu casamento.
Uma outra paciente contou-me o que lhe acontecera.
"Era como se eu tivesse riscado um círculo em torno daquela minha
imagem indesejada, que não devia mais ser vista nem ouvida e devia ser
relegada ao esquecimento. Mas eram só os meus sentimentos que
acompanhavam aquela dor de não ser querida. Junto com meu:
sentimentos iam o amor, a força e o desejo. Eu já não existia. Sempre que
me procuravam só via o vazio, o nada. Eu morri no ódio e na rejeição deles.
A realidade para mim era sentir a realidade de meu próprio desprezo."
Quando o neurótico se desliga de sua Dor, eu creio que ele deixa de sentir
completamente. O neurótico, até que venha a sentir outra vez, não sabe
que nada sente. Assim não se pode convencer a um neurótico que ele seja
insensível. O único fator convincente é quando ele começa novamente a
sentir. Até que tal aconteça ele pode responder que recentemente assistiu
a um filme trágico que o levou às lágrimas. Afirma então que aquilo é
sentimento, mas o caso era que ele não estava sentindo a sua própria
tristeza e portanto aquilo não poderia ser considerado como um pleno
sentimento. Se ele chegasse a relacionar o que viu no filme com as exatas
condições de sua vida, ele poderia ter uma Dor Primal ali em pleno cinema.
Na verdade, muitas delas acontecem quando o paciente discute algum
filme que o fez chorar. No entanto, aquilo que ele sente no cinema e depois
sente no consultório são dois fenômenos distintos.
As lágrimas num cinema são um fragmento do passado repudiado do
neurótico. São geralmente o resultado da liberação de sentimentos mais
do que sua expansão em sentimentos Primais completos. O processo de
liberação é que ajuda a tornar ausente o sentimento completo. Transforma
e aborta o sentimento e assim mitiga a dor.
A mesma explicação se aplica à pessoa que tem frequentes acessos de
cólera. É claro que ela está sentindo a raiva que está demonstrando, não é
mesmo? Mas, a não ser que aquela raiva, que está sendo expelida a os
poucos cada dia contra alvos aparentes, seja sentida e ligada ao seu
contexto inicial, ela não pode ser um sentimento no sentido Primal.
Tomemos o indivíduo que explode só porque teve que esperar um pouco.
Ele pode bem ser o adulto cujos pais o mantinham numa constante espera
quando era criança. Mais tarde na vida, qualquer coisa que se parecesse
com aquela espera a que os pais o obrigavam podia facilmente fazer
explodir uma raiva completamente fora de propósito quanto à situação.
Infelizmente, essa falta de atenção de parte de outros continuará sempre
a despertar a raiva até que ele consiga perceber o verdadeiro contexto de
seus sentimentos iniciais a tal respeito.
Até então, a raiva não pode ser considerada como um verdadeiro
sentimento desde que os alvos sejam apenas símbolos e não constituam a
realidade que a originou.
Na minha opinião, os sentimentos seguem o princípio de tudo-ou-nada.
Qualquer coisa que lembre um sentimento fará com que todo o corpo o
sinta. Para um neurótico, no entanto, o erotismo poderá muitas vezes
causar sensações localizadas nos órgãos genitais, e não no corpo inteiro,
como sensações sexuais sentidas dos pés à cabeça. A fragmentação do
neurótico explica suas risadas abafadas, os espirros suprimidos e as
palavras que parecem sair da boca sem qualquer relação com o resto do
rosto. Nem todos os neuróticos sofrem dessa mesma forma, mas o
processo de fragmentação sempre encontrará meios para se manifestar.
Existe uma série de expressões que são chamadas de sentimentos, mas que
não acredito que sejam. O "sentimento" de culpa é um desses. Um
neurótico poderá dizer: "Sinto-me horrorizado com essa mentira. Sou
muito culpado!" Eu consideraria a culpa como uma fuga ao sentimento
(Dor) porque ela deflagra comportamentos destinados a aliviar a tensão.
'Uma pessoa sadia ao fazer alguma coisa errada sentiria o pleno impacto
de seu erro e procuraria corrigir a situação.
Eu creio que, na sua base, a culpa nada mais é senão o medo de perder o
amor dos pais. Um paciente disse-me durante uma sessão Primal que
estava furioso com o pai por havê-lo abandonado tão cedo na vida. Sentia
por isso as coisas mais estranhas. Dizia que era a culpa que não lhe permitia
gritar bem alto toda a sua raiva. Quando viu o que era realmente, percebeu
que tinha medo de denunciar o pai completamente porque poderia perdê-
lo para sempre. A motivação da culpa, portanto, é vista como
comportamento em reação ao medo.
A depressão é frequentemente considerada como um sentimento. Os
pacientes que já passaram por Primais não registram depressões. Sentem
tristeza em certos acontecimentos, mas são sentimentos específicos para
determinada situação. Pelo que consegui observar, a depressão é a
máscara para os sentimentos muito profundos e dolorosos que não podem
ser ligados pela pessoa. A verdade é que há neuróticos que preferem
matar-se para não terem que passar por tais sentimentos. A depressão é
um estado de espírito muito parecido com os sentimentos Primais mas que
continuam sendo experimentados como sensações físicas desagradávei s
("Estou no fundo. Sinto-me na fossa. Tenho um peso no peito, alguma coisa
que me aperta. E outras expressões parecidas.") porque não há uma ligação
com as origens de tal sentimento. Quando as depressões são medidas com
um eletromiógrafo, elas mostram um nível muito alto de tensão que prova
ser a depressão um sentimento desligado. Recentemente, o Dr. Frederick
Snyder, do National Institute of Mental Health, registrou o padrão de sono
dos pacientes depressivos. Eles começam suas atividades de sonho logo
que adormecem, e o sono é truncado e fragmentado. Geralmente dormem
menos do que as outras pessoas, o que é mais uma prova da tensão
existente na depressão. 13
Qualquer incidente trivial pode deflagrar uma depressão. Uma paciente foi
a uma festa e saiu cedo e deprimida. Ninguém falara com ela nem havia
despertado qualquer interesse sentando-se ao seu lado. A depressão durou
dias e logo tornou-se claro que nada tinha a ver com a festa, que, afinal, só
tinha servido para despertar algum sentimento muito antigo, e até então
oculto, que seus pais nunca se interessavam por ela nem sentavam -se ao
seu lado para conversar. Quando se submeteu a uma Primal em que
implorou aos pais para que o fizessem, a depressão desapareceu. Muita
gente livra-se de suas depressões saindo para fazer compras, fazendo
planos para algum programa ou festa, mas elas continuam a existir num
estado latente esperando que as atividades terminem. Continuarão a
perseguir a pessoa até que sejam sentidas as razões.
Existem outros pseudo-sentimentos. Aqui temos um exemplo de rejeição:
Durante uma sessão com alunos, eu critiquei o relatório escrito por um
jovem psicólogo considerando-o impreciso. Ele começou então com uma
onda de defesas. "Eu não queria dizer aquilo que o Sr. entendeu. Além
disso, o relatório não está terminado," e por aí além. Quando lhe perguntei
como sentia-se ele respondeu, "Rejeitado," mas o que realmente sentia
eram velhos sentimentos de rejeição da parte de seu pai pensando que
13
G. B. Whatmore, "Tension Factors in Schizophrenia and Depression," Tension in Medicine, ed.
E. Jacobson (Springfield, III., Charles Thomas, 1967).
nada podia fazer que lhe agradasse, que conquistasse o seu amor. Para não
sentir toda a dor, no entanto, ele lançou uma nuvem de fumaça de
explicações, projeções e desculpas para ver se afastava a Dor Primal. Não
discutiu as falhas de seu trabalho. Aqueles erros significavam para ele que
não era bom e nunca seria amado. Não sentiu contudo o incipiente
sentimento de rejeição. Ao contrário, tentou esconder os sentimentos com
o seu comportamento.
O que o jovem psicólogo estava fazendo era cobrir os antigos sentimentos
despertados pela crítica presente. Não havia nada inerentemente doloroso
no simples fato de redigir um relatório falho que justificasse todas aquelas
explicações. Suas desculpas tinham por fim manter afastada a Dor Primal.
Ele realmente começou a sentir alguma coisa rejeitada, a antiga e
verdadeira rejeição, mas escondeu esse sentimento e é por isso que eu digo
que os neuróticos não sentem completamente. Eles ficam divididos entre
sua infância e os sentimentos dessa época de modo que não podem
experimentar um sentimento completo. Cada novo insulto ou crítica que
recebem como adulto deflagra pedaços da antiga Dor. Mas sentir -se
realmente rejeitado significa estorcer-se de Dores durante uma sessão
Primal, sentir-se completamente só e indesejado como quando criança.
Depois de sentir isso, já não há mais sensações de rejeição e sim apenas do
que está acontecendo no presente. Assim, quando uma mulher ignorá -lo
em alguma festa social, a pessoa pensará: "Ela não gostou de mim" ou
então uma outra reflexão parecida, mas não se sentirá rejeitado no sentido
neurótico da palavra. Isso significa que não houve uma rejeição para
estragar seu dia.
A vergonha é um outro pseudo-sentimento. Vamos supor que um homem
chore e depois mostre-se envergonhado do que fez. Ele sente que não
receberá aprovação por haver-se mostrado fraco. Tenta então esconder o
que fez por trás de uma desculpa de mau comportamento de forma que
não possa sentir-se repudiado. Nesse sentido, o eu irreal, tendo absorvido
os valores dos pais, e mais tarde os da sociedade, está pressionando o
verdadeiro eu.
O orgulho é quando vence o eu irreal. O orgulho é um sentimento negativo.
Mostra alguma coisa, alguma ação que muitas vezes, inconscientemente,
torna as pessoas orgulhosas. É o que eles fazem. As pessoas de sentimentos
não precisam fazer coisas para chegarem a sentir. Aquilo que o neurótico
faz para sentir-se orgulhoso vai se modificando com a idade. Com dois
significa manter enxutas as fraldas e aos trinta é matar um elefante. A
mesma necessidade pode impelir os dois comportamentos. Ela permanece
constante. O que fazemos ao envelhecer é tecer em torno dela círculos de
defesa cada vez maiores até nos perdermos num emaranhado de atividades
simbólicas.
Quando o neurótico pensa que está tendo tremendas sensações acerca de
alguma situação corrente em sua vida, a intensidade desse sentimento é
um peso que se acrescenta ao Conglomerado Primal. Quando isso se
esvazia metodicamente por meio da Terapia Primal, a pessoa descobre
como são pouco intensos os seus sentimentos. Quando houver alguma
coisa com suas roupas e a lavanderia ele talvez se aborreça mas nunca
ficará furioso. O neurótico esvaziado também ficará sabendo como são
poucos os sentimentos dos homens. Despido da vergonha, da culpa, da
rejeição e de todos os outros pseudo-sentimentos, ele compreenderá que
esses pseudo-sentimentos são apenas sinônimos para o grande oculto
sentimento Primal de não ser amado.
Mesmo quando um neurótico pensa que está passando por uma
experiência sensacional, numa terapia de grupo comum, por exemplo, ele
não faz ideia da tremenda força e alcance dos sentimentos neuróticos
reprimidos. As lágrimas e soluços nas terapias convencionais de grupo
representam muito pouco em comparação com o gigantesco e ainda
adormecido vulcão interne composto de milhares de experiências que
anseiam pela liberação. A Terapia Primal vai fazendo isso por etapas. Tão
cedo sejam sentidas as negações, não mais existirão as grandes
profundidades de emoção que esperamos encontrar nos homens. A
perspectiva Primal de um sentimento pode representar o polo oposto do
ponto de vista leigo. As pessoas muito emotivas estão sempre agindo pelos
sentimentos reprimidos do passado e não chegam a sentir o presente. As
pessoas normais, privadas das supressões do passado, sentem apenas o
presente que não é tão volátil como a emotividade neurótica porque não
há por trás dele forças reprimidas. Assim, o neurótico pode rir
explosivamente porque há realmente uma explosão dentro dele. Também
pode não conseguir rir espontaneamente porque existe ainda lá atrás
alguma espécie de tristeza. No primeiro caso o neurótico escondeu o
sentimento e converteu-o em riso, mas no segundo exemplo, o riso ou a
tristeza podem haver sido reprimidos por uma pessoa que tenha nivelado
todas as suas emoções. Aquilo que o leigo muitas vezes vê como um
sentimento verdadeiro não passa de fortes reações para ferir como a raiva,
o medo, o ciúme e inveja, o orgulho e muito mais.
Na terapia comum, até mesmo a posição de sentar-se ereto numa cadeira,
de frente para o terapeuta, serve para evitar essas experiências de
sentimentos convulsivos. Tampouco são esses sentimentos o resultado de
alguma espécie de terapia de confrontação entre o paciente e o terapeuta.
A única confrontação na Terapia Primal é entre o eu real e o irreal.
O fato é que o neurótico é uma pessoa dotada de sentimentos, mas eles
encontram-se isolados pela tensão. Ele está constantemente cheio desses
sentimentos antigos sem solução e que anseiam por uma ligação final que
emerge como tensão. Para que o neurótico possa sentir novamente será
preciso que ele volte para sentir o que nunca foi. Assim ele pode tentar o
contato físico num grupo de encontro terapêutico especial e acreditar que
está derrubando as barreiras entre ele e os outros ou então passando por
uma calorosa experiência, onde aprende a sentir os outros. Não existe
porém qualquer meio para uma pessoa sem sentimentos perceber a mesma
coisa nos outros por maiores que sejam os contatos físicos. Primeiro temos
que aprender a sentir a nós mesmos para depois então sentir os outros.
Uma pessoa bloqueada poderia concebivelmente tocar alguma outra
durante um dia inteiro sem conseguir sentir coisa alguma. Aliás não será
coisa alguma, pois ele chegará a sentir a antiga dor, talvez por não haver
contado com carinho na sua tenra infância, só que não se dará conta do
que se passa. No meu ponto de vista, ser sensual é termos todos os nossos
órgãos sensoriais prontos para o estímulo. Quando isso não acontece
vamos então encontrar mulheres frígidas que vão para a cama com
qualquer homem e ainda assim continuam sem sentir nada.
A questão é que as barreiras de sentimentos não são geralmente entre
pessoas exceto de forma indireta, já que são todas internas. A barreira,
escudo ou membrana por trás da qual vivem tantos neuróticos é o
resultado de milhares de experiências em que foram suprimidos os
sentimentos e as reações. Essa barreira tornou-se mais espessa à medida
que iam sendo isolados os novos sentimentos. Não existe uma forma
qualquer para se romper essa barreira. A única coisa a fazer é ir voltando
para o passado e tentando atingir cada uma das maiores razões destruindo-
a aos poucos até chegar o dia em que ela deixe de existir e já não haja mais
obstáculo algum. Assim, quanto mais perto conseguirmos chegar de nós
mesmos, mais perto estaremos também dos outros.
Os sentimentos reais não podem ser resolvidos com o rompimento
simbólico de barreiras. Uma técnica muito comum, por exemplo, é reunir
as pessoas num círculo com uma no centro. Ela aprende então a romper o
cordão das pessoas que estão todas de mãos dadas. Eu acredito que
teoricamente a pessoa esteja aprendendo a libertar-se dessa forma. Parece
uma mágica. "Se eu passar por este ritual, então vou resolver todos os
meus problemas." Acredito que o ritual tenha por fim permitir que as
pessoas se sintam livres, mas acho que também serve para alimentar a
neurose incentivando uma saída simbólica. Há outras maneiras pelas quais
o neurótico pode sentir-se livre e estou certo que deve haver um alívio
momentâneo de tensão por meio do ritual simbólico, embora ele mal possa
arranhar o rígido sistema de defesa.
O que isto tudo significa, em resumo, é que quaisquer que sejam as ações
do neurótico, elas não podem acabar com a neurose. O neurótico pode
tocar sem sentir, pode escutar sem ouvir, pode ver sem perceber. Po de
praticar exercícios de acariciar os outros, mas tudo isso só fará sentido
quando ele sentir o que está fazendo, mas já então não terá mais
necessidade dos exercícios.
O ponto de vista Primal a respeito de sentimento é consideravelmente
diferente dos outros. Se, durante uma sessão de treino de sensibilidade,
alguém segurar a mão de outra pessoa, isso normalmente seria
considerado como uma experiência interpessoal, mas o que acontece com
o neurótico nesse caso é que o contato desperta centelhas de poderos as
necessidades Primais, sem contudo deflagrá-las, sendo que tais
necessidades não têm nome mas frequentemente tornam as pessoas
excitadas. Por quê? Apenas porque aquilo que é simplesmente um gesto de
afeto humano, uma sensação agradável, mergulha no profundo conjunto
emotivo de uma infância negligenciada e estéril, que acrescenta à
experiência uma grande ressonância e força. Como a força não é conceituai
isso naturalmente torna-se uma experiência isolada na qual a pessoa pode
ser tomada pela emoção ou então pode sentir algumas inefáveis sensações
místicas a que podemos chamar de experiência máxima. A Terapia Primal
deflagra esse reservatório de sentimentos e liga-o à conceituação. Depois
disso o fato pode ser o que realmente é, isto é, um simples contato, e não
aquilo que fez dele uma história de abandono. Por aí vemos como é
exagerada a reação neurótica surgida de uma necessidade insatisfeita.
Eu creio que haja níveis, ou antes, camadas de defesa que permitem
algumas pessoas se aproximarem mais de seus sentimentos do que outras.
Tudo depende do modo como se alinhou a constelação da família, do meio
cultural e ainda da formação constitucional da pessoa. Há famílias onde
não se permite demonstração de sentimentos e outras em que o sexo é
permitido e os sentimentos de raiva proibidos. Geralmente, no entanto, os
pais neuróticos são contrários ao sentimento, e um bom índice do quanto
eles tentarão cancelar nos seus filhos é o quanto eles foram obrigados a
cancelar em suas vidas para poderem sobreviver. Muitas vezes isso não é
um processo deliberado. Pode ser a constante repressão quando as
crianças são por demais exuberantes, o olhar dos pais quando as crianças
resmungam ou reclamam, o embaraço quando elas falam de sexo ou
quando a filha mostra seu corpo no banho. Pode estar na atitude adotada
pelo pai para não dar importância aos medos do filho ou às tristezas da
filha. Pode ser a mãe tão castigada pela vida que não pode tolerar que sua
filha mostre seu desespero ou necessidade de proteção. Pode estar em
todas as frases estereotipadas que os pais reservam para os filhos como,
por exemplo, "Não torne a me falar assim"; "não pense em fracassos, meu
filho, pense só no sucesso"; "o que há com você, seu maricas? Será que não
pode aguentar?" Pode estar nos milhares de acontecimentos triviais em
que tudo se nega às crianças. Ou então, ainda mais tragicamente, pode
estar no simples fato de a mãe ou o pai nunca terem tido quem os
orientasse ou incentivasse na vida. O resultado é sempre o mesmo: o ego
magoado fechado pela Dor.
Eu creio que no campo da psicologia tem havido muita confusão sobre o
que aconteceu com os sentimentos do neurótico. Há quem diga que ele
nunca, realmente, desenvolveu toda a sua capacidade para sentir. Outros
acreditam que os sentimentos primevos foram sepultados e não podem ser
recuperados. Eu afirmo que a capacidade de sentir não pode ser
irremediavelmente danificada. Na verdade, o neurótico parece ser a
imagem viva de um Primal no sentido que seus sentimentos não o
abandonam um só minuto do dia. Eles transparecem na sua pressão alta,
suas alergias, suas dores de cabeça, na tensão dos músculos, na firmeza de
seu queixo, na contração dos olhos, no rosto fechado, no som de sua voz e
na maneira do andar. O que nunca conseguimos fazer antes foi catar todos
os sentimentos espalhados para reconstituir a peça inteira e formar um
sentimento completo e claro.
Acredito que a forma para conseguir isso está no Método Primal que
discutiremos a seguir.
8 - A CURA
O paciente está ficando sem defesa. Algumas vezes chega chorando para a
consulta. Outras vezes encontro-o deitado no chão da sala de espera
soluçando. Reclama que não suporta a dor. Que ela é demais, que não pode
ler porque está sobrecarregado de lembranças e insights. Quer saber
quanto tempo vai durar isso. Voltámos no entanto ao processo de reviver
lembranças. "Lembro-me uma vez quando meu pai ficou zangado comigo
porque eu não queria fazer o que mamãe mandava. Eu tinha só oito anos.
Disse a ele para se calar. Ele me disse que nunca mais repetisse aquilo. Eu
repeti. Ele apanhou a vassoura e levantou-a para mim. Eu corri. Ele
perseguiu-me, alcançou-me e começou a me espancar. Meu Deus! Ele vai
me matar. Papai me odeia. Ele quer me ver fora de seu caminho. Pare,
papai! Pare!" O paciente está agora totalmente assoberbado pela
sensação. Rolou do sofá para o chão e está gritando, entre violentas
convulsões abdominais, que seu pai vai matá-lo. Pode estar suando,
tentando gritar mas sem conseguir. Continua a gritar tentando vomitar
gritando que vai morrer. Finalmente diz "eu vou ser bonzinho, papai. Não
vou mais responder." E não torna a responder mesmo. Fica sendo um
menino bonzinho. Passou por um Primal. Uma experiência total de
pensamentos e sentimentos do passado. Tudo está acabado em questão de
minutos e parece ser extraordinariamente doloroso. O paciente não
conversa sobre seus sentimentos. Ele apenas está sentindo.
A Primal é uma experiência completamente absorvente. O paciente quase
não se dá conta onde se encontra no momento. O que ele experimentou
durante os dois primeiros dias de sua terapia é aquilo a que chamamos de
pré-Primal. São sensações importantes do passado que não são muito
absorventes. Isso não significa que uma Primal total não aconteça na
primeira hora. Embora seja possível, não é uma regra geral. Algumas vezes
demora semanas. Quando acontece, parece que rompeu uma barreira de
pensamentos e sensações e a pessoa torna-se susceptível para toda sorte
de sensações e começa a ter Primais espontâneas fora da terapia. Desse
ponto em diante ela está a caminho da cura.
Com o decorrer dos dias ele provavelmente passará por experiências mais
profundas até atingir o ponto em que o equilíbrio crítico entre o real e o
irreal se altera em favor do verdadeiro eu permitindo uma completa
experiência de sensações. Daí em diante ele será absorvido por penosas
situações do passado e terá muitas Primais que se estenderão por períodos
de meses. Isso não significa, no entanto, que a pessoa seja completamente
real. Cada Primal diminui o eu irreal e aumenta o real. Quando as Dores
mais importantes forem sentidas já não haverá mais o eu irreal e podemos
dizer que o paciente está normal. A nossa obrigação é provocar a Dor para
apresentar uma pessoa com sensações reais.
Depois do Terceiro Dia
A Terapia Primal não funciona assim com tanta facilidade como eu talvez
possa ter dado a impressão. As próprias defesas são resistências contra os
sentimentos. Sendo assim, existe sempre alguma espécie de resistência
enquanto existir algum resto do sistema de defesa. Muitos pacientes
recusam pedir a ajuda dos pais. Podem ter gasto anos com análises e
podem mesmo dizer, "Olhe aqui, já tratei disso muitos anos atrás. Já sei o
que são. Não vejo razão para o que está me pedindo". A minha opinião é
que eles não sabem realmente até o dia em que pedirem. Os pacientes
ficam embaraçados com esses "exercícios pueris". Um jovem psicólogo
chegou a comentar que era tudo muito simples. Ainda assim, saber com
certeza que não se é amado é certamente uma experiência pela metade e
o corpo não toma parte nela. Exigir amor já é uma outra coisa. A luta
neurótica teve início porque a criança não podia mais exigir amor já que
isso trazia a rejeição e a Dor. Uma vez que a luta é o desejo contínuo e
simbólico de amor, trazer a pessoa de volta para o pedido direto de amor
à mãe é o mesmo que afastar a luta e descobrir a Dor.
Algumas vezes a resistência é física. A pessoa pede para respirar e faz isso
ao contrário. Parece estar empurrando o ar para baixo em lugar de para
cima e para fora. Essa impossibilidade de expirar é frequentemente
encontrada em neuróticos, especialmente nos reprimidos que sã o
obrigados a isso. A resistência física parece ser automática. A garganta
aperta-se, o corpo dobra-se, o paciente enrola-se como se fosse uma bola,
tudo para deixar de fora o sentimento. O ponto é que, por mais estranho
que isso pareça, ninguém simplesmente deita-se e livra-se de sua neurose.
Se o paciente insiste em não respirar fundo eu aperto-lhe a barriga de
quando em quando, embora isso seja raro. Em caso algum, porém, isso
seria feito até que o paciente esteja seguramente preso a alguma sensação,
porque aquilo que estamos querendo não é a respiração e sim a sensação.
A Primal Simbólica
14
Nota do autor: Art é o apelido que meus pacientes usam para me chamar e por isso tornará a
aparecer em outras histórias de casos.
ótima.
Esta noite, ao ouvir música, comecei a chorar. Sinto como meu pai estava
triste, como ambos estavam tristes e como eu era uma menininha triste.
Tentei lembrar-me de mamãe.
Vejo-a no piano, mas o seu rosto está sempre dissolvendo-se em alguma
coisa de histórias de quadrinhos com horrores. Tento vê-la agora, mas
continuo vendo o seu rosto triste e doente de vinte anos atrás. Sinto -me
desolada quando percebo, pela primeira vez, o quanto ela estava doente e
digna de pena.
Sexta-feira
Começo vendo mamãe no piano, como vi na noite passada, e, mais uma
vez, o seu rosto se dissolve num horror. Não consigo fixar a imagem. Depois
vejo-a com uns trinta anos. Ela olha de soslaio, paranoica, apavorada. Grito
"ela está louca". Choro sem parar. Ela está louca e irreal. Uma máscara. Ela
não estava lá comigo quando eu era criança porque estava louca. Ela tem
que ficar sempre andando para não ficar louca. Eu devo tê-la levado à
loucura obrigando-a a ficar em casa com minha irmã e comigo. Pobre
mamãe. De repente fiquei pequenina olhando para minha família. Papai
triste, mamãe louca e apavorada, minha irmã zangada... todas nós
sozinhas. Tentei melhorar a situação dançando loucamente e fazendo
graças. Estava atônita. Era muito pequena para compreender ou aceitar.
Ninguém ajudava uma menininha. Sentia a loucura de mamãe.
Compreendia quando fingia. Ela acha que estará bem desde que mostre -se
"sadia" e que faça coisas "saudáveis". Foi só o que a sua terapia fez por ela.
Chorei por minha irmã que também tentava mostrar tudo certo com seus
fingimentos.
Sábado
Ainda não tenho recordações da infância e então passei a falar de minha
aventura com a droga. As primeiras duas viagens foram alegres, cheias de
êxtases, místicas, completamente irreais e muito visuais. Durante os três
meses entre a segunda e a terceira, eu comecei a usar muitas anfetaminas
e codeína. Na terceira vez senti-me infeliz e tomei-a para sentir-me melhor.
Tinha medo de tomar sozinha, mas afinal tomei. As primeiras duas horas
foram como as outras. Chegaram alguns amigos que ficaram pouco tempo.
Quando saíram fiquei ansiosa. Tentei lembrar-me por que tinha medo de
tomar sozinha mas só consegui ficar confusa. Não podia lembrar o que
tomara. Não conseguia lembrar nada que fosse real. As alucinações
começaram a ficar apavorantes e me dominaram. Os minutos não tinham
fim. O relógio dissolvia-se. Minha cabeça não funcionava. Não conseguia
lembrar quem eu era. Não me restavam referências. Fiquei louca pensando
que nunca mais voltaria ao mundo real. Apavorada como estava, ainda
assim vi que conseguia usar o telefone, e chamei minha irmã para vir
socorrer-me. Fiquei tão aliviada só de ouvir a sua voz verdadeira que já me
recuperara um pouco quando ela chegou. O resto da viagem foi alegre e
triste alternadamente, mas eu sabia que nunca mais seria a mesma dep ois
de haver passado por aquela sensação de loucura. Três semanas depois,
com muitos remédios no meio, despertei sentindo-me muito deprimida.
Fiquei estirada na praia o dia inteiro, queimei-me muito e senti-me
terrivelmente deprimida. Fui para a casa de minha mãe e comecei a chorar
histericamente sentindo falta de ar. Ela deu-me um tranquilizante que me
fez dormir. Despertei ainda chorando. No dia seguinte ela levou -me ao
Instituto Neuropsiquiátrico da Universidade. Depois de falar com o
especialista lá ele garantiu-me que eu não estava realmente doente e sim
apenas reagindo às drogas que tomara. Se não tomasse mais voltaria à
minha vida normal, ficaria boa. Ele deu-me uma dose cavalar de algum
remédio e depois aconselhou-me a voltar ao trabalho o mais cedo possível
evitando sempre ficar só. Tudo que ele me aconselhou me afastou ainda
mais de minhas verdadeiras sensações e procurei esconder tudo outra vez
justamente quando estava pronta para me abrir e sentir. Continuei
altamente deprimida, chorando e dormindo durante cerca de um mês com
a respiração muito acelerada. Depois comecei a me recompor outra vez
comprimindo meus sentimentos para poder funcionar.
Durante a sessão de hoje eu verifiquei que ficara transtornada porque não
podia enfrentar a sensação de solidão que a droga deixara a descoberto.
As minhas antigas fantasias de facas e navalhas tinham razão de ser. Se
chegassem a me alcançar poderiam abrir-me as entranhas deixando
escapulir as sensações. O medo de ferir-me é o mesmo que aquele de
expor-me e sentir a dor que sepultei. Estou começando a sentir tudo que
há em mim de dor e tristeza. Vinte e cinco anos sepultando a dor, o medo
e a solidão. Percebo que quando sinto falta de ar é porque estou lutando
para manter os sentimentos sepultados quando eles começam a subir,
como aconteceu depois da viagem com a droga. Choro, choro, choro.
Parece-me que não vou mais parar. Sinto a dor na minha cabeça cheia.
Quero vomitar tudo. Estou apavorada e solitária.
Percebo agora que nas duas primeiras viagens da droga e nas outras
ocasiões em minha vida, quando sentia-me bem apesar de estar só, era
somente porque conseguira ocultar bem meus sentimentos. Fingia que
tudo estava bem, da mesma forma que fazia quando era criança, porque
não podia encarar o desamparo e a solidão. Mesmo agora, depois da
sessão, estou fingindo que não estou sentindo nada porque não consigo
me resignar a ficar só o dia inteiro. Continuo a sepultar meus sentimentos
exceto durante as sessões.
Terça-feira
Hoje cheguei aqui com fortes sensações no estômago. Soltei gritos
terríveis, mas não falei. Finalmente percebi que estava aterrorizada por
estar só. Mamãe e papai não estavam ali. Não conseguia vencer sozinha.
Era muito pequena. Vi mamãe como ela era depois de sair do sanatório
quando eu tinha quatro anos. Ela era como agora, falando com as pessoas,
mostrando-se alegre, falsa, uma máscara. Depois percebi por que tanto me
repugna quando ela mostra seu corpo e sua fealdade, porque eu sou igual
à ela, toda escondida com uma máscara cobrindo meus sentimentos e
pavores. E esta a razão por que eu via a sua dor quando criança embora
não pudesse enfrentá-la naquela ocasião. Minhas pernas são gordas
porque eu fui empurrando meus sentimentos para baixo até chegar lá,
como também ela fazia. Meus seios são grandes porque eu fingia de
crescida. Sinto tensão agora em todo o corpo e quero livrar-me dela.
Mergulho na tensão e sinto que é dor. Toda a minha tensão é a dor que não
estou sentindo. Sinto-a agora e choro.
Também descobri hoje que toda minha preocupação com minha irmã é uma
preocupação por mim mesma, embora deslocada, porque ela deixou
transparecer a sua mágoa e dor ao passo que eu as escondi dentro de mim.
Quarta-feira
Hoje de manhã cheguei com o estômago embrulhado, nervosa e
perturbada. Tudo que falava parecia errado e então mergulhei em minhas
sensações. Era pequenina e estava no berço. Olhei e vi mamãe ali sozinha
comigo. Ela tinha o ar de sofrimento, de terror e de loucura. Eu fiquei
horrorizada e senti-me igual a ela. Eu era um bebê mas estava vendo ela ali
como era. Era triste demais. Eu era muito pequena para poder
compreender. Aquilo não era justo. Não conseguia aguentar. Era aquela a
razão para eu empurrar para baixo todos os meus sentimentos logo de
saída. Um bebezinho sendo obrigada a ver a mãe louca e desamparada.
Depois tentei lembrar-me de papai. Pouco consegui mas senti-me maior.
Eu era um bebezinho no berço que se parecia primeiro com uma
incubadora porque tinha uma coberta de plástico. Só via escuridão e sentia
necessidade de papai para me segurar. Então dei com ele ali de pé muito
mais alto do que eu. Era uma estátua olhando para mim. Não conseguia
comunicar-me com ele. Chamei baixinho mas ele não me ouviu. Ele não me
ouvia mesmo. Gritei perguntando-lhe por que não me respondia. Não podia
mover-me. Não podia gritar. E aí vi mamãe perto dele. Eram como duas
estátuas de cera, cascas vazias olhando para mim sem me verem nem
sentirem. Então vi minha irmã ao meu lado com um sorriso estranho no
rosto esticando o braço para cutucar-me. Queria que todos fossem embora.
Eram horríveis e irreais. Era apavorante. Fechei os olhos e virei -me de lado
para eles pensarem que eu estava dormindo e irem embora.
Minha infância era horrível e apavorante desde o início, mas eu escondia -
me dela. Endureci o queixo contra aquela sensação, e ainda estou assim.
Quinta-feira
Comecei outra vez com uma tensão no estômago. Comecei como um bebê
sentindo grande necessidade mas sem palavras. Tentei chamar mamãe mas
não adiantou. Depois vi-a mas não quis que ela me segurasse porque
parecia louca. Eu queria que ela e papai não fossem loucos ou de cera.
Sentia-me triste porque não podia sentir apenas a necessidade sem
também querer que eles mudassem primeiro. Pedi-lhes para não serem
loucos e pareci muito real. Depois senti a raiva que estava por baixo
daquela realidade. Gritei-lhes, então, "precisei de vocês e não recebi
nenhuma ajuda ... vocês estavam muito loucos." Quem vai querer chamar
seus pais para ver chegar duas pessoas malucas? Pensei que a raiva iria
durar sempre, mas só com um grito ela desapareceu.
Senti-me triste todo o dia e noite depois da sessão. Senti-me ludibriada e
encerrada na minha tenra infância infeliz.
Sexta-feira
Outra vez eu era pequenina e sentia necessidade de mamãe e papai. Tinha
medo e sentia frio. Estava ali paralisada, com medo que eles não cuidassem
de mim, não me aconchegassem. Não podia chamar porque ainda não
conseguia encará-los. Quando gritei por eles e finalmente gritei mesmo
como um bebê senti doer meu ouvido esquerdo. Ele talvez abriu-se porque
senti o grito atravessar-me o ouvido. Era um vagido de bebezinho que mais
soava o de um cabritinho quando saiu. Quando estava ali deitada, gelada,
senti como estava apertado meu estômago fazendo força contra a
sensação. Até hoje os músculos de meu estômago estão tensos.
Segunda-feira
Sinto dores no estômago, cãibras, dores de cabeça todo o fim de semana e
hoje de manhã. Senti um peso no estômago como sempre tive e que
sempre me faz lembrar do passado. Tentei penetrar naquela sensação e
senti-me tonta como quando fico alta ou com febre. Uma sensação de
vertigem. Meu braço esquerdo começou a ficar dormente como se alguém
o segurasse com muita força apertando os músculos. Gritei "deixe -me ir,
deixe-me ir!" mas não adiantou. De repente a tonteira pareceu como se
alguém estivesse balançando muito meu carrinho de bebê, procurando
amedrontar-me. Meu cérebro dizia-me que poderia ser minha irmã, mas aí
eu vi mamãe com seu rosto alterado. Aquilo não parecia estar certo.
Apalpei novamente meu braço. Sentia-me enjoada. Meus pais estavam me
segurando, me torcendo, metendo-me medo. Dei um grito e soltei o braço.
Senti o sangue afluir. Estava aterrorizada e confusa. Não compreendia o
que tinha acontecido. Finalmente gritei "não compreendo" ... e pronto.
Tinha perto de cinco anos e sentia-me confusa a respeito de meus pais. Não
estavam cuidando de mim. Tudo que faziam confundia-me e magoava-me.
Estavam loucos e me tornavam louca. Odiava-os por isso, mas precisava
deles. Não me amavam. Fingi que estava louca dançando e fazendo caretas
para ocultar o sentimento. Era pequena demais para poder compreender,
mas compreendia melhor do que o bebê que estava dentro de mim. Era
terrivelmente doloroso. Minha cabeça estava sempre cheia, meus ouvidos,
nariz e garganta, toda aquela porcaria e confusão entulhada lá dentro.
Gritei como bebê e senti-me um pouco melhor. Quanto sentei-me lembrei-
me de uma velha melodia e cantei-a baixinho quase sem sentir. Talvez eu
quisesse que fosse assim mesmo tão simples.
Terça-feira
Comecei a sentir um pouco imediatamente. Estava paralisada de pé na
porta entre a cozinha e a sala de jantar olhando para a sala de estar onde
estavam papai e mamãe, mas logo depois não estavam mais. Eram
transparentes. Preciso deles mas não posso chamar. Estou paralisada entre
querê-los e ter medo de sua irrealidade. Estava só, muito só. Fingia que não
precisava deles. Nunca lhes pedia coisa alguma. Nunca pedia a papai para
me cortar o bife como fazia minha irmã. Hoje eu chamei. "Papai, onde está
você? Eu não vejo você aqui em casa." Senti então que queria falar com
mamãe, queria dizer a ela que minha cabeça está doendo. Disse afinal, e
foi muito real. Também disse "eu precisava de você" que se transformou
em "eu preciso de você." Senti que por mais luzes que se acendessem na
casa ela ainda estava escura e vazia. Eu era só e pequenina e fingia que era
grande e independente. Eles realmente não estavam lá, para mim, mesmo
quando estavam. Sentia-me enganada. Por que você não cuidou de mim?
Mesmo que eu gritasse e batesse com os pés eles não me ouviriam nem
tampouco me veriam.
Quarta-feira
Senti-me ansiosa hoje de manhã. Comecei a lembrar-me mais claramente
da casa em D. Depois senti-me pequenina. Fiquei de pé atrás da porta com
medo da casa vazia. Não conseguia respirar e senti que não poderia andar
pela casa mas fiquei imaginando todas as dependências lá embaixo.
Finalmente comecei a andar pela casa e até mesmo lembrei-me do que
havia nos armários. Estava realmente com medo de ir lá em cima, com
medo de descobrir algum segredo horrível que me causava tanta
ansiedade. Fiz força para subir, degrau por degrau. Olhei no quarto de meu
tio... nada ali. Atravessei o hall para o quarto de meus pais com o coração
aos saltos. Na porta, levei um susto quando vi o quarto vazio e perc ebi que
era assim mesmo. Estava com medo porque a casa estava vazia. Não havia
lá ninguém para mim. Eu estava só. Nunca me sentira tão triste. Percebi
que nunca antes correra toda a casa. Não podia enfrentar o medo e a dor
então, só ... fui sentar-me em frente da TV olhando-a com raiva. Queimava
os fósforos para aliviar a raiva, e quando mamãe chegou em casa eu fingi
que nada havia de errado. Por dentro reagi como um bebê mas não quis
fazer o mesmo por fora.
Quinta-feira
Durante toda a noite passada estive alarmada sem poder respirar, com o
estômago apertado como cólicas. Não podia ter a sessão hoje de manhã e
decidi fazer sozinha. Continuei vendo a casa em que tínhamos morado
quando eu tinha dez anos. Olhei no quarto de mamãe e de papai e senti
vontade de fazer uma violência, raiva ... imaginei uma briga mas não era
real. Finalmente fui ao escritório. Lembrei-me da noite que voltara do
acampamento quando percebi que havia alguma coisa errada. No dia
seguinte perguntei a mamãe se eles iam se divorciar. Naquela noite pensei
ouvir eles brigando lá em cima enquanto eu estava cá embaixo. Lembrando-
me de papai comigo quando eu estava tomando banho dizendo que gostava
de mim, muito triste deixando eu perceber pela sua expressão que havia
alguma coisa errada. Chorei. Hoje eu creio que chorei de dor durante duas
horas. Sabia naquela noite que ia acabar o fingimento. Que logo seria
inevitável. Não havia família. Tinha que ver que não estava certo, nunca
estivera ... depois de dez anos de fingimentos de todos nós eu en trei em
pânico. Não podia aguentar. Queria pedir a eles ... gritei não, não, não.
Toda a dor que escondera em criança tinha que esconder outra vez naquela
noite. Mamãe poderia ter feito sim ... se ela tivesse continuado a fingir
todos nós teríamos fingido também. Era horrível. Era o fim do mundo ... de
nosso mundo de fingimentos.
Sexta-feira
Ainda sinto dor de cabeça e de estômago. Não consegui expelir tudo ontem.
Repito tudo na sessão de hoje. Só o que faltava era o grito porque não tive
coragem de gritar em casa. Gritei "não" uma porção de vezes e senti-me
aliviada.
Segunda-feira
Ainda me sinto mal na maior parte do dia. Na sessão eu mergulhei bem no
fundo de minhas sensações de solidão procurando encontrar o terror, mas
ele está todo na antecipação. Desde que sentisse a solidão em lugar de
repeli-la, era o mesmo que sentir-se só e triste. Não é agradável mas pode-
se suportar. Fui até a minha dor de estômago trazendo-a para a cabeça,
mas não sabia o que sentia. Comecei a chorar muito para ver se consegu ia
livrar-me da sensação. Gritei por mamãe: "Eu preciso de você. Tenho medo.
Cuide de mim." Não adiantou. Entrei em pânico. Não ia conseguir livrar -
me. Senti o nariz obstruído e fiquei sufocada. Não sabia bem o que sentia.
Comecei a ver a cabeça rodando, fui ficando confusa e louca. Sentia-me
como na viagem da droga. Tentei dizer alguma coisa simples, mas alguma
coisa que não podia tolerar. Continuei a procurar as respostas e fui ficando
zangada. Finalmente desisti e voltei para casa com medo e confusa.
Terça-feira
Resolvi voltar à Primal para ver o que não podia enfrentar. Todos os gritos
que dera e as necessidades que sentira não tinham ligação. Voltei para o
dia seguinte à noite que viera do acampamento. Mamãe e eu íamos para
Glendale de automóvel. Perguntei se tinham pretendido divorciar-se.
Senti-me gelada antes dela responder, comecei a flutuar para fora do carro,
sentindo-me tonta, caindo. Percebi que estava procurando fugir à
reconstituição daquela situação. Fiz força para voltar a ela. Já estava de
volta no automóvel olhando-a de frente. Tornei a perguntar e senti um
aperto no estômago. Ela disse sim. Eu afundei como se recebesse um soco
no estômago. Impossível. Ela disse sim. Senti-me empurrada contra a porta,
eles estavam me empurrando, ela estava. Finalmente percebi como
percebera então. "Ela não me ama." Se ela me amasse, então não diria sim.
Mentiria para mim. Me protegeria, seria irreal para mim. Precisava que ela
dissesse não. Aquele era o sentimento que eu não podia enfrentar. Com
vinte e cinco anos eu ficaria louca antes de reconhecer que desde os meus
dez anos de idade, e provavelmente durante toda a minha vida, eu sentira
que minha mãe não me amava.
Sábado
Comecei chorando. Vi a casa na rua O depois do divórcio. Meu quarto de
dormir ... eu deitada na cama sentindo-me muito só. Gritei e chorei
chamando mamãe. Não podia suportar sentir-me tão só. Continuava a
sentir que ela não me amava, pois senão não teria havido o divórcio.
Esfacelou-se a fantasia.
Quarta-feira
Comecei com o estômago embrulhado e a garganta apertada. Via a casa na
rua B. Corri a casa procurando alguma coisa. Vi mamãe e minha irmã em
lugares diferentes mas elas estavam imóveis como estátuas. Queria alguma
coisa delas mas não conseguia. Estava isolada e só. Precisava realmente ter
alguém comigo. Mamãe. Precisava de seu amor. Sentia dores nos braços e
na cabeça. Depois senti-me paralisada como um bebê. Eram as únicas duas
maneiras que eu sabia para ter o amor. Vi os três na sala. Pareciam doentes,
os olhos mostravam medo. Queria fechar a porta como sempre fazia. Fui
para o meu quarto. Escondi-me lendo. Percebi a ligação eterna que fiz entre
o amor e a dor sendo um bebê desamparado. Nunca apaixonar-se por
alguém a não ser que inclua a dor nessa luta. E a necessidade, devendo
dinheiro a mamãe e a papai... tinha que tirar alguma coisa deles. Quando
tentei pedir amor vi que minha boca estava paralisada. Finalmente
consegui pedir uma porção de vezes.
Quinta-feira
Minha garganta está tão apertada esta manhã que não conseguia falar
quando cheguei. Sentia que toda a dor de minha infância era como se fosse
um soco no estômago. Gritei. "Mamãe por que você não me ama? Ame-me
por favor!" Senti que queria vê-la cuidando de mim, protegendo-me.
Depois, "mamãe, por favor, não me faça sentir dor," e isso foi repetido
muitas vezes. Nada adiantava. Aí então veio, "você está me magoando,
estou enjoada, você está fazendo eu ficar enjoada." Rolei sentindo -me
nauseada. "Então você não pode me ajudar?" Mergulhei naquela sensação
... aterrorizada por estar só e sentindo a dor. Consegui expelir um pouco
para fora do estômago. Só me sentia muito triste, muito mais dor e terror
do que jamais sentira.
Chorei ainda mais. Depois senti meu corpo formigar, o estômago ainda não
muito bom mas bem mais calmo por dentro de meu corpo. Sentei-me e
passei a mão no rosto e vi que estava diferente como nunca realmente o
sentira antes. A minha máscara aterrorizada já cedera.
Sexta-feira
Ainda sinto a mesma coisa no estômago e na garganta. Finalmente hoje
senti realmente a dor e a solidão. Mas não consegui estabelecer uma
ligação. De onde vem essa imensa dor? Não consigo expulsá-la. Sinto-a
finalmente sempre e não apenas durante as sessões. Mas sinto que preciso
livrar-me dela.
Sábado
Aquela sensação continua lá no grupo. Finalmente solto um grito que não
consegui controlar. Choro sem parar. "Eu sabia que mamãe não estava lá
para mim durante todo o tempo. Eu sabia que ela não podia remediar a
minha solidão." Um alívio momentâneo por aquilo haver saído na hora
certa. Mas não era tudo. Apenas mais um outro pedaço da Dor.
9 - A RESPIRAÇÃO, A VOZ E O GRITO
Freud acreditava que os sonhos eram "a estrada real para o inconsciente."
Se é que há essa "estrada real", ela talvez se encontre na respiração
profunda. Para alguns pacientes, o uso da técnica de respirar fundo, junto
com outros métodos, realmente ajuda a liberar a tremenda força da Dor
dentro do corpo.
Um estudo feito cerca de uns vinte e cinco anos atrás também mostra a
possibilidade de alguma ligação entre a respiração e o aborrecimento. 15 Um
grupo de pessoas às quais se havia pedido que pensassem em coisas
agradáveis foi subitamente convidado a pensar em coisas desagradáveis. A
sua respiração tornou-se mais acelerada. Mais recentemente, uma
investigação sobre o problema da hiperventilação chegou à conclusão que
as deficiências da respiração estavam muito ligadas à ansiedade. Além
disso, durante os testes feitos a esse respeito o pesquisador fez pressão
sobre a parte mais baixa do peito com a palma da mão para provocar uma
inspiração mais profunda. Em quase todos os casos isso teve como
resultado logo a seguir uma demonstração de emoção junto com choro e a
revelação de importante material histórico. 16
Wilhelm Reich fez a observação que a inibição da respiração estava
associada à inibição de sentimentos: "Pois tornou-se claro que a inibição
da respiração era o mecanismo psicológico da supressão e repressão da
emoção, e consequentemente o mecanismo básico da neurose. 17
Reich acreditava que os distúrbios respiratórios nos neuróticos eram o
resultado de tensão abdominal e prosseguia descrevendo como isso produz
a respiração insuficiente e como, quando apavorada, uma pessoa pode
suster a respiração por meio de constrição do abdômen.
15
J. E. Finesinger, "The Effect of Pleasant and Unpleasant Ideas on the Respiratory Pattern in
Psychoneurotic Patients," American Journal of Psychiatry, Vol. 100 (1944)
16
B. I. Lewis, "Hyperventilation Syndromes; Clinicai and Physiological Evaluation," Califórnia
Medicine, Vol. 91 (1959).
17
Reich, op. cit.
Assim, a técnica de respiração profunda é usada durante a Terapia Primal
para trazer o paciente para mais próximo de seus sentimentos. Muitos
pacientes meus referiram-se a diferenças na respiração depois da terapia,
e somente depois de haverem começado a respirar fundo é que
perceberam como era insuficiente a sua respiração anterior. Dizem que
agora já sentem como "o ar vai até o fundo" quando respiram. Dentro do
contexto Primal isso significa que não mergulham em suas Dores no
decorrer dos acontecimentos comuns, e mostra que uma das funções da
respiração curta é evitar a saída da Dor profunda.
A respiração adequada das pessoas deveria ser instintiva, a coisa mais
natural do mundo, mas mesmo assim, os neuróticos que tenho visto
raramente respiram direito. Isso é porque recorreram à respiração para
empurrar para baixo as sensações. Em resumo, a respiração torna -se parte
do sistema anormal. A respiração neurótica é um bom exemplo de como o
sistema irreal suprime o real, porque depois de sessões Primais os
pacientes automaticamente passam a respirar profundamente, isto é,
corretamente.
Uma vez que a respiração neurótica é destinada a resistir à Dor, quando se
força o paciente a respirar profundamente isso muitas vezes ajuda a
remover a tampa da repressão. O resultado é a emissão de força explosiva,
alguma coisa que antes estava espalhada por todo o corpo na forma de
pressão alta, temperatura elevada, mãos trêmulas e outras coisas mais. As
técnicas da respiração Primal tornam-se a via regia para a Dor pois vai
contribuindo para levantar o bloqueio das lembranças. Nesse sentido
muito importante elas representam o caminho para o inconsciente.
É tentador diminuir a experiência Primal considerando-a como um simples
resultado do síndrome da hiperventilação, ou seja, respirando mais do que
o sistema exige tendo como resultado um aumento na oxigenação e uma
diminuição de bióxido de carbono na corrente sanguínea, mas se fizermos
isso estaremos desprezando dois fatores importantes. O primeiro é que as
pesquisas mostraram que a sensação de dor, ou aborrecimento por si,
aprofunda o processo de respirar, um fenômeno notado pelos
investigadores científicos que não encontram explicação para ele. Eu
acredito que a Terapia Primal explica a ligação da Dor com a profundidade
da respiração. Segundo, em quase todos os casos de hiperventilação existe
o acompanhamento de tonteiras. Isso não acontece durante uma Primal.
Aliás, se o paciente se sentir tonto nós sabemos que não está tendo uma
Primal.
Eu não acredito que as técnicas respiratórias em si tenham qualquer poder
intrínseco para transformar uma neurose. Elas podem aliviar a tensão por
algum tempo como acontece com um suspiro, mas então elas seriam
consideradas uma defesa como qualquer outro aliviador de tensão.
Na maioria dos casos, as técnicas respiratórias não são necessárias ou
então são raramente usadas depois dos primeiros dias da terapia. É preciso
lembrar que estamos em busca da Dor e que a respiração é apenas um dos
muitos artifícios que usamos para chegar a ela.
A respiração e a voz que a domina parecem ser um bom indicador da
neurose. Muita gente nervosa quando entrevistada na televisão
geralmente sente falta de ar e não consegue respirar direito. Isso pode ser
devido a alguém que tenta uma imagem que não está de acordo com a
realidade.
O paciente tenso que vai começar a sua terapia pode bem encontrar-se nas
mesmas condições. Mostra-se frequentemente apavorado e chega
lambendo os beiços, engolindo em seco e sentindo falta de ar.
Depois que o terapeuta Primal começa a atacar o seu sistema de defesa a
falta de ar aumenta. A Dor que parece subir do estômago embrulhado não
consegue passar além da barreira do peito que parece estar sendo
apertado. A respiração profunda está começando a derrubar a barreira.
Pede-se ao paciente que aspire fundo e que diga "AAAH", e logo que isso
se liga à sensação que vem subindo o paciente fica entregue a si mesmo. A
força embaixo, encontrando uma abertura, parece empurrar para cima
automaticamente e o paciente entra num estado a que chamo de conflito
respiratório.
É nesse ponto que está para acontecer o rompimento mais importante. O
paciente está então em vias de se transformar de predominantemente
irreal para predominantemente real. O conflito respiratório geralmente
tem lugar depois de algumas sessões Primais, logo antes da principa l
ligação que unificará a pessoa mantendo-a daí em diante inundada de
sensações e insights.
O conflito respiratório é um estágio involuntário na Primal em que o
paciente começa a arquejar tanto que chega a parecer um animal. A
respiração começa a se tornar cada vez mais rápida e pesada até que em
alguns casos fica muito parecida com o arquejar de uma locomotiva, mas o
paciente está tão preocupado com as sensações que muitas vezes não se
dá conta da natureza de sua respiração. O conflito respiratório parece ser
o resultado do impulso vindo de baixo de todas as sensações reprimidas
contra as forças neuróticas que ás comprimem. O processo respiratório
pode durar quinze ou vinte minutos e a pessoa parece estar numa corrida
da qual depende sua vida e para a qual precisa de todo o ar que consome.
Dentro de circunstâncias comuns o paciente pode desmaiar.
Logo que a respiração assume vida própria o terapeuta nada mais tem a
fazer senão observar. O conflito respiratório é um sinal patagnomônico que
a Primal já começou. Os pacientes dizem que se sentem impotentes diante
da invasão da Dor. Eles sabem que poderiam detê-la se quisessem, mas
nem uma só vez ainda na Terapia Primal houve qualquer paciente que
fizesse isso abortando sua Primal.
Quando a respiração fica mais forte e profunda nós sentimos que o clímax
está distante apenas alguns segundos ou minutos. O estômago treme e o
peito arfa; as pernas dobram-se e desdobram-se e a cabeça vira de um lado
para outro. Ele mostra-se, em geral, como se estivesse fugindo à sua Dor.
De repente, numa imensa convulsão, a ligação parece haver se
estabelecido e isso explode pela boca na forma do Grito Primal. Ele então
já respira profunda e tranquilamente. Houve um paciente que disse estar
voltando à vida com aquela respiração. Outros sentem-se "refrescados",
"limpos" ou "puros".
Depois da ligação principal nós vemos uma respiração fácil, muito diferente
da que o paciente tinha quando começou a sessão. Um paciente que era
atleta de corrida rasa disse que nunca antes respirara tão bem em sua vida.
O Grito apresenta uma série de efeitos marginais. Pacientes que antes não
tinham coragem para tomar uma decisão em casa experimentam uma
sensação de poder e autoridade. O Grito em si já parece ser uma
manifestação de liberdade.
Quando ouvimos as gravações de sessões Primais logo percebemos a
mudança na respiração que acompanha os vários estágios da sessão.
Em raras ocasiões, há pacientes que fingem o Grito que então parece vir
dos pulmões e sempre se parece com um guincho. O Grito falso parece ser
a continuação de uma falsa esperança. Uma vez que o Grito Primal significa
o fim de uma luta, é bem pouco provável que seja emitido por alguém que
ainda esteja lutando.
Embora se fale frequentemente em sensações profundas, nós raramente
dizemos o que esse "profundo" pode significar. Pela minha experiência, eu
acho que os "sentimentos profundos" envolvem todo o organismo,
particularmente a área do estômago e do diafragma. Muita gente percebe
logo no princípio da vida que seus pais não gostam de ver os filhos
exuberantes e cheios de vida, e então Togo aprendem a viver quase com a
respiração suspensa com medo de dizer ou de fazer alguma coisa errada,
de ser barulhento ou rir alto demais. Cedo ou tarde esse medo estrangula
o sentimento numa garganta apertada, num peito comprimido ou num
estômago embrulhado. Em vista de todo esse processo, a voz torna-se mais
aguda porque é uma voz que não está ligada a todo o corpo.
Em muitos casos, a fala do neurótico pode ser comparada com a do boneco
do ventríloquo, com a boca movendo-se mecanicamente, sem parecer
humana e como se estivesse desligada de todo o resto do sistema. Essa voz
é muitas vezes trêmula pois repousa numa camada de tensão e não num
sólido alicerce de sensação.
A boca também parece participar muito da neurose. Os pacientes que
passam pela Terapia Primal dizem perceber uma sensação diferente nos
lábios. O que quero dizer é que todo o nosso sistema parece refletir a Dor.
Há muita gente que quando fica zangada aperta muito os lábios e assim fica
até que volta ao normal.
Não é somente no rosto que se nota diferença depois das sessões Primais.
Também a voz se modifica. Esse é talvez um dos sinais mais óbvios e
notáveis de alguém que já passou pela terapia. As mulheres que antes
falavam fino como se fossem criancinhas, passam ater uma voz mais cheia
e profunda.
A fala dos neuróticos muitas vezes não mostra uma nuance porque ela
reflete um constante estado de tensão. Um paciente disse que costumava
falar aos arrancos, sem pensar e sem sentir o que falava. Depois da Primal
ele percebia o que falava.
Um paciente que tinha uma voz fina e apagada disse depois da Primal que
"eu pensava que tudo em torno de mim era fino e apagado. Sentia que
dentro de mim devia haver uma voz forte mas nunca tinha a coragem pa ra
usá-la." Um outro que falava pelo nariz disse: "Toda a minha vida pensei
que havia algo de errado em meu nariz. Agora estou vendo que não havia
nada. O caso era que eu estava filtrando meus sentimentos pelo nariz em
lugar de falar abertamente."
Uma indicação que a maneira de falar pode ser um bom espelho da pessoa
é que ficamos ansiosos quando imaginamos estar falando com uma voz que
não é a nossa. Por esta razão eu muitas vezes faço com que os pacientes
de grupos troquem de voz para com isso enfraquecer suas defesas.
É claro que eu considero a fala do neurótico como sendo um mecanismo de
defesa. A pessoa que fala baixo pode estar fazendo assim com medo de
chamar a atenção, e portanto, pode estar controlando um grito.
Quando o Terapeuta Primal manda um paciente falar mais lentamente e
com mais cuidado, ele está penetrando num mecanismo de defesa.
Enquanto houver um bom estoque de sentimentos reprimidos, são eles que
moldam e dão cor a todas as palavras que saem da boca de um neurótico,
assim como também controlam a estrutura de sua boca. Quando o paciente
fala durante suas primeiras horas, o que ouvimos é o funcionamento de seu
sistema de defesa.
Eu acho que a fala é apenas uma faceta de todas as operações de defesa
da pessoa. Quando encontramos gente falando como criancinhas a minha
experiência indica que devemos também encontrar imaturidade nas
relações sexuais e, muitas vezes, no próprio corpo, em ambos os sexos. E
assim sendo sempre que encontramos algum problema numa área,
certamente iremos encontrar o mesmo em outras. A mesma coisa que inibe
a voz pode também inibir a capacidade do paciente para um orgasmo
completo. Vamos citar um exemplo. Um menino é criticado por tudo que
diz ou faz e ao mesmo tempo, não tem permissão para retrucar ou mostrar
raiva. Essa raiva suprimida permanece e vai colorir seu rosto na medida em
que ele cresce. Mais tarde ele tem filhos. Todas as palavras que saem de
sua boca são zangadas e são uma ameaça implícita e perpétua ao seu filho.
A criança esconde então todas as facetas de seu comportamento com medo
de provocar a velha raiva do pai. Sua voz torna-se medrosa e seus
movimentos se restringem e isso pode afetar todos os processos do corpo,
talvez até mesmo o processo do crescimento. O medo de dizer a coisa e
provocar uma explosão no pai pode trazer problemas de fala na criança.
Ela terá que examinar todas as palavras para fugir ao perigo e poderá ser
vítima da gagueira.
Uma pessoa que antes gaguejava explicou o seu problema da seguinte
maneira: "A minha gagueira era realmente a minha luta. Era como se fosse
o "não eu" falando para evitar que o verdadeiro eu se manifestasse.
Sempre tive que escolher cuidadosamente as minhas palavras desde que
comecei a falar. No fim eu só falava o que os meus pais queriam que eu
falasse. Era como se eu estivesse amarrado a eles pela boca. Eu me dava
bem com eles desde que o meu verdadeiro eu não dissesse o que sentia."
Esse paciente nunca gaguejou durante uma Primal já que era sempre o seu
verdadeiro eu. A gagueira parece ser a prova gráfica do conflito entre os
dois eus e os sintomas criados por ele. O fato dos pacientes não gaguejarem
nas Primais também indica como a maneira de sentir liquida os sintomas
neuróticos.
Durante uma sessão de grupo, enquanto esse homem discutia seus
sintomas, uma outra paciente contou-lhe que enquanto ele se agarrava aos
pais com a boca ela fazia o mesmo conservando sua vagina frígida. Em
outras palavras, ela estava querendo dizer que o local da luta é aquele em
que a criança em crescimento focaliza a sua. Se a mulher espera ser boa e
pura para os pais, a luta, ou seja a negação do sentimento, pode se
canalizar para os órgãos genitais. Em outras ocasiões, como já vimos, pode
ser pela boca. De qualquer forma, quando uma criança adota as mesmas
atitudes de seus pais e funciona com elas em lugar de seus próprios
sentimentos, nós podemos esperar que o corpo não funcione mais de uma
forma real e fluida. A palavra é um processo criativo durante o qual, a cada
momento, nós produzimos alguma coisa que não existia antes. O neurótico
torna a criar todo o seu passado em todas as suas palavras. A pessoa normal
está sempre criando um presente novo.
10 - AS NEUROSES E A DOENÇA PSICOSSOMÁTICA
18
John I. Lacey, "Psychophysiological Approaches to the Evaluation of Psychotherapeutic Process
and Outcome" em Research and Psychotherapy, eds. E. A. Rubenstein e N. B. Parloff (Washington,
D.C. American Psychological Association National Publishing Co. 1959).
19
Ernest R. Hilgard publicou no American Psychologist de fevereiro de 1969 um estudo sobre dor
e pressão arterial intitulado "Pain as Puzzle". "As condições de stress normalmente levam à
sensação de dor e aumento de pressão. Desde que não se constate o aumento de pressão é quase
certo que também não deve haver dor."
A tensão que é uma coisa completamente corporal deve prejudicar todo o
organismo, especialmente os órgãos constitucionalmente enfraquecidos.
Os anos seguidos desse stress deve combalir os indivíduos, e é por isso que
aqueles que estão livres de tensões geralmente vivem mais do que os
neuróticos.
O sintoma que daí surge depende de muitos fatores. Um, por exemplo, é
que aquilo que se torna aceitável conforme for a cultura da pessoa. Assim,
nos Estados Unidos, as dores de cabeça e úlceras são muitas vezes sintomas
que se explicam. Porém, mais crítico ainda é o significado simbólico do
órgão ou área afetados. A maior parte dos neuróticos não pode, ou não
tem coragem para enfrentar os seus problemas e assim a mensagem do
sentimento é simbolizada como, por exemplo, na miopia ou na asma que
aparecem quando a criança não tem nem mesmo licença para respirar
sozinha. Um paciente que tinha sofrido de asma em criança verificou que
ela reaparecia na medida em que ele se aproximava de seus mais
importantes sentimentos Primais durante a terapia.
Literalmente simbólica do split neurótico é a dor de cabeça de rachar. (N.
do T. Em inglês split também significa rachar.) Essa aflição é principalmente
devida ao conflito entre o sentimento de um lado e a ação, em sentido
contrário, do outro. Um paciente disse que "há vergonha na minha cabeça
por aquilo que meu corpo sente."
O neurótico então enche-se de remédios para passar a dor, sem
compreender que o que ele está sentindo é a Dor Primal. As dores de
cabeça se repetem porque a Dor Primal está sempre presente. Um paciente
explicou o caso. "Eu costumava dizer para mamãe que minha cabeça estava
matando-me, sem saber bem o que dizia. Minha cabeça estava matando-
me. Eu tinha que fingir que meus sentimentos não existiam e então
empilhava-os em algum lugar na minha cabeça até que sentia como se ela
fosse explodir."
Muitos de nós gastamos um tempo enorme matando as dores erradas,
tomando remédios de toda espécie, e procurando em vão fazer
desaparecer os sintomas das verdadeiras dores internas. Essas dores
sintomáticas conseguiram atravessar nosso sistema de defesa para vir nos
alertar, mas devido a esse mesmo sistema, o que geralmente surge é a pura
dor localizada aqui ou ali, de forma que a pessoa não consegue descobrir o
que lhe causa o sofrimento.
Numa recente reunião da New York Academy of Science, diversos cientistas
talaram sobre a possibilidade de alguma ligação entre as emoções e o
câncer. Claus Bahnson, psiquiatra do Jefferson Medical College, disse: "As
mais prováveis vítimas do câncer... são aqueles que não confessam suas
emoções." As suas conclusões indicavam que quando os indivíduos eram
vítimas de tragédias pessoais, aqueles com maiores tendências para o
câncer inclinavam-se a canalizar suas reações emocionais internamente por
meio do sistema nervoso. Isso, por sua vez, afetava o equilíbrio hormonal
e influía no controle do desenvolvimento do câncer. Bahnson também
mostrou que as vítimas de câncer, em regra geral, "não mantinham boas
relações com seus pais." 20 Prosseguia dizendo que desde que tais pais não
podiam ou não queriam reagir emocionalmente, seus filhos desenvolviam
a tendência que preferia reprimir seus sentimentos em lugar de extravasá -
los.
Nessa mesma reunião houve outras conclusões corroborando essas
possibilidades. W. A. Greene, da University of Rochester, encontrou em
doentes de câncer um alto grau de desespero e desamparo. 21
Uma particularidade interessante é que os índios Sioux que são conhecidos
por darem livre vazão a todos os seus sentimentos, raramente são vítimas
de câncer.
A literatura psicológica está cheia de volumes sobre medicina
psicossomática. Muito devemos ao pioneiro Franz Alexander pela sua obra
sobre os significados simbólicos das doenças somáticas. 22 Não tenho a
intenção de explorar todas as várias espécies de doenças psicossomáticas.
Será bastante dizer que muitas doenças atuais que são consideradas como
puramente físicas podem ser compreendidas em termos de corpos doentes
20
Claus Bahnson, Proceedings. New York Academy of Science (Primavera de 1968).
21
W. A. Greene, idem, idem.
22
Franz Alexander, Psychosomatic Medicine (New York, Norton, 1950).
ligados a um sistema totalmente doente que, dentro de circunstâncias de
outra forma normais, funciona notavelmente bem e de forma saudável.
A criança que tem o seu sistema físico ainda forte pode, aparentemente,
suportar muita tensão. Depois de anos de uma tensão crônica os sistemas
orgânicos tendem a ceder. É somente quando os indivíduos já estão
chegando à maturidade, quando já se libertaram da infância, que podem
ser os adultos que são física e mentalmente. Assim, a maturidade é não só
dos órgãos físicos como também dos mentais. Uma mulher muito baixinha
começou a crescer depois de uma Primal em que sentiu a significação de
ser pequena. "Eu fiquei pequenina para que meu pai visse que eu ainda era
a sua menininha para ele ter cuidados comigo. Se eu ficasse muito alta ele
nunca chegaria a perceber que eu ainda era o seu bebê." Durante toda a
minha carreira de terapia convencional jamais tive resultados como esse.
Robert Blizzard, um pediatra de John Hopkins, chegou à conclusão da
corroboração da relação que existe entre o crescimento e a estatura
mental. Numa conferência em Los Angeles no dia 22 de setembro de 1969
perante a Divisão de Crianças do Centro Médico da University of South
California, ele disse: "Muitos pediatras achavam que era tolice a noção que
a psique poderia controlar o crescimento. Isso nada tem de tolice." Ele
notou que quando uma criança de seis anos tem apenas a altura de uma de
três, o nível do crescimento hormonal está muito abaixo do que deveria
ser. Mostrou que muitas crianças pequenas crescem rapidamente quando
são retiradas de um lar pouco satisfatório, mesmo se forem para um
orfanato. Dentro de quatro a cinco dias já começarão a produzir o normal
dos hormônios do crescimento, e algumas chegam até mesmo a crescer
quase um palmo em um ano. Quando essas mesmas crianças foram levadas
de volta ao lar anterior, logo deixaram de crescer outra vez! Os estudos
feitos sobre tais lares revelaram uma grande privação em termos de amor
e em alguns casos as mães chegaram a confessar que odiavam as crianças.
O Dr. Blizzard diz que o único remédio para crianças com pouco
crescimento é um novo ambiente. Para os adultos eu recomendaria a
Terapia Primal.
A medida psicossomática é geralmente um problema cheio de
perplexidades para o médico porque o paciente muitas vezes nem sabe que
está tenso e também porque não existe nada em sua vida atual que possa
indicar a causa de sua moléstia. Muitas vezes não se encontra uma causa
psicológica aparente para uma moléstia repentina. Um exemplo disso é o
homem próspero que, finalmente, sofre o seu primeiro ataque cardíaco. O
seu médico pode atribuir aquilo ao excesso de trabalho e pode-lhe
recomendar um ritmo menos intenso de vida, mas isso, justamente, poderá
apressar o seu segundo ataque já que a inatividade quase que corresponde
à retirada de todas as defesas, ao aumento de tensão e maior pressão
interna. Assim, o segundo ataque seria o resultado de pouco ou nenhum
trabalho em lugar de trabalho demais. Mais precisamente seria o resultado
da pessoa não ter em que se concentrar para aliviar a tensão. Isso talvez
seja a razão de mortes prematuras em indivíduos aposentados.
Os médicos podem achar que a razão para os vários problemas que os
pacientes trazem ao seu consultório não são psicossomáticos porque não
há nenhum trauma visível. É bem possível, no entanto, que os sintomas
percebidos pelo médico sejam o resultado de tensões acumuladas. A
necessidade de uma medição periódica das tensões de todos nós deve
ajudar bastante para a compreensão e a prevenção de muitas espécies de
moléstias. Uma alta tensão continuada poderá significar a possibilidade de
um desequilíbrio hormonal que seria o causador das doenças. Alguns
pacientes que sofriam de hipotireoidismo antes da terapia tiveram a sua
condição alterada depois dela. Já não precisavam mais tomar os remédios
a que eram obrigados antes.
Eu acredito que a neurose pode ser considerada um fator em quase todas
as moléstias. O bloqueio de um sentimento equivale a suprimir alguns
aspectos de nossa fisiologia. Raramente encontrei ainda um neurótico que
seja fisicamente sadio. Os estudos recentes mostram que os indivíduos
mais ansiosos são também os mais susceptíveis aos vírus. Já antevejo o dia
em que a medicina não estará mais dividida entre o corpo (medicina
interna) e a mente (psiquiatria). Essa divisão fez com que a medicina
cuidasse dos sintomas físicos e a psiquiatria dos sintomas mentais, sem um
pleno conhecimento que os sintomas são uma excrescência de um sistema
psicobiológico em conflito. Em termos Primais, há muito pouca diferença
entre um sintoma mental, como a fobia, e um físico, como a dor de cabeça.
O sintoma é apenas uma forma idiossincrática para a pessoa resolver o seu
conflito. A especialização no tratamento de sintomas representa o mesmo
que tratar os seres humanos pelos seus fragmentos. Não devemos esquecer
que os sintomas estão ligados aos sistemas. Se tratarmos uma úlcera ou
uma depressão sem levar em conta o sistema, nós estaremos ignorando as
causas. Isso não significa que devemos desprezar os sintomas, mas o alívio
dos sintomas é apenas um expediente provisório.
O Desaparecimento dos Sintomas
23
W. Barker e S. Wolf, "Experimental Production of Grand Mal Seizure During the Hypnoidal State
Induced by Sodium Amytal," American Journal of Medical Science, Vol. 214 (1947)
24
Wayne Barker, Brain Storms (New York: Grove Press 1968)
seu rosto perdeu toda a expressão e ele soltou um grito curto e
estrangulado. Depois foi tomado de um violento espasmo muscular. Ficou
rígido. O rosto contraiu-se numa careta enorme, arqueou as costas com os
braços cruzados no peito e as pernas esticadas e rígidas. Esse rígido
espasmo muscular relaxou-se e ele começou uma série de contrações
típicas de uma grande convulsão. As ondas do cérebro durante o ataque de
dois minutos tinham todas as características de uma convulsão. Debaixo da
hipnose, o renascimento das reações à sua mãe havia sido abortado pelo
ataque epilético. (O grifo é meu)
Os pesquisadores ficaram francamente admirados por tudo isso porque o
barbitúrico usado tinha propriedades positivas contra convulsões.
Chegaram à conclusão que o ataque fora causado por um conflito entre a
raiva incontrolável e as restrições da consciência.
Vou citar ainda algumas coisas mais do que Barker disse porque estão
relacionadas com o conceito Primal. "Isso era consistente com a
formulação de Freud... um ataque convulsivo, nessa opinião, reduz o nível
de descarga de uma manifestação significativa para uma outra atividade
neuromuscular pessoal sem significação."
O que ele está realmente dizendo é que os sentimentos bloqueados
resultaram num maciço acúmulo de tensão com a manifestação convulsiva
final, um ataque epilético. Se ele não estivesse falando de um ataque, eu
teria pensado que estava se referindo ao que acontece na Terapia Primal.
É claro que um sentimento bloqueado na vida de alguém não produz a
síndrome epilética da mesma forma que não pode também produzir
úlceras, gagueira ou asma. Quando porém estão em causa anos de
sentimentos e sensações reprimidas, devemos concluir que há um acúmulo
de tensão que excede a capacidade de resistência do organismo, e isso
afeta a área ou o órgão da vulnerabilidade. Para uma pessoa nascida com
tendência para alergia, um acúmulo de tensão pode se transformar em
asma ao passo que para uma outra cuja tendência seja para distúrbios do
cérebro, isso pode se transformar em epilepsia. O que aconteceria se
alguém exigisse do paciente que ele desse vazão aos seus sentimentos por
meio de um grito? Acredito que com essa demonstração seria evitado o
desenvolvimento de um sintoma (a solução do conflito). O bloqueamento
do sentimento produziu uma atividade neuromuscular difusa, ou seja a
tensão.
É preciso ficar claro que uma única expressão de sentimento só impediria
aquele ataque especial. Ele continuaria a ser epilético e mostraria outra vez
os sintomas desde que fosse submetido ao stress. Quando todas as suas
repressões antigas não mais existissem, nós poderíamos então dizer que
ele tinha predisposição para a epilepsia sem ser epilético. É a mesma coisa
que ser basicamente sensível ou alérgico, mas sem ter alergias.
E Barker prossegue:
O Dr. Herbert S. Ripley e eu tivemos uma outra entrevista com um outro
paciente. Quando induzido à hipnose o paciente começou
espontaneamente a reviver uma série de experiências traumáticas cheias
de agressividade, de sentimentos de culpa e de desamparo, regredindo no
tempo à medida que ia passando de um episódio a outro. Aquilo era como
se ele estivesse espalhando no tempo, para nossa inspeção, um denso
complexo de experiências correlatas altamente carregado. A revivência das
séries parecia mostrar aquilo que ele só conseguia exprimir em convulsões.
Aqui, Barker expõe, quase palavra por palavra, a hipótese Primal. Na
verdade, aquele homem passou por uma experiência Primal induzida por
um processo hipnótico em que os controles conscientes haviam sido
afastados. Nesse caso, Barker mostra que a revivência de fortes situ ações
emocionais do passado levaram a um ataque epilético. Ou inversamente,
isso infere que fortes sentimentos não resolvidos nem exprimidos no
passado levaram a um ataque epilético. Muita gente acumula tensões e
alguns criam úlceras enquanto outros caem em convulsões. O problema é
a tensão e não a forma para aliviá-la. Pelas descrições de Barker eu chegaria
a conclusão que a hipnose e o barbitúrico enfraquecem o eu irreal que se
defende. O que vem à tona então são as sensações Primais que antes eram
mantidas sob controle. Um hipnotizador de palco pode em certo ponto
estabelecer uma nova frente para fazer com que as pessoas façam coisas
estranhas ou se mostrem diferentes, mas nas experiências de Barker nada
mais foi feito senão aliviar a frente. Isso é mais uma prova de como um
relaxamento (férias, aposentadoria ou doença de pouca duração) pode ser
uma ameaça para alguns neuróticos, uma ameaça para todo o seu sistema
físico. Ajuda a explicar por que são poucos os neuróticos que se submetem
a um relax pois isso para eles significa ser dominado ou até mesmo a morte.
O trabalho de Barker ainda diz mais. Os sintomas são necessários para a
economia psicofísica do indivíduo. Eles resolvem os conflitos. Remover os
sintomas sem remover as causas significa deixar as pessoas susceptíveis a
ocorrências ainda piores provenientes de tensões acumuladas.
Barker entrevistou depois um menino de dez anos que havia sido
convencido por sua mãe para evitar brigas a qualquer preço. Depois de
ligado à máquina de ondas cerebrais foi-lhe feita a seguinte pergunta:
"Como foi que você sentiu-se quando teve que oferecer a outra face, o que
significa apanhar mais ou fugir?". "Eu não queria que eles me julgassem
covarde, mas mamãe acharia ruim e ficaria zangada comigo se eu me
metesse em brigas..." Barker diz que ele ficou muito tenso e respondeu:
“Eu não podia ficar zangado com minha mãe. Ela é minha mãe. Foi ela quem
me pariu."
O padrão das ondas cerebrais era de tensão bastante parecida com leves
demonstrações epiléticas. Barker conclui então: “Sem a máquina, nós
jamais suspeitaríamos a presença de um componente epilético naquele
bloqueio de palavra mais ou menos comum. Isso estabelece uma ligação
entre todos os ataques, epiléticos ou não." Os sentimentos bloqueados, em
resumo, possuem a capacidade para produzir convulsões, pelo menos ao
nível de atividades cerebrais. Isto significa que, sendo perturbado, o
cérebro pode ter convulsões mesmo quando a pessoa não tem. Essas
convulsões do cérebro podem resultar em comportamentos e sintomas
neuróticos que em nada se diferenciam dos ataques epiléticos. Barker acha
que até mesmo a flatulência pode ser um ataque. Uma vez que existem
convulsões cerebrais em muitas qualidades de perturbações, ficamos
imaginando se um sintoma como a gagueira pode ser considerado um
equivalente à epilepsia. Será que a gagueira, então, é uma epilepsia da
boca?
Barker quer mostrar que a palavra bloqueada e os sentimentos que a isso
acompanham acumulam uma tensão que acaba chegando ao cérebro. E
ficamos então pensando quais poderão ser os efeitos de anos de acúmulos
de repressões da palavra e dos sentimentos. O que tem importância no
estudo de Barker é que se nós formos estudar somente o gráfico do
cérebro, logo concluiremos que os sintomas de epilepsia ou de gagueira,
por exemplo, seriam causados por irregularidades nas ondas do cérebro.
Se nos aprofundarmos, logo verificaremos que elas são o resultado do
acúmulo de sentimentos bloqueados. Precisamos ter sempre cuidado em
não equacionar a causa de uma doença com aquilo que estamos medindo.
Assim, se encontrarmos algumas transformações nos componentes
químicos do sangue ou da urina de esquizofrênicos, isso não significa
necessariamente que essas transformações causam esquizofrenia.
O que Barker mostra em seu excelente livro é que muitos comportamentos
diferentes parecem ter uma correlação quando não houver um suave
funcionamento do cérebro e que isso pode ser o resultado de sentimentos
bloqueados e o subsequente acúmulo de tensão. Essa carga embaraça o
cérebro obrigando-o a trabalhar muito. Em termos Primais, isso significa
que as funções do cérebro cedem quando nos acontece alguma coisa que
seja mais do que podemos integrar de uma só vez, ou sejam as Cenas
Primais.
O que tudo isso significa é que quando não podemos ser nós mesmos numa
situação isso não significa simplesmente o seu fim. Torna-se internalizada
em forma de tensão que acaba chegando ao cérebro onde se interrompe o
funcionamento. O resultado disso poderá ser pensamentos confusos,
gagueira ou epilepsia, ou então simplesmente um comportamento de
seguir em frente.
O sintoma neurótico é a solução idiossincrática das lutas internas do
indivíduo. Nesse sentido, o estilo é o homem. O sintoma, portanto, não
pode ter um significado generalizado pois só pode servir para a quela
pessoa. Assim, o rilhar de dentes pode ter milhares de significações. Para
um paciente era agarrar-se à vida com os dentes ao passo que para outro
significava uma raiva inexplicável, mas para todos os pacientes, cada
sintoma tem um significado que serve para ele e só para ele. Sendo assim
não podemos generalizar sobre as pessoas que rilham os dentes. Tampouco
podemos ter definições que sirvam para tudo. Somente o paciente pode
dizer-nos o que significa seu sintoma.
Há sintomas neuróticos que geralmente não são julgados como tais, como,
por exemplo, a baixa estatura. Ninguém vai a um psicólogo porque é baixo,
mas depois da terapia, nós vamos descobrir que o desenvolvimento da
pessoa foi retardado mental e fisicamente. Vemos que o paciente cresceu
e inferimos assim que o fato de ser baixo era realmente um sintoma, era a
sua solução idiossincrática das contradições íntimas que o afligiam.
Durante os últimos dois anos não conheci caso algum de reincidência de
sintomas em alguém que tivesse completado a sua Terapia Primal, e já não
posso afirmar a mesma coisa sobre o meu trabalho como terapeuta
convencional. Por quê? Na minha opinião, é porque os sintomas dependem
da tensão. Os sintomas não voltam porque não há Dor Primal para a
reincidência da tensão. Não há split que esteja dividindo o corpo e a mente.
Nada mais há, em suma, que esteja submerso criando pressão no
organismo.
Eu poderia continuar citando uma lista sem fim de todos os sintomas
erradicados pela Terapia Primal desde as cólicas menstruais até a asma,
mas isso faria da Terapia Primal uma espécie de panaceia que prejudicaria
a sua reputação. Um colega meu chegou a dizer-me: "Se, pelo menos, você
me contasse alguns de seus fracassos, alguns sintomas que nunca
desapareceram, eu estaria, talvez, mais disposto, a acreditar nas coisas
incríveis que me conta." O fato é que a Terapia Primal deveria poder
resolver todos os sintomas, ou então não seria válida a premissa que os
sintomas são o resultado das Dores Primais.
Talvez o paciente que já passou pela Primal, isento de sintomas e de
tensões, possa parecer um super-homem, mas é o neurótico que está
tentando mostrar-se como tal quando come o dobro do que precisa,
trabalha o dobro de todo mundo, usa o dobro da energia para só conseguir
infelicidade em dobro.
Discussão
Todo homem representa a sua verdade. Para o neurótico elas são as Dores
Primais. Uma mentira da mente significa um ferimento no corpo. Embora a
mente do neurótico diga que não há nada errado, o seu corpo conta a
verdade. As doenças psicossomáticas são a verdade do corpo.
Com o correr do tempo nós talvez sejamos obrigados a mudar de ideia a
respeito do que significa um funcionamento normal. Uma paciente, que era
enfermeira, mediu a pressão arterial e tomou o pulso de outros pacientes
do grupo, e verificou que os índices eram sempre abaixo dos normais.
Muitos pacientes já notaram uma constante queda na sua temperatura
quando em repouso. Alguns dizem que suas temperaturas estão sempre em
volta de mais ou menos 35,5° C. De um modo geral os pacientes que
passaram pela Primal gozam de excelente saúde e só posso atribuir isso à
ausência de tensão crônica.
Quando o neurótico não sucumbe à doença resultante de tensão crônica,
ele poderá sucumbir ao seu hábito de procurar ver-se livre da tensão. O
fumo, a comida em demasia, os remédios e as bebidas, tudo isso cobra a
sua taxa. Mesmo com a ajuda desses hábitos para esgotar a tensão, muitos
neuróticos continuam a sofrer de moléstias psicossomáticas. O sistema
neurótico é como um vaso gigantesco extravasando os sintomas pelas
bordas. Temos feito tudo para derrotar os sintomas do melhor modo
possível, mas devemos fazer claro que precisamos esvaziar o vaso das altas
tensões se quisermos eliminar os sintomas. Só podemos fazer isso se
compreendermos que a tensão neurótica não é normal e não cabe num
sistema saudável. Os sintomas são o resultado do corpo trabalhando contra
ele mesmo, da pressão entre o eu real e o irreal. Para uma saúde física e
mental duradoura será preciso eliminar essa força.
11 - O FATO DE SER NORMAL
25
Indico ao leitor o trabalho de Hans Selye sobre hormônios e stress, The Stress of Life, N.York:
McGraw-HilI, 1950.
Houve um que, de apaixonado incondicional de ópera, passou a apreciar
normalmente a música mais popular achando que ela é mais uma
"celebração da vida", ao passo que a ópera era para ele uma verdadeira
agonia.
Também notamos mudanças marcantes em níveis de inteligência. Um
paciente explicou-me que "se fosse esperto quando era pequeno, teria
morrido porque teria percebido o quanto era odiado pelos pais. Só
sobrevivi porque mostrei-me obtuso desligando uma parte de meu
cérebro. Eu já reparei crianças que são inteligentes e espertas e que, de
repente, se transformam. Creio que a razão é porque recebem a mensagem
Primal e fingem não entendê-la."
Os cursos universitários logo se tornam fáceis para esses pacientes, pois
eles sabem que uma parte de tais cursos é como se fosse um jogo e, então,
não se tornam ansiosos.
Tornam-se mais articulados porque finalmente conseguiram articular
coisas a que não se atreviam durante toda a vida. Tornam-se perceptivos e
decididos não apenas em aparência mas também mentalmente. Caminham
desempenados em lugar de tímidos e curvados.
Podem ter vida social pois já não sentem mais medo quando fazem visitas.
Outros que estavam sempre correndo sem destino já agora sabem como
ficar em casa lendo e apreciam ficar sós.
O pós-Primal passa a gozar a vida de forma mais intensa e completa. Gosta
de tudo que faz.
E o que acontece com a criatividade dessa gente? Será que ela também
some junto com a neurose? A resposta é negativa. Ninguém perde suas
qualidades artísticas. O que se modifica é o conteúdo da arte que
produzem. Devemos lembrar que a imaginação neurótica significa a
simbolização daquilo que é inconsciente. Assim, o neurótico sempre se
manifesta de forma abstrata e indireta. O conteúdo de sua arte é a forma
peculiar que suas sensações e pensamentos assumem artisticamente
depois de contornar a Dor. É claro que sem o bloqueio da Dor o conteúdo
mudará. O ato criativo do neurótico é a maneira pela qual persiste em não
perceber, ou antes, em sentir. A perspectiva artística do paciente pós -
Primal também se transforma. Ela passa a ver e ouvir as coisas de forma
diferente. A neurose não é um fator essencial para a arte.
Vamos ver agora o que acontece com as relações com outras pessoas. Uma
mulher que terminara a sua terapia saiu para jantar com o marido que
nunca se submetera a tratamento. Não permitiu que ele escolhesse os
pratos para ela e para tornar as coisas ainda piores mandou suspender o
vinho que ele escolhera pedindo um outro que ela gostava. Ele ficou furioso
e levantou-se da mesa. Houve uma cena e ele acusou-a de estar tentando
"castrá-lo", de não querer mais reconhecer que ele era o homem, quando
tudo que ela fizera fora apenas deixar de ser submissa e humilde com o ele
gostava, para ser uma pessoa de verdade.
É interessante notar que os casais que se submetem à Terapia Primal nunca
mais se separam. Não sentem mais necessidade neurótica de alguém mais
porque já sentiram suas verdadeiras necessidades. Já não existe razão
alguma para não se darem bem. Não exigem coisa absurdas um do outro
porque não são irreais. Cada cônjuge torna-se apenas um ser humano
razoável que se contenta em viver e deixar que os outros vivam.
Os pacientes que se submeteram à Primal já não toleram mais fingimentos
e, sendo assim, afastam-se de muitos velhos amigos. Preferem manter
relações entre eles e é comum saírem casamentos dentro do grupo. As
amizades deixam de ser possessivas para serem tolerantes, e isso se nota
até mesmo em seus rostos. Já não são mais aquelas máscaras forçadas para
esconder sentimentos. Não precisam fingir para o mundo e, portanto, o seu
semblante é natural. Verificam que já não precisam de tanto dinheiro como
antes. Comem menos, saem menos e levam vidas mais moderadas. Os
leitores ávidos, especialmente aqueles que devoraram romances,
abandonam grande parte de suas leituras. Uma paciente explicou que a
necessidade de ficção, que antes a dominava, era para viver fora da
realidade, e aquilo já não era mais necessário.
Suas vidas já não são mais tão regimentadas. Comem quando sentem fome,
compram roupas só quando precisam e procuram satisfação sexual quando
sentem tal necessidade e não quando estão tensos. Isso significa menos
atividade sexual mas também uma apreciação mais completa daquela que
é praticada. A maior parte passa a ouvir mais música do que antes,
conforme me disseram alguns diplomados universitários.
Será que a vida deles torna-se monótona e insípida? A resposta é afirmativa
pelos padrões neuróticos, mas devemos lembrar que a excitação nos
neuróticos é o resultado da tensão. Isto quer dizer que o neurótico está
constantemente num estado de excitação interna e que muitas vezes
condiciona a sua vida para funcionar com ela. Ele se entrega a toda sorte
de atividades mas logo que elas cessem, a tensão se instala outra vez.
De uma certa forma, a pessoa torna-se um novo ser humano depois de
haver passado pela Terapia Primal. Ela nunca sente-se eufórica demais nem
tampouco deprimida. Apenas sabe o que isso significa. É muito difícil
encararmos uma pessoa irreal porque estamos sempre pensando estar em
contato com alguém ausente. Todo contato com as pessoas que passam
pela Primal torna-se agradável, pois sentimos estar falando com gente que
existe.
O indivíduo pós-Primal encara de forma diferente a solidão. Uma pessoa
que se submeteu ao tratamento durante dois anos disse-me que a solidão
já não era problema para ele. Já não sente a mesma angústia que antes da
terapia. Sente-se bem em companhia de si mesmo e acha que essa é a
melhor que existe.
Ele não precisa recorrer ao álcool para rir ou ser amável, como acontece
com tantos neuróticos. Sente um imenso alívio por estar livre de quaisquer
compulsões. Delicia-se com o fato de estar livre de alergias, dores de
cabeça ou quaisquer outros sintomas. Tem um verdadeiro controle da vida.
Já tratei antes da questão de empregos. É um fato que muitos pacientes
mudam de empregos depois de passar pela Terapia Primal. Houve um que
me disse que "antes eu vivia para o emprego, mas agora vivo para mim
mesmo." Geralmente a sua atitude consiste em encontrar alguma coisa que
goste de fazer sem se preocupar com seu valor como carreira. Houve um
que achou melhor ser sapateiro do que galgar posição importante numa
companhia de seguro. Gostava de trabalhar com as mãos, mas não tinha
coragem de fazer aquilo porque vinha de uma família de classe média de
alguns recursos. Enquanto não encontrava trabalho, confessou-me que,
pela primeira vez na vida, sentia-se aliviado por não ter um emprego.
O trabalho demasiado ou as ambições intelectuais fora da realidade não
fazem parte da vida de quem já passou pela Primal. Isso talvez seja uma
reação a uma sociedade que faz apoteose do autossacrifício, mas não quer
dizer, contudo, que todas as carreiras sejam abandonadas. Muitos
continuam em suas profissões. Tudo depende da motivação neurótica
quanto à escolha da primitiva carreira.
A pouca importância dada aos empregos e carreiras é também devido a um
outro fator. Durante anos, ou talvez décadas, o corpo e a mente do
neurótico foram atropelados. Ele precisa de tempo para se reagrupar.
Precisa de um período de cura não somente para a sua condição de
neurótico como também pela dura experiência com a Terapia Primal. O fato
de não ser mais neurótico depois de muitos anos é uma experiência
inteiramente nova e ele precisa de tempo para poder saboreá-la.
Relação com os pais
Vamos então pensar nisto nos termos mais simples. Temos um sinal de
fome, e o símbolo que surge na consciência é um pensamento de alimento,
algo que virá satisfazer essa necessidade. A mente automaticamente
apresenta os símbolos corretos ao corpo para que a necessidade seja logo
satisfeita para garantir a sobrevivência. Mas vamos então supor que seja
proibido pensar em "alimento". Então a pessoa, por medo ou pela dor é
obrigada a substituir por um outro pensamento, por uma ideia simbólica. É
obrigada a substituir alguma coisa irreal para consciente, porque a sua
necessidade real ainda existe, mas está bloqueada.
E o mesmo acontece com a necessidade de amor. A criança sente
necessidade de ser aconchegada, de que se fale com ela, mas cedo aprende
que não vai ser amada. A necessidade está lá e deve ser satisfeita de
qualquer maneira. E então a criança substitui. Ora, qualquer substituto,
desde que não seja real, tem que ser simbólico. A necessidade bloqueada
será simbolizada por sonhos, ilusões, manias, atividades, etc. Todos esses
símbolos originam-se na necessidade- sentimento. Algumas vezes, quando
já não há mais possibilidades de satisfação, a pessoa pode tentar liquidar o
sentimento por meio do álcool ou das drogas, embora os dois ainda sejam
atos simbólicos resultantes da necessidade. Tratar da bebida ou das drogas
sem levar em conta a necessidade é exatamente o mesmo que tratar dos
sonhos sem levar em conta as necessidades do corpo.
Estou afirmando que tratar de quaisquer derivativos simbólicos é uma
inutilidade, e é isso que tornou a psicanálise uma coisa tão demorada e
agoniante. Já é tempo de mergulharmos através dos símbolos, de chegar
até à necessidade, e com isso encurtar a terapia talvez por anos, para que
as pessoas fiquem curadas.
Uma das implicações centrais do que disse acima é que os testes de
projeção são desnecessários, exceto em casos muito raros. Quero me
referir aos testes de Rorschach, ao de Percepção Temática, etc. Todos são
testes de projeção simbólica. Depende do ponto de vista teórico do
psicólogo o teste que escolherá. Se ele for da escola de Jung verá uma
coisa; se for de Freud, uma outra; de Adler, ainda outra. É tudo uma
questão de palpite, quaisquer que sejam o número de anos que
procurarmos para tornar válidos nossos testes, porque estamos inferindo
um sentimento de um outro ser humano, e é somente ele, o paciente, que
sabe qual é.
Uma importante diferença entre as perspectivas freudianas e as Primais
gira em torno do conceito do sistema de defesa. A opinião analítica indica
que o sistema de defesa é necessário e saudável. Assim sendo, dificilmente
encontraríamos um terapeuta freudiano forçando uma penetração e
explosão dessa estrutura de defesa para liberar totalmente os sentimentos
inconscientes. Em lugar disso, todos os sentimentos que surgissem seriam
incorporados, explicados e finalmente compreendidos dentro da estrutura
teórica de Freud. O significado do sentimento seria, dessa forma, extraído
de alguma coisa completamente pessoal e abstraído em alguma coisa
conceituai. É por isso que não há interpretação na Terapia Primal. Os
sentimentos que vão subindo contêm seus próprios significados.
A opinião Primal é que não existe um sistema de defesa que seja saudável.
Todos eles são doenças. Isso não quer dizer que não se busque os
sentimentos na psicanálise, mas eles geralmente não são os Primais que
podem convulsionar os pacientes. Quando um paciente exibe essa espécie
de "histeria" em psicanálise, isso é geralmente considerado como um
rompimento das defesas, e logo se adotam medidas para reparar o sistema
em lugar de fazer com que o paciente mergulhe ainda mais na "histeria".
Os freudianos acreditam que existem certos instintos agressivos ou
destrutivos em nós que tornam necessário estabelecer controle e equilíbrio
para que a pessoa possa funcionar socialmente bem. Trabalhando dentro
de tal estrutura, seria inconcebível para um terapeuta freudiano soltar as
rédeas a essas forças "destrutivas". E no entanto, o terapeuta Primal
desperta esses sentimentos exatamente para que o sistema de defesa
controlado se esfacele. Nesse ponto as duas teorias são antagônicas, pelas
razões já expostas acima.
Michaels resume assim o ponto de vista psicanalítico: 26 "A medicina está,
aos poucos, abandonando o mito da pessoa normal... somos todos
relativamente neuróticos. Os princípios básicos de psicanálise afirmam que
o conflito é a essência da vida e que as renúncias instintivas são o preço
que se paga para sermos seres humanos e civilizados."
26
Joseph H. Michaels, "Character Structure and Character Disorders" American Handbook of
Psychiatry (New York: Basic Books, 1959) Silvano Arieti, ed .
Michaels segue parafraseando Alexander Pope, "Ser neurótico é ser
humano." Também Levine acredita nisso quando diz "A normalidade... não
existe." 27 O ponto de vista Primal é que a normalidade está muito na ordem
das coisas e que a anormalidade é uma perversão e distorção desse estado
natural livre de tensões ou ansiedades. Esse é o cerne da diferença. A
psicanálise exige um sistema de defesa porque afirma a existência de uma
ansiedade básica que precisa ser defendida. Já isso não acontece com a
Teoria Primal pois desde que não haja ansiedades básicas não haverá
também necessidade de defesas.
Wilhelm Reich
27
Maurice Levine, Psychotherapy in Medical Practice , N. Y.
Macmilla (n , 1942) 28 Reich, op. cit.
aliviavam as tensões. Como, porém, não eram acompanhados por uma
ligação mental, eles não tinham efeito duradouro.
Não obstante, a teoria de Reich tem muitas coisas importantes a dizer
acerca dos aspectos físicos da neurose. Mais tarde, Reich enfeixou uma boa
parte de sua teoria num exótico conceito sexual que muito o desacreditou
aos olhos de certo setor da comunidade científica, mas se dermos certos
descontos à sua inclinação sexual, verificamos que Reich chega muito perto
do ponto de vista Primal. "Somos levados a lembrar a perda da
espontaneidade nas crianças, o primeiro e mais importante sinal de uma
final supressão sexual na idade dos quatro aos cinco anos. Quando isso
acontece é sempre primeiramente debaixo de uma sensação de 'ficar
morto' ou de 'ser emparedado'. Mais tarde, essa sensação de morto pode
ser em parte disfarçada por uma compensação no comportamento psíquico
como hilaridade superficial ou sociabilidade sem contato." Eu acredito que
Reich está falando acerca do começo da neurose. O que ele diz é o que eu
atribuo à Cena Primal, e até mesmo a idade é a mesma nos dois casos.
O principal foco para Reich situou-se na tensão abdominal. "O tratamento
da tensão abdominal tornou-se tão importante em nossos trabalhos que
hoje não compreendo como foi possível conseguir curas de neuroses,
mesmo parciais, sem primeiro conhecer a sintomatologia do plexo solar."
Prossegue para mostrar como a tensão abdominal produz respiração
deficiente e como, em ocasiões de pavor, as pessoas suspendem a
respiração por meio da contração abdominal.
O que Reich acreditava era que a redução da respiração reduzia também a
absorção de oxigênio, permitia menos energia ao organismo e assim, no
seu raciocínio, aliviava a tensão. Embora eu não tenha muita certeza que
isso aconteça assim, acho que não devemos esquecer dos importantes
insights de Reich quanto à relação existente entre a respiração e a neurose.
Sempre que vejo um paciente pela primeira vez, procuro automaticamente
localizar de onde vem a sua voz e como ele respira.
Citei Reich porque acredito que com o passar do tempo a psicoterapia vem
tendendo a desprezar o corpo e a sua contribuição para a neurose. Como a
neurose é muitas vezes um fenômeno incorpóreo (um split partido do
corpo) nós a tratamos como se realmente fosse somente alguma coisa
incorpórea e mental. Assim, vamos encontrar o foco na associação de ideias
nas terapias de condicionamento ou a substituição de ideias na terapia
racional. Acredito, no entanto, que os adeptos de Reich dos dias de hoje
talvez tenham errado na direção oposta, isto é, que há uma tendência para
se desprezar os processos cerebrais quando se procura aliviar as tensões
físicas. O ponto de vista Primal é que o organismo é uma unidade
psicofísica. Qualquer método, para ser duradouro e bastante eficaz, deve
levar essa unidade em consideração.
Assim, as minhas objeções às várias técnicas como a terapia de toque, de
movimento de corpo, de natação, todas elas com o fim de "liberar" o corpo,
seriam as mesmas que se encontram na terapia de Reich. Eu diria que
qualquer método físico implicitamente prolonga o processo neurótico por
uma técnica em que as ligações mentais são ignoradas ou, pelo menos, não
são consideradas importantes, e em que o corpo é visto como entidade
separada da mente. Eu não acredito que seja possível libertar o corpo,
exceto temporariamente, enquanto existirem dores primais
profundamente ocultas que produzam uma contínua tensão física e mental.
Qualquer tentativa física para fazer isso eu considero simbólica, e já dei
antes aqui um bom exemplo disso.
Eu quero insistir que a mente não pode se livrar de lembranças dolorosas,
que envenenam todo o sistema, por meio de exercícios destinados a tornar
o corpo mais fluido e integrado. Essas lembranças, funcionando num nível
abaixo da consciência, continuam a enviar impulsos para o resto do
organismo prevenindo o perigo, e na minha opinião, esse perigo continuará
até ser sentido e resolvido. Nesse ponto haverá um relaxamento
verdadeiro e os exercícios corporais podem então ajudar. Eu também tenho
as mesmas objeções aos métodos que esperam limpar a mente obrigando
a pessoa a ter pensamentos "saudáveis." Será possível ignorar as
lembranças primais e substituir por pensamentos "alegres", mas isso não
erradica a Dor. No esquema Primal a ligação não só é desejável como
também essencial.
Quando enfrentamos uma neurose devemos ter sempre em mente a
etiologia. O que é que torna uma pessoa tensa anos e décadas seguidas
sem descanso? Hábito? Uma reação condicionada? Talvez, mas acho que é
mais complicado do que isso. A tensão é o sinal de um sistema em
funcionamento tentando resolver as necessidades do corpo. O sistema é
insuficiente, na melhor das hipóteses, já que segue tentando de forma
imprópria sem jamais entender bem que nunca vai resolver o que é
necessário. É com essa rede entrelaçada que devemos tratar e não com
suas partes somente, como os braços e pernas na terapia da dança, ou na
fala com a terapia da palavra, etc. Devemos compreender que uma cabeça
abafada, por exemplo, pode muitas vezes ser a pressão do corpo focalizada
em certa área. Temos que cuidar da pressão, ou então a pessoa será
obrigada a passar o resto da vida assoando o nariz para tentar aliviar a
pressão da cabeça.
A Escola Behaviorista ou de Condicionamento
28
Institute for Rational Therapy, brochura, 1968 .
racional alguém agir de acordo com seus verdadeiros sentimentos, e
quando os pacientes pós-Primais finalmente sentem a verdade, eles podem
então tornar-se racionais acerca de muita coisa na vida sem precisar de
explicações complicadas ou intelectuais. E por que não compreendiam
antes? Apenas porque o fato de negar os sentimentos significa negar
também a compreensão. Essa negação torna necessárias as ideias
substitutas, isto é, falsas.
Ellis menciona emoções autodestruidoras e nós vamos encontrar essas
noções em muitas teorias. Eu não acredito que haja emoções capazes de
destruir a pessoa. Ao contrário, o que destrói é a negação desses
sentimentos. Os sentimentos não podem destruir o ser porque pertencem
a ele. Aquilo que muitas vezes se considera como emoção destruidora, por
exemplo, a raiva, é o resultado do sofrimento reprimido. A falta de
sentimento é o que destrói o ser e também permite a destruição de outros.
Se é verdade que o neurótico age irracionalmente porque está dizendo para
si mesmo as frases erradas, então por que será que tanta gente diz as coisas
certas e mesmo assim não muda? O fumante pode dizer que 70% de todos
os seus colegas morrerão de câncer do pulmão, e ainda assim, fumar os
seus cigarros de costume. O alcoólatra pode jurar todos os dias que o álcool
apodrece o fígado e mesmo assim continua a entornar a sua pinga
repetidamente. O homossexual pode dizer a si mesmo que realmente adora
as mulheres embora continue a ter relações com homens. Se odeia as
mulheres o seu ódio nada tem de racional. É uma generalização de um
antigo sentimento Primal sepultado que não pode mudar, na minha
opinião, até que o sentimento histórico seja sentido e resolvido. O ódio do
homossexual pelas mulheres pode ser o resultado de anos de terríveis
relações com sua mãe. Dentro de seu contexto apropriado, o ódio pode ser
racional. Na minha opinião, quando se obriga um homossexual, com um
ódio básico por sua mãe, a repetir para si mesmo que adora as mulheres,
isso irá fortalecer a sua ideia e portanto também sua neurose.
Uma paciente Primal que se submetera à terapia racional explicou -me
como tinha sido o tratamento: "Lembro-me de haver dito ao médico que
estava terrivelmente contrariada porque meu namorado me largara. Ele me
disse que eu tinha um comportamento irracional e que eu precisava dizer
a mim mesma que realmente poderia viver sem ele e que não tinha
necessidade de amor para continuar vivendo. Aquilo era bem parecido com
a Ciência Cristã. Eu tinha que fingir estar sentindo uma coisa que,
realmente, não sentia. Por mais que dissesse a mim mesma, eu realmente
não conseguia convencer-me que poderia viver sem o meu namorado.
Agora já compreendo por que. Já senti o que estava querendo com o meu
namorado: era apenas um pai carinhoso."
Eu creio que a diferença básica entre a prática Primal e a racional é o papel
que nossa filosofia representa na neurose. Ellis acredita que as pessoas
agem de acordo com uma filosofia profunda, mas inconsciente, e que
precisa tornar-se consciente. O ponto de vista Primal é que as filosofias são
adotadas em termos da maneira por que agimos com a Dor, isto é, a pessoa
que é direita consigo mesmo tende a ter também ideias, atitudes e
filosofias direitas.
A Terapia da Realidade
29
Swami Vivekananda, Works (Advaita Ashrama, 1946), vol. 27.
Devemos lembrar que podemos meditar todos os dias sem, ainda assim,
reduzir a necessidade de meditação. De alguma forma o demônio da tensão
surge de novo todos os dias e tem que ser afugentado com a meditação. Os
rituais, as flores, as roupagens poderão parecer fazer parte do relax
embora não sejam condições essenciais. Não acredito que alguém precise
demonstrar que é alguém. Nós somos o que somos.
Existencialismo
30
C.R. Rogers, A Therapist´s View of Personal Gifts (Wallingford, Pa., Pendle Hill, 1960; On
Becoming a Person (Boston: Houghton Mifflin, 1961).
externo ao mesmo tempo que sabe aceitar o seu eu inconsciente mas
real. 31
Eu considero essa integridade como alguma coisa que nasce conosco, mas
concordo com Maslow que existe a necessidade de sermos reais ou
íntegros, isto é, de sermos o que somos. Não acredito, por outro lado, que
haja dentro de nós alguma coisa como uma força neurótica básica e
regressiva, e que ela só aparece quando sofremos algum cerceamento. Não
acredito que o medo, principalmente o medo de crescer, seja básico para
a função humana.
A neurose, para Maslow, é o conflito básico entre as forças defensivas e as
tendências para o crescimento. Essa tendência ele a vê como "Existencial,
instalada na mais profunda natureza do ser humano." Devido à necessidade
de considerar o homem sempre em termos de luta, muitas teorias postulam
o comportamento do homem como uma constante dialética entre algo
negativo e positivo. Assim, Maslow vê a necessidade da segurança como
uma "necessidade prepotente mais primordialmente necessária do que a
autoatualização." Antes que alguém corra riscos e se manifeste, será
preciso que satisfaça ou domine suas necessidade de segurança mais
fortes. O conflito torna-se paradigma básico para o crescimento. Eu não
considero o conflito como algo básico e interno. Ao contrário, penso que a
neurose resulta da pressão contra as tendências ao crescimento natura l e
desenvolvimento do organismo. Parece que não há uma prova concreta de
coisas que se pareça com necessidade de segurança ou medo básico de
independência e liberdade. Parece que aí se trata de comportamento de
neuróticos, mas devemos hesitar antes de atribuir tais comportamentos a
algum fator genético constitucional.
O que Maslow afirma é uma coisa de certo modo parecida com a posição
freudiana, ou seja, que existe uma ansiedade básica que precisa ser
dominada, e a isso ele dá o nome de necessidade de segurança. Nem
mesmo essas nomenclaturas, porém, parecem conseguir afastar Maslow de
sua demonológica opinião sobre o homem. Isso talvez seja devido ao fato
31
Abraham Maslow, Toward a Psychology of Being (Princeton, Van Nostrand 1962).
de nós construirmos nossas teorias psicológicas pelas observações que
tiramos de neuróticos que geralmente têm sempre bastantes demônios
para liquidar.
Não é a deficiência de necessidades que nos mantém imaturos e neuróticos
e sim a falta da satisfação das necessidades reais. De qualquer forma, eu
não consigo ver como pode haver algumas necessidades especiais que só
ocupam uma parte de nós. Toda necessidade é total. Quando não as
satisfazemos é porque somos deficientes.
O auto atualizador de Maslow é aquele que consegue experiências
máximas, os acontecimentos fora do tempo em que é transcendido, e a
pessoa chega a um estado quase igual ao Nirvana. A leitura existencialista
está cheia de discussões sobre essas experiências que aliás são altamente
tentadoras. Muitos de nós certamente gostaríamos de transcender a
miséria e a tristeza de nossas existências diárias, mas Maslow não mostra
claramente como tal experiência pode ser conseguida. É antes um
acontecimento místico. Em vista da falta de exemplos concretos no
trabalho de Maslow, eu vou confiar nas descrições dessas experiências
máximas por dois pacientes que estiveram antes em terapias existenciais
de grupo. O primeiro foi um homem que ficou deprimido durante dias. Ao
fim de uma semana de depressão um amigo convidou-o para escalar
montanhas. Escalaram uma muito íngreme e a pessoa ficou num estado de
euforia absoluta e chamou a isso, muito sério, de experiência máxima. O
que fizera ele? Simplesmente sacudira e livrara-se de sua depressão. Terá
ele transcendido os verdadeiros sentimentos que estavam em jogo na
depressão? Duvido muito. Ele apenas deixara de lado por uns tempos
aqueles sentimentos.
A segunda experiência ocorreu durante uma maratona de nudismo. O
homem estava passando por todos os grupos e era acariciado por todo
mundo. De repente sentiu em todo o corpo uma sensação de calor. Chamou
àquilo de "um instante de identificação com a humanidade." Mas o que foi
realmente? Ele estava recebendo o que achava lhe ser necessário, ou seja,
o calor e as críticas humanas, mas aquilo foi apenas uma experiência
momentânea que não estava ligada à grande dor do que ele precisara toda
a vida. O contato do grupo abafou suas tensões dolorosas e permitiu,
portanto, que ele transcendesse o que era real. Seu Nirvana não era
verdadeiro. Na minha opinião, a transcendência é o que os neuróticos
estão sempre fazendo. Qualquer Nirvana que tenham imaginado haver
atingido era certamente um estado irreal, pois o que eles precisam é a
experiência de descer até seus verdadeiros sentimentos.
A busca de uma experiência máxima muitas vezes parece ser apenas mais
uma luta para encontrar alguma coisa única numa experiência monótona e
apagada. Faz parte de uma esperança irreal.
Aqueles que foram sempre bem tratados pelos pais não têm razão para
desejarem transcendência. As pessoas que terminam a Terapia Primal
nunca falam dessas experiências a que Maslow se refere.
Os existencialistas já estão tentando abandonar as campanhas de
ansiedades básicas e forças instintivas para se concentrarem em processos
de autoatualização, numa campanha para nos levar à saúde. Rollo May e
seus companheiros explicam uma parte da posição existencial 32 : "A
característica do neurótico é que a sua existência está obscurecida...
coberta por nuvens e não sanciona seus atos. O objetivo do Existencialismo
é que o paciente tenha uma existência real." Isso se parece com o que quer
também a Terapia Primal, mas a própria linguagem do existencialismo
escurece a realidade em causa. O que é exatamente a existência? O que
significa para alguém ter a sua existência escurecida pelas nuvens?
O compromisso é coisa importante no existencialismo. O objetivo é ajudar
o paciente a livrar-se do vazio existencial e comprometer-se com alguma
coisa positiva e que caminha em frente. Os existencialistas raciocinam que
as pessoas podem conseguir sentir o seu eu por meio do compromisso. Mas
para que alguém se comprometa com alguma coisa é preciso que esse eu
exista. O neurótico está separado da maior parte de seus atos e portanto,
por definição, não pode se comprometer integralmente com coisa alguma.
Um empresário totalmente comprometido com o seu negócio está
geralmente tentando fazer o seu eu irreal trabalhar, e se sentir o que está
32
Rollo May, Ernest Angel e Henri Ellenberger, Existence (New York, Basic Books, 1960)
fazendo, é muito provável que não esteja totalmente comprometido com a
sua empresa.
Em termos clínicos, a posição existencial é parecida com a escola racional.
Um homossexual passaria a sentir a sua heterossexualidade por meio de
compromissos com atos heterossexuais. Eu acredito, porém, que a neurose
não é apenas uma questão daquilo que fazemos, e sim do que somos. Uma
pessoa pode praticar dezenas de atos heterossexuais e continuar sendo
homossexual porque sente e tem necessidade de alguém do mesmo sexo.
Um ato não vai varrer essa necessidade para sempre. Esse é o engano do
homossexual latente que procura afastar suas tendências com sucessivos
atos heterossexuais, tudo sem resultado. Ele pode até mesmo negar o seu
desejo de amor dos pais. É possível que alguém nunca tenha praticado o
homossexualismo e, ainda assim, sinta-se bastante homossexual.
Discutimos isso na seção do homossexualismo. O neurótico sempre pode
praticar um novo ato, mas isso dificilmente modificará sua neurose.
Os existencialistas, de um modo geral, discutem os compromissos das
pessoas, o seu comportamento atual e a sua filosofia. Eu não acredito que
a discussão possa mudar o que ele é. Para o neurótico, a discussão é muitas
vezes alguma coisa que está por cima do sentimento. Conserva a pessoa
"mental" para que ela não possa sentir sua verdadeira personalidade.
Em Ciências Sociais, "aproximação" refere-se à tentativa, de parte de
algumas terapias, para uma fusão com outras com o fim de fortalecer suas
posições. Assim, nós vamos encontrar teóricos freudianos querendo
misturar seus conceitos com o contexto de uma outra teoria para assim
tornar a sua mais viável, e também vice-versa. Essa reconciliação de
diferenças entre as várias teorias é mais aparente do que real e leva a
verdades mais "estatísticas" do que biológicas.
Quando examinamos a história das ideias psicológicas desde o começo do
século, vamos verificar uma grande importância atribuída à primeira
infância e uma focalização da introspecção. Para contrabalançar isso, os
teóricos do behaviorismo e da instrução abrem mão da introspecção e da
primeira infância para se concentrarem no comportamento. Houve depois
tentativas dos neofreudianos para atualizar a terapia de Freud com a
análise do ego, focalizando as atuais manobras defensivas do paciente.
A Teoria Primal situa-se muito distante dos conceitos behavioristas. O que
o behaviorismo parece fazer é abstrair o sintoma e tentar condicionar ou
descondicionar o comportamento irreal. Funciona com manifestações
irreais e não com causas e portanto não pode fazer mudanças verdadeiras.
A afirmação Primal é que o homem não é uma compilação de padrões de
hábitos nem uma massa de defesas contra os demônios ou instintos
internos. Quando uma pessoa experimenta seus desejos e necessidades
Primais sem medo de perder o amor, ela está experimentando o seu "ser".
Quando não pode fazer isso ela é um “não ser", para usarmos a expressão
existencial. Eu não acredito que qualquer espécie de esforço especial,
sublimação ou compensação possa transformar um neurótico em uma
pessoa com sentimentos. Para ser o que é, o neurótico deve regredir e
sentir o que era antes que tivesse deixado de "ser". Como disse um
paciente, "Para sermos o que somos, temos que ser o que não fomos."
O contentamento ou a felicidade, que geralmente são as metas da
psicoterapia, não são o resultado de insights acumulados, na minha
opinião, como também não são os cânticos ou os mantras repetidos, ne m
tão pouco se deriva da aquisição de hábitos "positivos." Acho eu que, se a
meta terapêutica é fazer o paciente sentir-se satisfeito, esse sentimento só
pode ser alcançado quando o paciente consegue finalmente descobrir o seu
verdadeiro eu. Qualquer felicidade conseguida pelo eu irreal nada mais
será do que uma irrealidade. A verdadeira felicidade, então, significa que a
antiga infelicidade foi solucionada e não existe mais.
Muitos terapeutas me informam que já constataram alguma demonstração
Primal em alguma ocasião, especialmente em maratonas de terapia de
grupo que duram a noite inteira. Geralmente eles são tratados como
histeria, e as pessoas correm a confortá-los procurando acalmá-los em
lugar de ajudá-los a expandirem-se. Se pudessem então ser orientados pela
Teoria Primal, talvez essas histerias resultassem em algo mais importante.
O objetivo das maratonas de terapia é geralmente construtivo e, por
estranho que pareça, muitos terapeutas "esquecem" suas teorias quando
participam de maratonas. Geralmente estão tentando fatigar o sistema de
defesa dos pacientes durante a maratona, e muitas vezes chegam a
conseguir. Porém, sem algum conceito do que está acontecendo, a
maratona muitas vezes transforma-se num exercício de exaustão em que
os pacientes explodem, entregam-se e choram, tornam-se íntimos, mas,
ainda assim, não chegam a fazer as ligações primais que dariam valor à
maratona.
Uma variação da terapia de maratona que está em plena ascensão é a
maratona nudista. As sociedades profissionais já agora frequentemente
incluem especialistas para acompanharem os trabalhos. A maratona
nudista é uma terapia de grupo comum, só que praticada sem roupas.
Destaca a parte sensual e geralmente uma boa parte do tempo passa-se em
piscinas onde se sucedem contatos e carícias para que os participantes
possam "sentir" as outras pessoas. O objetivo geral da maratona de grupo
nu é ajudar as pessoas a se desfazerem das artificialidades que as separam,
a eliminar a vergonha do corpo e aproximar as pessoas. Esse método faz
parte do conceito geral que as pessoas podem aprender a sentir e podem
tornar-se sensíveis e sensuais aprendendo a aceitar seus corpos por meio
de diversos movimentos. Embora isso possa oferecer algum interlúdio
interessante para quem leva uma vida sem sabor, eu não creio que
desperte sentimentos. Isso não se transforma em terapia pelo simples fato
de ser uma experiência sensual.
Quero mais uma vez afirmar que não podemos avaliar o que os outros
sentem. Aprendemos primeiro a sentir a nós mesmos e depois vamos nos
sentir quando sentirmos os outros. Assim, se uma pessoa tiver seus
sentimentos bloqueados, ela poderia possivelmente tocar e sentir outra
pessoa durante um dia inteiro sem sentir coisa alguma. Ser sensual, então,
significa poder perceber nossos sentimentos ou sensações. Se não fosse
assim, então as mulheres frígidas que fingem promiscuidade sexual sempre
tocando e acariciando alguém, ficariam finalmente saciadas. Mas isto não
acontece. Devemos estabelecer a diferença entre os gestos feitos e alguma
coisa sentida internamente. Para que as pessoas se aproximem mais uma
das outras, é preciso que, primeiro, elas se aproximem de si mesmas.
Parece que a destruição das barreiras íntimas contribuem para destruir
também as que existem entre pessoas diferentes.
Há quem pense que o fato de alguém despir-se torna a pessoa menos
defensiva que as outras. Parece ser alguma ideia mágica alimentada por
algumas pessoas que quando alguém faz certos movimentos com vestidos
ou calças isso resulta no desmoronamento de barreiras que já vinham
resistindo durante anos.
Gastei algum tempo com esta discussão para estabelecer a diferença que
existe entre experiências externas e internas. Se não fizéssemos essa
distinção, poderíamos imaginar gente deitada pelo chão debatendo -se e
gritando, convencidos todos que estão passando por uma experiência
Primal. Devemos ter sempre em mente que as atividades que trazem
modificações básicas para os indivíduos devem emanar de seus
sentimentos, e devem vir de dentro para fora. Sem isso, nada mais adianta.
Desde que seja destruída a barreira dos sentimentos os estímulos de fora
penetrarão em todo o sistema. Então farão sentido os exercícios de
sensibilidade que mandam as pessoas ficarem de pé na grama fresca para
aumentar a sua experiência sensual. Isso terá como verdadeira significação
que apenas é bom ficar pisando a relva fresca e não alguma coisa mística
de significado astral.
Psicodrama
A Natureza do Insight33
33
Usamos em todo o livro a expressão em inglês, mas para melhor compreensão transcreveremos
do Dicionário de Psicologia de Henri Piéron, ed. Globo, 1966: "Este termo designa, num animal, a
capacidade de compreensão súbita de uma situação no decurso de aprendizagem por ensaio e
erro. O termo que melhor lhe corresponderia em português é intuição, empregado em psicologia
humana. Em português tem-se usado discernimento, apreensão súbita." 35 Nicholas Hobbs,
"Sources of Cain in Psychotherapy", American Psychologist (nov. 1962).
Hobbs define insight: "Quando um cliente afirma alguma coisa sobre ele
mesmo que está de acordo com o que o terapeuta acha que ele tem." Nesse
ponto do desespero, Hobbs deixa para trás o insight como um exercício
infrutífero e passa a discutir o que realmente acredita ser a causa de
melhoras terapêuticas nos pacientes. Ele cita o calor, a compreensão e o
ouvido atento como os maiores fatores de melhoras, ou seja, em outras
palavras, as relações do paciente com o terapeuta. Hobbs termina seu
discurso dizendo que "Não há insights verdadeiros e sim apenas os que são
mais ou menos úteis."
O que é então o insight terapêutico? Eu acredito que seja a explicação do
comportamento irreal. O verdadeiro insight nada mais é senão a Dor virada
pelo avesso. O insight é o núcleo da Dor. É aquilo que precisa ficar
escondido para que a pessoa não tenha que se defrontar com a verdade.
Assim, liberar a Dor equivale a liberar a verdade. As implicações disso são
que não apenas existem simples e "úteis" insights como Hobbs acredita,
como também verdades simples e precisas acerca de todas as pessoas.
Vamos tomar um exemplo. Uma paciente Primal está falando sobre seu pai
que ela considerava um homem essencialmente adorável. Conta como ele
foi maltratado pela mãe dela e como parecia fraco. Depois de falar mais a
tal respeito ela finalmente diz com um certo desprezo "Eu bem gostaria
que ele ficasse firme com ela." Eu então insisto para que a paciente grite
"papai, seja forte por mim!" Ela passa por uma Primal comovente falando
do pai que desistiu da família e fechou-se consigo mesmo, derrotado e sem
ânimo. Ele era o bebê que não conseguiu ajudar a filha e que precisav a de
proteção contra a mãe dela que era uma fera. Logo que ela percebe que
seu pai realmente não a amava e não podia ajudá-la porque era ele quem
precisava de ajuda, ela deixa sair uma torrente de insights: "Foi por isso
que me casei com um cara fraco pois queria transformá-lo no meu pai forte.
É por isso que choro quando meu filho abraça-me. É por isso que tenho
nojo de homens que deixam suas mulheres ridicularizá-los. É por isso, é por
isso..."
E despeja então todos os seus insights que são as explicações para os
milhares de maneiras que ela procurou para cobrir a sua Dor.
Esses insights não são apenas discutíveis. Eles irrompem de um sistema de
ligações e são as extremidades de uma completa experiência sobre
sentimento. Os pacientes chamam a isso de uma precipitação de insights
de natureza quase involuntária. São insights sentidos até a ponta dos pés
como disse um paciente. A liberação da Dor torna as razões mais claras. As
razões são os insights. Logo ao sentir a Dor já é quase impossível não
sermos inundados por insights porque um único sentimento reprimido já
causou muito comportamento neurótico.
Um outro exemplo. Um paciente fala de sua raiva irracional contra sua
mulher e filhos. Diz que não o deixam sossegado um só instante, estão
sempre exigindo coisas, e ele nunca tem tempo para atender ao que é seu.
Então eu pergunto-lhe se ele também se sentia assim com seus pais. "Claro
que era. Lembro-me bem do meu pai entrando no meu quarto quando eu
estava descansando ou ouvindo música. Olhava-me furioso porque eu
estava ali sem fazer nada. Ainda fico furioso quando me lembro como me
aporrinhava. Nem uma só vez lembrou-se de sentar para conversarmos um
pouco. Só sabia me dar ordens." Disse-lhe então que se concentrasse
naquilo e que se deixasse dominar, e logo percebo que ele já está sentindo.
Pergunto-lhe o que desejaria dizer ao pai e ele logo se inflama e eu lhe digo
para falar direto com o pai tudo o que sente. Ele começa com uma torrente
de epítetos indignados e pejorativos, mas logo cede a um sentimento m ais
profundo: "Papai, por favor. Sente-se um pouco aqui para conversarmos.
Mostre-se bonzinho para mim pelo menos uma vez. Eu não quero zangar-
me com você. Eu quero o seu amor, papai!" Nesse ponto o paciente suspira
e soluça sentindo a Dor. E então começam os seus insights: "Era por isso
que eu sempre pedia dinheiro a ele e a outras pessoas. Eu queria que
alguém tomasse conta de mim. É por isso que nunca quero ajudar minha
mulher. Estou reagindo às exigências dele. É por isso que fico zangado
quando as crianças querem minha ajuda." E aí mais choro e mais gritos para
o pai. "Papai, se você soubesse como eu me sentia solitário enquanto
esperava que você fizesse alguma coisa por mim. Bastava chegar em casa
e abraçar-me uma vez só. E por isso que eu me derreto todo quando o meu
chefe me elogia. É por isso que sinto dores de estômago quando ele fica
zangado comigo."
Por aí nós vemos como estão entrelaçados a Dor e os insights. Aliás, os
insights são realmente os componentes mentais da Dor. Aquele homem
sentia suas necessidades reais que estavam depositadas por baixo de toda
a sua raiva e conseguia compreender todas as suas supostas ações
irracionais que resultavam dessas necessidades.
Os pacientes Primais não tomam conhecimento dos insights. Não o
consideram diferente. Quando um paciente está contando o que sente aos
pais, ele está por dentro da situação. Não olha os seus sentimentos a
distância. Em resumo, não é uma parte dividida falando de uma outra. O
processo Primal é uma experiência única. A diferença entre falar com um
médico a respeito de sentimentos e falar com os pais durante a Terapia
Primal é da máxima importância.
Quando um paciente diz "doutor, eu acho que fiz aquilo porque me julguei
uma criança", há a separação do "eu" que está explicando e do "me" que
está sendo explicado. Assim, o ato da explicação na terapia comum
contribui para manter a neurose já que continua o split. Por mais correto
que seja o insight, a neurose torna-se mais profunda.
O método Primal não cuida de explicações pelo terapeuta. Essas
explicações muitas vezes podem ser a moléstia, especialmente na classe
média em que os filhos sempre são obrigados a prestar contas de tudo que
fazem. Os pais de classe média são muito complicados em tudo que fazem,
incluindo as razões para punirem os filhos a quem forçam para se
enquadrarem em seus moldes. Muitas vezes os filhos de operários têm
mais sorte. O pai chega em casa depois de algumas cervejas, surra os filhos
para começo de conversa e a vida continua. Tudo é ali às claras. Não há
complicações para atrapalhar a vida das crianças. É por isso que a Terapia
Primal anda mais depressa com pacientes da classe trabalhadora. Eles não
precisam analisar os pais. Só o que precisam é gritar-lhes todas as surras
que levaram sem motivos.
Eu creio, portanto, que o processo de explicações da psicoterapia
convencional talvez torne o paciente mais neurótico. O que parece fazer é
ajudá-lo a esquematizar o seu comportamento irracional em termos de
alguma teoria enganando-o que está melhor porque está
"compreendendo" ao mesmo tempo que produz o que eu chamo de
"neurótico psicologicamente integrado". A "compreensão" na terapia
convencional é apenas mais um disfarce para a Dor. Uma das principais
pragas da humanidade, depois das doenças mentais, é o tratamento del as.
Não há necessidade dos pacientes explicarem o que sentem e falar sobre
isso ad nauseam. O que eles precisam mesmo é sentir.
Desde que nos separamos dos sentimentos dos pacientes para entrarmos
nos domínios da interpretação terapêutica, quase tudo pode transformar-
se em verdade. O paciente que não consegue sentir aceita qualquer coisa.
É obrigado a aceitar as interpretações alheias de suas ações porque ele
mesmo não consegue ver a verdade. E mais ainda, a interpretação teórica
feita por um terapeuta pode muito bem ser a expressão de seus
sentimentos reprimidos complicadamente simbolizados em termos
teóricos. Dessa forma ele pode encontrar conotações sexuais ou agressivas
no que o paciente está contando e que são mais problemas do terapeuta
do que do paciente. Também pode ser verdade que a interpretação de um
terapeuta nada tenha a ver com sentimentos de ninguém e simplesmente
venha de alguma teoria encontrada em compêndios ou elaborada por
alguém algumas décadas antes. Essa teoria pode haver agradado ao
terapeuta em vista de seus sentimentos reprimidos, e então ele passa a
adotá-la para uso em outros.
Enquanto continuar existindo a barreira para os sentimentos, tanto o
paciente como o terapeuta só podem fazer conjeturas sobre o que está por
baixo. Aos palpites do terapeuta damos o nome de teoria. Quando o
paciente consegue aprender essa teoria na forma como é aplicada ao seu
comportamento, ele pode, ser considerado "curado". Como eu penso que
os insights nunca devem preceder a Dor, acho que a obrigação do terapeuta
é ajudar a remover a barreira entre o pensamento e o sentimento de forma
que o paciente possa, ele mesmo, estabelecer as suas ligações. De outra
forma, o terapeuta pode levar anos explicando as coisas ao paciente que
nunca tem a sua vez.
É possível que tenhamos considerado o insight visto pelo lado errado, já
que ele talvez não cause a mudança e sim seja um resultado dela. Isso
torna-se claro quando consideramos que o insight é o resultado da ligação
entre o sentimento e o pensamento quando aplicado a um comportamento
específico. A "ligação" é o termo-chave pois é possível saber-se as coisas
mentalmente sem estabelecer uma ligação e portanto, sem fazer mudança.
Sem a Dor não pode haver um insight real para o neurótico. Poderíamos
dizer que o insight é o resultado mental da dor que se sente.
A dor está integralmente relacionada com o insight. Enquanto perdurar o
processo do insight dentro de um sistema neurótico onde a Dor impede
que ele penetre todo o sistema, eu duvido que se possa esperar
importantes mudanças de comportamento. Desde que exista o bloqueio da
Dor, o insight só pode constituir mais uma experiência desligada e
fragmentada. A Dor mantém o insight desligado mentalmente e portanto
incapaz de fazer qualquer coisa boa pelo organismo.
Eu comparo a terapia convencional de insight a um relatório apresentado
ao governo por alguma repartição analisando o sistema econômico. O
relatório, da mesma forma que o insight, é incorporado ao sistema. Ê
absorvido e armazenado de forma a não exercer qualquer impacto sobre o
sistema. Devemos realmente esperar que, por mais preciso que seja o
insight, ou o relatório analítico, o sistema continuará a reagir de modo
irracional. Ficará mastigando e absorvendo a verdade até que alguma coisa
aconteça que derrube o sistema irreal.
Os pacientes não querem ouvir explicações alheias. Um deles chegou a
dizer que a neurose era sua invenção e que, por isso, ninguém poderia
explicá-la melhor que ele.
Existem diferenças importantes entre o insight na terapia comum e na
Primal. Na comum, o terapeuta geralmente toma alguma parte do
comportamento neurótico do paciente e infere qual é a verdadeira razão
que existe por trás dele. Toma como referência o comportamento irreal.
Na Terapia Primal, o comportamento irreal só é discutido com o paciente
depois que ele sente o que é inconsciente. Na terapia comum o insight
torna-se um fim em si cuja acumulação acabará produzindo mudanças.
Além disso, o insight é unidimensional. Geralmente só trata de uma parte
do comportamento e a única motivação implícita por trás dele. Na Terapia
Primal, uma Dor muito grande pode levar a várias horas de insights diretos,
e o mais importante é que eles aí muitas vezes convulsionam todo o
sistema. São orgânicos e produzem mudanças totais. Os insights prim ais
são convulsivos porque uma pessoa ligada (com a mente ligada ao corpo)
não pode ter pensamentos dolorosos sem reações do corpo também
dolorosas. Tampouco pode ele sentir dor física durante uma Primal sem tê -
la ligado a uma percepção consciente. Na verdade, à medida que um
paciente Primal vai progredindo ele pode tornar a contar a mesma história
ao fim de sua terapia e passar por uma reação física muito maior do que
quando a contou antes.
A terapia comum geralmente trata de fatos conhecidos quanto ao
comportamento, ao passo que na Primal tudo é desconhecido até a hora
em que é sentido. Um paciente descreveu a diferença. "Parece haver
dentro de mim um grande tumor doloroso. Pendurados nele há umas
pontas embaraçadas que estão me estrangulando. A minha terapia anterior
parecia concentrar-se no desembaraço das pontas para chegar ao cerne da
doença, mas nunca conseguimos isso. Aqui parece como se tivéssemos
extraído o tumor inteiro e tudo ficou então em seu lugar.
Essa expressão de "tudo ficar no seu lugar" é muito comum entre os
pacientes. Um paciente expressou-se de outra forma. "Meu cérebro
mantinha o corpo separado. Acho que se o meu corpo funcionasse
harmoniosamente eu teria sentido toda a minha horrível Dor. Eu dei -lhes o
meu cérebro e depois o corpo."
Um outro paciente muito calmo e todo encurvado descreveu sua
totalidade.
"Quando não há ligação alguma, o corpo e a mente não se mantêm direitos
e eu acho que isso se torna aparente mental e fisicamente. No meu caso
eu escolhi o peito para apertá-lo contra a dor que vinha de baixo e curvei
os ombros como reforço. Apertei a boca e os olhos. Quando estabeleci a
ligação durante a Primal, eu não somente compreendi tudo como também
automaticamente tornei-me ereto e não cheguei a perceber isso senão
quando minha mulher reparou. O estranho é que se trata de uma coisa
involuntária."
Vamos voltar a Hobbs por um momento. Ele acha que o terapeuta deve ter
mais calor humano do que insight, mas eu diria que as duas coisas muito
pouco têm de comum porque a Terapia Primal não se preocupa com
relações. Tudo que o paciente acaba sabendo já estava lá dentro dele e não
entre o terapeuta e ele. O paciente não tem coisa alguma para aprender
com o terapeuta. Quem ensina é o sentimento. Sem um sentimento
profundo, o calor humano do terapeuta só pode ser fingido, mas mesmo
que isso desse resultado, eu ainda assim não vejo como o fato de ser bom
e amável pode anular anos de uma séria repressão neurótica.
Discussão
A verdadeira pessoa que poderia lucrar alguma coisa com a terapia comum
é geralmente aquela que não se beneficia dela, ou seja, a pessoa que
pertence às classes trabalhadoras desarticuladas e que não reclamam. Ela
precisava mais do que qualquer outra mas, infelizmente, ficou de fora.
Quem mais se aproveitou da terapia foi a classe média embora a
brincadeira do insight entre paciente e terapeuta venha sendo um embate
com o sistema de defesa, um encontro intelectual de mentes. A pessoa que
não tem facilidade de expressão nunca poderia participar dessa brincadeira
e só é atendida quando há sua derrocada mental. O que conseguiu até hoje
está descrito num livro Social Class and Mental Illness 34, e consiste mais de
ação do que conversa, com a terapia.de choque, os remédios, a terapia
ocupacional, etc. Ficamos imaginando como pode ser científica uma terapia
que só se aplica a certas camadas sociais. O certo seria que todas as
ciências que se ocupam do comportamento humano não se esquecessem
da maioria da raça humana.
Tem havido uma tal mistura de técnicas de insight, cada uma com um
método diferente, que chegamos a pensar que o comportamento pode ser
discutido dentro de qualquer estrutura de referência. Eu creio que há uma
34
A.B. Hollingshead e F.C. Redlich, Social Class and Mental Illness (N.Y. Wiley, 1958)
realidade, um único conjunto preciso de verdades acerca de todos nós e
que não está sujeito a interpretações.
A Transferência
35
(N. do T.) Em inglês "help" significa socorro e ajuda. Daí a ligação.
cercas, libertando-se de um túnel, galgando íngremes montanhas, etc. Se
as sensações surgem durante o sonho a despeito dos símbolos, podemos
suspeitar que a pessoa tenha uma fraca estrutura de defesa e está muito
junto de seus sentimentos. Este será um caso Primal bem fácil, em geral, e
a pessoa tem uma boa probabilidade para ficar boa. Por outro lado,
devemos suspeitar sempre dos sonhos agradáveis nos neuróticos. Por
exemplo, o sonho repetido em que a pessoa está voando e sentindo -se
livre. A Dor por baixo dessa sensação pode ser muito grande. Em lugar de
sonhar que é um outro Prometeu, o que seria mais real, seus sonhos de
liberdade indicam uma brecha, o split do seu eu constrangido. O sonho de
estar tentando desvencilhar-se de cordas que o amarram, pode indicar uma
maior proximidade dos sentimentos reais da pessoa.
Como é exatamente que um símbolo está ligado a um sentimento? Vamos
ver alguns exemplos. Se uma criança se priva de suas necessidades infantis
e procura mostrar-se crescida só para agradara seus pais que mostram
assim a sua infantilidade, ela pode sonhar estar sendo servida por um
exército de criados. Se uma criança for forçada a ouvir as constantes
discussões dos pais a respeito de dinheiro, se for obrigada a ganhar
dinheiro para as suas despesas em empregos que lhe tomem o tempo todo,
ela pode sonhar que desmaiou para que uma ambulância venha ajudá -la
para levá-la a um hospital onde receberá todos os cuidados necessários.
Sonha isso sem mesmo perceber que está de acordo com os seus
sentimentos. Seu sistema está tentando dizer-lhe o que precisa com os seus
símbolos mentais. Precisamos dar muita atenção a tais símbolos.
Os sonhos simbólicos continuam enquanto perdurar a Dor, da mesma
forma que as viagens simbólicas das drogas ou qualquer outro
comportamento simbólico. São um indício importante não somente do grau
da neurose como também da extensão das melhoras terapêuticas. O
simbolismo dos sonhos é uma coisa que geralmente não pode ser fingida
porque os pacientes não sabem o que eles podem significar. Uma pessoa
que se acha bem e que funciona normalmente, mas que, de repente tem
um sonho altamente simbólico, pode não estar tão bem quanto pensa.
Os sentimentos dentro de um sonho são a parte mais real da pessoa. Há
uma tentação para não darmos a devida atenção a tais sentimentos porque
eles se passam dentro do contexto irreal do sonho. Claro que não há nada
daquelas terríveis coisas sonhadas, mas o medo que tornou as histórias
necessárias é absolutamente real. De outra forma ele não estaria lá nem
nos despertaria apavorados.
É o verdadeiro medo que faz os uniformes nazistas aparecerem nos sonhos
da mesma forma que é o pavor real que faz um paranoico imaginar que as
pessoas na esquina estão todas conspirando contra ele. Como não
conseguem sentir a verdadeira sensação, tanto o que sonha como o
paranoico são obrigados a projetar os seus temores em alguma coisa
aparente. A ilusão paranoica e o sonho simbólico são ambos tentativas para
tornar racional um sentimento inexplicável.
A diferença entre o paranoico e o sonho neurótico é que o paranoico vive
o seu sonho durante o dia. Acredita que seus símbolos são reais. O
neurótico sabe que os seus são irreais.
Muitos neuróticos sofrem pesadelos constantes. Já me ocorreu que, num
certo sentido, eles dormem à noite e, com suas defesas diminuídas, chegam
muito perto da loucura repetidamente. Não é de admirar que tenham medo
de ir dormir. Tais pesadelos, no entanto, parecem aliviar bastante a tensão
evitando que se tornem loucos durante o dia. A pessoa com uma Dor fora
do comum não consegue limitar sua loucura às horas da noite.
Vamos examinar um pesadelo para ver como o comportamento dormindo
e o acordado são extensões um do outro. "Ontem, quando pensei que tudo
ia bem, o diretor de minha escola chamou-me para falar sobre uma
reclamação dos pais de um de meus alunos. Embora eu soubesse que
estavam sempre reclamando e que não havia justificativa para a queixa, eu
fiquei perturbada. Fiquei perturbada o dia inteiro sem conseguir me livrar
daquilo. Não compreendia o que havia comigo e fui deitar-me muito tensa.
E sonhei o seguinte: Estou dirigindo um carro por um caminho estreito e
sinuoso. De repente um carro bate no meu de lado justamente quando eu
imaginava que tudo estava bem. Consigo seguir em frente, mas agora estou
num túnel estreito com curvas fechadas uma atrás da outra. Em todas as
curvas eu bato na parede. Sinto como se aquilo fosse o túnel do horror e
estou sempre batendo nas paredes. Olho pela janela do carro e vejo uma
mulher policial de moto que está me observando e esperando para multar-
me. Não posso escapar. Ela está por trás de mim vendo eu bater pelas
paredes. Estou apavorada. De repente acordo sentindo um grande alívio
por estar fora do túnel, um enorme alívio por saber que não era verdade."
É verdade. A parte da sensação em qualquer pesadelo é sempre verdadeira.
O que não é verdadeiro é o contexto, o modelo mental inventado.
Coloquei-a de novo no pesadelo e fiz com que repetisse com o rosto
coberto como se estivesse revivendo. O mesmo terror começa a se
apoderar dela. Deixo que mergulhe no terror e ser dominada por ele. Logo
ela está muito perturbada e debatendo-se no sofá. Começa a falar de sua
infância. "Eu fui tão boazinha durante tanto tempo, mas fiz algo errado que
era inevitável que trouxe desastre de parte de minha mãe." Aí ela começa
a falar de um incidente na infância quando ela fazia tudo muito bem,
limpava a casa, lavava os pratos, mas acidentalmente derramou algumas
gotas de perfume num móvel. A mãe ficou furiosa e a mandou para o
quarto. Ela ficou deprimida porque tinha se esforçado tanto. E volta então
ao sonho. "Oh, agora já sei. Quando batia com o carro nas paredes era
exatamente como as coisas andavam erradas sempre lá em casa por mais
que eu me esforçasse. A minha mãe estava sempre esperando por mim,
como aquela policial, até que eu cometesse um engano fatal. Por mais que
eu me esforçasse sempre havia alguma coisa lá na esquina, como no sonho.
Depois ela liga isso aos acontecimentos na escola justo quando pensava
que ia muito bem como professora e que alguém veio e destruiu tudo. "É
tudo o mesmo, a escola, o sonho e a minha vida." Aí ela sente toda aquela
vida de sofrimentos e grita, "não fique zangada, mamãe, eu não sou má.
Não estrague a minha vida." Ela está revivendo a escola, o sonho e a sua
vida num único sentimento terrível, o terror de sua mãe e como aquilo
tinha prejudicado toda a sua vida.
Foi a situação na escola que deflagrou o sonho. O sentimento, nos dois
casos, era inconsciente. É espantoso pensar que até mesmo no sono nossos
sistemas conservam-nos inconscientes dos sentimentos perigosos, mas o
organismo humano é realmente uma maravilha. O pesadelo é uma exata
alegoria da situação na escola durante o dia quando tudo vai indo bem e
depois desanda. Como é que o corpo sabe produzir uma tão perfeita
alegoria em sonho quando a mente, ou parte dela, está perfeitamente
inconsciente do sentimento que existe por trás? Eu acredito que os
processos simbólicos do sistema irreal são dispositivos inconscientes,
automáticos e necessários para proteger o organismo.
O pesadelo daquela mulher era uma extensão do terror que ela
experimentava na escola sob a forma de tensão. O sentimento produziu o
sonho para cuidar daquele terror e era de esperar que o resolvesse. Seria
possível ela fugir da policial do sonho? Não. Os neuróticos nunca podem.
Por quê? Porque não pode a mulher livrar-se da policial no sonho? Porque
os verdadeiros sentimentos de uma vida inteira conservam a policial ali. A
policial era símbolo do medo de minha paciente. Ela também costumava
ter pesadelos a respeito da porteira do cinema que sempre a pegava
quando queria entrar sem bilhete. Só conseguiu livrar-se dela quando
resolveu o terror.
Eu acredito que isso explica por que em nossos pesadelos nós nunca
conseguimos escapar, por que ficamos com os pés pesados como chumbo
sem poder correr do inimigo e por que somos constantemente perseguidos,
e a razão é que somos perseguidos por sentimentos Primais sem fim até
que eles se resolvam na realidade com uma Primal. Somos condenados a
ter pesadelos enquanto não solucionarmos esses sentimentos. Quando um
paciente que já teve alta continua a ter pesadelos, nós devemos concluir
que a sua terapia não solucionou o que ele sentia e portanto não tocou a
base do comportamento simbólico e neurótico.
No caso da professora, devemos notar que ela despertou automaticamente
quando o que sentia no sonho era mais do que ela podia suportar. O
desligamento do consciente e o subsequente comportamento neurótico
parecem ser reflexos. Ela despertou para reconstituir suas defesas. Nunca
soubera antes que tinha tanto medo da mãe, e não sabia porque estava
sempre ocupada tentando ser a "menina boazinha da mamãe". Evitava o
medo consciente da mãe sendo bem comportada e carinhosa. A mesma
defesa funcionava na escola, geralmente, porque ela era meticulosa e
mantinha tudo bem limpo e arrumado, além de controlar os seus alunos.
Suas defesas começaram a desmoronar quando surgiu uma queixa de fora.
Assim, o pesadelo não significa medo do objeto que aparece no sonho.
Nesse caso não era medo da polícia. A reação dela era desproporcionada
ao simples fato de um policial multá-la. Também na queixa da mãe na
escola ela exagerou a reação. Tanto a queixa como o sonho eram símbolos
de seus sentimentos infantis. Depois da Primal ela disse que o fato de sentir
os terrores noturnos tinha-a ajudado a compreender os terrores diurnos.
Estavam terminados seus pesadelos de dia ou de noite.
Desde que se sinta o terror ou as Dores Primais de qualquer espécie tudo
isso desaparece para sempre só porque foram sentidos. Logo que sejam
sentidos e ligados, está tudo acabado.
É lógico que os neuróticos tenham um sono inquieto, um sono perturbado
pelos sentimentos reais. A mesma Dor que os persegue durante o dia
também força-os a criarem tipos em sonhos para mantê-los ocupados à
noite. Não é, portanto, de admirar que os neuróticos acordem de manhã
mais cansados do que quando foram dormir! Teve uma noite agitada
procurando fugir ao que sentia. O pobre do neurótico não tem sossego.
Acorda de manhã já cansado sem poder dar conta de seu recado durante o
dia e isso, por sua vez, traz ansiedade e mais problemas que vão perturbar
o seu sono, e assim o ciclo não tem fim.
Vamos agora examinar alguns sonhos para ver o seu simbolismo.
"Meu pai vem me visitar na casa em que estou morando. É num segundo
andar. Ele me dá um beijo na testa e eu caio ferindo o joelho. A ferida fica
pior e mamãe fica zangada com papai por ser tão desastrado."
Nesse sonho verificamos que as pessoas são reais mas a situaçã o não é. O
simbólico é o significado da situação. O que o paciente sentia dentro desse
sonho era: "Eu acho que sempre soube que se aceitasse a afeição de papai
isso me dividiria em dois. Mamãe e eu parecíamos ter uma combinação
para deixar papai mal. Acho que eu também fiz isso para que ela me
amasse. Acho que o fato de amar papai significava desistir do amor de
mamãe."
O sonho número dois teve lugar um mês depois da primeira Primal.
"Eu estou limpando alguma coisa com Janov. Tenho cortes e arranhões na
mão que estão cobertos com uma camada de cera. Digo a Janov que não
consigo mover as mãos porque estão inchadas. Ele diz que posso. Tento
passar mercúrio cromo mas não adianta. A cera repele-o. Percebo que os
cortes são símbolos de velhos sofrimentos que ainda impedem que eu seja
verdadeiramente eu. Sei que não posso mais evitar. Raspo fora a cera e uso
as mãos."
Aqui nós vemos um menor uso do simbolismo e o conhecimento do
significado do símbolo durante o sonho. Parece que o consciente e o
inconsciente se misturam. O paciente percebe que a luta não é real mesmo
em sonho e corrige-a. Em pouco tempo, talvez uns meses, podemos esperar
que desapareçam os restos de vestígios da luta. Os sonhos deverão então
ser tão diretos e verdadeiros como o comportamento acordado.
Mais um sonho:
“Estou no quintal trabalhando com meu pai. Minha mãe chama para jantar
muito zangada. O jantar é triste. Tudo está calado, quieto e morto. Meu pai
tenta contar uma piada e minha avó ri, um riso horrível que mostra sua
dentadura postiça. Mamãe olha para vovó com esperança. Vejo que minha
avó também não ama. De repente percebo tudo. Vejo a família como as
cascas vazias que são. Tudo é sem vida e tristonho. Começo a chorar, peço
licença, e vou para a cozinha. A comida do jantar está pronta mas ninguém
procura servir. Isso me faz chorar ainda mais. Estão todos mortos demais
para fazerem um esforço.
"Minha mãe pergunta se eu estava chorando e meu pai diz que não. Corro
para cima e tranco a porta. Procuro um pedaço de papel para escrever o
sonho. Sei que é importante. Lá embaixo ouço meu pai cantando. Choro
pensando que não tenho um lar em parte alguma."
Há muito pouco simbolismo nesse sonho. A situação é direta e os
sentimentos nela espelham exatamente o que ele sente a seu respeito e
sua vida. Compreende até mesmo em sonho o que significa e o sonho
explica-se por si. Parece que não existe um emaranhado de labirintos para
se atravessar. O paciente parece ter sentido o vazio, a falsidade de sua vida,
e como seu pai, também tenta encobrir seus verdadeiros sentimentos.
Discussão
Se uma pessoa não sofre e se tem relações diretas com seus sentimentos,
não vejo razão alguma para simbolizá-los. Os que terminam o tratamento
Primal não têm sonhos simbólicos pela mesma razão que também não
fazem viagens simbólicas de LSD. Não há Dor e não há necessidade para um
disfarce simbólico. Os acontecimentos de rotina não deflagram velhos
sofrimentos que surgem nos sonhos das pessoas normais porque não
existem sofrimentos sem solução para se misturarem com o presente.
Deve ser óbvio que não há símbolos universais, assim como também não
há sintomas com significados universais. Os símbolos referem-se a
específicos sentimentos dentro do indivíduo. É possível que duas pessoas
tenham o mesmo sonho e que ele tenha significados diferentes.
Os pacientes que terminam a Primal necessitam menos horas de sono e
dizem que seu sono é repousante. Também sonham menos. Houve um
paciente que observou que ia para a cama para dormir em lugar de passar
a noite tendo sonhos.
Aqui está, em resumo, o que alguns de meus pacientes pós-Primais dizem
a respeito de sono e de sonhos. Todos eles dizem que o sono muito
profundo é geralmente neurótico já que constitui uma defesa até mesmo
contra os símbolos nos sonhos neuróticos. Um paciente assim se
expressou: "Eu costumava dormir como se enrolasse o meu consciente num
grosso cobertor. Agora eu durmo como se estivesse coberto por uma gaze.
Diz que antes considerava o sono como um estado inconsciente mas agora
já vê o sono como simples repouso. Já não existe mais o inconsciente.
Um paciente achava que talvez houvesse uma divisão quando julgamos o
sono como algo separado da vigília, e ficamos então imaginando se a
polaridade do sono versus vigília não nos permite ver que são
simplesmente diferentes aspectos do mesmo estado de ser e não duas
entidades distintas ligadas apenas por alguma coisa mística.
Os norte-americanos nas suas lutas diárias ainda têm um sono perturbado.
O censo feito por Louis Harris 36 mostrou que mais de um terço da
população tem problemas com sono pouco satisfatório durante a noite.
Vinte e cinco por cento sente-se por demais exausta para levantar-se de
manhã. Indica ainda que mais da metade da população sente-se solitária e
deprimida durante parte do dia e vinte e três por cento confessou
sentimentos de "distúrbios emocionais". O trabalho duro é responsável por
parte disso, os gritos com as crianças também contribuem, os cigarros e o
álcool ainda ajudam e há sempre a necessidade de tranquilizantes e pílulas
para dormir.
Um interessante estudo feito por um membro da UCLA 37 numa conferência
sobre fisiologia de cérebro mostrou que as pessoas que deixam de fumar
sonham mais e com maior intensidade. Aqui nós vemos a prova para a
hipótese Primal a respeito de sonhos e alívio de tensões. Quando se elimina
os mais comuns aliviadores de tensões, os sonhos arcam com uma carga
dupla. Também, as pesquisas sobre o sono indicam que as pessoas que
tomam pílulas para dormir profundamente sonham menos do que as sem
pílulas. Mas os efeitos posteriores tornam a pessoa mais irritável e
deprimida obrigando a mais aliviadores de tensão como o fumo. O sistema
neurótico, em suma, sempre encontra um jeito.
As pessoas que não sonham bastante devido a pílulas para dormir, logo
passam a sonhar mais quando deixam de tomar o remédio, e são sonhos
mais perturbadores. Não se pode liquidar a neurose com remédios.
É possível um alívio provisório, mas o neurótico tem que pagar o preço. Isso
significa que os tranquilizadores durante o dia só servem para adiar mas
garantem as inevitáveis consequências de sérios distúrbios logo que seja
suspenso o tratamento.
As implicações do que afirmo vão além do fenômeno do sonho e do sono.
Eu quero dizer que as pílulas, por mais propaganda que recebam, não
afetam seriamente as doenças mentais no final das contas. Apenas ajudam
a reprimir o verdadeiro eu produzindo mais pressão interna e mais sérias
36
Los Angeles Times, setembro de 1968.
37
Los Angeles Times, setembro de 1969.
neuroses. As pílulas estão nas mesmas condições que as técnicas de
condicionamento que ajudam a suprimir o mau comportamento por meio
de choques elétricos. Pois não é isso mesmo que os pais fazem com os seus
comportamentos, e não é verdade que o resultado é uma neurose ainda
mais profunda? Há estudos, por exemplo, que mostram um maior número
de ataques de coração durante o sono, e é possível que existam boas razões
fisiológicas para isso. Mas também podemos ficar pensando se o uso de
tranquilizantes durante o dia não cria tanta pressão que precise ser aliviada
pelos sonhos quando os cardíacos vulneráveis já não podem suportá -la.
Os neuróticos sentem dificuldade para dormir porque são constantemente
ativados pela Dor Primal que representa o oposto do sono. O uso de
tranquilizantes e de pílulas para dormir é o mesmo que manter num intenso
fogo uma vasilha bem tampada. Chega una hora em que alguma parte do
sistema tem que ceder, o que, aliás, pode arrastar com todo o organismo.
16 - A NATUREZA DO AMOR
O conceito do amor sempre foi discutido através dos anos, e assim talvez
seja bom considerá-lo sob o ponto de vista Primal.
Nos seus verdadeiros alicerces, o amor significa liberdade de sentimentos
para todos. Significa permitir que todos cresçam naturalmente e que se
expressem com naturalidade. O essencial é que cada um seja o que quer e
que permita a mesma liberdade a todo mundo.
A definição Primal do amor é permitir que todos sejam o que são. E isso só
pode acontecer com satisfação das necessidades.
Implícita na definição de amor está a existência de uma verdadeira relação
entre pessoas que se amam. Afinal de contas, podemos deixar todo mundo
ser o que deseja simplesmente ignorando-os, mas a reação entre duas
pessoas faz parte integral do amor. Devemos lembrar que quando estamos
deixando uma pessoa ser o que ela deseja isso significa a satisfação de suas
necessidades. E é isso que devem fazer os pais que amam os filhos. Mais
tarde surgirão as necessidades a serem, satisfeitas, e o amor então pode
ser recíproco e sincero. Infelizmente, o amor para o neurótico significa a
realização de suas necessidades irreais (na forma de desejos). Signifi ca
presentes ou muitos telefonemas, ou então, ainda, "provas" de eterna
dedicação. O neurótico sente que não é amado quando as suas
necessidades doentias não são atendidas. Que melhor exemplo disso do
que o sofrimento de um homossexual quando é abandonado pelo seu
parceiro?
O amor é sentimento. É quando duas pessoas conversam, tomam café
juntos ou fazem amor. Quando não existe o sentimento, isto é, quando ele
está bloqueado ou escondido, os neuróticos podem fazer tudo isso sem que
haja qualquer resquício de amor.
O amor no princípio da vida significa a satisfação das necessidades Primais.
Nos primeiros meses e anos significa muito colo e carinho. A criança não
dá o nome de "amor" para o colo ou aconchego, mas sente-se magoada
quando não tem isso. O contato físico é condição sine qua non para a
criança. Sem isso não há manifestação do amor. Não é bastante para a
criança "saber" que, de certo modo, é amada por pais que não demonstram
o sentimento. Ela precisa sentir. Sem isso não adianta os protestos orais.
Sem isso não há amor. Os pais que trabalham duro e raramente veem os
filhos, podem imaginar que estão trabalhando para eles, mas se não houver
o contato mútuo, ou quando eles não se dedicam aos filhos, nós devemos
concluir que estão trabalhando para seu próprio alívio. Se a criança tem
necessidade da presença de seus pais e eles estão longe trabalhando, a
maior parte do tempo, então ela não está vendo suas necessidades
satisfeitas.
As crianças que são criadas em instituições onde existe pouco afeto ou
atenção pessoal, geralmente tornam-se personalidades sem expressão e
apagadas. Vivem numa apatia que continuará a existir em sua idade adulta.
Essas crianças automaticamente tentam proteger-se contra a falta de amor
e tornam-se fechadas para não serem mais feridas.
Os estudos feitos com cães chegaram à mesma conclusão. Os animais
tornam-se "frios" e "duros" quando adultos, são quase assexuados e não
reagem aos carinhos.
As mesmas conclusões foram conseguidas com macacos nas famosas
experiências de Harlow em que os animais foram segregados em três
grupos. O primeiro foi criado em completo isolamento, um segundo com
cães que eram bonecas de pano e no terceiro elas eram feitas de arames e
paus 38. Harlow chegou à conclusão que os macacos isolados eram os que
mais sofriam. Pareciam incapazes de oferecer ou receber afeição. Os que
tinham as bonecas de pano pareciam sentir-se tão bem como se fossem as
verdadeiras mães. Comiam bem, não tinham medo, eram mais sociais e
ativos. Harlow mostrou a importância do contato físico. Quando o macaco
abraçava-se à sua mãe de pano os laços de afeição entre eles eram tão
fortes como se fossem ambos reais. Por essas experiências, nós podemos
chegar à conclusão que aquilo a que damos o nome de amor nos primeiros
meses da vida gira em torno do tato e de contatos físicos cheios de calor.
38
Harry F. Harlow, "Love in Infant Monkeys", Scientific American, vol. 200, N.° 6 (junho 1959).
A criança mal amada pode ser aquela que não teve tais contatos.
Os carinhos da tenra idade são importantes, principalmente quando
consideramos que, durante décadas, muitas crianças foram criadas "pelo
figurino". Os pais cuidavam dos filhos mais conforme tabelas e regras do
que pelo que sentiam. Eles eram alimentados pelo horário certo e não
quando choravam com fome, e não os seguravam ao colo quando choravam
com medo de estragá-los. Os guias da pediatria nas últimas décadas foram
influenciados pelo que escreviam os psicólogos behavioristas primitivos
que achavam desaconselhável amimar e amar as crianças quando
choravam pois isso seria para elas uma séria desvantagem quando, mais
tarde, tivessem que enfrentar um mundo frio, duro e hostil. Já agora vemos
que o certo é exatamente o contrário, e ainda mais, que não é só o ato que
conta e sim os sentimentos. Quando um dos pais é tenso e nervoso e cuida
da criança sem a necessária delicadeza, o resultado será o se u sofrimento
no futuro, mas qualquer espécie de atenção dada a ela sempre melhora as
suas condições.
Um bebê sabe quando está molhado, cansado ou quando tem fome. Desde
que receba atenção ele está considerando isso como amor. É o amor que
faz desaparecer a dor. Quando ele tem liberdade para explorar, gritar,
chupar o dedo, segurar a mãe, então nós chamamos isso de amor. Quando
não tem nada disso ele torna-se inquieto. Podemos afirmar que o amor e a
dor são polos opostos. O amor é que dá maior valor ao ser e a dor é que
suprime esse valor.
O contato e o aconchego não são só amor. Se não permitirmos que a
criança demonstre seus sentimentos ela terá que emparedar uma parte de
si mesma e é bem provável que todos os carinhos e aconchegos não
cheguem e que ela ainda se sinta desprezada. Nunca é demais fazer
sobressair a importância da livre expressão, pois isso poderá determinar a
sorte da criança para toda a sua vida. E não são suficientes as
demonstrações de afeto esporádicas e formais.
Uma vez que os sentimentos são todos unificados, eu não acredito que seja
possível proibir alguns e esperar completa exibição de outros. Tudo que a
criança neurótica sentir mais tarde será menos aguçado e mais disfarçado.
Se não permitirmos acessos de raiva numa criança, por exemplo, isso
refletirá muito na sua forma de sentir-se feliz ou amada.
Nenhuma afeição posterior remediará o que lhe foi negado antes, seja isso
melhores condições de vida, mais gente em torno demonstrando afeição.
Isso só será possível se os sentimentos antes recusados forem revividos. O
neurótico passa uma boa parte de sua vida adulta tentando disfarçar a sua
Dor com novos amores, ligações amorosas e namoros, paradoxalmente,
quanto mais amores tiver, menos ele continuará sentindo. Parece ser uma
perseguição sem fim porque, para ele, ser amado significa primeiro que a
antiga Dor de não ser amado deve ser sentida em toda a sua intensidade.
Uma vez que o amor envolve sentimentos da própria pessoa, nós não
podemos transferi-lo para outrem. Quando alguém diz "Você faz-me sentir
como mulher" ou "Com você eu sinto-me amada", isso geralmente significa
que elas não sentem e então precisam de símbolos externos para se
convencerem que são "amadas". O amor não é algo que se dê a alguém até
que ela sinta-se "cheia". Tampouco não podemos ficar vazios de amor nem
de sentimentos. Não é alguma coisa divisível que possa ir sendo dada aos
pedacinhos nem pode ser subdividida em classes como "amor maduro" ou
"amor imaturo".
O neurótico mais velho pode afirmar seu imorredouro amor verbalmente,
mas quando o sentimento entra em jogo os protestos de amor podem
tornar-se sem sentido. E mais ainda, essas afirmações verbais de amor são
súplicas disfarçadas para conseguir que suas próprias necessidades sejam
satisfeitas. As pessoas com sentimentos raramente precisam de
confirmações verbais e as que não os têm estão sempre precisando delas.
O que o neurótico procura no amor é o seu eu que ele nunca teve permissão
para ser. Ele quer alguém especial para poder sentir. Considera como amor
tudo aquilo que não teve e tudo que impede a sua integridade. Algumas
vezes ele tem necessidade de contato físico e pode tentar fabricar o amor
por meio do sexo, ou seja "fazer amor". Algumas vezes procura proteção e
outras quer somente ser compreendido e ter com quem conversar.
O dilema do neurótico é que, embora o amor não seja mais do que a livre
expressão do eu, ele teve de abrir mão de seu sentimento para conseguir
sentir-se amado dos pais quando era criança. O neurótico, por definição,
deve acreditar que é ou que será amado, pois do contrário não continuará
a luta neurótica. Em resumo, como no terceiro grupo de macacos de
Harlow, a criança conserva a ilusão do amor através de sua luta para que
não chegue à conclusão que só lhe restem os arames e paus.
Assim, se uma criança de seis anos soubesse a verdade seria duvidoso se
continuaria ou não a lutar. A promessa de amor, tanto implícita como
explícita, parece ser o que conserva a criança com esperança em lugar de
enfrentar a realidade de sua vida incipiente. Poderá passar toda a sua vida
buscando alguma coisa que não existe, nem mesmo nunca existiu, que é o
amor dos pais. Ela pode fingir-se de engraçada para alegrar os pais, de
estudiosa para impressioná-los ou de inválida para exigir cuidados. O
próprio fingimento impede o amor porque ele está escondendo como
realmente agiria e sentiria.
Pelo que observei, o neurótico torna a criar a sua primitiva situação de mal
amado mais tarde na vida para representar o mesmo drama sempre
esperando por um fim feliz. Quando se casa com uma figura de mãe isso
não significa apenas que a deseje. O que ele deseja é uma mãe que o ame,
mas não quer o amor assim direito. Primeiro ele precisa estabelecer um
ritual. Pode encontrar alguma pessoa fria como sua mãe e tentar consegu ir
dela algum calor. Ou ela encontra alguém rude e grosso como o pai e
procura torná-lo bondoso e delicado. Isso é uma representação simbólica.
Se a pessoa ficar envolvida com o que realmente ame, teria que desistir
porque sempre lhe restaria aquele antigo sentimento de mal amada. Em
resumo, o encontro de uma pessoa agradável serviria para impedir a luta
simbólica para finalmente solucionar os antigos sentimentos. Nesse
sentido, o encontro de amor atual significa sentir a Dor por não conseguir
o antigo amor.
Até mesmo em seus sonhos, o neurótico cria a mesma luta. Sempre há
obstáculos para chegar ao ente amado. Não consegue nunca chegar à
"terra do amor".
Uma vez que nunca teve permissão para sentir, o neurótico muitas vezes
acredita que o amor deve estar em outro lugar e com alguma outra pessoa.
Raramente compreende que está dentro dele mesmo. Creio que toda a sua
agonia é uma tentativa para encontrar-se, mas o problema é que não sabe
como. Não consegue atingir seus sentimentos. Sendo assim, a busca do
amor nada mais é do que a busca para "ser", para sentir. O desespero, a
perseguição, as viagens a novos lugares são frequentemente tentativas
para encontrar aquele alguém especial que vai conseguir fazer com que ele
sinta alguma coisa. Infelizmente só a Dor pode conseguir isso. E assim,
estamos sempre vendo, numa repetição sem fim, o mesmo triste drama,
uma peça de terceira classe com um original monótono, atores incapazes e
sem um epílogo feliz.
Eu acredito que a luta tem por fim fazer com que a pessoa possa finalmente
conseguir, mesmo sob a forma de alternativa, o amor de criancinha que
tanto precisou muitos anos antes sem nunca conseguir. O que certamente
não está procurando é o amor de adulto no presente. Assim, a noção Primal
a respeito de amor gira em torno do fato de ser aquilo que procura a mesma
coisa que sentia falta até mesmo décadas antes. O neurótico está pronto a
definir como amor tudo que preencher tais requisitos. Talvez seja por isso
que há tantas e tão diferentes definições do amor. É porque são muitas
também as diferentes necessidades.
Infelizmente, mesmo se os pais neuróticos se transformassem, de repente,
em pessoas extremosas e compreensivas, nada teria mudado. O neurótico
não pode usar essa espécie de amor nos anos posteriores de sua vida
porque isso também seria apenas uma alternativa para o que realmente
aconteceu anos antes entre a criança e os pais indiferentes. O sentimento
de mal amado tem prioridade.
A criança infeliz, com o seu comportamento neurótico, sua agressão, suas
doenças, seus fracassos, está tentando dizer aos pais "quero ser amada
para não viver mentindo." Como já vimos, a mentira é um pacto
inconsciente entre a criança e os pais no qual ela concorda mentir para si
mesma para poder ser o que eles querem. Concorda em fazer o que eles
querem desde que, mais tarde, eles a compreendam e não lhe seja
necessário mentir. Mas enquanto continuarem com as mentiras as duas
partes estão convencidas que o amor existe entre elas. Ela não põe um fim
à mentira com medo de perder o amor. O estranho é que mais tarde na
vida, quando alguma coisa acontece para desmascarar a mentira, a pessoa
tem a tendência para sentir-se mal amada. O terapeuta Primal não
encontra muita simpatia logo de saída, como acontece com outros
terapeutas, porque ele não participa da mentira, e assim a pessoa não tem
outro remédio senão sentir-se mal amada.
O neurótico, geralmente, é confuso. Acaba pensando que o amor é aquilo
que seus pais indiferentes lhe deram. Se seus pais sempre mostravam -se
"preocupados" com ele, o neurótico irá procurar despertar preocupações
por meio de fracassos ou moléstias. Com a provocação de reações
semelhantes às de seus pais, o neurótico consegue manter vivo o mito do
amor. E muitas vezes está tão empenhado na luta para manter o mito que
nem mesmo sente a sua infelicidade. Ele pode, por exemplo, apresentar -se
para a terapia dizendo, "meus pais não eram perfeitos. Ninguém é. Mas me
amavam lá à moda deles." Eu acredito que essa "à moda deles" foi que fez
da criança um neurótico. Também poderá dizer, "o papai gostava de
disciplina, não era muito expansivo em suas afeições, mas nós sabíamos o
quanto amava os filhos". Isso, traduzido, poderia dizer, "o papai quer
perfeição, nunca faz elogio, nunca mostra afeição, mas enquanto andarmos
direitinhos fazendo o que ele quer podemos considerar que somos
amados". Mas não adianta que a gente tente querer convencer a nós
mesmos. Quem não é amado sabe que não é. Quando alguém na terapia,
com o raciocínio acima, é forçado a gritar que quer ser acalentado e
acariciado pelo pai, o resultado é o sofrimento. Todas as coisas que ele
julgava verdadeiras parecem desmoronar diante da Dor.
Uma paciente insistia que era amada pelos pais que eram nisso muito
exuberantes. Afirmava que o marido era a origem do seu problema. Na
segunda semana da terapia ela sentiu. Voltou ao passado e reviveu uma
cena em que fora preferida à irmã por ser mais boazinha. Durante toda a
sua vida nunca sentiu que não fora amada porque fora a filha boazinha. Os
pais manifestavam a sua preferência por ela de todas as formas e tudo que
tinha a fazer era ser "boa". E porque era boa em lugar de ser o que era,
nunca sentiu falta de amor. Mesmo assim, ela experimentou a Dor Primal,
e essa Dor só se manifestava quando eu não lhe permitia que continuass e
sendo a menina boazinha que sempre fora. Isto é mais um exemplo da
noção Primal que o amor é permitir que as pessoas sejam o que são. Aquela
moça tinha aparentemente tudo mas não era dona dela mesma. Ela era mal
amada.
As crianças entregam-se e sacrificam-se para poder esconder o sentimento
de não serem amadas. Os pais fazem a mesma coisa para esconder quando
não sentem amor pelos filhos. A entrega de si mesmo parece ser parte da
ética Judaico-Cristã na qual nos entregamos a uma divindade em nome do
amor. Houve uma paciente que disse: "Entreguei-me para conseguir o amor
de minha mãe. Quando isso não funcionou eu tentei meu pai, e quando ele
também me falhou eu virei-me para Deus." O neurótico parece estender
esse processo para que possa começar a medir o amor em termos de
quanto os outros se sacrificam por ele.
Não é por acaso que toda a criança amada raramente dá importância ao
amor. Não precisa dar o nome de amor às coisas nem duvida do amor dos
pais. Não precisa da palavra porque tem o sentimento. Todos aqueles que
precisam rotular as coisas com o nome de amor é porque não são amados.
Se os pais quisessem evitar a luta neurótica pelo amor nos filhos, eu lhes
aconselharia que mostrassem com franqueza todos os seus sentimentos e
deixassem as crianças também dizer tudo que quisessem e da maneira que
mais lhe agradasse. Em resumo, isso seria permitir às crianças os mesmos
direitos de todas as outras pessoas. As crianças devem ter liberdade de
expressão porque são seus os sentimentos, mas não podem quebrar as
coisas em casa porque elas pertencem à família. Mas é difícil que uma
criança seja destruidora materialmente desde que possa sê-lo
verbalmente.
Quando nós dizemos tudo que a criança pode sentir e exigimos que ela
examine seus sentimentos, nós já começamos a interferir com a sua
capacidade de sentir. Quando se dá à criança uma total espontaneidade de
todos os sentimentos, é quase certo que ela se tornará uma criança que
espontaneamente irá atirar-se nos braços dos pais com beijos e abraços, e
dessa forma, também os pais serão amados. Nós estamos acostumados a
ver crianças recebendo ordens e não esperamos delas gestos espontâneos
e afetivos. Num lar neurótico o amor torna-se um ritual. Existe o dever da
afeição, o beijo da chegada ou despedida sem um sentimento espontâneo,
e a reprimenda se a criança não cumpre o seu dever. O que o neurótico
consegue de seu filho, geralmente, é um ato despido de sentimento
quando a criança teria muito mais a dar se isso lhe fosse permitido.
Por que é tão geral a perseguição ao amor? Porque se trata da perseguição
ao eu que não existe. Mais precisamente, é a procura de alguém especial
que lhe permita ser o que é.
Já que tantos de nós tivemos nossos sentimentos ignorados ou
massacrados, acabamos fazendo aquilo que não sentimos. Os casamentos
precoces, os romances passageiros, creio eu, são o fruto de frustrações e
desesperos íntimos para sentirmos através de outros. A procura parece não
ter fim porque muito pouca gente sabe realmente o que está procurando.
A perda de um ser amado atualmente não pode levar a resultados
catastróficos como a tentativa de suicídio, a não ser que ela reflita uma
outra perda mais antiga e mais profunda em nossa juventude.
Quando o neurótico, finalmente, sente-se mal amado, ele está preparando
o caminho para sentir-se amado. Quando sentir a Dor é porque está
descobrindo a realidade do corpo e os seus sentimentos, e não pode haver
amor sem sentimento.
17 - SEXUALISMO, HOMOSSEXUALISMO, BISSEXUALISMO
Na Teoria Primal há uma diferença entre sexo como um ato e sexo como
experiência. O ato do sexo envolve todos os movimentos ostensivos feitos
pelos indivíduos durante as relações sexuais. A experiência é o significado
de tais movimentos. Na neurose, a experiência do ato pode ser bem
diferente do próprio ato. Assim, pode-se experimentar o ato heterossexual
de uma forma homossexual e com fantasias também homossexuais. E um
ato homossexual entre dois homens no qual um desempenha o papel
feminino pode ser experimentado como ato heterossexual. Eu caracterizo
a natureza do ato em termos de sua experiência subjetiva, uma diferença
que será importante quando discutirmos o tratamento das aberrações e
perversões sexuais.
É possível, por exemplo, encontrar pessoas que agem como se estivessem
praticando o sexo sem experimentar nenhuma sensação, como é o caso das
mulheres frígidas. O que dá ao sexo o seu significado, então, é a plena
consciência e sensação da situação e o que o altera é o esforço neurótico
para conseguir valores simbólicos do ato.
A hipótese Primal é que quando há privação das necessidades e que os
sentimentos são bloqueados no princípio da vida, eles surgem em forma
simbólica. No sexo, isso significa que o ato será experimentado geralmente
por meio da fantasia, como se satisfizesse a necessidade.
Vamos discutir alguns exemplos. Um homem de trinta anos sofria de
impotência. Perdia a ereção sempre que penetrava na sua mulher. Ele fora
educado por uma mãe fria e "ranzinza" que só lhe dava ordens e nenhum
carinho. Como escapava ao seu conhecimento que merecia carinho, ele
desconhecia e não reconhecia nenhuma necessidade para tal. Casou -se
com uma mulher agressiva e exigente como sua mãe e que tomou conta de
sua vida transformando-o num marido passivo. Quando chegava a hora de
penetrar nela, aquilo já não era mais uma questão de sexo com uma
mulher. Era o meninozinho sendo amado simbolicamente pela mãe. O
aspecto simbólico do ato (o incesto) não permitia que ele funcionasse como
adulto. O homem não reconhecia suas primitivas necessidades de carinho
e procurava a afeição maternal com outras mulheres. As mulheres eram
símbolos do amor maternal e o ato do sexo com elas era simbólico, o que
prejudicava o seu funcionamento. Naturalmente, se as mulheres fossem
apenas fêmeas adultas não seria de esperar o mau funcionamento sexual.
O problema surgia porque elas tornavam-se símbolos da mãe.
Os órgãos sexuais funcionam de maneira verdadeira quando a pessoa é real
e de maneira irreal quando a pessoa também é irreal.
Em todos os atos dos neuróticos há um sistema duplo que funciona: o
sistema real com as suas privações e necessidades, e o sistema irreal que
tenta preencher simbolicamente essas necessidades inconscientes. Assim,
o eu irreal parece estar participando de sexo maduro ao mesmo tempo que
a criança que existe dentro dele está querendo ser amada. E uma vez que
está à procura de amor infantil, o neurótico inconscientemente é obrigado
a fazer de seus parceiros a pessoa dos pais, ou seja, alguém irreal. Não é
de surpreender, portanto, se a pessoa se torna impotente ou se é traída
pelo seu corpo de outras formas.
Um outro exemplo. Um homem não conseguia ereção com sua bela mulher
enquanto ela não lhe falasse de outros homens com quem desejaria ir para
a cama. A sua descrição minuciosa dos órgãos sexuais dos outros home ns
serviam-lhe como estímulo e excitação. A relação com sua mulher, em
termos Primais, era essencialmente homossexual. Ele não tinha relações
com ela e sim com as necessidades que lhe tinham sido negadas na primeira
infância e que surgiam na preocupação simbólica com órgãos sexuais. Esse
mesmo homem tivera um pai fraco e apagado que pouco lhe falava e
nenhum carinho lhe dispensava. Tudo que ele queria tinha que pedir
primeiro à sua mãe que então ia pedir ao pai. Isto é, tinha que ir através da
mãe para chegar ao pai o que era essencialmente a mesma coisa que estava
fazendo com o sexo. A necessidade que sentia do pai estava sempre
presente, mas como lhe era negada, veio a ser simbolizada na forma de um
pênis. Assim, durante o sexo a sua relação era o símbolo do amor paterno
e não sua mulher. Para ser verdadeiramente heterossexual, ele teria que
livrar-se daquela necessidade do pai.
Mais um último exemplo. Durante o ato sexual uma mulher imaginava estar
sendo dominada e brutalizada contra sua vontade. A experiência do ato era
a de uma criança desamparada, uma vítima do sexo e não apenas uma
parceira em igualdade de condições. Essa mulher tivera um pai sádico e
brutal que a chamava de "puta" quando ela era moça, com menos de vinte
anos; não lhe permitia encontros com namorados e ridicularizava a sua
maquilagem. Ela não reconhecia a sua necessidade do amor paterno, mas
durante o ato revia-se como vítima indefesa (do pai) pois só assim
conseguia sentir alguma coisa.
Em todos esses casos, o ato do sexo é simbólico, é uma tentativa para
solucionar velhas necessidades. A pessoa não sente a situação em que se
encontra pois está relacionada com uma fantasia. Assim, para algumas
mulheres, o ato pode significar amor, e para alguns homens pode significar
virilidade, poder, vingança. A função da fantasia durante o sexo é a
recriação da luta primitiva entre pais e filhos. A diferença crucial, no
entanto, é que durante o sexo a pessoa está tendo aquilo que sempre
imaginou encontrar ao fim da luta de toda a sua vida, ou seja, s er beijada,
apertada, acariciada e amada, sentir enfim. O neurótico faz com que
simbolicamente a sua luta “dê certo" proporcionando-lhe um resultado
fantasiado que nunca poderia acontecer na realidade. Houve uma mulher
que disse: “Minhas fantasias durante o sexo são um bom exemplo de como
eu vivia só com a mente em lugar do corpo. Eu nem mesmo sentia o que se
passava da cintura para baixo."
Quando a pessoa sente a sua necessidade original, então a fantasia já não
tem mais função. Quando o homem impotente do primeiro exemplo sentiu
a profunda necessidade de uma mãe boa, humana e carinhosa, ele já não
precisou mais de substitutos. Sua mulher já não era mais sua mãe pois ele
sentia a realidade do que ela fora. O seu problema sexual desapareceu
porque fazia parte de um ato simbólico que não tinha relação alguma com
o que se passava com sua mulher. O mesmo aconteceu com o homem do
segundo exemplo. Depois que sentiu como havia sido terrivelmente
privado de um pai, ele já não precisava mais de símbolos tangíveis qu e o
representassem.
Os exemplos acima mostram que o sexo neurótico é simbólico e nele a
pessoa raramente "vê" o seu parceiro, e o fato dele ser efetuado no escuro
ainda mais aumenta o seu valor simbólico. A fantasia pode nem mesmo ser
consciente. O neurótico pode pensar que seu parceiro é sua mãe ou seu pai
sem perceber que está realizando a fantasia.
Ninguém pode ser completamente heterossexual com a Dor Primal. Se, por
exemplo, uma moça deseja o amor de seu pai, ela pode praticar o sexo com
muitos homens numa tentativa para simbolicamente alcançar esse amor,
mas é bem provável que surjam problemas de frigidez porque enquanto o
sistema irreal está experimentando o sexo com homens, o sistema real está
inconscientemente tentando apenas ser aconchegada e sentir-se amada
(pelo pai). A experiência não é sexual. É infantil já que a mulher está
tentando recuperar o que perdeu no passado. Uma mulher frígida declarou
que "em lugar de me entulhar com comida, eu entulhava-me com os muitos
pênis sempre tentando satisfazer-me de amor. Nada chegava para me
sentir amada. Acho que agora já sei por que não conseguia sensação no
sexo. Se, realmente, me entregasse e sentisse, eu teria também sentido
toda a Dor de nunca haver sido amada. Eu teria sentido exatamente aquilo
que estava procurando conseguir com o sexo. Minhas ilusões evitaram
isso."
Os problemas sexuais tornam-se mais complicados quando um menino
sente grande necessidade de pai e de mãe. No sexo com mulheres, ele
poderá agir como um menino e deixar que sua companheira (o símbolo da
mãe) o manobre. Enquanto isso acontece ele pode ter fantasias
homossexuais. O mesmo pode acontecer com uma mulher que não tenha
contado com o amor de sua mãe. Enquanto essa necessidade não houver
sido satisfeita, isso poderá interferir com todas as atividades
heterossexuais.
As necessidades do passado têm predominância pelas do presente. Não é
de admirar o grande número de mulheres frígidas quando vemos a
criancinha que está lá dentro delas. Elas sentem necessidade de um pai
bondoso e ficam zangadas e desapontadas quando um homem exige delas
sexo adulto em lugar de lhes oferecer um amor paternal.
Amor e Sexo
Muitas mulheres dizem que só podem ir para a cama com alguém que
amem. Em uma mulher neurótica isso pode significar: "Para gozar as
sensações naturais de meu corpo, eu devo convencer meu espírito que isso
significa mais do que é. Para ter liberdade de sentir eu preciso ser amada."
Aqui, mais uma vez, temos a expressão inconsciente da necessidade de
amor como um pré-requisito para a sensação.
Quando uma pessoa foi amada no princípio da vida, ela já não precisará
extrair isso do sexo. O sexo poderá então ser o que é realmente, ou seja,
uma relação íntima entre duas pessoas que se gostam. Será que isso
significa ser o sexo alguma coisa isolada do amor? Não necessariamente,
uma pessoa de juízo não vai sair por aí tentando levar todos para a cama.
Desejará antes partilhar o seu eu, e isso inclui o corpo, com uma pessoa
que goste, o que não significa que prefacie a relação com algum místico
conceito de amor. O sexo deverá ser uma consequência natural de uma
relação como qualquer outra coisa. Não precisa ser justificado pelo amor.
Quando uma mulher neurótica suprime seus sentimentos, sem ligar ao que
possa estar acontecendo em termos de amor, ela provavelmente não
gozará plenamente o sexo, mas se for normal, já não precisará preocupar -
se tanto com o sexo.
Quando a criança nunca recebeu amor de seus pais, ela pode ficar muito
excitada ante a perspectiva de sexo porque acha que finalmente vai
encontrar o que precisa. O resultado é que pode tornar-se impulsiva e não
tomar as necessárias precauções na ânsia de encontrar finalmente aquilo
que nunca teve. O resultado pode ser uma gravidez não desejada, uma
consequência de um impulso desesperado para satisfazer necessidades
imperiosas. Quando, porém, a pessoa já gozou do amor dos pais todo o
desespero do sexo parece desaparecer. Ele torna-se então uma experiência
agradável.
A única proteção contra a promiscuidade futura é o amor dos pais nos
primeiros anos de vida.
O verdadeiro amor é quando um rapaz e uma moça aceitam-se
mutuamente por aquilo que são, e nisso estão incluídos os corpos. Os
neuróticos exploram o corpo alheio para satisfazer suas necessidades. Isso
não permite uma relação igual entre os dois, É frequente um rapaz
neurótico que se apega às partes sexuais de uma moça e não consegue vê -
la como uma pessoa integral. Esse split é chamado como o complexo
madona-prostituta em que as moças boas são desprovidas de sexo e as más
são apenas sexuais.
As mulheres normais não precisam ser seduzidas por frases. Recorrerão ao
sexo quando as relações o exigirem. São muitas as mulheres que dizem
amar seus maridos mas que nada sentem durante o ato sexual. Uma mulher
frígida não pode amar porque ela não pode entregar-se totalmente. Só
pode amar a pessoa plenamente sexual.
Pode ser que haja quem duvide disso mostrando muitos supostos
neuróticos que são grandes apreciadores do sexo. Mas esses mesmos
neuróticos vivem debaixo de grandes tensões que eles mesmos chamam de
sexo depois de havê-las tornado eróticas mentalmente, e cujo verdadeiro
conteúdo é pouco mais do que um espirro. Como prova disso, eu posso
citar o fato que a maioria dos pacientes que perdem a sua tensão nas
primeiras semanas de terapia, perdem também a sua mania de sexo. Mais
ainda, homens e mulheres que se consideravam altamente sexuais antes
do tratamento, afirmam que não faziam ideia da verdadeira sensação
sexual antes de aprenderem a senti-la depois da Terapia Primal. Todos são
unânimes em afirmar que também a qualidade do orgasmo passa por uma
transformação, onde todo o corpo parece participar.
Frigidez e Impotência
Se uma pessoa não pode ser o que é, ele terá que sair em busca de sua
identidade. Estará de antemão condenado a não encontrá-la já que nada
mais é senão o próprio eu que não conseguia exprimir-se. Assim, a busca
da identidade é um empreendimento neurótico levado a cabo por gente
sem sentimento que geralmente precisa encontrar alguém ou alguma coisa
além deles mesmos para lhes dizer o que ou quem são por dentro. O
paciente pós-Primal, por exemplo, já não pode sofrer crise de identidade.
Ele sente, e portanto não tem razão para querer saber quem é realmente.
A Teoria Primal afirma que somente quando não tem licença de ser ela
mesma é que a criança sente necessidade de copiar, conscientemente ou
não, os comportamentos, os ideais, as atitudes e maneirismos de outros.
Uma criança educada por pais normais não procura identificar-se com eles.
Terá seus atributos próprios.
Eu acredito que um menino que nasce e é criado somente entre mulheres
não se tornará feminino por isso. Desde que seja amado e tenha liberdade
de ser o que é, ele será bem masculino, mas se for criado por mulheres
neuróticas ele provavelmente tornar-se-á feminino.
As pessoas que estão sempre duvidando de sua identidade são aquelas que
tinham que mudar a sua personalidade para agradar aos pais e conseguir
deles alguma coisa que parecesse amor. Sempre que são forçadas a fi ngir
39
Os casamentos homossexuais são geralmente instáveis simplesmente porque são simbólicos
arranjos que não podem satisfazer os interessados durante muito tempo.
em lugar de serem o que são isso só serve para lançar a confusão quanto
às suas identidades. Nós só podemos ser quem somos.
Uma implicação da Teoria Primal quanto à identidade é que um pai ou uma
mãe sozinhos, que sejam seres humanos amorosos, podem muito bem criar
um filho ou uma filha sem dificuldades. Uma mulher pode criar um filho
muito bem sem precisar da presença de um pai, e sem que isso venha
torná-lo afeminado. É melhor a falta de um pai do que a presença de um
que seja frio e brutal.
Eu não acredito que haja qualquer diferença importante, em termos de
patologia, entre um menino que tenta imitar um machão ou um outro que
tente identificar-se com mulheres. A diferença entre o homossexual ativo
e o passivo parece estar somente na direção que tomam para fugir da Dor
e não nos seus níveis. Quando o ativo começa a adotar atividades másculas
como as motos, barba crescida, esportes pesados, isso indica que ele ainda
não sente ser ele mesmo e está procurando identificar-se com o que pensa
ser masculino. Talvez ainda esteja procurando o amor do pai e tente então
ser o homem de verdade que ele tanto desejava. O passivo talvez tenha se
desligado do pai para copiar tudo que é de sua mãe.
De formas menos óbvias, muitos homens e mulheres que não conseguem
sentir-se adotam as imagens ou roupagens daquilo que querem ser. A
necessidade de projetar uma "imagem'' pode ser uma indicação de
sentimentos íntimos bem diferentes, e vamos encontrar muitas vezes
aberrações sexuais nesses sentimentos sepultados. A minha experiência
clínica indica que embora um homem mostre uma boa aparência
masculina, a tentativa para mostrar-se "o machão" serve para encobrira
impotência ou as fantasias e terrores homossexuais. Um paciente meu, que
antes era barbado, disse-me que "a luta era manter a barba bem grande
para eu sentir-me como homem, mas agora já não preciso mais dela. Eu
antes não compreendia, mas agora tudo está claro para mim."
Bissexualismo e Homossexualismo Latentes
A Raiva
Um dos mitos a respeito dos seres humanos é aquele que acha que por
baixo de nossos plácidos exteriores todos nós somos um ebuliente
caldeirão de fúria e violência mantido e controlado somente pela
sociedade. Quando falha o sistema de controle, explode a violência inata
do homem e o resultado são as guerras, os holocaustos. No entanto, eu
estou sempre espantado pelo que encontro de falta de agressividade e
violência nas pessoas quando se lhes tiram as chamadas fachadas
civilizadas. Os pacientes Primais nunca são raivosos apesar de expostos e
indefesos. Não há raiva. Talvez seja o próprio processo de civilização que
torne os seres humanos tão faltos de civilização entre eles, trazendo como
resultado a frustração e hostilidade. Ser civilizado significa possuir o
controle de nossos sentimentos, e isso pode ser a origem da raiva interna.
Eu acredito que o homem raivoso é o que não foi amado, é o que não
conseguiu ser o que era. Ele tem geralmente raiva dos pais que não o
deixavam em paz e dele mesmo por continuar com a negação de si mesmo.
Mas a necessidade é fundamental e a raiva é secundária, já que é o que
acontece quando as necessidades não são atendidas. Quando olhamos para
o processo Primal, nós vemos uma sequência que é quase matemática na
sua falta de variação. Nas primeiras Primais há geralmente raiva, no
segundo grupo aparece o sofrimento e no terceiro a necessidade de amor.
O maior sofrimento é geralmente a necessidade insatisfeita. A sequência
Primal é a vida de trás para diante. Primeiro, na infância, havia a
necessidade de amor, depois o sofrimento por não consegui-lo e
finalmente a raiva para aliviar o sofrimento. O que geralmente acontece
com o neurótico é que ele saltou por cima do primeiro e do segundo e
encontrou-se com uma raiva inexplicável. Mas a raiva, como a depressão,
é uma reação ao sofrimento e não uma característica fundamental do
homem. Algumas vezes é mais fácil a uma criança sentir raiva do que
tolerar o terrível sentimento de solidão e rejeição e então ela finge que o
sentimento de solidão e de falta de amor é coisa diferente: ódio. Mas os
pacientes na Terapia Primal raramente sentem ódio dos pais. Geralmente
querem apenas amor e querem saber por que não lhe dão isso. O neurótico
depois de crescido tende a pensar que seu único sentimento é o ódio, mas
quando chega na terapia ele verifica que o ódio é apenas uma outra cortina
que ele lançou sobre a necessidade. Logo que sente a necessidade já quase
não resta mais raiva. Nos grupos primais, por exemplo, quase nunca
encontramos a troca de hostilidades entre os seus componentes, como
acontece na terapia convencional. Tampouco demonstram raiva pelo
terapeuta. O que há é apenas muito sofrimento.
A Teoria Primal encara a raiva como um sentimento contra alguém que está
tentando destruir a vida. Devemos lembrar que os pais neuróticos estão
inconscientemente matando os filhos, num certo sentido, já que estão
matando suas verdadeiras personalidades. A morte psicofísica é um
processo real em que a vida está sendo retirada deles. O resultado é a raiva,
já que sermos alguma coisa que não somos é o mesmo que a morte.
Quando o neurótico suprime a necessidade de amor e sente apenas a raiva,
ele pode tentar descarregá-la em alvos simbólicos como a esposa, os filhos
ou os empregados durante todas as horas do dia. Desde que não estabeleça
a ligação certa com a origem de sua raiva ele poderá descarregá -la em
formas irreais, as mais incríveis e repugnantes, como cuspir na cara da
esposa, simplesmente porque ela duvidou de alguma coisa que dissera. Na
Terapia Primal ele sentiu a raiva de nunca haver sido acreditado pelos pais,
e isso veio extravasar mais tarde sobre a sua esposa.
Se tornarmos a raiva real ela desaparecerá. Até que isso aconteça, muitas
explosões de raiva contra as pessoas no presente serão apenas
fingimentos. É claro que também há raivas verdadeiras, e que não emanam
do passado. Quando alguém faz alguma coisa errada que nos contrarie, a
raiva pode ser legítima, mas quando as explosões são diárias o predomínio
deve estar no passado. Isso significa que o neurótico está sempre pronto a
sentir aquilo que reprimiu antes. O que ficou sem solução na infância irá se
infiltrando em tudo que a pessoa fizer mais tarde até que seja resolvido.
Acho que é importante diferenciar entre a raiva real e a simbólica. O
exemplo seguinte pode esclarecer este ponto.
Uma jovem professora que tinha sempre um sorriso nos lábios e maneiras
atenciosas veio procurar ajuda para um constante estado de tensão e
aperto nos seus músculos. Durante a segunda sessão ela contou como seu
pai sempre a criticava, irritava e ridicularizava, e de repente, ficou furiosa
e começou a bater no travesseiro durante mais de cinco minutos. Depois
que passou o acesso disse-me que nunca poderia imaginar a existência de
tanta raiva dentro dela.
A tensão, no entanto, persistia. Durante sua quinta visita ela passou a
discutir outra vez sobre as injustiças do passado. Começou então a
estremecer-se toda violentamente ao mesmo tempo que dava vazão ao seu
ódio dizendo como ia estrangular todo mundo, como ia cortar seu pai em
pedacinhos por todo o sofrimento que lhe causara sem nunca lhe permitir
defender-se, como iria enfiar uma faca na mãe que permitira aquilo e por
aí além. Tudo isso foi dito aos gritos em meio de convulsões e gemidos,
apertando a barriga e inteiramente descontrolada.
Aquela mulher nunca em toda a sua vida havia levantado a voz para
alguém. Isso não era coisa que pudesse fazer na educação que recebera em
casa. Confessou afinal que depois daquela sessão sentia-se solta e
imprevisível pela primeira vez em sua vida.
Foram necessários alguns estágios na sua terapia. Primeiro, ela tinha uma
vaga e difusa tensão durante toda a sua vida que a mantinha amarrada. A
primeira Primal tratou de sondar essa tensão para sentir a parte física da
raiva, para reconhecer até mesmo que estava com raiva. Depois ela
amassou o travesseiro porque ainda não tinha estabelecido a ligação
mental. Aquilo era uma representação simbólica. Claro que ela não tinha
raiva do travesseiro que era apenas o objeto simbólico para descarregar a
sua fúria, da mesma forma que acontece com crianças filhos de pais
raivosos. Só que no caso da criança indefesa os pais raivosos sempre
encontram uma razão para justificar a explosão. Com o correr do tempo as
crianças passam a dar aos pais razões reais para as raivas.
Logo que estabeleceu a principal ligação, essa mulher deixou de sentir a
raiva e consequentemente desapareceu aquela tensão crônica dos
músculos que sentira toda a sua vida.
Nas terapias anteriores a que se submetera o método era encorajá-la a
descarregar a raiva e hostilidade sobre os outros componentes do grupo.
Ela sentia que estava melhorando, mas ainda sentia os ombros doerem, e
isso era porque persistia a sua antiga raiva de menina. O que acontece, na
minha opinião, é que o eu real, indefeso e passivo, finge que se impõe,
especialmente na atmosfera segura da terapia de grupo. Na terapia, uma
"boa" moça exprime a sua raiva da mesma forma que a boa moça em casa
a esconde. Ambos os comportamentos representam a luta pelo amor.
A diferença entre a raiva real e irreal ou simbólica é muito importante
porque eu acredito que a falta de atenção a esse ponto levou a muitas
distorções terapêuticas. Assim, gasta-se muito tempo na psicoterapia de
crianças quando elas são obrigadas a esmurrar sacos. No nível de adultos,
existem as chamadas clínicas de brigas onde os cônjuges são colocados
numa sala para aprenderem argumentos de ataque e defesa nas suas
discussões. Na minha opinião, tudo isso é simbólico e nada pode resolver
de forma real. A mulher de quem falei acima mostrava-se zangada com seus
companheiros de terapia mas, na verdade, não tinha raiva deles. As coisas
que fazia serviam para despertar suas antigas raivas. Quando se sentia
ignorada, criticada, interrompida ou suprimida, aquilo despertava a fúria
contra os pais, mas ela continuava a ignorar que era um sentimento antigo.
A força de sua raiva contra os companheiros do grupo era realmente
irracional. Parecia um pouco com aquilo que se lê nos jornais da mulher
que matou o marido só porque ele não levou para fora a lata do lixo,
quando foi alguma coisa no passado que deflagrou a violência. Também
serve para explicar por que alguns pais têm medo de espancar os filhos por
alguma coisa insignificante. Raciocinam que a sua filosofia de educação de
filhos proíbe o espancamento quando a realidade é que sentem medo que
isso dê vazão à violência latente das crianças.
Possivelmente, uma das razões para a existência das clínicas de brigas e
também do encorajamento de expressões hostis na terapia de grupo, talvez
seja que a raiva ou violência é considerada como coisa natural que deve ser
extraída periodicamente e a que Freud chamava de "agressão instintiva". É
uma grande tentação para os psicólogos acreditarem nesse suposto
instinto, porque nós realmente constatamos muita hostilidade em nossos
pacientes. Nós vemos apenas essa violência porque não levamos os
pacientes até bem no fundo de seus sentimentos, de suas necessidades. O
que vemos é o que está por cima da necessidade, ou seja, a re ação da
frustração à necessidade.
Já que acreditamos em um instinto agressivo nós, muitas vezes, gastamos
muito tempo em nossas terapias ajudando as pessoas a cuidarem de suas
agressões, isto é, a controlá-las. Eu creio que temos que fazer o contrário.
Devemos deixar sentir toda a raiva para depois erradicá-la. Quando a
pessoa pode sentir a si mesmo, em lugar de representar simbolicamente os
seus sentimentos, ela dificilmente agirá impulsiva ou agressivamente. A
dialética da raiva, como a da Dor, é que ela desaparece logo que é sentida,
em caso contrário fica esperando por isso.
O conceito de cada qual cuidar de si implica o split neurótico. O perigoso é
esse split porque ele significa que os sentimentos reprimidos devem ser
controlados. Assim, a pessoa desinibida, espontânea e descontrolada é a
que mais provavelmente terá menos agressões internas.
Mais uma vez, quero tornar claro que espontaneidade significa sentimento,
ao passo que impulsividade é o resultado de sentimentos reprimidos.
Assim, uma pessoa impulsiva pode, em verdade, agir agressivamente e
portanto precisa de controle. Durante anos nós vimos considerando os
indivíduos impulsivos como pessoas livres e anarquizadas, esquecendo que
elas são geralmente presas a antigos sentimentos bem definidos a que
estão dando vazão de maneira reduzida e não, de forma alguma, a
liberdade ou anarquia que possa parecer.
Uma pessoa pode ter explosões diárias durante toda a sua vida sem,
contudo, perceber que é zangada. Geralmente consegue arrumar as coisas
de tal modo que justifique seu acesso de raiva sem ter necessidade de
sentir a sua origem. Se o neurótico não encontra alguma coisa para
justificar a raiva, podemos ter certeza que ele encontrará meios para torcer
qualquer coisa insignificante para manter a vazão dessa raiva. Esse
despistamento, em geral, seria na direção de necessidades reprimidas e
não simplesmente uma questão semântica.
A raiva do neurótico pode depender de alguma situação anterior que lhe
causou sofrimento. Por exemplo, eu tive uma paciente que ficava com raiva
quando os filhos não ajudavam na arrumação da casa. Dava-lhes surras e
tudo, afinal, era porque sua mãe a obrigava arrumar a casa desde os oito
anos.
A pressão alta é um possível resultado da repressão da raiva. Quando
pacientes com tendência para hipertensão terminam sessões tumultuosas
é frequente notarmos uma queda na pressão. Se considerarmos isso em
termos de bombeamento de maior pressão num organismo até que ela
exerça alguma força sobre todo o sistema circulatório, então é fácil vermos
como essa pessoa pode tornar-se potencialmente violenta desde que não
existam mais restrições. Por outro lado, a elevação da pressão torna -se
compreensível quando as restrições são continuamente impostas.
A divisão na cultura norte-americana atual entre a ética familiar e a societal
é muito nítida. O "bom" menino em casa nunca mostra sua raiva contra os
pais, ao passo que o "bom" menino da sociedade mata para servir ao seu
país. Um torna-se uma condição para o outro. O mesmo rapaz reprime-se
e mata outros só para ser "bom".
A raiva é muitas vezes semeada pelos pais que veem nos filhos a negação
de suas vidas. Os pais que nunca tiveram realmente uma oportunidade para
serem livres e felizes, que casaram cedo e sacrificaram-se durante anos
pelos filhos, vingam-se neles que são então os que sofrem, que devem
pagar só porque estão vivos e porque a sua simples existência constitui a
negação da liberdade dos pais. A criança começa a ser punida muito cedo.
Não lhe darão licença para dizer o que querem, não podem chorar nem
gritar. Recebem uma verdadeira onda de ordens que deverão cumprir para
terem o direito de viver. Todos os dias ensinam-lhes que têm que cuidar de
si sem pedir ajuda até que chegue o dia em que terão que cuidar dos pais,
de suas responsabilidades e obrigações. Bem cedo na vida a criança
compreenderá que é um empecilho e tentará desesperadamente purgar
por um crime que não cometeu. Crescerá depressa demais e fará tudo para
acalmar seus pais irritados que a odeiam sem qualquer razão. Uma paciente
que tinha sido a causa do casamento dos pais ainda antes dos vinte anos
disse: "Passei toda a existência tentando descobrir a razão para minha vida
caótica, para todas aquelas críticas e recriminações pelas coisas mais
triviais que eu fazia. Finalmente estudei filosofia para descobrir uma razão
na vida, isto é, para disfarçar o fato de não haver uma razão plausível para
o que se passava em minha casa."
Há muito pouca raiva depois das Primais porque eu acredito que ela seja o
contrário da esperança. A esperança nessa espécie de raiva é a de
converter os país em gente boa e de bons sentimentos. Por exemplo, a
fantasia de alguns pacientes meus depois de terminarem a terapia
convencional era que iriam ver os pais para fazer-lhes ver tudo que de mal
tinham feito contra eles, mas implícita nessa confrontação estava a
esperança que os pais vissem como tinham sido horríveis e logo se
tornassem diferentes e carinhosos.
Eu considero como sinal de neurose quando os meus pacientes ainda
sentem raiva. Primeiro, porque isso implica uma falsa esperança. Segundo,
porque a raiva implica as necessidades que continuam a existir nas
criancinhas que ainda não se desligaram dos pais. Não existe a raiva de
adulto, se o paciente já é realmente adulto, pela mesma razão que ele nã o
se zangaria pelo comportamento neurótico em qualquer outra pessoa.
Seria um adulto vendo objetivamente a neurose dos pais. A objetividade é
a ausência de sentimentos inconscientes que fazem uma pessoa desviar a
realidade da Dor encaminhando-a para a satisfação da necessidade. Seriam
apenas mais dois adultos neuróticos. Só há raiva contra os pais quando a
pessoa quer que eles mudem para o que ela quer. Desde que a necessidade
seja satisfeita a raiva desaparece.
O que realmente existe nos pacientes Primais é o grande sentido de
tragédia quanto a uma infância desperdiçada. Há, ao mesmo tempo, um
grande alívio já que terminou a luta de uma vida inteira. Os pacientes não
se interessam por vinganças pelo que aconteceu no passado, já que dão
mais importância para a nova vida que têm diante deles.
Ciúme e Inveja
O ciúme e a inveja são outras duas faces da raiva, e também são causados
pelo sentimento de falta de amor dos pais. Como a criança não pode
mostrar uma hostilidade direta pelos pais, ela tende a se desvi ar para os
irmãos que passam a ser apenas símbolos.
Por que será a criança zangada e ciumenta? Talvez porque desde cedo os
pais transmitem a elas uma noção que o amor é, de certa forma, uma
quantidade limitada e que depressa se gasta. Então estão sempre
mostrando os irmãos como exemplo para tudo e a criança fica então com a
impressão que não está recebendo toda a sua parte e daí o ciúme. Implícito
nesse sentimento está a existência de partes e isso acontece nos lares de
neuróticos onde os pais não dão abertamente e sim apenas vão
distribuindo aos poucos e sempre com alguma "condição." A criança é
então obrigada a lutar por tudo que quiser e poderá mostrar-se zangada
com os outros que estão ameaçando a sua porcentagem.
A ausência de ciúme ou inveja significa um amor completo. Na minha
opinião essa condição não existe naturalmente nas crianças, e aliás, nem
tampouco a raiva. É possível que brigue com os irmãos, mas são geralmente
os pais que mais exigem, criticam e negam o que a criança precisa. São os
pais que se mostram impacientes e irritáveis com manifestações infantis e
que talvez podem mostrar preferências por uns em detrimento de outros.
O que os pais neuróticos veem quando olham para os filhos é a esperança,
a imagem do que precisam — respeito, adulação, atenção. Estão se ligando
a um símbolo e não à criança. A criança que recebe aquilo que se parece
com amor é aquela que se torna, portanto, um neurótico simbólico em
lugar de alguém que pode se dizer dono de sentimentos próprios. Pois é
esse filho preferido que foi completamente destruído quem, a mais das
vezes, funciona bem em sua vida. O rebelde, aquele que não se conformou
nem se submeteu, talvez nunca funcione bem, mas, ainda assim, talvez se
aproxime mais de um ente humano do que o seu outro irmão que funciona
bem.
A pobre criança que é a favorita muitas vezes apanha da outra menos
favorecida e passa toda a sua mocidade pagando por um crime que foi
cometido pelos pais. Em um certo sentido, esse ciúme ou inveja é a forma
que o filho menos favorecido procura para conseguir a sua parte.
O ciúme infantil continua pela vida inteira e o filho invejoso ou ciumento,
ignorado pelos pais, pode crescer e ter filhos que ele punirá e
amesquinhará quando exigirem atenção de sua mãe. Essa situação
persistirá até que a pessoa encontre o contexto certo para sua raiva
plenamente sentida.
A criança não somente se sente zangada por não ser amada como também
se sente frustrada por não ter conseguido dar amor a ninguém. Além disso
há ainda a amargura de nem mesmo poder pedir o amor que necessita. Um
paciente disse que exigir amor na sua casa era considerado um crime e um
outro tinha medo de chegar-se ao pai para não ser considerado maricas.
Para aqueles que acreditam que o ciúme, a inveja e a hostilidade são
instintos naturais no homem, eu só posso dizer que os sonhos de meus
pacientes que terminam a Primal, e também o seu comportamento diário,
são completamente desprovidos de qualquer conteúdo de raiva, ciúme ou
inveja. Assim, mesmo que eles conseguissem controlar isso durante o dia,
seria de esperar que tudo surgisse nos sonhos quando os controles são mais
frouxos, mas não é o que acontece. Isso indica que o conceito de um
conglomerado instintivo de agressão deve estar errado. Se realmente há
qualquer instinto, ele deverá ser pelo amor, ou seja, pela própria pessoa.
Medo
Quando meu filho tinha dez anos, ele começou a ter terrores noturnos sem
que eu pudesse compreender a razão. Tinha medo de um homem que
estava no armário. Isso durou um mês até que eu resolvi tirar a coisa a
limpo. Uma noite, quando ele ia para a cama e pediu-me que deixasse as
luzes acesas e o rádio ligado eu resolvi submetê-lo a uma Primal. Obriguei-
o a mergulhar naquela sensação de medo para que ela tomasse conta dele.
Ele começou a tremer e a voz afinou. Dizia que não queria e que tinha
medo. Eu insisti. Quando mergulhou no terror eu lhe disse que gritasse o
que sentia mas ele dizia que não podia, não podia. Tornei a insistir e
finalmente ele disse, "não tenho palavras, papai. Mamãe está me
segurando pelas fraldas e tentando espetar-me em alguma coisa." Estava
aterrorizado e sentia-se indefeso. "Eu nunca achei que o homem do
armário ia matar-me com um revólver. Achava que ele ia estrangular-me."
Qual era a razão? Uma tarde, antes do tal medo começar, eu estava
brincando de luta com ele e o mantive preso pelos ombros de encontro ao
chão. Não me pareceu que houvesse qualquer trauma e esquecemos
daquilo até a hora da Primal quando suas lembranças voltaram à época em
que tinha oito meses. Chegava a lembrar a cor e a forma da bacia. Depois
do banho, ele estava correndo e fugindo enquanto minha mulher tentava
lhe colocar as fraldas até que já zangada ela segurou-o com força. O medo
vinha daquela experiência.
Em termos Primais, um medo irracional aparentemente, mas constante, é
geralmente uma manifestação de um medo anterior e muito mais
profundo. É o medo de então e não de agora, de forma que tentar
convencer alguém de alguma fobia irracional, como o medo de meu filho,
seria o mesmo que tentar apagar de sua mente uma lembrança.
A razão para a continuação das fobias é que elas se alimentam num
conglomerado de medo da Primal. Insistindo num velho tema, os terrores
neuróticos são também simbólicos. Os terrores reais não podem ser
atingidos sem a ajuda e apoio, de modo que a pessoa contenta-se com
substitutos. Assim surge o medo de elevadores, de cavernas, de altura, de
cães, de multidões, quando, na realidade, eles têm origem no passado.
Podemos dizer que os terrores atuais são como sonhos, ou seja, uma
tentativa para transformar em racionais antigos sentimentos que, dentro
do contexto atual, são considerados irracionais.
Mas ainda assim, isso é mais do que tornar os antigos sentimentos
racionais. É uma forma simbólica para controlar tais terrores. De certa
forma, o neurótico deve pensar que se conseguir manter as coisas sob
controle, já não precisará mais ter medo. Por isso o neurótico evita o que
teme, ou o que pensa temer. Não entra em avião e evita as alturas.
Essas atividades muitas vezes ajudam a controlar tais medos isolando-os
em compartimentos separados. Mas se alguém chega perto do objeto de
seu pavor, o que surge é um medo real simbolizado pela situação presente.
O neurótico que chega à beira de um despenhadeiro pode realmente temer
que perca o controle sobre seus sentimentos de autodestruição, e não
simplesmente que tenha medo de altura.
Eu quero crer que haja duas razões importantes para a escolha de um medo
irreal (fobia). A primeira é a verdadeira ocorrência de um trauma real
como, por exemplo, um acidente de automóvel ou uma queda de algum
telhado. Para o neurótico que passasse por isso, o medo de automóveis e
de alturas poderia se prolongar além do razoável e até mesmo durar a vida
inteira.
O que o neurótico geralmente faz é generalizar de uma única experiência
para uma classe muito mais ampla de outras sem qualquer relação com o
medo original. É o mesmo que acontece com o neurótico que por causa de
uma experiência desagradável com a mãe generaliza isso para se estender
a todas as mulheres.
A segunda razão para a adoção de uma fobia pode ser o valor simbólico do
medo atual. Os que se julgaram esmagados pelos pais poderão ter medo
de ficarem encurralados em lugares apertados como elevadores cheios. Os
que se sentiram totalmente abandonados pelos pais podem ter medo de
espaços muito amplos onde poderiam perder-se ou, pelo menos, sentirem-
se perdidos. Essa mesma pessoa, aliás, poderá ser a que se casa com um
tipo "mandão" que vai dirigi-la para o resto da vida. Isso, na minha opinião,
é importante, porque o medo neurótico é parte de todo o sistema
neurótico e não apenas um acontecimento isolado. Assim, as tentativas
para tratar do medo específico sem uma relação com o sistema total só
serviriam para perpetuar o sistema neurótico fragmentado e desviar a
atenção do paciente para longe da coisa real.
Recentemente tivemos uma mulher que recorreu à nossa terapia porque
tinha pavor de aranhas pretas. Não atacamos o seu medo diretamente, mas
depois de algumas semanas de tratamento ela começou a falar de seus
sentimentos a respeito de seu pai. Descobriu que estava sempre com medo
dele. Reviveu uma cena em que tivera medo dele e gritou "papai, não me
meta mais medo!" E logo a seguir, "papai, não me deixe ter medo." Ele fazia
tanta caçoada de seus medos que ela já não queria demonstrá-los. Mais
tarde ela ficou confusa e passou por duas sensações ao mesmo tempo. A
primeira era "não me toque, papai!" e a outra "segure-me, não quero
sentir-me só em toda aquela escuridão." Logo que conseguiu gritar o medo
que sentia do pai seguiu-se uma torrente de insights. "Estou vendo tudo
agora. Sempre tive medo, mas era tão sutil e tão inconsistente. Um dia eu
vi aquela grande aranha preta no banheiro e saí correndo e gritando.
Finalmente podia gritar o meu medo. Já encontrei a razão. Meu medo era
real, mas eu liguei-o a uma outra coisa que não era."
Quando sentem suas defesas atacadas, os pacientes Primais experimentam
uma vaga ansiedade. Quando eu não permiti que um capitão dos fuzileiros
praguejasse durante o tratamento, aquilo ameaçou a sua posição de
homem importante. Fez com que ele se aproximasse mais do fato que era
um garotinho que sofria. Ele não sabia exatamente o que sentia, exceto
que tinha uma sensação de medo e desamparo desde que não pudesse
gritar palavrões. A ansiedade neurótica é o medo de ficar exposto contra o
sofrimento Primal. A conduta neurótica serve para ocultar o sofrimento. O
homem a que me referi era de uma família de fuzileiros a que pertenciam
seu pai e irmãos. Para poder viver na família era preciso ser duro,
independente e livre de emoções. Ele não poderia tolerar a possibilidade
de precisar do aconchego do pai. Aquela necessidade sepultada mantinha -
o tenso, e quando o disfarce tornou-se mais tênue a tensão transformou-
se em ansiedade.
Já o contrário aconteceu com outro homem que precisava mostrar-se
agressivo. Tinha medo de deixar de ser o queridinho da mamãe se ficasse
zangado, e chegava a tremer só de pensar que isso poderia acontecer.
O medo trabalha para a sobrevivência. É ele que nos faz desviar de objetos
que caem, mas mantém a criança viva não permitindo que ela sinta os
primitivos sentimentos catastróficos que poderiam fazê-la desistir de viver.
O medo é aquilo que contribui para produzir as neuroses que nos protegem
de catástrofes. As pessoas que não podem continuar a ser neuróticas
muitas vezes tornam-se medrosas ou ansiosas. Quando não permitimos
que nossos pacientes finjam, eles ficam piores.
Da mesma forma que todos os neuróticos devem mostrar- se zangados por
não serem amados, também todos eles devem sentir um medo íntimo.
Alguns não tomam conhecimento do medo, outros projetam o medo em
fobias e ainda outros mostram o medo em formas de contrafobias. O medo
mostra quando se aproxima a Dor Primal. Uma indicação disso é que
quando a Dor Primal aumenta, depois de enfraquecer uma defesa, o medo
também aumenta.
O medo neurótico é o medo que a pessoa tem de perder a mentira com que
vive. Qualquer ataque à mentira provoca o medo porque ela contém a
esperança. Quando uma moça tenta ser rapaz para agradar ao pai, e
quando se mete em esportes e falha, ela pode tornar-se ansiosa porque a
sua personalidade real está surgindo. Quando um menino pretende ser o
queridinho da mamãe, ele pode tornar-se ansioso se ela fizer caçoada de
sua linguagem de garoto como muito chula.
O paciente Primal tem mais medo quando todo o seu jogo neurótico está
quase a terminar. Nosso objetivo é provocar esse medo para que ele possa
empurrá-lo para dentro de seus sentimentos verdadeiros. Tem medo de ser
real, e é por isso que é neurótico.
É muito importante o relacionamento do medo com a dor. As pessoas
exibem uma fachada para não sofrerem. Se alguém for exatamente o que
é, não poderá ser ferido e não precisa mostrar-se ansioso. A função do
medo, real ou não, é evitar nosso sofrimento. A única forma para
conquistar o medo é sentir o sofrimento. Enquanto o medo não for sentido,
ele continuará.
Contrafobia
Para muitos jovens, o LSD, também conhecido como o ácido, é uma maneira
de viver. Os efeitos do LSD parecem tão profundos, mas tão místicos, q ue
já degenerou num culto, um Weltanschauung. Os consumidores crônicos
geralmente o chamam de "uma longa viagem no espaço interior", ao passo
que outros dizem ser a viagem para a realidade.
Eu acredito que o LSD seja uma viagem à realidade no sentido que ele
estimula intensos sentimentos reais, mas o neurótico faz com essa
realidade o mesmo que faz com a realidade em geral, isto é, transforma -a
em alguma coisa simbólica.
Não há dúvida que o LSD estimula os sentimentos e sensações, já que
temos provas clínicas disso. Recentemente o LSD foi administrado a um
grupo de macacos que foram depois sacrificados e autopsiados. A maior
concentração da droga foi encontrada nas áreas do cérebro conhecidas
como relacionadas ao sentimento e sensações
O problema com o uso do LSD é que ele abre artificialmente os indivíduos
para mais realidade do que eles podem tolerar dentro de seus sistemas
neuróticos, e o resultado é um pesadelo em pleno dia, é a psicose. A razão
para a defesa é manter a integridade do organismo. O LSD desarticula a
defesa e o resultado trágico é que os consumidores da droga estão lotando
as enfermarias da neuropsiquiatria em todo o país. Geralmente, é possível
reconquistar o sistema neurótico depois que passa o efeito da droga,
exceto em alguns casos em que os sistemas de defesa originais já eram
fracos.
A resistência do sistema de defesa junto com a dose ingerida são os fatores
que determinam como a pessoa vai reagir sob a ação do LSD. Pode
acontecer, e já tem acontecido, que uma pessoa com um sistema de defesa
reforçado não reage de forma alguma à droga.
Uma das razões para o LSD ser considerado como psicodélico é a fuga
simbólica. O estímulo das sensações produz uma explosão de ideias
simbólicas que são muitas vezes confundidas como expansão da mente . O
que precisamos compreender é que essa expansão é uma defesa. O
maníaco psicótico com ideias extravagantes é um perfeito exemplo de
expansão da mente fugindo das sensações.
Os pacientes maníacos atendidos por mim, muitas vezes espíritos
brilhantes, chegavam a escrever quase um livro em três ou quatro semanas.
O que distingue a psicose da neurose é o grau e a complexidade da
simbolização. Na neurose ainda há muito contato com a realidade ao passo
que na psicose isso já talvez não exista mais e a pessoa pode estar envolvida
pelo simbolismo, já não podendo mais diferenciar entre símbolos e
realidade. Com a continuação do processo de deterioração, a pessoa pode
chegar a não saber mais quem é, onde está ou em que ano vive.
Os resultados do uso do LSD parecem confirmar uma das principais
hipóteses Primais, ou seja, que a neurose começa a manter-nos afastados
da realidade de nossos sentimentos e que esses mesmos sentimentos,
quando experimentados nos primeiros anos devida, podem levar à loucura.
O estímulo de todas as sensações Primais de maneira repentina e artificial
com o uso de uma droga pode levar às mesmas possibilidades de loucura.
Nos primeiros tempos da pesquisa do LSD, a droga era conhecida como um
agente psicotomimético (imitador de psicose). Era usado para o estudo da
psicose. No princípio não houve muita preocupação porque acreditava -se
que a droga produzia a psicose que, no entanto, desaparecia, quando ela
não era mais administrada, mas o entusiasmo logo cessou quando
apareceram casos em que isso não aconteceu. O resultado foi que o LSD foi
condenado para a maior parte dos fins de pesquisa, já para não falar do seu
uso generalizado.
Eu acredito que o LSD não somente imita a psicose como também produz
uma loucura real, embora muitas vezes passageira. Além disso, eu não
acredito que as propriedades intrínsecas da droga tenham alguma coisa a
ver com as reações bizarras, a não ser até onde estimulam sensações em
demasia.
Alguns meses atrás, uma moça de vinte e um anos que fora diagnosticada
em um hospital neuropsiquiátrico como "pós-LSD esquizofrênica" veio a
nós para tratamento Primal. Havia ingerido grandes doses do ácido depois
de alguns cigarros de maconha e durante o efeito do ácido entrou em
estado de pânico. Quando acabou o efeito da droga ela começou a sentir
coisas estranhas. Sentia-se levantada da cadeira e levada para fora e outras
vezes fitava desesperadamente uma lâmpada acesa sem saber o que estava
vendo realmente.
Foi enviada ao hospital neuropsiquiátrico para observação, ingeriu
tranquilizantes e dentro de uma semana estava de volta em casa.
Continuava na mesma dentro da irrealidade e depois de algumas semanas
comecei a tratá-la. Caiu logo em transe Primal onde começou a reviver a
experiência com o LSD por sua própria iniciativa. Começou a dizer "tudo me
cheira a merda. Há merda nas paredes. Meu Deus, está em toda a parte. Eu
nem posso limpar-me." (Aí tentou limpar- se mas eu lhe disse o que era)
Oh! Oh! Vou ficar maluca. Quem sou eu? Quem sou eu? (Eu a obriguei a
ficar com a sensação) Ah! Já sei. Sou eu, eu sou merda, sou merda!" Nesse
ponto começou a chorar e deixou sair uma série de insights mostrando que
era assim mesmo que sempre se sentira, sem se dar conta. Falou sobre sua
família muito pobre que consistia num pai beberrão e numa mãe espancada
e infeliz. Discutiu como sentia-se insignificante. Nunca aspirara ou tentara
ser alguém porque sentia-se como se fosse "um bocado de merda que não
valia nada." Havia acobertado seus sentimentos e origem sob um verniz de
cultura e intelectualismo falsos que o ácido certamente destruíra. Para
poder sobreviver ela havia transformado a realidade em irrealidade.
Um outro caso de psicose nada tinha a ver com a droga. Essa paciente fora
para um colégio interno com a idade de sete anos devido ao divórc io dos
pais. Prometeram-lhe que a mãe iria visitá-la com frequência, mas isso não
aconteceu. Suas visitas eram poucas, vinha embriagada e em companhia de
homens e depois nunca mais veio. Escreveu algumas cartas explicando por
que não podia ir e depois também parou de escrever. A criança começou a
sentir a realidade de seu abandono. Começou a evitar contatos sociais e
para amenizar a sensação de abandono ela inventou um companheiro
imaginário que estava sempre ao seu lado. Com o correr do tempo o seu
companheiro começou a conversar com ela contando- lhe coisas estranhas,
dizendo-lhe que algumas pessoas eram contra ela e queriam isolá-la
completamente. Aos poucos ela foi mergulhando numa psicose para
afugentar a realidade ameaçadora.
Nos dois casos, eu acredito que foi a realidade que produziu a irrealidade.
As duas pessoas estavam loucas porque não queriam ver a verdade desde
que não fossem mais loucas.
Na Cena Primal, defrontando-se com essa verdade, surgiu um sistema
alternado que veio ajudar a esconder a realidade. Sua função era
fragmentar e depois simbolizar a verdade permitindo que a criança
neurótica desse vazão aos seus sentimentos sem perceber o que estava
fazendo. Ela começou a fingir. Mas quando a realidade é esmagadora, tanto
devido a algum acontecimento ou a uma droga como o LSD que não permite
fingimento, a psicose está à espreita. Com o LSD não há muita possibilidade
de fingir, já que as sensações são fortes e imediatas, pois a pessoa não pode
fingir que está muito ocupada com outra coisa qualquer. Precisa haver o
simbolismo mental ou físico como acontece com sonhos e ideias bizarras
ou a incapacidade de levantar um braço e completa paralisação de
coordenação física. No caso de estranhas mudanças no corpo podemos
dizer que a pessoa tornou física a sua psicose. Isso significaria o mesmo
split ou divisão como existe na psicose.
Esse split foi discutido por uma antiga paciente psicótica. "Era terrível
sentir que o corpo estava-se tornando meu, verme como menininha
procurando compreender os movimentos de suas pernas e pés. Meu corpo
sempre funcionaria independente como se não fosse meu. Será que a razão
para o esquizofrênico tanto se preocupar com o seu corpo é devido ao fato
dele ser uma coisa tão estranha? Eu acho que chega a hora em que o corpo
deve separar-se do apercebimento para poder ficar bem longe da Dor. Eu
acredito que a distorção secreta do significado daquilo que acontece em
torno de nós é esse processo automático de tornar tão separados o corpo
e as sensações".
Um outro exemplo da materialização da sensação foi oferecido por um
paciente que, num período de um ano antes da terapia, havia tomado o
LSD dez vezes. Entre outras reações ele sempre sentia uma espécie de
zumbido persistente na boca durante todo o tempo da viagem. Durante a
Primal teve a mesma sensação e inexplicavelmente começou a chupar o
dedo polegar. O zumbido continuou, no entanto, até que ele chegou à
conclusão que não era o polegar que ele queria chupar e sim o seio de sua
mãe. Logo que esclareceu isso o zumbido cessou.
Esse homem tinha sido desmamado prematuramente conforme alguma
tabela que sua mãe seguira de algum livro sobre pediatria. Embora fumasse
dois maços por dia e chupasse furiosamente seus cigarros, ele custou a
acreditar que ainda sentisse aquela necessidade do seio materno, mas
lembrou-se que tinha sempre alguma coisa na boca até onde sua memória
alcançava. Ele tinha escondido seus sentimentos tão bem que o único
momento em que mais aproximou-se da realidade foi quando tomou uma
droga poderosa. Mas fica demonstrado que a simbolização se instala para
proteger o organismo quando as sensações são por demais penosas.
Cerca de vinte pacientes nossos tomaram LSD antes da terapia, sendo que
alguns em doses repetidas. Quando começamos com a Terapia Primal
tivemos alguns pacientes que tomaram o LSD durante o tratamento sem
que eu soubesse disso. Eles me contaram mais tarde que acreditavam na
eficácia da droga para apressar o tratamento. Como já dissemos antes, não
somente são proibidos todos os remédios, e até mesmo a aspirina, durante
a Terapia Primal, como também os pacientes já recebem agora instruções
escritas para que não se repita o uso do LSD. Mesmo assim, a experiência
com o LSD em uns sete pacientes nossos durante a terapia teve bastante
valor para a compreensão das reações psicológicas ao ácido. Os pacientes
Primais que ainda tinham dores antigas foram bombardeados diretamente
pelo que lhes restava de sensações ou sentimentos e conseguiram ligá -los
logo às suas origens, sem que houvesse simbolismo. Em alguns casos as
dores continuaram num estilo de livre associação durante duas ou três
horas.
Dois pacientes que tomaram o LSD depois de três ou quatro meses de
terapia, tiveram reações momentâneas e simbólicas. No primeiro caso o
paciente teve alucinações em que via pessoas nas paredes em práticas
estranhas. Ficou intrigado com o que via até que descobriu. "Estava
fazendo uma exibição para mim mesmo cá fora para não sentir o que se
passava por dentro. O drama realmente continha muitos sentimentos
meus, especialmente a raiva. Acho que estava tentando convencer-me que
tudo aquilo nada tinha a ver comigo. Tão cedo percebi que aqueles eram
os meus sentimentos eu me entreguei a eles e tudo desapareceu da
parede." Antes de uma Terapia Primal, no entanto, o mais certo seria q ue
ele continuaria com suas alucinações até passar o efeito da droga.
O segundo paciente tomou o LSD no quarto mês de terapia e começou a
imaginar que as pessoas estavam todas contra ele e só queriam vê-lo
sofrendo. Suas mãos começaram a inchar e então veio o sentimento em
que pedia ao pai que fosse carinhoso com ele. As mãos voltaram ao normal
e já não imaginava mais que as outras pessoas estivessem contra ele. Se
ainda tivesse muita dor bloqueando-lhe o caminho, dificilmente
estabeleceria aquela simples ligação.
A maior parte dos pacientes que tomaram o LSD depois de alguns meses de
terapia já tinham experimentado antes, e sempre contavam as viagens
simbólicas. Uma pessoa sentiu as mãos paralisadas durante uma viagem
anterior enquanto uma outra se debatia no chão com terríveis dores de
estômago. Uma terceira viu vermes saindo-lhe da boca e do nariz e houve
ainda alguém que viu o seu esqueleto num espelho. Mais tarde, quando
recordaram aquelas experiências, todos eles surpreenderam-se como o
corpo automaticamente parecia simbolizar a dor. O símbolo em todos os
casos referia-se a uma específica sensação reprimida. Eu desconfio então
que as dores não cessam até que sejam sentidas pelo que realmente são.
Os pacientes que já estavam em conclusão de terapia não sentiam muita
coisa com a droga. Não tiveram alucinações nem sensações de
despersonalização. As suas viagens nada tinham de místicas ou belas, já
que eram apenas os sentimentos reais que vinham à superfície. Isso é uma
conclusão importante pois contribui para provar a hipótese Primal
referente à doença mental e à Dor Primal. Na ausência de significativa Dor
Primal, não existe doença mental sob intenso estímulo.
Minhas observações mostram que o LSD talvez não seja alucinógeno para
uma pessoa normal, nem é tampouco psicotomimético para os portadores
de Dor Primal.
O LSD não permite o estabelecimento de ligações sólidas, e somente essas
ligações permitem mudanças duradouras. São muitas as razões pelas quais
as ligações não podem ser estabelecidas sob a influência do LSD e a mais
importante é a que significa o sofrimento da Dor Primal. Sob o LSD as
pessoas podem sentir alguma coisa que minutos depois já nem se lembram
mais. A droga leva-os de uma sensação a outra sem que nenhuma delas
fique fortemente estabelecida no consciente. A plena consciência é
indispensável para um pleno sentimento pois do contrário é uma massa de
sensações que podem ser confundidas com sentimentos. Um paciente
explicou que "as Primais são mais seguras do que o LSD. Quando alguém
sente alguma coisa durante a Primal, isso pode durar uma hora e pode-se
então estabelecer a ligação com algum acontecimento da vida. Com o LSD
eu fui continuadamente empurrado, sem conseguir concentrar-me em
coisa alguma. A droga produzia tantos impulsos ao mesmo tempo que um
sentimento levava a outro numa cadeia sem fim que quase me deixou
maluco." Um outro que também tomara o LSD disse, "embora soubesse que
sentira alguma coisa com o LSD, eu sempre queria que me confirmassem o
que havia dito." Em resumo, ele não tinha a certeza do que era real, embora
fosse real o que dizia e sentia. A droga amortece o pleno impacto da
realidade.
Nenhuma das pessoas que tomaram o LSD antes da Terapia Primal
chegaram a afirmar terem conseguido chegar aos sentimentos básicos
Primais com a droga. Nunca, por exemplo, uma só delas sentiu a solidão
que surge na Primal, uma solidão misturada com lembranças de haver sido
abandonado só no berço. Com o LSD acontecia tanta coisa que não dava
para voltar as lembranças primitivas, e até mesmo com a droga, as
primeiras dores realmente traumáticas sempre serão simbolizadas.
O que o LSD não faz, em resumo, é permitir que aconteça o específico
processo de decifração em que certos sentimentos estão ligados a
lembranças especiais que são resolvidas. O homem que tinha zumbido na
boca fez dez viagens de LSD sem descobrir o seu significado, ao passo que
uma única sessão Primal foi o suficiente para estabelecer a ligação certa.
Isso não significa que o LSD não produza muitas insights que nunca seriam
alcançados dentro de condições normais, embora eles ainda sejam
fragmentados e tenham lugar dentro de um sistema neurótico.
Será preciso esclarecer melhor a afirmativa que o LSD não causa
necessariamente a psicose em pessoas normais. Eu acredito que se dermos
a alguém bastante LSD, isso poderá produzir uma tal pletora de impulsos
no cérebro que cause uma completa desorientação e passageira psicose,
mas o caso é que esse estado não duraria mais do que o efeito da droga
sobre uma pessoa normal, ao passo que pode ser de efeito permanente
para o neurótico. Nunca é demais insistir no perigo que representa para o
neurótico. Até mesmo uma única dose que não produza uma psicose, pode
abalar tanto o sistema de defesa que torne a pessoa susceptível a situações
futuras que, de outra forma, nunca chegariam a afetá-la.
Há viagens de LSD verdadeiramente aterrorizantes ou depressivas. A
pessoa pode ficar apavorada com monstros ou pode ver aranhas passeando
pelo seu corpo, e terá depois que recorrer aos tranquilizantes que também
são muito usados nos hospitais psiquiátricos para alucinações. Eu acho que
nesses casos o que está sendo tranquilizada é a Dor Primal que com isso
reduz a necessidade dos simbolismos. Se todas as outras condições forem
iguais, essa viagem chega perigosamente perto da Dor.
É possível que a primeira viagem do LSD não seja das piores em vista das
defesas existentes, mas quando as viagens se sucedem num assalto ao
sistema de defesas e surgem os problemas, elas podem tornar-se penosas.
Não é de surpreender que depois de uma viagem ruim a pessoa não se
atreva a tomar a droga outra vez, embora isso indique que ela está muito
perto de tornar-se real. Ela desiste antes que isso aconteça talvez por sentir
que o real e o irreal estão juntos e quanto mais perto se chega, para mais
longe se deve fugir. Os pacientes da Terapia Primal, quando chegam bem
no fim de seu tratamento, muitas vezes pensam que vão ficar loucos
quando estão em vésperas de se despojar dos últimos resquícios de defesa
contra o sentimento total de solidão e desespero que sempre existiu neles.
Talvez não seja simples acidente o fato de termos conseguido bons
resultados com pessoas que usaram o LSD algumas vezes antes da terapia.
Desconfio muito dos que só fazem viagens lindas já que isso signifi ca que o
split é tão profundo que nem mesmo uma droga poderosa conseguiu afetá-
lo. A pessoa que não se encontra muito perto de seus sentimentos é levada
ao ácido ou à maconha repetidamente, inconscientemente impelidas pela
esperança implícita que eles lhe oferecem. Todas as vezes, no entanto, ela
estará fazendo viagens neuróticas as mais variadas. A substância da viagem
simbólica não tem grande importância a não ser no que pode referir -se
indiretamente à Dor subjacente. O que precisamos lembrar sempre é que
a viagem boa para o neurótico deve ser irreal já que o estímulo dos
sentimentos num neurótico com o uso de drogas significa estimular a Dor.
A pessoa que faz a viagem boa ou mística não está fazendo mais do que o
neurótico ebuliente faz sem precisar de drogas quando pinta na mente
bonitos quadros para esconderem o que se passa em seu corpo e nos
recessos de sua mente.
Heroína
O LSD é uma das poucas drogas que estimulam os sentidos enquanto outras
servem para amortecê-los como acontece com a heroína. Ela entra em ação
quando a neurose não consegue suprimir a Dor. A neurose é o narcótico
interno de quem não é viciado.
O viciado em heroína geralmente já não conta mais com defesas internas
para deter sua tensão, e então precisa recorrer à agulha. Com a minha
experiência eu classifico os viciados em heroína em duas categorias. O
número predominante deles são sem vida, letárgicos e completamente
aniquilados pela tensão. Precisam amortecer todo o corpo para dominar a
Dor. A outra categoria são os maníacos e hiperativos que estão sempre
correndo. As duas espécies descobriram caminhos diferentes para cuidar
de seu enorme sofrimento e ambas são obrigadas a recorrer às drogas
quando suas defesas já não conseguem aliviar a tensão. Alguns sentem -se
aliviados só com a maconha, mas ela é muito fraca para a Dor do viciado
em heroína. Outros que ainda contam com algumas defesas podem se dar
bem com a maconha.
De qualquer forma, não é a maconha que leva ao uso da heroína e sim a
Dor.
A Dor em si não justifica o uso de drogas. O ambiente cultural é
positivamente um fator. Se uma pessoa perturbada for criada no Harlem,
junto com o jazz onde a droga é coisa corriqueira, ela pode facilmente
chegar até à heroína, ao passo que um outro criado numa fazenda de
Montana poderia entregar-se ao álcool e tumultos em bares quando
quisesse ver-se livre de tensões. A dinâmica interna das duas pessoas pode
ser a mesma, e só o que varia é a válvula de escape.
O nível de alta tensão do viciado em drogas conserva-o sempre em
movimento. Não consegue fixar-se numa coisa durante o tempo necessário
para o sucesso, e a longa história de seus fracassos vai aumentando seus
problemas. Uma das razões para o fracasso da terapia comum com os
viciados pode ser devido ao fato deles não se submeterem ao lento e
tedioso processo do insight.
Como sabemos, os viciados, de um modo geral, não se interessam muito
pelo sexo, e não é difícil descobrir a razão. Os que sentem dor, seja ela
psicológica ou física, não podem interessar-se por mulheres, e as drogas
ainda aumentam essa condição assexuada. Sentir a Dor é o mesmo que
sentir tudo mais e matar a dor é o mesmo que matar todos os outros
sentimentos, sendo que o sexo é uma das primeiras vítimas.
A relação entre o vício e o homossexualismo latente pode ser constata da
com qualquer visita a um hospital de narcóticos, especialmente no caso de
mulheres viciadas. Muitas delas são homossexuais ou com tendências para
isso ainda reprimidas. Uma viciada explicou a situação nas seguintes
palavras: "Eu, realmente, nunca desejei homens, mas sempre mantive
relações sexuais com eles para não me sentir diminuída. Sei agora que
sempre quis uma mãe. Quanto mais trepava com homens mais revoltada
ficava. Tinha que recorrer às drogas."
A necessidade de relações sexuais com homens que ela sentia era a forma
que encontrara para reprimir seus sentimentos, a necessidade de sua mãe.
Enquanto reprimia suas necessidades era forçada a recorrer às drogas.
Quando conseguia encontrar válvulas de escape que servissem como
substitutos, já não precisava tanto de drogas. Quando foi para a prisão
onde não havia drogas para satisfazê-la, ela sucumbiu ao homossexualismo
ostensivo. Logo que sentiu a necessidade de sua mãe numa sessão Primal
ela já não precisou mais de drogas ou de sexo com outras mulheres.
Aquelas que precisam de anfetaminas, de narcóticos ou barbitúricos
também refletem apenas uma diferença na direção da tensão. Os de tensão
muito profunda parecem precisar de alguma coisa para rompê-la e aqueles
em quem a tensão é ascendente precisam de alguma coisa para reprimi-la.
Há ocasiões em que a mesma pessoa pode usar as duas em ciclos
alternados.
O seguinte é uma citação da carta que recebi de um viciado antes de
começar o tratamento.
Sempre que leio a expressão "mata a dor" aplicada à heroína, eu me lembro
das inúmeras vezes que as pessoas me diziam que a heroína era uma
viagem para a morte... era o suicídio lento. No entanto, foi só
recentemente que eu senti o aspecto da morte na droga que serve para
matar a dor. Olhava os viciados inteiramente alheios à vida, num perpétuo
estado de embrutecimento, verdadeiros mortos-vivos, e sempre sentia
que, para mim, a droga era apenas uma forma perigosa para a prática da
medicina sem licença. Tudo que queria era aparar bem as rebarbas de uma
existência cheia de ansiedade... um atalho para o perfeito estado de
conforto livre de dor. Era o jeito que eu tinha para tomar o cheiro e
funcionar com concentração fazendo as coisas que tinham que ser feitas.
Tudo que jamais desejara fora atravessar a vida sem sofrer todas aquelas
dores por que passam os homens desde muito antes de eu nascer. Passei a
vida inteira mentindo para fugir a castigos e sofrimentos. Passei pela escola
como gato sobre brasas, sem estudar e sem chegar perto da realidade. A
única coisa que consegui fazer bem como criança foram as mágicas, e
parece que desde então tudo para mim não passa de mágica e é sempre
isso que estou esperando da vida. Desde muito cedo em minha vida aprendi
a ser um mestre em meias verdades. Isso era fácil de fazer, já que, em
minha família, ninguém se interessava pelo que realmente acontecia.
Consegui os primeiros anos de universidade com relativa facilidade e sem
grandes esforços driblando uns e embrulhando outros. Deixei os estudos e
meti-me em negócios com grandes ideias e pequenos conhecimentos.
Tomei muito dinheiro emprestado e não preciso dizer que em pouco tempo
tinha gasto tudo. Empreguei-me e fui logo despedido. De repente tudo
começou a cair em cima de mim e já não tinha mais para onde fugir. Tentei
embrulhar minha mulher mas o dinheiro acabou. Foi então que encontrei
o que queria. Já não precisava enfrentar nada. O mundo era belo. Não
precisava pensar em fracassos... Comecei a frequentar o Harlem. Já
conhecia a heroína e seus perigos mas comecei a cheirar. Tudo fic ava
calmo. A vida corria tranquila e sem dificuldades. Só comecei as aplicações
na veia nove meses depois. Já não pensava mais em sexo. Mijei o resto do
dinheiro que ainda tinha e as coisas ficaram feias. Entrei em recesso e
consegui parar com a heroína. Até mesmo arranjei um emprego. Estava
contente comigo mesmo pois afinal conseguira parar depois de um ano e
meio de vício e sentia-me satisfeito. Continuava ainda com a maconha, mas
aquilo até que era social. O emprego ia bem e tudo estava ótimo, mas o
emprego pifou e eu não estava preparado para mais nada. Tentei escrever
mas não saiu nada. As semanas passavam e eu estava ficando assustado.
Um convidado de fim de semana era viciado e tinha a droga com ele. Tomei
a primeira picada depois de um intervalo de dois anos. Senti-me ótimo
outra vez. Pensei que podia controlar-me e mudei-me para a Califórnia
onde esperava melhorar. Já não posso mais passar sem ela... Até o mês
passado eu nem pensava em largar. Senti-me tão mal e com tanta dor
quando acordei que, pela primeira vez, cheguei a compreender como as
pessoas se suicidam. Não quero morrer, quero viver. Tenho que parar.
Ainda tenho muito para viver. A solução não é a droga. Extingue a minha
dor mas faz nascer uma outra. Droga é droga. Deve haver uma outra
solução. Socorro.
Trinta minutos depois de escrever esta carta ele tomou uma dose. Parece
que a consciência do perigo da heroína e o desesperado desejo de parar
ainda são desprovidos de sentido para a pessoa que sofre.
Quando a pessoa suspende a heroína ela entra num transe parecido com
uma condição Primal. De fato, o autor da carta deve ter pensado que estava
presenciando um estado de suspensão da droga quando teve a sua primeira
Primal, com as dores de estômago, suores, tremuras e a Dor. Eu tenho
certeza que os sintomas que surgem quando se suspende a heroína são
fisiológicos. No entanto, os viciados em heroína que passaram pela Primal
acreditam que a maior parte dos sintomas da suspensão da droga são
Primais. Quando consideramos a heroína como defesa, bem podemos
compreender como a pessoa pode cair na Primal desde que a defesa seja
removida.
Da mesma forma que a heroína, a Terapia Primal mata a dor fazendo o
viciado senti-la. Na minha experiência, o viciado é mais fácil de tratar do
que muitos neuróticos que construíram uma complicada rede de defesa
que terá de ser desmantelada. O tratamento do viciado é mais rápido e
preciso.
Há uma grande diferença com o viciado na Terapia Primal. Ele precisa ficar
sob vigilância constante durante os primeiros dois meses de tratamento.
Os outros pacientes que conseguiram romper as barreiras, podem sob
pressão, voltar aos seus sintomas anteriores, mas quando o viciado volta
ao seu sintoma, o resultado é um desastre. De nada valerão as promessas
que fizer. Ninguém é mais astucioso do que um viciado quando se trata de
tentar conseguir a droga.
Se conseguirmos atravessar o período inicial de tratamento do viciado, o
resto torna-se mais fácil, mas ainda assim, eu recomendaria dez a quinze
semanas de clausura durante a Terapia Primal.
Discussão
Alguns dos métodos atuais para o tratamento dos viciados em drogas
inclinam-se para uma linha dura. Chamam os viciados de sem-vergonhas,
estúpidos e dizem-lhe na cara que não são homens. Eu não concordo com
essa atitude pois julgo que muitos deles já sofreram bastante sem ser
preciso serem ainda espezinhados pela sociedade. É possível que o grupo
de pressão que se encontra em alguns abrigos para tratamento de viciados
ajude a condicionar o comportamento dos mesmos, mas isso certamente
nada faz para satisfazer-lhes a necessidade de amor. Quando a Dor existe,
não há ameaças nem castigos que possam ajudar. Desde que desapareça a
Dor Primal já não será mais necessário insultar ou implorar os viciados para
que mudem de comportamento.
Tampouco acredito que seja de vantagem para eles a obrigação de se
comportarem "como adultos". Muitos viciados foram obrigados a serem
adultos antes de serem crianças. As pressões e ameaças da sociedade de
nada servem pois a maioria deles está preparada para enfrentar um mundo
hostil. Eles, no entanto, não sabem defender-se da delicadeza.
As pessoas não vivem se espetando diariamente só porque são fracas ou
estúpidas. São doentes, e a sua doença é mais séria e real do que as
chamadas doenças físicas. O uso da droga não é um desafio atrevido e sim
o resultado inevitável de um corpo que sofre e que tenta encontrar alívio.
Muitos centros de tratamento de viciados podem mostrar excelentes
resultados com uma alta porcentagem de recuperação de seus clientes.
Não acredito que seja importante que o viciado deixe de usar drogas não
perigosas e tudo que puder ser feito a esse respeito certamente contribuirá
para o resultado final, mas não considero como cura o fato dele abandonar
o vício. Mesmo que os viciados em heroína nos centros de tratamento
abandonem a droga e passem a fumar cigarros ou tomar café em grandes
quantidades, eles, ainda assim, continuam sendo viciados, na minha
opinião. Os altos níveis de tensão estarão sempre à espreita esperando um
momento de fraqueza. Desde que ele possa dar o duro no trabalho, fumar
para espantar a Dor e contar com o apoio dos que o cercam, é bem provável
que fique afastado das drogas durante anos ou talvez mesmo para sempre,
mas qualquer mudança em sua vida poderá trazer de volta a Dor que
sempre esteve lá, e o vício voltará.
A duração da abstenção não constitui indicação de qualquer suscetibilidade
ao vício. Desde que encontre um firme apoio em tudo que o cerca, o
indivíduo com um alto nível de tensão pode conservar-se afastado das
drogas durante toda a sua vida, ao passo que outros com nível inferior
atirados às ruas sem qualquer ajuda logo voltarão ao vício. Quase todos os
dias recebo chamados de pessoas que estiveram durante anos em prisões
e que logo voltam ao vício.
Embora os abrigos espalhados por toda a parte sirvam muito para ajudar
os viciados, eu ainda os considero como uma espécie de trabalho
missionário. O viciado é acolhido por gente bem intencionada que talvez
logicamente o considerem estúpido em lugar de doente, mas se o víc io é
uma doença, as suas causas devem ser investigadas muito além do sim ples
comportamento superficial.
Maconha
A minha experiência levou-me à conclusão de que não existe uma coisa que
possa ser chamada como um latente "processo psicótico" nem tampouco
ideias bizarras escondidas naquilo que Aldous Huxley chamou de
"Antípodas da Mente". Bem no fundo de cada neurótico está a realidade
dolorosa que é a sanidade desde que possa ser sentida. A insanidade,
nesses termos, é então a defesa contra essa esmagadora realidade. Há
gente que fica louca para não sentir sua verdade. Isso é uma viravolta das
muitas teorias em psicologia que consideram o homem como
inerentemente irracional controlado apenas pela sociedade. Toda
irracionalidade, sonhos, alucinações e ilusões são para mim apenas os
escudos que nos mantêm a salvo e em funcionamento.
Quanto à severidade da psicose, se o ego não teve seis ou sete anos para
consolidar antes da ocorrência do split, nós só podemos esperar um e go
fraco como consideram os freudianos. Se continuarmos a negar à criança o
apoio e amor e se ela não contar com válvulas de escape para os ferimentos
Primais, esses assaltos adicionais ao ego já enfraquecido irão resultar num
outro forte e irreal para proteger a criança indefesa. O ego irreal predomina
então e protege a criança levando-a porém para a psicose. Essa
predominância do ego irreal (o ego que não sente) responde pelo aspecto
sem vida que constatamos nos neuróticos e psicóticos reprimidos.
Literalmente, eles estão mais mortos do que vivos.
A psicose, portanto, é um aprofundamento do split neurótico que produz
uma nova qualidade de existência. A prova gráfica do split é a paranoia na
qual a pessoa não consegue mais conter a dissociação dentro de si mesmo
nem tampouco continuar usando o corpo como defesa. Dessa forma, ele
projeta seus sentimentos para fora de si mesmo, coloca seus pensamentos
em cabeças alheias ou imagina que todos conspiram contra ele ou então
controlam seus pensamentos.
Embora o conteúdo da paranoia seja diferente em cada um, o processo é
sempre o mesmo, isto é, a proteção da pessoa contra a Dor intolerável. Por
exemplo, a pessoa que não pode aguentar a sua terrível solidão pode
imaginar que haja alguém sempre a vigiá-la. Tudo que a pessoa imaginária
estiver pensando representa o simbolismo de seus sentimentos.
Claro que é lógico esperar sofrimento depois de haver passado por uma
infância sofrida. O paranoico não percebe que está reagindo às lembranças.
Suas manias são reais. São as lembranças reprimidas que foram projetadas
no mundo e que a Dor tornou reais. Só verá vermes saindo de uma parede
se isso tiver qualquer significação interna.
Os paranoicos geralmente veem ou ouvem coisas externas que sirvam para
aliviar o sofrimento interno. O sofrimento deve ser muito intenso para
forçar uma pessoa a colocar uma distância tão grande entre ela e os seus
sentimentos.
A paranoia é ainda, de certa forma, ligada aos seus sentimentos. Pelo
menos as suas manias são mais organizadas em contraste com as espécies
mais desintegradas de psicóticos que só falam tolices incompreensíveis.
Os paranoicos, de um modo geral, ainda conseguem estabelecer contato.
Ainda conseguem citar fatos e coisas da vida real. Só se torna evidente a
sua esquisitice quando é atingida uma certa área. Em termos Primais,
quando os sentimentos reais são deflagrados, o sistema irreal precipita -se
para transformá-los em símbolos. Embora o paranoico perceba bem os
fatos da vida real, ele pode tornar-se ansioso por qualquer insignificância
sempre imaginando que alguém está querendo prejudicá-lo. A razão para
o paranoico ver sempre conspirações secretas contra ele em lugar de
alguma coisa ostensiva, é porque ele é uma parábola de seus próprios
segredos e sentimentos. Desde que projeta o segredo para o exterior ele já
pode concentrar-se em alguma nova preocupação. Isso é parecido com o
neurótico com a diferença que a sua fobia é um pouco mais plausível.
Para podermos compreender bem as alucinações e manias, é preciso
compreender primeiro a profundeza do terror Primal, uma sensação que
nunca vemos já que a conservamos bem controlada a maior parte do
tempo, e fazemos isso envolvendo-o em ideias agradáveis. Vamos
considerar um exemplo bem comum que é a crença em um além que torne
a morte menos final e irrevogável. Claro que não vamos considerar essa
crença como psicótica porque ela é uma ideia socialmente
institucionalizada, mas se muitos não acreditam nisso o que acontece
então? Essa crença irracional, considerada assim porque não se a poia em
coisa alguma que seja válida, pode existir numa pessoa que, em tudo mais,
seja eminentemente racional, mas que, devido ao terror Primal, é obrigada
a entrelaçar numa teia bem irracional para manter o sentimento a
distância. Para estabelecer uma ponte ligando a aparente incongruência de
suas ideias conflitantes mas coexistentes, ela pode ser obrigada a recorrer
a uma outra noção irracional, ou seja, que existe um lado "negro" ou
"irracional" em todos nós que desafia raciocínio ou explicação.
E toda essa superestrutura ideológica tem por único fim evitar o
sentimento real!
A qualidade bizarra da mania ou da alucinação dependerá sempre da
profundidade do terror. Quanto maior for o medo, mais complicado será o
raciocínio para escondê-lo. Enquanto for possível alinhar os sentimentos
de certa forma, a mente pode conservar-se ordenada e controlada. Quando
isso não for possível, por qualquer razão, a pessoa é levada ao terror.
A Dor de todos os psicóticos é imensa porque o seu ego real e o irreal não
são aceitos. A pessoa não teve outros recursos na infância senão retirar -se
do mundo. Se eu quisesse mostrar em poucas palavras a diferença entre o
neurótico e o psicótico eu diria que o neurótico encontrou um meio para
viver confortável no mundo, ao passo que nada pode fazer isso pelo
psicótico.
O que acontece quando a pessoa torna-se paranoica é que devido ao stress
o ego irreal já não consegue mais manter- se integrado e esfacela-se.
Acontece isso quando a mente já não pode mais conter as sensações do
corpo. Quando chega a esse ponto, a psique do indivíduo é reconstituída
num novo nível psicótico. Houve um paciente que disse, "a loucura é
quando a gente não pode mais fazer funcionar nossa neurose."
O fato do paranoico muitas vezes manter diálogos consigo mesmo é uma
indicação do split que já mencionei, onde um ego conversa com o outro. O
neurótico geralmente consegue manter o diálogo dentro de sua cabeça,
mas o psicótico já não tem tanta sorte. A percepção desse processo é
explicada por um paciente que fora paranoico. "No começo de minha vida
eu deixei de ouvir as mentiras de meus pais e passei então a ouvir só o que
queria. A minha audição para o mundo exterior foi-se fechando tanto que
cheguei a pensar que ia ficar surdo. Pouco depois só ouvia o que inventava.
Eram as vozes. Depois da Primal recuperei a audição. Descobri que já não
podia mais ouvir como as coisas eram realmente em minha infância e sim
apenas como eu tinha que inventá-las."
A dialética da paranoia, como aliás também acontece com todos os
comportamentos irreais, é que quanto mais perto chegamos das verdades
penosas, para mais longe precisamos fugir. Então variam as distâncias da
realidade, e elas vão desde interpretar mal o que se vê até ver o que não
existe. A Teoria Primal é que quanto mais estamos perto de nossos
sentimentos, mais chegados estaremos à realidade exterior e mais
nitidamente perceberemos os outros e os fenômenos sociais. Quanto mais
bloqueado estiver a realidade interna, mais deficiente será a percepção
social. Assim, o paranoico na fuga desesperada de sua própria verdade é
obrigado a alterar a sua realidade exterior, e muitas vezes de forma bem
estranha.
O verdadeiro contato com a realidade é sempre um processo interno já que
as defesas estão organizadas contra o mundo interno e não o externo. Não
é dos outros que o esquizofrênico tem medo. São os outros que
demonstram o medo do que sentem. É comum os pacientes depois de
Primais constatarem que, pela primeira vez, podem tocar em alguma coisa
real.
Os paranoicos com suas projeções dão-nos boas indicações do que existe
no complexo Primal, mas, na minha opinião, de nada servirá analisar essas
projeções simbólicas, entrar no sistema das manias, fingir com o paciente
ou procurar dissuadi-lo de suas irrealidades paranoicas. Não é com palavras
que conseguiremos eliminar a Dor do paranoico, nem tampouco de outros
doentes.
Enquanto as categorias dos diagnósticos para os psicóticos (catatônicos,
esquizofrênicos, maníaco-depressivos, e paranoicos) não afetarem
materialmente a espécie de tratamento que recebem, todos os
diagnósticos serão irrelevantes. Se for possível estabelecer o contato com
eles, então haverá probabilidades de cura.
É fundamental o conceito da neurose ou da psicose como defesas. O ponto
crítico surge quando se despertam os sentimentos, e a pessoa pode senti-
los ou não e tornar-se com isso um doente mental. A criancinha reprime
seus sentimentos, o seu ego real, e torna-se outra pessoa, alguém como
seus pais desejam. Sua neurose é uma defesa. O adulto que reprime suas
sensações Primais pode também entrar em colapso e tornar-se outra
pessoa, só que essa pessoa pode estar totalmente fora da realidade e ser
Napoleão, Mussolini ou o Papa. Um colapso nervoso é parecido com uma
Primal sem o terapeuta. É quando alguém começa a perceber os
sentimentos Primais e foge aterrorizado para um refúgio mental fora da
realidade.
Se a criancinha tivesse para quem apelar quando sentiu a sensação Primal,
ela provavelmente não teria sofrido o split que a transformou em alguém
diferente, e o mesmo acontece com os adultos. Ele só pode voltar para si
mesmo, isto é, para a saúde e não para a doença.
Segue-se um relatório do tratamento de uma psicótica com trinta e cinco
anos de idade que tinha manias e alucinações, ouvia uma voz que orientava
sua vida. Até aqui ela já passou por mais de sessenta Primais durante um
período de doze meses e tudo indica que não voltará à sua psicose. Seus
sonhos são reais e já não ouve mais a voz que acompanhou-a durante
tantos anos.
A vida dessa mulher foi uma coisa terrível. Foi violentada pelo pai bêbado
e sádico quando tinha apenas três anos e meio. O seu split deve ter
ocorrido nessa ocasião e ela só veio a lembrar-se do fato depois de umas
vinte sessões Primais. Logo que se lembrou daquilo reviveu também outros
aspectos de seu trauma nas sessões seguintes. Foram necessárias mais
outras vinte sessões para integrar a terrível experiência.
Surgiram dois egos quando se deu o split com a idade de três anos e meio.
A cada ano que passava ela se tornava cada vez mais dirigida por uma voz
a quem obedecia. Era a voz do ego real para mantê-la viva e que conseguiu
o seu intento. Ela passa então a falar de seus egos divididos.
"Estaria eu louca quando cantava como um índio na floresta? Estaria louca
quando pensava que a voz me dizia o que devia ou não fazer ou ver? Eu
creio que a resposta deveria ser afirmativa. Não consegui ver o mundo real
em torno de mim porque vivia com a Dor. Fugia de tudo com medo da
repetição dos primitivos horrores. Não queria compreender nem lembrar o
que acontecera. Tinha medo de ser levada ao suicídio e então projetava os
meus sentimentos de medo sobre as outras pessoas. Acredito que minha
loucura tenha sido causada por Dor em demasia e por baixo daquela
loucura estava a verdadeira Dor que eu não podia suportar. Sei agora que
reprimia os meus sentimentos para que nada me levasse à Dor. Já que tudo
era loucura em torno de mim quando criança, estaria eu louca ao recusar -
me a acreditar no que via? Pode o desejo da sobrevivência a qualquer preço
ser chamado de loucura quando isso significa uma morte interna para que
uma parte possa viver? Se eu tivesse percebido o horror em que vivia,
percebido que não havia quem me ouvisse se falasse a verdade, duvido
muito que tivesse sobrevivido."
Claro que a sua loucura era uma defesa contra a sanidade. Morando com a
mãe que a mantinha junto ao pai sádico e louco, suspeitando desde cedo
que sua mãe não a queria ou talvez mesmo desejasse vê-la morta, era
realmente uma coisa terrível, pois não tinha para onde apelar. Mais tarde
contou-me:
"Uma coisa impossível de acreditar era como eu era desprezada somente
porque ainda estava viva ali naquela casa. Tentava mostrar-me boa e
obediente mesmo sem compreender."
O princípio do fim da sua Dor foi quando ela começou a sentir a sua psicose.
Desde pequena ouvia uma algazarra dentro da cabeça e durante a Primal
descobriu que aquilo era toda a gritaria que se acumulara desde sua mais
tenra infância.
Ao aproximar-se o fim de sua terapia ela escreveu: "Eu acho que foi um
milagre eu ter vivido e estar viva até hoje. Estou entrando num grau de
sentimento humano que certamente todas as outras pessoas possuem
desde que nascem. Sei que tudo ainda é muito frágil. Tenho medo de ser
novamente dividida."
"Eu via o meu ego separado sem que ele me falasse. Era obrigada a segui-
lo e a ouvi-lo, sempre com medo de sair daquele mundo para entrar num
outro que julgava louco. Ele contava-me o que havia de belo na cor e no
som. Dizia-me que tudo que sentia era porque não o seguia; que não odiava
ninguém porque o ódio não era real e sim apenas o medo de sofrer. Era o
medo e a expectativa da Dor."
"Dizia-me que a realidade era amor porque só nela sé encontra a
verdadeira compreensão e aceitação da pessoa e dos outros. Dizia -me que
eu era humana e nada mais, e agora já acredito. Agora quem me apavora
são as pessoas irreais porque usam-se mutuamente para provocar, acalmar
ou rejeitar a sensação de não ser amada. Talvez a terapia convencional
tivesse tentado forçar-me a ver tudo aquilo, mas ela não teria funcionado
porque eu sei agora que as necessidades precisam ser sentidas antes de
nos darmos conta da impossibilidade de serem satisfeitas."
Durante a sua Primal ela se sentiu louca e cheia de manias sempre que
chegava perto do sentimento de nunca ter sido amada pela mãe, de nunca
ter tido um pai que lhe ouvisse os problemas, nunca ter sido acariciada por
mais que fizesse. O objetivo era fazer com que ela compreendesse por que
tinha se dividido para entrar naquela câmara de horrores de onde havia
fugido tantos anos antes e descido a toda aquela agonia só para encontrar-
se novamente. Isso só pode ser conseguido aos poucos conforme o corpo
possa acomodar, pois, de outro modo, não se chegará ao sentimento. O
medo e a dor juntarão suas forças para afastar o sentimento e continuar o
split.
Por aí podemos ver que dentro da Terapia Primal o processo da reversão
da psicose é parecido com o tratamento Primal da neurose. O psicótico, no
entanto, é diferente do neurótico devido à tremenda quantidade de Dor e
à fragilidade do ego real.
Em vista dessa enorme Dor, o espaço de tempo necessário para tratar um
psicótico pode ser o dobro ou o triplo daquele que se emprega para o
neurótico. Além disso temos sempre que guardar o seu meio ambiente
durante o tratamento para evitar as influências externas. Mas a nossa
experiência até aqui exige um otimismo cauteloso quanto à possível
recuperação já que o tratamento do neurótico e psicótico é bem parecido.
É só sentir aquilo que causou o split de forma que a pessoa não precise
mais transformar a realidade em irrealidade para poder funcionar.
Citando mais uma vez a minha paciente psicótica:
"Eu sou ainda muito ignorante a respeito de várias coisas mas o que escrevi
é a verdade. Por trás de minha psicose está a falta de esperança, o fa to de
não ser amada e a terrível solidão. Qualquer outro louco que sinta o que
eu senti gritará também como eu gritei. Esta noite, na escuridão do silêncio
e da solidão, eu sinto que em tudo que faço, em tudo que vejo e falo, estou
novamente tornando-me um ser humano. O mundo está se tornando belo
porque eu estou me tornando naquilo que as pessoas acreditam que Deus
seja. Amor sem qualquer Dor e sem mudança.
"Há nos Salmos uma linha que diz: Ainda que eu venha a caminhar no vale
com as sombras da morte nem mesmo assim terei medo do mal. Sei que
esse vale era ali onde comecei já fazem tantos anos, onde acreditava que
alguém me amasse, onde era amada por Deus e eu sentia que Ele estava
em minha mente. Sinto o despontar de uma nova realidade."
21 - CONCLUSÕES
TOM
Tom figura aqui neste Apêndice porque o seu tratamento está sendo todo
registrado num filme documentário sobre a Terapia Primal e aqui vão as
suas observações pessoais sobre o tratamento que, aliás, ainda não tinha
terminado quando saiu este livro.
Ele tem trinta e cinco anos, é professor de História e divorciado. Recebeu
uma educação tipicamente norte- americana. Nunca demonstrou uma
neurose aparente. Tudo ia bem com ele, era responsável, bom pai, mas
sentia que alguma coisa estava faltando em sua vida.
Vivia procurando o que poderia ser. Já tinha passado por treinos de
sensibilidade e grupos especiais de encontro. Com isso ficou sabendo muita
coisa a respeito das pessoas, mas pouco serviu para os seus problemas. Não
era, de forma alguma, o que se pode chamar de neurótico, embora eu
viesse a descobrir mais tarde que rangia tanto os dentes durante a noite
que tinha um aparelho especial para colocar na boca. Era muito delicado e
respeitoso, amava seu país e seus filhos e levava-os em viagens de recreio.
De um modo geral parecia feliz. Embora tivesse sempre feito aquilo que
julgava certo, ainda assim sentia que a vida era vazia e não estava lhe
dando o que seria de esperar.
Antes de nos procurar para a terapia ele considerava-se um intelectual
completamente envolvido pela história das ideias, pelos sistem as
filosóficos, e citava, de cor, longos trechos de autores notáveis. Com tudo
isso achava que não estava vivendo a sua vida de forma inteligente.
Muitas vezes, a intelectualidade é o processo físico repressivo que funciona
como se fosse uma verdadeira couraça para o corpo. Em termos Primais, a
inteligência é a capacidade para pensarmos o que sentimos e vice -versa.
Tom era professor universitário mas não se considerava bastante vivo e
dizia que seus sentimentos eram por demais dolorosos para que pudesse
perceber tudo que queria.
A sua estrutura de valores mudou radicalmente no curto período de três
semanas. Para entendermos essa rápida transformação, temos que nos
lembrar que na Terapia Primal, logo desde a infância, as ideias fluem para
a mente vindo das mais profundas experiências dos sentidos. Assim, a
mente já não inventa mais sistemas de valores para esconder a Dor, e
quando o espírito já não é mais usado para reprimir os sentimentos, a
pessoa torna-se real. Os velhos valores e ideias desmoronam-se porque
eram principalmente estruturas falsas. Tom nunca conseguira ter seus
verdadeiros pensamentos e sentimentos. Aceitava sempre o que lhe
mandavam os pais e a igreja. Não adiantava querer mostrar-lhe que as
ideias eram falsas ou irracionais. Essas irracionalidades eram supérfluas já
que o seu espírito estava sempre de acordo com os seus sentimentos.
Ao cair da tarde na véspera do início de minha terapia eu fui para um
pequeno hotel muito tranquilo em Beverly Hills. Só saí do quarto no dia
seguinte de manhã para ir ao consultório do Dr. Janov.
Ao ficar sozinho naquele quarto muito pequenino sem poder fazer nada
nem ter com quem falar, senti-me um pouco nervoso. Não tinha nada para
fazer e estava inteiramente alheado do mundo. Não fazia a menor ideia do
que iria conseguir com aquela terapia. Não conseguia ver um futuro e só
tinha o meu passado. Dentro em pouco começaram a penetrar naquele
quartinho todos os acontecimentos de importância de minha vida. Para
surpresa minha todas aquelas lembranças e reflexões eram
extraordinariamente nítidas embora curiosamente irreais. Desejava ver-me
de novo envolvido em tudo aquilo mas não conseguia. Havia alguma coisa
que me detinha. Por quê? Era como se estivesse contemplando a minha
vida de muito longe através de poderoso telescópio. Confundia-me o fato
de não conseguir envolver-me. Comecei a sentir que talvez não estivesse
levando tudo aquilo muito a sério. Pois então aquela não era a hora de eu
estar sofrendo? Tentei descobrir alguma explicação, mas nada consegui.
Fui então para a cama.
Segunda-feira
Minha terapia começou como todas as outras por que já havia passado
antes. Entrei no consultório onde mandaram-me deitar num sofá escuro
num dos lados da sala. Pediram-me que explicasse porque estava ali.
Eu andava muito mal satisfeito com o meu emprego nos últimos dois anos.
Pensava seriamente em abandonar o magistério. Minha vida amorosa não
me havia dado o que esperara dela em matéria de felicidade. Tinha passado
por um casamento e duas ligações. Quando estava na metade dessas
explicações Art interrompeu-me. "Não é por isso que você está aqui. Você
veio porque é um perdedor. Nunca fará diferença a espécie de emprego
que escolher. Continuará sendo infeliz porque é um perdedor." E só com
aquela cotovelada ele abriu-me ao meio. Não tinha mais nada para explicar.
Depois queria que eu lhe falasse sobre meu pai. Ele era gerente numa firma
de transportes. Todo mundo gostava dele porque era muito atencioso. Mas
já não era grande coisa como pai. Passava a maior parte do tempo no
escritório, e raramente voltava para casa antes das sete. Nunca saía ou
bebia. Era só trabalhar.
Chegava em casa, jantava, sentava-se na poltrona e adormecia. Sempre
fazia coisas em casa. Também gostava de ouvir o futebol no rádio. Fora
disso quase não havia mais nada para dizer. Nunca fazíamos nada juntos.
Eu jogava o basquete no ginásio mas ele nunca foi para me ver. Um dia foi
com mamãe a um jogo de beisebol em que eu tomava parte. Fiquei tão
nervoso que não dei uma dentro. Logo depois vi o carro deles sa ir. Pode
imaginar como senti-me.
Aí fui tomado de surpresa. Art mandou que eu pedisse ajuda ao papai. Não
compreendia onde ele queria chegar, mas comecei a fazer o que me pedia.
Tentei algumas vezes e depois vi que não adiantava e que papai não me
ajudaria. Art não insistiu e passamos adiante.
Pediu-me que lhe contasse como era a minha vida em casa quando criança
e eu comecei a lhe contar como era o "programa". Aquilo era apenas um
esquema algumas vezes sutil e outras bem transparente e destinava -se a
proporcionar o meu bem-estar por meio de forças externas e
desconhecidas. Tornava-se evidente em casa, na igreja e na escola. Desde
que minha mãe era quem mandava em casa, e que a casa era o elo
institucional mais junto de meus primeiros anos, eu acabei assoc iando
minha mãe com o programa. Em casa ela estava sempre me perseguindo
de todas as formas mais irritantes e chegava até aos berros. Eu podia sujar -
me quando saía para brincar, mas não muito. Devia comportar-me como
um bom menino católico respeitando os mais velhos, fazendo como fosse
mandado e não tendo pensamentos sujos. Para todos os fins práticos, a
casa era como se não existisse. Era cheia de antiguidades e estavam sempre
me aporrinhando para não quebrar alguma coisa. Nem podia pensar em
trazer para dentro dela os meus companheiros porque, em primeiro lugar,
não devia ter mais do que um ou dois pois senão minha mãe ficaria nervosa.
Segundo, brincar dentro de casa era como se eu fosse um liberado
condicional sob constante vigilância. Tudo era proibido. Assim, sempre que
quisesse brincar com meus companheiros eu tinha que ir lá para fora, e
quanto mais longe melhor.
Minha família era muito católica e eu, naturalmente, fui para uma escola
católica onde, durante doze anos, tive freiras como professoras! Pa ra
tornar tudo ainda pior, minha mãe tinha duas irmãs que eram freiras e que
ensinavam nessa escola. Assim, todas as freiras conheciam minha mãe.
Para mim aquilo parecia ser uma formidável conspiração. Logo que
deixasse de ser um bom menino católico o mundo desabava-me por todos
os lados. Eu nem sabia ao certo onde terminava a família nem onde
principiavam a igreja e a escola. Aquilo era o programa.
Quando acabei de contar o programa Art perguntou-me qual fora a minha
reação para aquela vida infantil. Aquilo foi como se ele tivesse atirado um
fósforo aceso num poço de gasolina. Eu explodi em tiradas flamejantes que
eram uma verdadeira delícia. Era como se quisesse com aquilo queimar
todo o programa até não restar mais nada. E comecei então a berrar o mais
alto que podia. "Foda-se o programa! Foda-se! Foda-se! Foda-se!" E
quando as chamas se extinguiram, já um pouco mais calmo, arrematei
então, “E fodam-se vocês também, mamãe e papai, já que são os
representantes oficiais do programa."
Depois fiquei ali em silêncio ainda algum tempo já tendo, dado vazão à
minha raiva. Art perguntou-me sobre minhas relações com meu irmão Bill
e eu lhe disse que eram bem fraquinhas. Era três anos mais velho do que
eu e não gostava de ver um guri agarrado ao seu traseiro. Durante um breve
período, quando eu tinha uns dezesseis anos tivemos alguma espécie de
aproximação quando íamos assistir junto a fitas de bang-bang e depois
bebíamos uma cervejinha. Mas essas ocasiões eram poucas e também não
durou muito tempo a nossa camaradagem. Ao ficar mais velho a imagem
que tinha de Bill começou a modificar-se e já o via longe de mim como se
estivesse morto. Ele me tirava o gosto de viver e fui me afastando.
Parece que todas as complicações giravam em torno de mim, e quando
meus pais me apertavam Bill sempre juntava-se a eles ao passo que eu
nunca encontrava uma oportunidade para lhe pagar na mesma moeda.
Nunca podia contar com ele para os meus problemas. Ficava zangado e
sentido e sentia- me cada vez mais solitário. Assim, quando ele tinha lá suas
encrencas, eu me sentia melhor e menos solitário. Bill era aquela espécie
de criança que está fazendo sempre coisas espetaculares para chamar a
atenção dos outros, algumas vezes até mesmo com risco de sua vida. Houve
uma ocasião que me senti melhor. Nós tínhamos ido a um salão de danças
com amigos seus que logo o desafiaram para beber uma caixa de cerveja.
Não foi preciso muito e logo Bill começou a virar as vinte e quatro garrafas.
Foi levado para casa completamente bêbado enquanto os outros cá for a
entoavam canções apropriadas. Mamãe e papai ficaram horrorizados
pensando no que diriam os vizinhos. Eu também estava com medo quando
os vi tão zangados, mas intimamente estava também gozando ao ver Bill
descer do seu pedestal.
Pensei que aquilo fosse contribuir para uma melhor união entre nós dois,
mas não foi o que aconteceu. Art comentou então que eu devia ter sido um
garoto bem solitário, e eu concordei com ele. Não tinha ninguém para
quem apelar. Gostava de sair para andar no mato com companheiros o u
sozinho e conhecia tudo a palmo. Íamos nadar no rio. Às vezes fazíamos
incursões em campos de fazendeiros e conseguíamos batatas e milho que
levávamos para cozinhar em fogueiras ou em cima de pedras quentes. Para
sobremesa tínhamos as frutas do mato. Algumas vezes pescávamos ou
procurávamos cobras ou sapos. Lembro-me de uma ocasião em que levei
um garoto para mostrar-lhe um mamão que ele nunca tinha visto. Comeu
tanto que chegou a vomitar. Achei muito engraçado.
Quando era garoto gostava muito de jogar bola e era muito disputado
porque era mesmo bom de bola, e aí então sentia-me realmente bem já
que raramente era assim tão disputado.
Mais tarde saía à noite para algum bar ou salão de dança, e outras vezes
saía para a rua para falar com quem me aparecesse. Quanto mais velho
ficava mais procurava afastar-me de casa. Durante o curso superior jamais
trouxe um livro para estudar em casa. Sentia necessidade de sair.
Finalmente fui para a universidade e depois disso passava muito pouco
tempo em casa.
Quando acabei, Art disse-me que me julgara muito passivo e acomodatício
nas relações com meus pais, e eu lhe dei razão. Depois ele me perguntou
se eu jamais sentira-me como se fosse mulher ou se tivera fantasias
homossexuais. Fez-me a pergunta de um modo que me pareceu uma
insinuação maldosa e não gostei. Respondi não a ambas as perguntas.
Art não insistiu mais. Voltou novamente para o tal programa e eu fiquei
nervoso e quis sair para urinar. Perguntei-lhe onde era mas ele não me
deixou ir, dizendo-me que eu iria mijar o que sentia. Contive-me algum
tempo mas depois não aguentei mais. Ele me disse que teríamos que parar
sempre que eu quisesse mijar. Fiquei com raiva porque pensei que ele
estava querendo manipular-me. Saí para urinar. Quando voltei a porta
estava trancada. Bati mas ninguém abriu. Fiquei safado da vida. Bati até
quase botar a porta abaixo até que ele veio abrir. Perguntei-lhe por que
fizera aquilo e ele respondeu com a cara mais cínica do mundo que era para
ninguém mais entrar. A minha única resposta foi Merda! e voltei para o
sofá onde fiquei a falar ainda durante meia hora.
Depois que cheguei em casa comecei a ficar furioso porque ele tinha me
chamado de perdedor. A expressão ia-me a calhar. Cheguei até a pensar se
realmente tivera fantasias homossexuais. Nunca fui muito de brigar, mas
comecei a ficar furioso com Art. Antes de começarmos outra vez ele tinha
me prevenido que seria necessário adiar a sessão por um dia porque estava
com uma "laringite". Eu ainda não conseguia engolir aquela sua insinuação
de homossexualismo e a brincadeira da porta naquela manhã ainda mais
me irritava. Estava decidido a esclarecer tudo na manhã seguinte.
Terça-feira
Cheguei às nove e cinquenta e encontrei a porta fechada. Queria ficar só
para acumular bastante raiva e então fui para o banheiro esperar até às
dez. Quando cheguei a porta já estava aberta e então entrei. Art
perguntou-me por que estava atrasado. Olhei para o relógio e vi que
passavam três minutos. Disse-lhe que estivera ali antes e encontrara a
porta fechada. Mandou-me deitar e eu lhe disse que não deitaria pois
queria falar com ele cara a cara. Ele estalou os dedos e disse-me que
deitasse pois estávamos perdendo tempo. O som dos dedos estalando
irritaram-me ainda mais e em lugar de obedecer eu fui até a cadeira e
sentei-me na sua frente dizendo-lhe que queria esclarecer algumas coisas
antes. Disse-lhe que estava cheio de estar sendo manipulado e que queria
dizer o que sentia. Ele me disse que eu estava brincando. Disse-me outra
vez para deitar-me no sofá. Dessa vez eu fui mas minhas ideias estavam
bem atrapalhadas.
Comecei com a minha raiva. Disse-lhe que por trás dela eu estava furioso
comigo mesmo porque era um perdedor. Ele me perguntou o que eu sentia.
Disse-lhe que o peito apertava e sentia a barriga ardendo. Ele disse que
tinha que pedir ao meu pai para acabar com aquilo. Obrigou-me a respirar
fundo com a boca aberta. Aquilo pareceu transportar-me para uma outra
vida, mas nada consegui com o apelo ao meu pai. Disse-lhe que ele nunca
me ajudaria. Perguntou-me como me sentia. Respondi que sentia-me
solitário e desprezado. Isso fez-me ficar triste. Ele me mandou respirar mais
dizendo-me para deixar a dor sair. Dessa vez a coisa funcionou. Comecei a
contorcer-me de dor. Sentia o estômago em chamas e parecia que o peito
estava sendo esmagado. Ele mandou que continuasse e que pedisse ajuda
ao papai. Comecei a martelar o sofá como um louco e a gritar por papai até
sentir-me exausto.
Depois de um descanso Art perguntou-me o que eu tinha conseguido
expelir. Durante algum tempo senti-me tão assombrado com a experiência
que não conseguia explicar coisa alguma. Finalmente reconheci toda a
culpa, o medo de ser eu mesmo e a frustração por não conseguir isso. De
repente percebi o que significava o meu apelo a papai. Não tinha
conseguido compreender a sua tática, mas agora estava aflito para falar.
Disse-lhe que já não me parecia tão absurdo pedir o auxílio de papai pois
tinha compreendido que eu estava falando ao papai que estava dentro de
mim, o papai que eu sempre desejara ter. Expliquei que era uma questão
de conseguir que aquele papai me aceitasse como eu era e que me ajudasse
a livrar-me daquela sensação de desprezo e solidão.
Ele me perguntou o que eu iria fazer a seguir e eu lhe disse que, em
primeiro lugar, eu precisava aprender a sentir aquele pai que tinha dentro
de mim. Sentir como era. Sentir como a gente sente as coisas boas para
depois saber o que fazer daquilo. Depois disse-lhe como era bom ter um
pai que pudesse ajudar, um pai que gostasse da gente. Sentia-me tão bem
que ri-me muito e depois chorei durante algum tempo.
Logo que consegui falar novamente, contei-lhe como sentira minha solidão
e o desprezo. Depois lembrei-me da criancinha solitária num Natal quando
fiquei sentado embaixo da Árvore olhando muito triste para as luzes depois
que me haviam dito que naquele ano não haveria o Papai Noel pois o Bill já
estava muito crescido para aquilo e eu certamente não me importaria. De
uma certa maneira estavam com a razão porque eu também já sabia que
tudo era fingido e a história dos presentes não era muito importante. Mas
foi a maneira deles falarem que acabou com o meu amor pelo Natal e foi aí
que percebi que gostava daquilo. Tudo o que eu queria do Natal era um
papai e uma mamãe de verdade, que gostassem muito de mim assim
mesmo como eu era. Naquele ano eu fui uma criança que teve um Natal
muito triste.
Quarta-feira
Hoje o Art fez-me deitar no chão. A sessão foi toda no chão, da mesma
forma que todas as outras seguintes. Perguntou-me o que fizera desde a
véspera e eu contei-lhe que ficara muito cansado, que ainda estava
cansado, e que tinha passado todo o tempo descansando. Desde o primeiro
dia eu estabelecera uma rotina. Depois da terapia eu voltaria para casa,
almoçaria, descansaria mais ou menos uma hora, escreveria minhas notas
sobre a sessão do dia, refletiria sobre ela, jantaria, escreveria mais, ficaria
sentado sem fazer nada durante uma hora e depois iria para a cama.
Verificara que concentrando-me exclusivamente na terapia, eu poderia
conseguir muitos insights e lembrar-me de muitas coisas do passado que
talvez ajudassem. Mas o dia anterior fora tão exaustivo que depois de
escrever eu não consegui fazer mais nada.
Fiquei ali deitado como se estivesse morto. Três acontecimentos vieram à
minha mente e eu passei a narrá-los.
O primeiro foi o dia em que papai levou Bill, um primo nosso e eu a um jogo
em Cincinnati. Eu tinha uns cinco anos e estava assombrado com tudo o
que via. Quando entramos no campo fiquei vidrado. Quando terminou o
jogo nós saímos todos e quando íamos passando pelo portão eu me voltei
para dar mais uma olhada para o campo. Queria ainda ficar lá, talvez até
mesmo a noite inteira! Quando finalmente voltei-me não vi mais meu pai
nem os outros. Entrei em pânico e abri o berro. As pessoas juntaram-se em
torno de mim para saber o que era, mas logo apareceu papai com os outros.
Tomamos um ônibus para levar-nos à estação mas eu já não me aguentava
mais e queria mijar. Falei com papai mas ele disse que não podia fazer nada
e que eu mijasse mesmo nas calças. Senti um grande alívio mas ao mesmo
tempo lembro-me também como foi ruim voltar para casa com as calças de
lã molhadas.
O segundo foi nos meus primeiros anos de escola. Havia dias que eu voltava
da escola e encontrava a porta fechada. Eu ia então para a porta dos fundos
e batia gritando para mamãe deixar-me entrar. Então um dos vizinhos vinha
e dizia que ela não estava em casa e eu não podia fazer outra coisa senão
sentar-me para esperar que ela voltasse.
O terceiro foi numa noite quando eu devia ter uns oito anos. Nós não
tínhamos carro. As únicas ocasiões que eu tinha para andar de automóvel
era quando meus avós vinham para buscar-nos. Numa noite de domingo eu
estava de visita na casa de um vizinho do outro lado da rua quando eles
vieram buscar-nos para dar um passeio. Meus pais disseram- lhes para não
esperarem por mim e eu ainda vi quando iam saindo para dobrar a esquina.
Corri e gritei o mais que pude mas não os alcancei mais.
Art perguntou-me por que eu me lembrava daquilo e eu respondi que era
porque tinham sido as ocasiões em que eu me sentira solitário e
abandonado. Ele me perguntou como eu sentia aquilo e eu lhe respondi
que sentia um mal no estômago e no peito. Ele tentou fazer-me respirar
como na véspera, mas eu estava cansado demais. Fiquei ali deitado sem
movimento. Quando finalmente mexi-me ele me perguntou o que eu
sentia. Disse-lhe que sentia uma dor nas costas. Ele me disse que não era
uma dor física. Eu lhe disse que me sentia como se estivesse no programa
quando não podia fazer isto nem aquilo.
Fiquei ali deitado muito tempo pensando no programa. Finalmente disse -
lhe que eu acabara descobrindo uma forma para não ser tão desprezado.
Eu ia ajudar as outras pessoas em alguma coisa. Ia trabalhar para os outros.
Um dia meu avô foi encontrar-me na rua segurando uma folha de papel
entre os dentes enquanto dois caras a cortavam ao meio com um chicote.
Mandou-me parar sem compreender o que eu estava fazendo. Então Art
interrompeu-me para dizer que ele fizera aquilo porque se interessava por
mim e não queria ver-me machucado. Eu respondi que ele realmente
gostava de mim e eu lhe disse o quanto também gostava dele e como tinha
sofrido quando ele morrera. Chorei como nunca antes em toda a minha
vida. Foi o dia mais triste que tive.
Depois que parei de chorar contei tudo sobre meu avô. Como tinha
paciência comigo ensinando-me uma porção de coisas.
Ao fim da sessão Art fez uma observação que me surpreendeu e que não
conseguia compreender. Depois de chegar em casa tornei a pensar naquilo
e cheguei à conclusão que ele queria apenas dizer que eu era um perdedor.
Hoje foi meu dia mais difícil. Ontem eu estava zangado mas estava mais
animado. Hoje voltei para o chão emburrado como uma criança com o nariz
pregado na vidraça querendo participar da vida, como disse Art. Começo a
sentir que vai ser uma caminhada bem longa. Depois de trabalhar tanto
parece que ainda não fiz nenhum progresso.
Comecei a pensar naquela história de ser um perdedor. Sempre me senti
assim nos vários estágios de minha vida. Não sei sentir-me de outra forma.
Parece ser uma coisa tão difícil tornar a aprender tudo que nem sei como
vou conseguir.
Quinta-feira
Hoje eu comecei me sentindo desanimado ao perceber que toda a minha
vida girara em torno de minha condição de perdedor e que teria de
percorrer um caminho muito longo para construir um novo estilo de vida.
Contei a Art o que achava dele considerar-me um perdedor falando com
um sotaque de vagabundo do Meio Oeste. Ele me pediu então que contasse
como fora o enterro de meu avô depois de me perguntar se eu
comparecera à cerimônia. E eu então contei-lhe tudo sobre o velório, sobre
a morte e sobre o enterro.
Disse-lhe ainda que não chorara muito. Um pouco no primeiro dia e um
pouco quando vi o caixão descendo na sepultura. Mas tentei portar-me
como um homem. Ele me perguntou se eu tinha dito adeus a meu avô antes
dele descer à sepultura e eu disse-lhe que não por causa de tanta gente
que havia ali. Ele então me disse para dizer o adeus ali mesmo e o quanto
eu sentia a sua falta.
E eu então disse adeus a meu avô com todo o meu amor e tudo que sentia
em meu corpo. Eu chorei e conversei com meu avô até não ter mais nada
para dizer. Chorei que me despenquei relembrando todos os momentos
que havíamos passado juntos e tudo que ele fizera por mim. Ainda estou
chorando agora ao escrever isto.
Então Art me disse que eu falasse com meu pai contando- lhe como
desejaria que ele tivesse sido como meu avô. Eu fiz o que ele mandava e
depois contei também para Art que meus pais não queriam que eu nascesse
e ele ficou tão furioso quando soube que minha mãe estava grávida que
até ameaçou de cortar fora o seu pau. Depois contei ao meu pai ali tudo o
que sentia e como queria que ele gostasse de minha mãe e de mim.
Falei então a respeito de minha mãe e como era difícil lidar com ela que
estava sempre nervosa. Aí comecei a sentir outra vez aquela mesma dor
nas costas como ontem. Ele me perguntou como era e eu contei que era
como se estivesse fazendo força contra alguma coisa. — Contra o quê? —
Contra a solidão e o abandono. Era como se eu estivesse andando descalço
sobre pedras afiadas. Ao menor descuido me cortaria todo.
Aí Art me disse para eu contar à minha mãe que ela estava me cortando
todo e eu larguei-me completamente com toda a força de meus pulmões.
Quando acabei de gritar senti vontade de mijar.
Ao voltar do banheiro Art mostrou certa surpresa dizendo-me que eu
estava aprendendo bem depressa. Fiquei bem contente com isso. Quando
cheguei em casa comecei a pensar como poderia explicar na terapia porque
eu sempre fora perdedor. Tenho estado programando isso. Desde que eu
saiba que já sou perdedor, então já não devo aborrecer-me ao ser
abandonado. Já saí fora do jogo antes que eles tenham uma oportunidade
para me jogar fora.
Sexta-feira
Hoje foi meu primeiro dia em sessão de grupo. Durante algum tempo fiquei
só olhando. Depois deitei-me no chão e disse adeus para o vovô outra vez.
Quando foi chegando ao fim eu senti que ele compreenderia que nós afinal
tínhamos seguido nossos caminhos separados, ele para a morte e eu para
a idade adulta. Senti que estávamos então bem juntos apesar de seguirmos
caminhos diferentes. Art disse-me para aprofundar-me ainda mais e eu fiz
o melhor que pude com toda a gritaria e choro que ouvia em torno de mim.
Não estava acostumado àquilo mas em pouco já me habituaria.
Depois de todos haverem levantado Art apresentou-me a cada um e
conversamos. Eu lhes disse que sabia não estar ainda em condições de
contribuir com alguma coisa. Disse- lhes também que tinha acordado
naquela manhã disposto a deixar de pensar em mulheres pois sabia que já
estava bem fodido com todos os meus sentidos. Art voltou-se para mim e
disse que eu não tinha a aparência de ser assim tão sexual. Ficou
surpreendido com aquilo. Depois acrescentou que tudo era porque eu
estava escondendo um latente homossexualismo. Isso foi o fim.
Quando cheguei em casa tinha a cabeça estalando. O estômago estava
embrulhado e não consegui comer coisa alguma. Só conseguia ficar ali
sentado no chão. Sentia que tinha de ser bicha, latente ou não. Não queria
viver. Queria ver-me livre daquela ideia. Comecei a pensar em tudo outra
vez tentando identificar vestígios de bicha em mim. Comecei a sentir tanto
dor que tive de telefonar para Art. Ele estava em Santa Bárbara. Eu queria
cair numa Primal e perguntei-lhe como fazer para ter uma em casa. Ele
disse que não dava certo e deu-me alguns telefones de outros que
poderiam me ajudar. Eu queria saber dele se podia livrar-me daquela
história de bicha, e ele disse que não havia problema. Chorei aliviado e
respondi que poderia esperar até a segunda-feira para a minha Primal.
Segunda-feira
Tivemos dificuldades em começar hoje. Tinha conseguido abafar meus
sentimentos depois de falar com Art no telefone e não conseguia funcionar.
Art queria saber o que acontecera no sábado. Tentei contar quanto podia
mas não consegui.
Art perguntou-me então como sentia-me agora, e foi aí que eu virei uma
fera com ele. Chorava e gritava. "Por que você não veio no sábado quando
eu precisei? Que boa merda fez comigo! Solta-me aquela história de bicha
em cima de mim e depois dá o fora da cidade. Você na certa sabia a reação
que eu ia ter!"
Ele mandou-me deitar outra vez dizendo que não fazia mal e que haveria
uma outra oportunidade. Disse-me para lhe contar a minha vida. Contei
como tinha-me apaixonado por Betty, como tinha trepado com Louise e
depois casado com Phyllis. Ele falou da história da mulher mais velha e quis
saber tudo de Vi. Quando cheguei ao fim do caso com Betty, à parte
traumática, senti vontade de mijar. Já vinha sentindo aquilo logo que
começara a falar dela. Contei para Art e ele me disse que ficasse assim
mesmo sentindo e não movesse um músculo. Antes eu tinha ficado com os
braços dormentes e tinha-os esticado no chão, sem saber o que fazer com
eles. Art disse-me para não mover-me e apenas sentir o que se passava.
Fiquei ali e logo depois senti um aperto na barriga como se alguma coisa
quisesse subir. Logo depois comecei a debater-me com braços e pernas no
chão e com a cabeça rolando enquanto a tensão aumentava. Podia sentir
que era um bebê no berço. Fiquei com as mãos tensas como fazem os bebês
quando choram. A boca estava torcida como se eu quisesse tirar alguma
coisa de uma garrafa vazia. Não falei nem gritei. Sentia falta de ar.
Finalmente fiquei tão cansado que parei e fiquei ali deitado muito quieto.
Depois, consciente e lentamente, repeti tudo que fizera antes com as mãos
e com a boca para ter a certeza de que me lembrava.
Senti-me bem tonto quando saí da Primal e não sei exatamente o que
aconteceu, mas vou tentar mais ou menos. Art disse, "Não deixavam você
pegar nele, não é?" Eu peguei no meu pau e respondi, "Não. Sempre me
davam uns tapas." Aí mostrei como era dando-me tapas nas mãos. "Não
queriam que você tivesse um pauzinho, não é?" É isso mesmo. Sentei- me
e esfreguei o pau. Levantei-me e fui para a frente do espelho, arriei as
calças, esfreguei o pau e disse a mamãe e papai que estava certo. Depois
eu disse a Art que só podia ter um pau em segredo mas queria que ele fosse
parte de toda a minha vida. "Você então sabia, não sabia?" perguntou ele.
"Claro que sabia! E era por isso que tinha medo. Eles sabiam que eu sabia
e trataram logo de esconder." "E foi aí que você tornou-se um
bichazinho..." "Foi isso mesmo."
Foi uma coisa esplêndida que senti quando esfreguei meu pau e disse a
mamãe e papai que estava certo. "Fui procurar aquele sentimento na
filosofia, na religião, no meu trabalho e sabe Deus onde mais, e vim
encontrá-lo hoje ali no meu pau! Você é um colosso, Art! Que maravilha!"
Depois de chegar em casa passei a maior parte do dia esfregando o meu
pau e dizendo a mamãe e papai que estava certo. Ao sair do consultório eu
vi um homem mais velho que eu caminhando pelo corredor em minha
direção. Meu primeiro sentimento foi aquele antigo de passividade,
incerteza e vergonha íntima ao ver um homem que parecia mais importante
do que eu. Depois senti que eu tinha um pau também e minha atitude
mudou. De repente senti-me confortável e à vontade. Nunca tinha-me
sentido assim antes. Uma beleza! Senti a mesma coisa quando cruzei com
umas mulheres na rua.
Já não tenho mais o mesmo passado. Devo regredir e reconstituir todo meu
passado para que se conforme com o que aprendi agora. Preciso fazer isso
para conseguir continuidade em minha vida. Sem continuidade a mudança
não pode processar-se direitinho.
Na terapia eu quero expressar-me cada vez mais sem precisar seguir as
sequências lógicas e regulares de frases completas e ligadas com as outras.
Fico todo atrapalhado tentando experimentar e ao mesmo tempo duplicar
alguma coisa dentro de um padrão verbal ou imaginário.
Terça-feira
Hoje Art tentou fazer-me chorar como bebê, mas não conseguiu. Ia quase
chegando onde ele queria mas depois a coisa me fugia. Fiquei me
debatendo ali no chão durante três horas e meia. Tentei escapar querendo
mijar mas não consegui. Se mijasse já não iria chorar pois meus
sentimentos sairiam na mijada. Se chorasse, relaxaria os músculos e me
mijaria todo.
Mesmo assim, o esforço resultou em alguns insights de imenso valor. Senti
a raiva de minha mãe quando eu me debatia e chorava no berço. Não
aguentava aquilo e queria esconder-me. Fiquei sabendo como era nunca
ter o leite suficiente e ter que chupar o ar. Senti a falta de amor nos seus
rostos de americanos góticos. Queria me esconder de suas expressões frias.
Enfiei-me embaixo do sofá e gritei para Art perguntando-lhe o que queria
de mim. Aprendi a falar o tatibitate dos bebês e sentia a distância que
existia entre meu pai e eu. Era como se ele me aparecesse ali para dize r-
me que não esperasse dele carinho de pai. Lembrei-me que sempre me
escondia o seu pau e não queria que eu o visse nu. Também nunca vi minha
mãe nua.
Quando aquilo acabou eu estava completamente exausto, tão exausto que
nem mesmo podia escrever tudo que se passara. Isto aqui foi o melhor que
consegui.
Às vezes, quando era pequenino, eu me escondia embaixo de uma cama ou
por trás de algum sofá. Gostava de ficar ali sozinho sem que minha mãe me
visse. E foi o mesmo que fiz hoje enfiando-me embaixo do sofá. Agora estou
lembrando. Ficava cansado de ver o rosto dela zangado. Então escondia -
me para ficar só.
O padrão de meu comportamento na terapia é muito típico. Começo com
muita força, mas logo alguma coisa se embrulha. Depois começo a chegar
ao ponto em que me torno um meninozinho indefeso. Não compreendo
nada. Só vejo que minha atenção está sendo desviada do que estou fazendo
realmente para ser dirigida a alguma coisa diferente.
Quarta-feira
Hoje debati-me no chão outra vez. Fiquei sabendo como tinha sido rígida a
minha educação. Meu corpo não tinha licença para fazer o que queria. Eu
estava numa camisa-de-força. Não tinha licença para nada. Nunca brinquei
com minha mãe. Nunca cheguei a sugar-lhe o seio.
Hoje aprendi a rolar e brincar no chão, mas houve a mesma confusão da
vontade de mijar. E ainda não conseguimos chegar àquele medo do sábado
outra vez.
Quinta-feira
Hoje senti outra vez o medo, aquele medo de ser bicha. Não foi como o do
sábado em casa, mas senti o bastante para saber o que era. Estava n o chão
outra vez corpo bebê, mas depois fiquei confuso. Não sabia se devia ficar
zangado ou continuar sendo bebê ali mesmo no chão. Aí tive outra vez a
vontade de mijar.
Dessa vez fiquei zangado. Fiquei uma fúria durante muito tempo. Soquei os
travesseiros e briguei com mamãe para ser dono de meu corpo. Gritei e
zanguei-me com a pressão que sentia na barriga dizendo a ela que queria
ser o dono de meu corpo. Continuei gritando até que, com surpresa,
percebi que já tinha o que queria. Não sentia mais vontade de mijar. Já
controlava o meu corpo com a raiva! Conseguira pela violência o que me
pertencia por direito, era dono de meu corpo.
Sexta-feira
Hoje voltamos outra vez à mamãe e ao papai quando eu era menino. Contei
para o Art como o papai era inteiramente desligado, como eu realmente
não tinha para quem me virar, como era solitário no colégio e na
universidade sem ter quem me aconselhasse e como tinha casado com
alguém tão desligada como a Phyllis.
Depois conversamos sobre minhas dúvidas acerca das escolas públicas.
Verificamos que era um programa bom, respeitável e bem classe média,
mas eu queria que o programa se fodesse. Disse ao Art que estava com
medo pois ainda não sabia bem como era o meu novo eu e não queria
desligar-me logo do outro que já conhecia. Depois verifiquei que teria que
fazer aquilo de qualquer forma pois senão estaria enquadrado no programa
e tinha que ser bicha e eu não queria ser mais bicha de maneira alguma!
Ele me perguntou o que eu conseguira naquelas duas semanas e respondi -
lhe que tinha conseguido meu passado e meu corpo. Ele me perguntou o
que eu queria fazer e eu lhe disse que queria ensinar às pessoas tanto
individual como politicamente.
Cheguei em casa numa completa euforia. Estava entusiasmado com a
perspectiva de fazer alguma coisa útil em minha vida. Percebi que não havia
um substituto para aquilo em mulheres, fumo, bebida, dinheiro, maconha
ou drogas.
Sábado
Hoje eles começaram no chão outra vez em grupo. Depois de alguns
haverem começado a chorar chamando suas mamães, eu comecei a ficar
zangado porque não podia voltar. Não havia para onde ir. Art viu -me lá
sentado e mandou eu me deitar no chão. Eu comecei a esmurrar o chão
numa raiva cega e incontida. Então gritei com raiva que estava louco, que
queria minha vida de volta. Art veio e disse-me que eu vinha fugindo já
faziam vinte anos e que agora era difícil voltar para mamãe e papai. "Então
eu posso gritar pelo vovô porque ele gostava de mim." Art ordenou-me que
dissesse a eles que eu queria voltar. E foi o que eu fiz chorando e soluçando
durante algum tempo. Depois eu contei ao Art a respeito de meu tio Mac
em quem meu avô dera o contra porque queria ser músico e como Mac
ficara odiando o vovô e entregara-se à bebida que o levara à morte. Art
disse-me que era aquilo mesmo que eu estava fazendo comigo, mas eu lhe
respondi que o tio Mac, pelo menos, sabia o que queria e eu ainda não sei.
Comecei a pensar em Mac que fora meu tio preferido, em minha morte
lenta, no que mamãe e papai me haviam feito. Senti uma dor enorme na
barriga e na cabeça. Depois virei criança. Quando voltei a mim os outros
estavam todos me olhando. Disseram que eu os tinha apavorado com a
minha raiva.
Contei para todos como vinha tentando durante toda a semana que o medo
tomasse conta de meu corpo. Uma mulher observou que eu não estava
deitado quando a dor chegou. Estava na minha crise infantil. Aquilo parecia
uma boa ideia, tanto mais que meu sistema não estava funcionando.
Quando cheguei em casa senti uma dorzinha nas costas no mesmo lugar
que doía quando estava deitado lá no chão.
À noite fui a uma festa. Era a primeira reunião social a que comparecia em
duas semanas. Não tinha vontade de fumar nem de beber mas queria
trepar. Sentiame bem, diferente e novo, e muito mais vivo. Encontrei uma
linda loura chamada Francês e uma outra, moreninha, chamada Eileen num
vestido muito decotado e com jóias. Mas eu preferi Francês porque ela
sabia fazer maravilhas com o corpo. Fiquei vendo-a dançar e depois tentei
também dançar mas não consegui e comecei a sentir outra vez aquela
antiga sensação de bicha ao mesmo tempo que notava muita gente com a
mesma coisa. Gostei da trepada na Francês depois da festa, mas teria
preferido se ela não tivesse vindo com todos aqueles elogios sobre a minha
virilidade. Quase lhe dei uns conselhos.
No dia seguinte tirei um cochilo e na hora que estava acordando senti uma
coisa que estava começando a perceber, da mesma forma que a gente vê a
luz da manhã antes do sol surgir. Já vinha sentindo aquilo desde dias, vindo
e sumindo, e tinha medo. Parecia-me terrível que aquilo fosse uma maneira
para preparar-me ao que estava para vir e o que deveria fazer. Senti que o
dia estava muito próximo e que devia preparar-me. Segunda-feira
O que aprendi hoje deve ser tratado de um modo geral porque era muito
físico.
Contei para o Art tudo que tinha acontecido no fim de semana e o que tinha
sentido em casa a respeito de meu avô. Então Art disse-me para dizer adeus
a todos eles dizendo-lhes que gostava muito deles todos mas que iria seguir
o meu caminho e que podiam ficar descansados que eu não faria o mesmo
que o tio Mac.
Aí tive que ir mijar e Art disse-me para tentar puxar para cima em lugar de
abafar para baixo. E foi o que fiz com tudo que tinha. Senti a pressão ir
melhorando aos poucos até onde minha mente podia se desligar para o
corpo tomar conta. Isso aconteceu quando senti-me bem com o pau e a
minha coordenação respiratória era perfeita. Quando isso aconteceu foi
que eu percebi que todos aqueles anos eu vinha respirando mal.
Quando eu examinei mais aquilo percebi que eram os movimentos que eu
queria fazer no berço sem conseguir e por isso tinha aquelas crises infantis.
Sentiame bem no corpo inteiro com aquela respiração ritmada como se
estivesse trepando, mas eu estava de costas. Aquilo fazia desaparecer toda
a raiva ou frustração. Não consegui tudo nesse dia. Minhas extremidades
ainda estão rígidas, mas elas chegarão lá.
Terça-feira
Não aconteceu muita coisa hoje. Estava muito cansado da longa e exaustiva
sessão de ontem. Art percebeu e deixou- me ir depois de meia hora.
Quando cheguei em casa senti aquela mesma velha tristeza.
Quarta-feira
Disse a Art que queria ver o que era aquela tristeza e ele me mandou
mergulhar nela bem fundo. Foi o que fiz dizendo-me que não prestava, que
estava perdendo meu tempo e dinheiro com a terapia e que nada ia ser
diferente quando eu acabasse. Depois lamentei-me por não ter outra coisa
que pudesse fazer além de ensinar. E comecei a pensar tristemente que
não poderia continuar meus estudos nos cursos superiores porque não
tinha dinheiro; era muito velho e não bastante inteligente. Resumi todas
as minhas queixas dizendo que nada ia mudar e que nem valia a pena
tentar, já que eu era um caso perdido.
Art mandou que eu me aprofundasse ainda mais e eu respondi que estava
mergulhando num buraco escuro onde estava só sem ninguém que me
quisesse. Ele mandou que eu pedisse socorro a mamãe e papai. Eu fiz mas
não valeu nada. Ele disse que eu respirasse fundo e mergulhasse ainda
mais. Aí a minha barriga começou a doer. Disse a Art que não tinha
confiança em mais ninguém e que queria ficar só. Não gosto de gente em
volta de mim quando estou na fossa. Não sei o que poderão me fazer. Então
eu contei como me escondia embaixo do sofá quando era pequenino.
Escondia-me também no "closet" ao lado do quarto de dormir. Gostava de
lugares escuros e isolados onde pudesse ficar só. Disse-me que respirasse
mais fundo ainda. Eu respondi que o bebê estava se afogando. A cabeça
rodava-me e eu estava afundando. Art mandou que pedisse socorro a
mamãe e eu pedi. Ela estava ali bem parada. Então Art disse-me que
deixasse o bebê afogar-se. Eu senti um imenso peso no peito. Tinha muita
dificuldade para respirar. Art disse-me para não respirar mais e deixar o
bebê afogar-se. E eu deixei! Em silêncio. Sem uma lágrima. Frio como minha
mãe. Mas olhando em retrospecto eu não acredito que o bebê tenha se
afogado. Ele apenas foi sumindo e desapareceu de minha consciência.
Então Art pediu-me que tornasse a contar as poucas vezes em que mamãe
ou papai tinham mostrado algum amor por mim. Eu disse que vira
verdadeiras lágrimas nos olhos dela quando estivera muito mal com
pneumonia. Também contei que às vezes papai levava-nos para um passeio
a pé até à estação para ver o trem chegar. Quando era pequenino eu
costumava fantasiar o trem chegando todas as noites antes de eu dormir.
Via quando ele vinha chegando cada vez mais perto de mim e caía no sono.
Achava que desde que o trem chegasse eu podia adormecer. Disse a Art
que sentia alguma ligação entre o sonho e quando estava no "closet." Nos
dois casos estava no escuro e sozinho. Estava sempre sozinho.
Por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar-me ter sido alguma vez
acariciado por meus pais ou recebido deles qualquer demonstração física
de amor. Lembrava-me de quando me encolhia junto dela para tirar um
sono no sofá. Lembrava-me esticando o braço para sentir a barba de meu
pai. Lembro-me quando ele fazia a barba e do perfume que usava.
Geralmente cantava alguma coisa e ria para mim. Eu quase tinha medo de
me encostar nele.
Quinta-feira
Disse a Art que estava desolado por haver deixado o bebê afogar -se ontem
sem verter uma só lágrima.
Expliquei para ele que era muito raro eu receber qualquer elogio por
alguma coisa feita. Ficava secretamente eufórico quando via meu nome na
página do esporte, mas quando alguém me falava naquilo eu ficava
encabulado. O mesmo aconteceu quando as pessoas souberam que eu ia
para a Fordham. Eu teria preferido que não soubessem de nada. Nunca me
orgulhava do que fazia pois não queria ser convencido. Art perguntou-me
por que fazia aquilo. Respondi-lhe que não queria ser diferente dos outros
já que o sucesso só poderia abrir mais o abismo entre meu pai e eu. Assim,
da mesma forma que meu pai, eu me havia conformado em atrair para mim
um sentimento de pena de parte dos outros.
Fiquei ali durante muito tempo conversando e pensando no coitado do meu
pai. Então vi o que estava fazendo e dei um grito de espanto. Art quis saber
o que era e eu então expliquei. "Pois aqui estou eu com pena de meu pai
porque ele não foi um pai melhor para mim. E também de nada adiantou
os outros sentirem pena dele. Pois continue, papai. Continue assim mesmo,
que já não faz diferença. Agora o problema já é seu e você nada mais pode
fazer. Continue sendo assim que já não me faz diferença. Já é tarde agora.
Adeus, papai, é muito triste dizer adeus. Suas intenções eram boas, mas eu
tenho de seguir em frente.
Quando cheguei em casa almocei e depois dormi um pouco. Na hora que
acordei senti uma certa disposição para estudar psicologia. E isso me
trouxe lágrimas aos olhos.
Sexta-feira
Tiramos o dia de folga e eu levei o meu garoto para nadar no Lago Gregory.
Foi muito bom mas eu não estava tranquilo. Ficamos deitados num barco
no meio do lago. Eu não conseguia me descontrair por completo. Voltei à
infância quando queria mamãe e ela não estava lá. Não era só ela em
pessoa que não estava lá. Era também a sua alma que não estava lá. A sua
alma fria e insensível que não deixava ninguém em dúvida a respeito de
amor.
Sábado — Grupo
Fui assoberbado pelo bebê que queria sua mamãe. Era esse o tal sonho
importante. É isso que vai acontecer e que venho me preparando para
enfrentar. Tentei entrar nisso hoje mas consegui muito pouco. Depois fiz
aquilo que estava acostumado a fazer sempre que minha mãe me
escorraçava. Tive uma crise de choro e mijei-me todo.
Segunda-feira
Hoje eu voltei à mamãe. Comecei a sentir aquela dor de ser desprezado e
de sentir-me só. Fiquei zangado e gritei. Gritei que odiava tudo e que
odiava minha mãe por fazer aquilo comigo. Depois chorei amargamente
sentindo o que perdia. Procurei alcançar mamãe e nada senti. Chorei
gritando por ela e nada senti. Contei para Art como tinha inveja das
crianças que recebiam atenção e consideração dos pais. Contei para minha
mãe como a vida com ela tinha que ser nas suas condições ou senão era a
condenação. Tudo muito triste e muito só.
Terça-feira
— Como está você? Começou Art.
— Ora, sinto-me na fossa hoje.
— Como assim?
— Ontem eu estava muito triste porque sentia-me só. Sempre senti-me
melhor com minha avó do que com minha mãe.
— Fale-me a respeito dela.
— Era uma grande alma. Paciente e compreensiva. Não estava sempre
zangando comigo como minha mãe. Quando tinha problemas sempre corria
para ela. Ouvia-me com paciência e apoiava-me. Sempre que ficava doente
na escola eu ia para a casa dela porque sabia que não ficava zangada
comigo e cuidaria de mim. Dava-me logo um caldo e algum remédio caseiro.
Deixava tudo que estava fazendo para me atender primeiro. Depois que o
vovô morreu ela mudou-se para um apartamento. Eu ia visitá-la e fazer
coisas para ela porque sabia que gostava de companhia. Depois que caiu e
quebrou a bacia ela se mudou para bem perto da igreja para não perder as
missas. Era também perto do meu colégio e eu ia sempre lá para ver se ela
estava bem. Se faltasse alguma coisa eu dava um jeito. Eu gostava muito
dela. Queria ter estado lá quando ela morreu.
— Pois então diga-lhe adeus agora.
E foi o que eu fiz chorando muito quase igual quando da morte de meu avô.
Agradeci-lhe por tudo que fizera por mim. Senti que era mais fácil chorar
por ela e meu avô do que por minha mãe e meu pai.
— Agora deixe o bebê chorar sua mamãe. Só chorar.
E então chorei. Não com palavras porque na noite anterior
eu estava deitado no sofá e lembrei-me que as palavras me afastam do
grande medo e do grande sentimento. Em lugar disso chorei com
implorações sem palavras e logo senti como se estivesse inundado por um
aguaceiro de primavera. Era sentimento puro sem palavras nem imagens
de vovô, vovó, mamãe ou papai. Era só a pura necessidade. Chorei com
todo o meu ser. Todo o meu corpo chorava soluçando e as lágrimas corriam
como se fossem sangue de uma ferida aberta.
Depois que parei de chorar estava banhado de felicidade. Art perguntou-
me por que e eu respondi que me sentia íntegro.
— O que quer você dizer com isso?
— Bem, há muitas formas para se explicar isso. Eu posso ir até o princípio
de meus sentimentos de quando nasci sem entrar em conflito com eles.
Não precisei deixar nenhum de fora para evitar o conflito. Agora tenho toda
a gama de meus sentidos. Tenho o meu bebê, e vou tomar muito cuidado
com elezinho. Vou ficar ao seu lado para apoiá-lo sempre que ele precisar.
A minha história toda já está em dia.
O dia inteiro senti-me como se fosse um broto que acabasse de surgir da
terra. Tudo era ternura para mim. Ondas de sentimento banhavam -me o
dia inteiro. Essa noite, no grupo, uma moça chorou porque sentia muita
dor só de estar viva. Começamos a conversar o que nós, da comunidade
Primal, devíamos fazer num mundo tão bárbaro. Eu estava bem perto de
uma Primal mas não sabia como chegar lá. Não quis dar uma saída falsa e
estragar toda a cena. Queria dizer a ela com toda a minha alma que eu
também tinha a Dor mas que, ainda assim, queria viver pois há calor e
alegria em podermos cuidar da Dor que sentimos dentro de nós. A Dor,
como todas as outras experiências, é uma coisa de momento. Se
aprendermos a cuidar dela, como amar e cuidar de nós mesmos, então a
nossa Dor, se for autêntica, irá conduzir-nos ao calor, ao amor, à alegria
seja lá o que for que esteja acontecendo neste mundo bárbaro. E isso
porque a Dor não está no mundo, e sim nos nossos corpos onde podemos
cuidar dela. E assim tudo dá certo. A vida torna-se um problema real que
nos encaminha para a morte somente quando mantemos a Dor afastada.
Eu não disse tudo isso, pois de pouco teria valido. Nós todos falamos muito,
mesmo quando o que temos a dizer possui um certo grau de validez. Por
isso vim para casa e escrevi, mas pensei que tinha voltado de mãos vazias
porque não consegui cair no transe Primal nem mesmo dentro de tanta
emoção.
Estou-me tornando íntegro agora. Já sou o meu corpo. Sou uma grande
sinfonia de sentimentos vários e ricos, todos eles harmoniosamente
percorrendo meu corpo e se complementando. O meu sexo, a estrutura e
a energia de meu corpo, minha raiva, meu medo, meu calor, minha tristeza,
minha alegria, tudo isso tem seu tempo e seu contexto, e todos servindo -
se mutuamente para atender às necessidades dos outros. Estou me
tornando integrado agora. Tornei a nascer de minha própria linhagem.
Agora eu sou o meu pai e sou a minha mãe. Sou o meu corpo e sou o que
eu sinto.
Quarta-feira
Hoje de manhã chorei de pura necessidade. Ouvindo o adagio do Quarteto
de Beethoven em Lá Menor, eu fiquei de pé no meio da sala de jantar e
chorei com a música, da mesma forma que deixei o bebê chorar dentro de
mim ontem na terapia. Nunca ouvi outra música que evoque um tal
sentimento de dor física. Não havia imagens nem palavras. Havia a pura
tristeza e dor na música e eu chorei apreciando as duas.
Quinta-feira
Sentei-me para trabalhar nas minhas notas. Cheguei até à página 45 sem
mamãe, triste e solitário. Pensei na viagem que estou querendo fazer até
em casa. Irei querer ver mais alguém além de mamãe e papai? Não. Vou
como terapia e não para divertir-me. Bem, é verdade. Quero ver a tia Millie
e o tio Les. Millie foi muito boa para mim quando eu era garoto. E o Les
também. Quero agradecer a eles como já agradeci ao vovô e à vovó que me
ajudaram quando eu estava triste e só. Como se fosse um órfão apesar de
ter pais. Bang! Caio numa triste e solitária Primal. Bang! É isso o que era a
Primal em Lá Menor: triste e solitária. Bang! Já sou real outra vez.
Sexta-feira
É o primeiro dia hoje, desde segunda-feira, que não tenho uma Primal. Mas
sinto uma aproximando-se. Hoje de manhã pensei em ir em casa para ver
qual a reação do pessoal. Sem emprego. Cabelos compridos.
Desmantelado. Já via mamãe com sua cara de preocupada. Depois pensei
comigo mesmo. Sabe o que acontece com essa sua preocupação, mamãe?
Ela me separa. Faz de mim um caso separado. Há algo errado comigo. É a
sua mania de imaginar alguma coisa errada comigo para você poder ficar
por cima. Se houver alguma coisa errada comigo você tira o corpo fora. Mas
você sabe o que isso fez comigo, mamãe? Fez de mim um estranho. Fez de
mim um triste orfãozinho com pais.
Foi assim que percebi como tenho medo de sair de dentro do saco burguês.
Tenho medo que mamãe e papai me deixem de fora. Estou com medo. UM
MEDO MUITO GRANDE. O meninozinho triste e solitário.
Segunda-feira / Sexta-feira
Voltei a Woodsville para visitar meus pais. Era a primeira vez que voltava
lá depois de dez anos ou mais. A visita confirmou todos os sentimentos que
tinham surgido na terapia a respeito deles. Fizeram uma cena de tristeza
ao serem entrevistado diante das câmaras. (Para o filme documentário que
está sendo feito de meu tratamento.) A relutância nada tinha a ver com
meu passado embora fossem interrogados somente sobre isso. Minha mãe
tentou me chatear por causa do divórcio, de haver abandonado a Igreja
Católica e de ter largado o emprego. Esperei para ver o que diria meu pai.
Nada, como de costume. Ele deixou ela falar. Então eu dei um basta na
chateação que estava me magoando muito. O comportamento de papai foi
típico. Então mamãe tentou chamar-me de maluco e aí não aguentei mais.
Depois disso as coisas começaram a melhorar na aparência, mas por dentro
era tudo o mesmo. Nessa noite resolvi sair só para ter uma folga. Depois
de sair de casa senti aquela velha sensação de órfão que já conhecia bem
de minha juventude errante.
Fiquei imaginando como tinha conseguido aguentar tudo aquilo naquela
ocasião.
Voltei à velha estação dos trens, ao rio, ao mato e à grande ponte.
Voltaramme todos aqueles sentimentos antigos do menino que buscava
refúgio no mato. Fiquei ali na ponte chorando pelo menino que naquela
ocasião não podia sentir a sua dor. Fiquei então ali e chorei para que ele
visse que agora já tudo estava acabado. Senti-me reconfortado e grato
àqueles lugares antigos por darem ao menino alguma ideia do que ele tanto
precisava.
Fui visitar meus tios e contei-lhe sobre meu tratamento pois sabia que eles
se interessariam e compreenderiam. Foi maravilhoso estar novamente com
eles. Senti uma enorme alegria em dizer-lhes o quanto lhes queria, o
quanto eles significavam para mim e o quanto haviam feito por mim na
minha adolescência. Eles ficaram satisfeitíssimos. As vibrações ficaram na
sala durante toda a noite.
Fui ao cemitério visitar as sepulturas de meus avós. Ajoelhei-me ali e
conteilhes tudo sobre minha terapia. Fiquei muito tempo ajoelhado e
chorando conversando com eles. Quando parei de chorar ainda fiquei mais
algum tempo em completo silêncio. Nunca tinha visto antes a sepultura de
minha avó. Já lá iam vinte anos desde a morte de meu avô. Para mim era
como se fosse apenas ontem. Meu tio Mac também estava ali. Meu pobre
tio Mac. Curvei-me sobre a lápide de meus avós e saí.
Minha volta ao lar trouxe-me mais para perto do calor que desejo sentir,
pois confirmou a realidade de minha Dor e de minha terapia. Agora só resta
passar pela Dor. Do outro lado está o calor. Agora já sei onde estão o calor
e o amor. Estão do outro lado da Dor. E eu tenho que atravessar. Já passei
muito pela Dor para compreender isso. Agora já está mais fácil para mim.
Nos meus velhos tempos eu não funcionaria nos melhores níveis para
conseguir obter a piedade. Sempre confundira piedade com calor e amor.
Nos meus velhos tempos eu queria ver as pessoas terem pena de mim.
Queria ter delas todo o amor e afeição que não conseguia de meus pais,
mas que precisava desesperadamente. Depois esperei que alguém
aparecesse para ter pena de mim (mamãe) e apoiar-me e socorrer-me
(papai).
Conclusões
Depois de três semanas de terapia eu passei por algumas mudanças
importantes.
Primeiro. Antes eu vinha fumando três maços de cigarros por dia. Parei de
fumar e nem tenho vontade de recomeçar.
Segunda. Antes eu bebia moderadamente. Frequentava bares duran te a
semana. Embora fosse raro beber demais, gostava de virar uns quatro ou
cinco uísques. Tudo isso passou.
Terceiro. Minhas atividades sexuais diminuíram consideravelmente. Antes
eu trepava pelo menos três vezes por semana. Desde que comecei a
terapia, já faz um mês e meio, só fiz isso três vezes. No entanto, embora
sinta que as duas primeiras mudanças são permanentes, ainda não vejo
claramente quais são os meus sentimentos quanto à vida sexual. Antes da
terapia eu levava muitas mulheres para a cama e era raro ser a mesma mais
do que uma vez por semana. Aquilo era uma forma para eu esconder a
minha dor profunda, a dor de ser desprezado, de ser um perdedor.
Ninguém pode ser um bom perdedor se olhar o fato bem de frente. É
preciso fugir dele. É preciso ter uma cobertura para esconder a vergonha
de ser perdedor. A minha cobertura eram as mulheres. Agora já não preciso
mais disso. Mas ainda preciso pensar nos meus desejos reais. É bem
possível que seja apenas uma mulher ou algumas ... não sei.
Quarto. Já não tenho problemas com o sono e nem sinto mais dores de
cabeça.
Quinta. Uma boa porção da tensão já cedeu. Ainda resta alguma, mas sinto
que está diminuindo.
Sexta. Minhas relações com as pessoas estão mudando. É uma coisa muito
lenta e sutil e difícil de descrever. Já não tenho mais aquela sensação de
ser dominado e passivo, com a mesma intensidade que tinha antes da
terapia. Aquela sensação de bicha também não é mais tão frequente.
Algumas vezes fico confuso sem distinguir entre a sensação de bicha e a
simples sensação de desamparo por não ser amado. A identificação das
duas é coisa nova para mim. Agora já posso ver a diferença na sensação de
estar só. Quando me sinto bicha eu não me sinto só. Sinto sempre uma
presença ominosa que me espreita nas sombras. Na outra sensação sinto-
me muito só, mas isso não me incomoda. É até mesmo agradável conforme
as circunstâncias.
Sinto-me mais distante em minhas relações com as pessoas, mas é uma
distância que parece estar cultivando uma nova capacidade para
intimidade. Ainda é muito incipiente e nova mas fico excitado com suas
possibilidades futuras. Nos seus efeitos presentes isso apenas me intriga.
Nas minhas relações com os outros, e também quando estou só, eu sinto o
profundo e indescritível sofrimento de todo o amor perdido de que eu
tanto necessitava na minha infância. Algumas vezes isso é tão grande que
chega a paralisar-me. Ainda sinto isso mais do que qualquer outra coisa. Na
maioria das vezes chego à beira das lágrimas ou então fico com muito
medo. Para a maioria das pessoas eu talvez pareça bem triste. Estou certo
que meus amigos não iniciados ainda pensam intimamente que não veem
grandes resultados da terapia em mim.
Para terminar, minha orientação está passando por uma completa
modificação, embora esse processo ainda não esteja completo. Mesmo
assim ainda é possível apontar algumas mudanças.
Uma das coisas é que já não sinto mais a necessidade de ser reconhecido
no mundo profissional, como também já não sou mais dominado pela
necessidade do amor de uma ou mais mulheres. Ainda não posso dizer com
toda a sinceridade se essas necessidades foram ou não substituídas. Em
alguns aspectos eu me sinto como se estivesse no limbo ou em alguma
espécie de terra de ninguém. Mas isso não é muito desconcertante porque
sinto as coisas novas que surgem. Embora ainda seja prematuro falar a tal
respeito, o fato é que isso está lá e está crescendo.
Sinto a mais radical transformação na minha estrutura de valores. Percebo
agora, cada vez mais, os valores que estão surgindo da dinâmica de meu
organismo. Esse processo é dirigido pelo corpo e não pelo espírito. Claro
que o espírito tem um papel, mas ele é apenas auxiliar. Seria melhor dizer
que ele não toma parte ativa no processo embora observe e registre o que
está acontecendo, da mesma forma que a ciência moderna já observou na
estrutura e na dinâmica do átomo e depois fabricou um sistema de prótons,
nêutrons, electrons e tudo mais para registrar o que foi observado.
O que estou tentando afirmar é que os conceitos de valores ou ideias com
os quais tentamos controlar nosso comportamento e experiências, não se
originam propriamente no pensamento. O fato de ordenarmos nossas
experiências em termos de ideias é o resultado de uma doença que nos
desliga dos processos orgânicos do ambiente e dos nossos mesmos.
Estamos sempre com pronunciamentos e exclamações tolas e insensatas
como "A mente sobre a matéria!" ou "Consiga controlar-se!" Essas e
inúmeras outras observações revelam a profunda divisão de nossa opinião
da vida, e o resultado é que tornamo-nos divididos do mundo ao mesmo
tempo que de nós mesmos.
Falando positivamente, estou afirmando que o valor dos conceitos ou
ideias pelos quais queremos ordenar as nossas vidas origina-se
propriamente nas experiências dos organismos das pessoas. Eles mostram
as necessidades do organismo para uma existência sadia, o que é uma outra
forma de dizermos que exprimem aquilo que realmente desejamos. As
ideias estão em jogo e elas representam um papel importante. Mas o que
é realmente importante compreendermos é que as ideias são derivadas da
experiência. Por exemplo, eu não imagino reunir-me a um grupo de pessoas
para depois juntar-me a elas. Em primeiro lugar eu experimento a minha
sensação de estar só. E depois então é que tenho a ideia. A natureza des sa
ideia é duplicar a experiência, é uma espécie de fotografia dela. Com isso
eu posso identificar a experiência, relacioná-la com outras e, finalmente,
agir de acordo com ela. Para mim isso é de importância capital. Isso
significa que meus valores e metas, aquilo que os homens tradicionalmente
consideram a coisa mais sagrada da vida, possuem realmente uma origem
na estrutura orgânica de meu ser. Portanto, será sumamente desagradável
para mim permitir que esse processo de formação de valores fique ao cargo
de minha mente ou da de qualquer outro, ou de alguma autoridade pública
ou ainda um sistema filosófico que se considere o dono da verdade.
APÊNDICE B
Para que a Terapia Primal seja eficiente, é preciso que o paciente coopere
seguindo sem desvios as instruções muito simples que passamos a
enumerar.
1. Quarenta e oito horas antes de começar a terapia é preciso abandonar
completamente o fumo e as bebidas alcoólicas, inclusive cerveja e vinho.
2. Não tomar remédio algum como aspirina, pílulas sedativas,
tranquilizantes, excitantes, estimulantes ou qualquer outro que possa
afetar sua condição. Pare com todas as pílulas quatro ou cinco dias antes
de começar a terapia e continue sem elas durante o período do tratamento.
3. Todo mundo já sabe o que é preciso fazer para aliviar a tensão. Pare com
isso! Isso significa desistir de alimentação compulsiva, roer unhas, fingir -se
ocupado e sempre com pressa, dormir demais, etc.
4. Vinte e quatro horas antes da terapia será preciso ficar inteiramente só,
preferivelmente num quarto de hotel perto do consultório. Não fazer
chamadas telefônicas, não receber amigos, não ver TV nem ir ao cinema.
Eliminar todas as distrações. Entrar no hotel na tarde da véspera do começo
da terapia e procurar não sair do quarto senão no dia seguinte na hora da
consulta.
5. Quando começar a Terapia Primal faça tudo que lhe disser o terapeuta.
De forma alguma poderá lhe acontecer qualquer coisa desagradável. Não
são usados truques nem são feitas afirmativas para causarem qualquer
efeito especial. Esta terapia nada tem a ver com ô Zen, o hipnotismo ou o
uso de qualquer medicamento. Ela é baseada em sólidos princípios
científicos já aplicados com sucesso em inúmeros indivíduos que se
submeteram ao tratamento.
6. A fase inicial da terapia é aproximadamente de três semanas, e durante
esse tempo ninguém deverá pretender trabalhar ou frequentar escola.
Geralmente, esse será o único tratamento individual necessário, podendo
no entanto haver alguma exceção que necessite horas de
acompanhamento de quando em quando. Durante a primeira ou segunda
semana os pacientes serão atendidos em consultas que poderão durar duas
horas. Todos podem desistir a qualquer momento que desejem já que as
sessões são abertas. Durante a terceira semana, conforme forem as suas
necessidades, os pacientes serão atendidos diversas vezes.
7. Depois da terceira semana o paciente será colocado num grupo pós-
Primal composto de pessoas que já passaram pelo tratamento. Esses
reúnem-se uma ou duas vezes por semana. São indispensáveis já que fazem
parte do plano terapêutico. Todos devem fazer o possível para comparecer
a essas reuniões pelo período de alguns meses. Depois disso estará
terminada a Terapia Primal.