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PREFÁCIO

UM ANALISTA DO INCONSCIENTE

(a mala) assemelhuva-se agora àquelas que se vêem em todas as plata-


formas de embarque ou 1I0Saeroportos, carregadas 1/0 ombro por algum desses
emigrantes que, soltos em .",as roupas puidas, com seus idênticos rostos febris,
corroídos, com seus idênticos olhares extenuados, suas idênticas meias roxas ca-
neladas e seus magros sapatos de salto virado, indistintamente unidos (ou joga-
dos} lia imprecisa familia (ou etnia} das faces vazias, da pele cinzenta, errantes,
expulsos de portos, de uma estaçcio de trem para outra, de uma favela para ou-
tra por alguma incansável maldição, eles, suas pelicas de filhos, suas pesadas e
prolificas mulheres andando rápidas de olhos baixos, excisas e embrulhadas em
véus, suas caixas de bagagem contadas e recontadas a cada mudança de trem
ou de barco, abertas 110.1'
cais, mostrando seus pungentes conteúdos de farrapos,
despertadores, espiriteirus, relógios-cuco suíços e de torres Eiffet douradas, afas-
tados com a ponta dos pés pelos [uncionários da alfândega ou pelos policiais,
novamente embrulhados amarrados, divididos novamente 11ma 11mlUIS caixas
consolidadas, 011melhor, atadas com cordinhus esfiupudas com essa meticulosi-
dade, esse infalivel fervor e essa infinita paciência dos pobres.

As Geôrgicas. CLAUDE S'MON

Com Abdelmalek Sayad, o sociólogo torna-se escrivão úblico. Ele dá voz


àqueles que dela são mais cruelmente despossuídos, auxiliando-os por vezes, tan-
to com seus silêncios quanto com suas perguntas, a encontrar as palavras, a reen-
contrar, para contar uma experiência que a contraria completamente, os dizeres
e os provérbios da sabedoria ancestral, as "palavras da tribo" que descrevem seu
~, e!1horba, como um ocidente, uma queda nas trevas, um desastre obscu-
ro. Isto sem jamais instituir-se como porta-voz, sem jamais se valer da palavra
ABDELMALEK SAYAD

dada, como o fazem tantos defensores impudentes das boas causas, para dar li-
c- ções ou exibir bons sentimentos. "Só ter irmãos, tios em todo lugar; fazer do
primeiro que chega um irmão, um pai, um tio, é realmente preciso não ser nin-
u guém, não ter nenhuma auto-estima para se mostrar assim em espetáculo." Aque-

le que lhe diz tais coisas só pode fazê-Io porque vê, em toda a sua postura, que
pode, sem correr o risco de ofender, usar com ele dessa linguagem: a dignidade
reconhece a dignidade. Há um modo de "confraternizar" que contém uma for-
ma de desprezo de si e do outro. Sayad não confraterniza; é fraterno. Não é da-
queles que vão até o "povo", que declaram seu amor por um "povo" de palavras
e das palavras do "povo". Mas ele está presente, dia após dia, há trinta anos ago-
ra, em seu vilarejo da Cabília, nos "agrupamentos" do Uarsenis ou da península
de Collo, nas favelas de Argel ou de Constantina e, hoje, nos "cités" de Marseille
ou de Villeurbanne, de anterre ou de Saint-Denis; ele está presente, e escuta,
e grava, e transcreve, e transmite, sem frases, as palavras que atrai e acolhe, como
uma confissão, digna de uma personagem de Beckett, de um gari melancólico,
ou as confidências de uma estudante ~", com uma simpatia sem athos, uma
cumplicidade sem inocência, uma compreensão sem complacência ou condes-
cendência. Ele faz parte do reduzido grupo das pessoas com quem podemos
abordar um camponês da Cabília ou do Béarn, um trabalhador argelino ou pari-
siense. A discrição e a dignidade, a correção do tom e o pudor que emprega na
troca com seus interlocutores encontram-se também no modo como relata dis-
cursos deles. Por recusar ao mesmo tempo as solidariedades ostentatórias e as
denúncias barulhentas, ele parecerá sem entusiasmo, ou mesmo temeroso, para
os amantes de engajamentos peremptórios; não se sentiu ele obrigado a justifi-
car-se, numa nota, por falar pouco sobre uma greve da Sonacotra, perfeita en-
tretanto para suscitar lamentos dramáticos, enquanto acaba de descrever, com um
fervor contido, tudo o que, na existência cotidiana dos abrigados, torna essa greve
sensata e necessária? E como não lembrar, aqui, as noites do verão de 60 durante
as quais, com nosso amigo comum, Mulah Hennine, assassinado pouco depois
pela O.A.S., precisávamos tentar convencer um dos jovens militantes da U.N.E.F.
que vieram comigo fazer uma pesquisa durante os últimos momentos da Argé-
lia colonial, e justamente apavorados com tudo o que estavam descobrindo, que
de nada servia indignar-se, deplorar, detestar, como também consolar ou dar
assistência, e que era preciso ter a coragem de se resignar - com a morte na alma,
mas isso não dizíamos - a escutar, observar e testemunhar, o melhor possível, o
que havíamos visto e ouvido?
Todas essas virtudes, das quais os manuais de metodologia nunca falam, e
também uma incomparável maestria teórica e técnica, associada a um conheci-

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PREFACIO

mento íntimo da língua e da tradição ~, eram indispensáveis para enfren-


tar um objeto que, como os chamados roblemas ""mi ra ão", não são des-
ses que se podem colocar entre quaisquer mãos. Os princípios da epistemologia
e os preceitos do método são de pouca utilidade neste caso, se não puderem se
apoiar em disposições mais profundas, ligadas, em parte, a uma experiência e a
[
uma trajetória social. É claro que Abdelmalek Sayad tinha mil motivos para per-
ceber de imediato o que, antes dele, escapava a todos os observadores: ao abor-
darem a "imigração" - a palavra é clara - do ponto de vista da sociedade recep-
tora que coloca o problema dos "imigrantes" apenas quando os imigrantes
"constituem um problema", os analistas omitiam, na verdade, as questões sobre
as causas e os motivos que poderiam ter determinado as artidas e sobre a di-
versidade das condições de origem e das trajetórias. Primeiro gesto de ruptura
com esse etnocentrismo inconsciente, Abdelmalek Sayad devolve aos "irni ran-
ue são também "emigrantes", sua origem, e todas as particularidades que
a ela encontram-se associadas e que explicam muitas das diferenças observadas
nos destinos posteriores. Mas isso não é tudo: em um artigo publicado em Actes
de ia recherche já em 1975, ou seja, muito antes da entrada da "imigração" no
debate público, ele rasga o véu de ilusões que dissimulava a condição dos "imi-
grantes" e revoga o mito tranqüilizador do trabalhador importado que, de posse
de um pecúlio, voltaria para sua terra para deixar o lugar para outro. Mas, aci-
ma de tudo, olhando de perto os detalhes mais ínfimos e mais íntimos da condi-
ção dos "imigrantes", introduzindo-nos, por exemplo, no âmago mais secreto dos
sofrimentos relacionados com a separação, por meio de uma descrição dos meios
que usam para se comunicar com sua terra, ou lançando-nos no cerne da con-
tradição constitutiva de uma vida impossível e inevitável por via da evocação das
mentiras inocentes com que se reproduzem as ilusões sobre a terra de exílio, ele
traça com pequenas pinceladas um retrato impressionante dessas "pessoas des-
locadas", privadas de um lugar apropriado no espaço social e de lugar marcado
nas classificações sociais. Como Sócrates, o imigrante é afopos, sem lugar, de~
locado, inclassificável. Aproximação essa que não está aqui para enobrecer, pela
virtude da referência. Nem cidadão nem estrangeiro) nem totalmente do lado do
Mesmo, nem totalmente do lado do Outro, o "imigrante" situa-se nesse lugar
"bastardo" de que Platão também fala, a fronteira entre o ser e o não-ser soc.0.
!?eslocad9, no sentido de incongruen~ e de im ortuno, ele suscita o embaraço;
e a dificuldade que se experimenta em pensá-Io - até na ciência, que muitas
vezes adota, sem sabê-lo, os pressupostos ou as omissões da visão oficial - ape-
nas reproduz o embaraço que sua inexistência incômoda cria. Incômodo em todo
lugar, e doravante tanto em sua sociedade de origem quanto em sua sociedade

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SAY

receptora, ~I~ obriga a repensar com letamente a uestão ~os f~<!amen~-


~timos da cidadania e da rela ão entre o Estado e a Na ão ou a nacionalidade.
Presença ausente, ele nos obriga a questionar não só as reações de rejeição, que,
ao considerar o Estado como uma expressão da Nação, justificam-se pretendendo
fundar a cidadania na comunidade de língua e de cultura (quando não de "raça"),
como também a "generosidade" assimilacionista, que, confiante em que o Esta-
do, armado com uma educação, saberá produzir a Nação, poderia dissimular um
chauvinismo do universal. Entre as mãos de semelhante analista, o "imigrante"
funciona, como podemos notar, como um extraordinário analista das regiões mais
obscuras do inconsciente.

PIERRE BOURDIEU

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INTRODUÇÃO

Os textos reunidos aqui foram escritos entre 1975 e 1988. Sua ação pare-
ce guiada por duas lógicas concomitantes: a ordem cronológica da publicação
dos textos, claro, e, recortando em parte esta, a ordem possível que poderíamos
chamar de temática, sendo que a primeira e maior oposição de natureza ternáti-
ca é precisamente aquela que separa a emigração (e a idade de emi rante),
e tudo o que dela se pode dizer, da imigração (e da condi ão de imi rante) e dos
inúmeros estudos que a ela foram dedicados em geral.
Na verdade, se a ordem cronológica das publicações e a ordem ló ica dos
~ combinam em parte e parecem estreitamente dependentes uma da outra, isto
se deve principalmente à própria ló ica do movimento mi ratório. Com efeito,
todo o itinerário do emigrante (emigrante de lá ... ) e do imigrante (imigrante
aqui ... ) presta-se a um recorte em diferentes etapas que se constituem como ou-
tros tantos momentos e objetos privilegiados para a reflexão. A ordem linear se-
gundo a qual se desenrola o movimento de emigração e de imigração, em sua
du Ia dimensão de coletivo e de itinerário individual (a trajetória e a expe-
riência singulares do emigrante e imigrante), comanda, assim, a constituição dos
diferentes temas, impondo-os desta forma na ordem crono-lógica em que apare-
cem e, desta maneira, comanda também a ordem cronológica das publicações. É
igualmente o desenrolar do processo que determina, em função das necessidades
que encontra ou que faz surgir, não só a natureza das interrogações como também
a forma que elas adotam, além da ordem temporal que também é, neste caso, a
ordem de imp~ia e a ordem de ur ência nas quais são postas e tratadas estas
interrogações. Assim, em suma, são três ordens cronoló icas que se encontram
encavaladas; parcialmente redundantes, estruturalmente ligadas entre si e como
que carregadas por uma mesma lógica - a lógica contida no princípio gerador das
questões relativas à imigração -, elas estão destinadas a se encontrar e a se fundir
numa mesma perspectiva que podemos dizer (e escrever) crono-lógica.
G..., Para começar, teremos, em primeiro lugar e necessariamente, o estudo da
emigração propriamente dita ou, pelo menos, o estudo das condições sociais que
a engendraram, bem como o estudo, necessário para que a pesquisa seja com-
pleta, das transformações destas mesmas condições e, correlativamente, das
transformações da emigração. Necessidade de ordem cronológica, sem dúvida,
pois na origem da imigração encontramos a emigração, ato inicial do processo,
~ mas igualmente nece idade de ordem epistemológica, pois o que chamamos de
imigração, e que tratamos como tal em um lugar e em uma sociedade dados, é
chamado, em outro lugar, em outra sociedade ou para outra sociedade, de emi-
gração; como duas faces de uma mesma realidade, a emigração fica como a outra
vertente da imigração, na qual se prolonga e sobrevive, e que continuará acom-
panhando enquanto o imigrante, como duplo do emigrante, não desaparecer ou
não tiver sido definitivamente esquecido como tal - e, mesmo assim, isto ainda
não é absolutamente certo, pois o emigrante pode ser esquecido como tal pela
sociedade de emigração mais facilmente e antes mesmo que tenha deixado de
ser chamado com o nome de imigrante. Em seguida, temos, mais abundantes e
mais diversificados, os estudos dedicados às condi ões de existência na imi ra-
S
ção (condições de vida e condições de trabalho principalmente), ou seja, grosso
modo, O estudo dos diferentes problemas sociais que foram constituídos como
"os problemas da imigmç~'. E na medida em que os contatos do imigrante com
a sociedade que o agrega a si se prolongam, se ampliam e se intensificam, ou
seja, na medida em que o imigrante sai da esfera em que o restringem tradicio-
nalmente o estatuto e a condição que lhe são atribuídos, na medida em que vai
ganhando novos espaços (alguns deles inéditos, como o espaço político), che-
gando a desmentir a definição dominante que se dá dele e da imigração, indo até
o questionamento da representação que se tem dele e que ele tem de si mesmo,
o tratamento social e o tratamento científico, sendo que este encontra-se com
freqüência na dependência daquele, reservados ao imigrante e, mais amplamente,
a todo o fenômeno da imigração, ganham em extensão e em compreensão.
Produto, o mais das vezes, de uma problemática que lhe é imposta de fora,
e à qual não é sempre fácil escapar, o discurso tifico ou não) sobre o imi-
grante e sobre a imigração está condenado, para poder falar de seu objeto, a

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INTRODUÇÃO

acoplá-lo a toda uma série de outros objetos ou de outros problemas. Aliás, se-
ria possível falar dele de outra forma? Está no estatuto do imigrante (estatuto ao
mesmo tempo social, jurídico, político e, também, científico), e, por conseguin-
te, na própria natureza da imigração, só poderem ser nomeados, só poderem ser
captados e tratados através dos diferentes problemas a que se encontram asso-
ciados - problemas que se devem entender aqui no sentido de dificuldades, dis-
túrbios, danos etc., mais do que no sentido de problemática constituída de for-
ma crítica em relação a um objeto que cria necessariamente um problema e que,
característica esta que lhe é própria, existe a enas no limite, graças aos proble-
ma oca ara a sociedade. Sem dúvida, a problemática verdadeira e apro-
priada a este setor deveria começar por se dar como primeiro problema, como
x ( problema prévio, o fato de que se trata de um objeto que cria um problema'.
Trata-se sem dúvida de uma banalidade, mas de uma banalidade que é im-
portante lembrar, dizer que a imi ra - , m "fato social com leto", única ca-
racterística, aliás, em que há concordância na comunidade científica. E, a este
título, todo o itinerário do imigrante é, pode-se dizer, um itinerário epistemoló-
gico, um itinerário que se dá, de certa forma, no cruzamento das ciências sociais,
como um ponto de encontro de inúmeras disciplinas, história, geografia, demo-
grafia, economia, direito, sociologia, psicologia e psicologia social e até mesmo
das ciências cognitivas, antropologia em suas diversas formas (social, cultural,
política, econômica, jurídica etc.), lingüística e sociolingüística, ciência políti-
( ca etc. Por certo, a imigração é, em primeiro lugar, um deslocamento de pessoas
\ no espaço, e antes de mais nada no espaço físico; nisto, encontra-se relaciona-
da, prioritariamente, com as ciências que buscam conhecer a população e o es-
paço, ou seja, grosso modo, a demografia e a geografia, e principalmente por-
que esta, ao tratar da ocupação dos territórios e da distribuição da população,
inclina-se a anexar aquela - não é por nada que a demografia é uma questão, em
parte, dos geógrafos e, em parte, dos historiadores. Mas o espaço dos desloca-
mentos não é apenas um espaço físico, ele é também um espaço qualificado em
muitos sentidos, socialmente, economicamente, politicamente, culturalmente
(sobretudo através das duas realizações culturais que são a língua e a religião)
etc. Cada uma dessas especificações e cada uma das variações dessas mesmas
especificações podem ser objeto de uma ciência particular.

1. Sobre as múltiplas determinações que pesam sobre a produção em ciências sociais relativamente à imi-
gração, ver nosso artigo "Tendances et courants dans les publications en sciences sociales sur I'immi-
gration en France depuis 1960", Currenl Sociology, ISA, vol. 32, n. 3, Sage Publications, inverno 1984,
t. 2, pp. 219-304.

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ABDELMALEK SAYAD

"Fato social total", é verdade; falar da imigração é falar da sociedade como


um todo, falar dela em sua dimensão diacr:Qnica, ou seja, numa perspectiva his-
tórica (história demográfica e história política da formação da população fran-
cesa), e também em sua extensão sincrônica, ou seja, do ponto de vista das es-
truturas presentes da sociedade e de seu funcionamento; mas com a condição de
não tomarmos deliberadamente o partido de mutilar esse objeto de uma de suas
partes integrantes, a parte relativa à emigração. De fato, o imigrante só existe na
sociedade que assim o denomina a partir do momento em que atravessa suas
fronteiras e pisa seu território; o imigrante "nasce" nesse dia para a sociedade
I que assim o designa. Dessa forma, ela se arvora o direito de desconhecer tudo o
que antecede esse momento e esse nascimento. Esta é outra versão do etnocen-
trismo: ó e conhece o que se tem interesse em conhecer, entende-se apenas o
que se precisa entender, a necessidade cria o conhecimento; só se tem interesse
intelectual por um objeto ocial com a condição de que esse interesse seja leva-
do por outros intere ses, com a condição de que encontre interesses de outra
espécie. Tudo acontece como se a divisão do trabalho intelectual nesse campo,
ao se conformar com a divisão do interesse que se tem por um ou outro aspecto
da realidade, reproduzisse a divisão que é feita do' ra ão e imi-
gração; à sociedade de imigração e à reflexão interna da sociedade de imigra-
ção cabe o trabalho sobre a imigração e o trabalho de constituição da ciência da
imigração; à sociedade de emigração e à reflexão interna à essa sociedade cabe
o cuidado de encarregar-se do trabalho intelectual sobre a emigração - sendo que
este consiste, grosso modo, na análise das causas "endógenas'' da emigração e
de seus efeitos conseqüentes, efeitos "exógenos" desta mesma emigração. Esta
divisão participa, ao que parece, da mesma relação de dominação, da mesma

\ dissimetria ou desigualdade nas relações de força que se encontram na origem


e são constitutivas do fenômeno migratório; e é, sem dúvida, nesse desequilíbrio
de aparência científica - desequilíbrio ao qual não se dedica toda a atenção ne-
cessária - que se mostra de forma mais clara a relação de forças que se encon-
tra na fonte do fenômeno da emigração e da imigração.
É nesse contexto de completa certeza quanto à natureza fundamentalmen-
te prática e profundamente interessada do conhecimento que se tem a constituir
sobre a imigração, e também quanto à legítima redução desse conhecimento ao
único aspecto que julgamos útil conhecer, a saber, o aspecto "imigração", que
tem suas raízes e se desenvolve o que se convencionou chamar de uma "proble-
:..---
mática impoili!"2. Quanto mais a sociedade de imigração inclina-se, coisa que

2. Cf. A. Sayad, "Le phénomêne migratoire, une relation de domination ou les conditions de possibilité

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INTRODUÇÃO

entendemo facilmente, a abordar o fato da imigração durante sua realização -


é para ela uma questão de ordem pública ou, em outros termos, uma necessida-
de da vida prática -, tanto mais ela é indiferente, de pleno direito segundo ela,
às condições e às circunstâncias que governam a emigração, considerando-se
totalmente estranha, de modo algum envolvida e ainda menos interessada por
e e tipo de preocupação. E quando, excepcionalmente, ela é levada a interro-
gar- e obre o "nascimento" para a imigração, ou seja, na verdade, sobre o nas-
imento da emigração, ela é levada, por uma espécie de etnocentrismo de ordem
totalmente prática, visão "endógena" de uma realidade que é exterior e que ul-
trapassa o campo de suas atribuições e de suas competências, a buscar as cau-
sas, a razão, o princípio explicativo, em suas próprias estruturas internas (suas
estruturas econômicas, o mercado de trabalho, suas estruturas demográficas, suas
estruturas sociais etc.). Assim, toda uma série de fatores de toda ordem são cons-
tituídos como outras tantas causas suscetíveis de dar conta do recurso que foi
feito aos trabalhadores estrangeiros, logo, à imigração; esses fatores não são
apenas explicativos, mas, como uma coisa vale a outra, têm igualmente uma fun-
ção de legitimação, ou seja, de argumentos que devem justificar uma presença
que, de outra forma, seria impensável, até mesmo escandalosa sob todos os pon-
tos de vista, intelectual, política, cultural, eticamente etc. Neste sentido, já fo-
ram evocados, um após o outro, o déficit demográfico, déficit estrutural devido
à fraqueza já antiga e constante da taxa de natalidade, e agravada conjuntural-
mente durante os períodos de guerra (necessidade de homens para a indústria de
guerra e para suprir as convocações militares) e os períodos imediatamente pos-
teriores à guerra (necessidade de homens para a economia de reconstrução e para
compensar as perdas bem como as incapacidades físicas devidas à guerra); a
forte expansão econômica de determinados períodos e a estrutura do mercado
de trabalho quando a oferta de emprego se torna, pelo menos em alguns setores
e para determinados níveis de qualificação (na verdade, seria mais correto falar
de subqualificação ou de ausência total de qualificação), superior à demanda
local - ainda é preciso repensar essa distorção -, a elevação global da qualida-
de de vida (qualidade econômica e qualidade cultural) traduzindo-se por um afas-
tamento cada vez maior e mais amplo da mão-de-obra nacional de determina-
dos setores de atividades, quando não de setores de emprego inteiros (tarefas
desagradáveis e socialmente desvalorizadas) e pela progressiva redução da jor-
nada de trabalho e da duração da vida ativa etc. Sem estar errado, esse modo de

d'une science de I'émigration", Maghrébins eti France, émigrés ou immigrés Z, Annuaire de l'Afrique
du Nord, Paris, CRESM-CNRS, 1983, pp. 365-406 e pp. 1091-1094.

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ABDELMALEK SAYAD

explicação ganharia contudo, para ser mais completo e mais convincente, se lem-
brasse que o imigrante, antes de "nascer" para a imigração, é primeiro um emi-
grante. Mostramos em outro texto a relação dialética que une as duas dimensões
do mesmo fenômeno, a emigração e a imigração; ou, em outros termos, como
um mesmo conjunto de condições sociais pode engendrar, grosso modo, num
dado momento da história do processo (ou da história de um grupo em particu-
lar), uma ma articular de emigração, ou seja, uma classe particular de emi-
grantes que mantém, para lembrar apenas esta única característica distintiva, um
modo particular de relação com seu país (tal coisa foi chamada de uma "idade
da emigração"), sendo que esses emigrantes resultavam num segundo momento
numa classe particular de imigrantey e, em seguida, numa forma particular de
imigração que se traduziu, entre outras características, por uma relação particu-
lar com a sociedade de imigração e com sua própria condição de imigrantes -
e, por um efeito bumerangue, a imigração, em cada uma de suas formas (ou em
cada uma de suas "idades"), repercute sobre as condições que estiveram na ori-
gem da emigração na fase anterior e, assim, contribui para suscitar uma nova ca-
tegoria de emigrantes e de imigrantes",
À medida que a imigração se distancia da definição ortodoxa e da represen-
tação "ideal" que dela se dá a ponto de desmentir ambas no que elas têm de mais
essencial, descobrem-se os paradoxos (no sentido original do termo: para-doxa,
ao lado da opinião) que as constituem e desvendam-se as ilusões que são a pró-
pria condição do advento e da perpetuação, aqui, da imigração, e lá, da emigra-
ção. Estas ~ só produzem o efeito que conhecemos porque são coletivamen-
te mantidas; elas são, por uma espécie de cumplicidade objetiva (i. e., a despeito
dos interessados e sem que haja para tanto um acordo prévio), compartilhada
pelos três parceiros que são a sociedade de emigração, a sociedade de imigração
....
e os próprios emigrantes/imigrantes, os primeiros a estarem concernidos. Se há
colusão de todos esses parceiros, é porque as ilusões que Ihes são comuns proce-
dem, grosso modo, das mesmas categorias de pensamento que também são cate-
gorias sociais, econômicas, culturais, políticas etc. e, por fim, do Estado (nacio-
> nais, quando não nacionalistas). Na medida em que a presença do imigrante é
uma presença estrangeira ou que é percebida como tal, as "ilusões" que a ela
estão associadas e que até mesmo a constituem podem ser enunciadas como se-
gue: são, para começar, a ilusão de uma resença necessanamente provisó!!:-a(e,
correlativamente, se nos colocamos do ponto de vista da emigração, ilusão de

3. Cf. A. Sayad, "Les trois âges de l'émigration algérienne en France", Acres de Ia recherche en sciences
sociales, n. 15, jun. 1977, pp. 59-80.

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INTRODUÇÃO

uma ausência igualmente provisória), mesmo quando essa presença (ou essa au-
sência), provisória de direito, verifica-se, nos fatos e sempre a posteriori - e ape-
nas a posteriori (não podemos deixar de insistir no caráter retrospectivo dessa
"descoberta" e na necessidade prática do retardamento dessa descoberta, ou seja,
da dissipação da ilusão) -, como uma presença durável, quando não definitiva
(fato que não se pode confessar nem mesmo confessar a si mesmo, pois na maior
parte dos casos tal coisa é impossível nacionalmente, quando não ontologicamen-
te falando); ilusão, sendo que esta é governada por aquela, de ue essa resen a
talment . ificáv ão ou pelo álibi que se encontra em seu princí-
pio e que o ual ela está . .estar, l.Qgicamente, totalm~e
subordinada; e, por fim, ilusão da neutralidade política, não só a neutralidade que
se exige do imigrante mas tal como ela se impõe ao próprio fenômeno da imigra-
ção (e da emigração), cuja natureza intrinsecamente política é mascarada, gualJ-
do não é negada, em proveito de sua única função econômica.
Como todas essas ilusões fundadoras são solidárias e estão estreitamente
imbricadas uma na outra a ponto de se tornarem uma única, basta desmascarar
uma delas para que todo o edifício que constituem, ou seja, em suma, a própria
figura do imigrante em sua ortodoxia, desmorone. Aliás, por durarem mais, não
é assim que terminam todas as imigrações? Não terá escapado desse inevitável
desenlace, dos determinismos que o governam, nem mesmo a imigração que, ao
longo de suajá longa história, tem oposto, em parte, a mais viva resistência a este
tipo de evolução e que foi igualmente, em parte, profundamente contrariada nes-
sa evolução. Está claro que se trata da imigração argelina na França, quando co-
nhecemos o caráter exemplar, em muitos aspectos, dessa imigração": exemplar
em razão de sua relativa precocidade - ela foi, ao que parece, a mais antiga de
todas as imigrações originárias dos países que hoje chamamos de países do Ter-
ceiro Mundo -; em razão das condições históricas e do contexto (o quadro colo-
nial) nos quais nasceu e se desenvolveu - é notadamente por causa deste contex-
to que a França e a Argélia, o país colonizador e sua colônia, "inventaram", a
primeira, o recurso em massa para as necessidades de sua indústria, a uma mão-
de-obra de colonizados e, a segunda, a disponibilização em prol de um país in-
dustrializado (no caso, a metrópole) de uma fração de seu "exército de reserva"
de trabalhadores que as novas condições começaram a constituir. Decorrente sem
dúvida de tudo o que antecede, a imigração argelina, mais do que qualquer ou-
r tra, é igualmente exemplar pelas f~ões que a sustentaram: nascida em primeiro

4. Cf. A. Sayad, "L'immigration algérienne, une immigration exernplaire", Les Algériens ell France, genêse
et devenir d'une migration, Paris, Ed. Publisud, 1985, pp. 19-49.

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ABDELMALEK SAYAD

lugar de uma ficção, a da necessidade de emigrar e imigrar unicamente sob o


império do trabalho e por motivo do trabalho exclusivamente; depois mantendo-
se e se perpetuando (e, ao mesmo tempo, mantida e perpetuada) por meio de uma
série de ficções dentre as quais, por exemplo, a ficção de viver quase toda a vida
como um "estrangeiro" numa sociedade e numa economia, numa cultura e numa
ordem política, trabalhando e, igualmente, reproduzindo- e inevitavelmente - não
existe imigração, mesmo autodenominada de trabalho e exclusivamente de tra-
balho (se é que tal coisa é possível), como a imigração argelina na França (gros-
so modo desde 1910 até depois de 1950), que não se transforme em imigração
familiar, ou seja, no fundo, em imigração de ~nto -; e, por fim, quando é
chegada a hora em que é preciso, quer se queira quer não, tomar uma decisão,
conforme manda a lógica da ordem nacional, ora pela volta definitiva, ora pela
fusão na naturalidade (outro modo de chamar a naturalização), ou seja, em am-
bos o ca os, por uma dupla ficção: a fic ão de uma volta que se sabe im ossível
e a fie ão de uma naturalização ambígua".
Assim, é quando a imigração se transforma, principalmente sob a influên-
cia do contato prolongado e cada vez mais intenso com a sociedade ambiente,
mas também, de forma secundária, sob a influência da evolução que se delineia
em escala internacional e de que um dos efeitos é precisamente a emigração a
partir de determinados países, quando não de continentes inteiros, em direção a
outros determinados países, os países desenvolvidos, que são todos países de imi-
gração ou países em via de se tornarem tais, que se revela para a ordem política
da nação - e das duas nações - a soma dos pressupostos sobre os quais repousa
( a imigração (ou a emigração). É igualmente no momento em que se produz essa
\ ruptura quase "herética" da ortodoxia social e política na qual é mantida a imi-
gração, no momento em que se confundem os limites entre os grupos, o grupo

I dos nacionais e o grupo dos não-nacionais,


tituição desses grupos, que os paradoxos colocados
pois se confunde o princípio
pela imigração
de cons-
(e pela emi-
gração), e que até então estavam latentes, mascarados como o quer a ortodoxia
~ nacional, explodem em pleno dia. E, sem dúvida, os discursos atuais sobre a
imigração, que são chamados de "apaixonados" (i. e., irracionais) e que tratam,
na verdade, não dos "outros", da alteridade (i. e., do que não sou eu), mas de
si, da identidade do eu - esta é uma das funções essenciais do discurso sobre a

5. Para uma análise mais detalhada das ambigüidades da naturalização quando esta não encontra as con-
dições sociais, políticas e culturais necessárias para que se realize de maneira completa, ver A. Sayad,
"Les immigré a1gériens et Ia nationalité française", Questions de nationalité: Histoire et enjeux d'un
code (organizado por Srnain Laacher), Paris, L'Harmattan, 1987, pp. 127-197.

20
INTRODUÇÃO

imigração: fala-se objetivamente de si quando se fala dos outros -, devem uma


parte importante da dramaticidade (desejada ou não) que os caracteriza ao sen-
t'mento de ue a.ímígração em sua ~atual constitui uma provação para a
ordem naciong], uma espécie de desafio para o conservadorismo social e políti-
co que os dominantes desejam manter e, mais amplamente, todos aqueles que
têm interesse (e com freqüência interesses simbólicos mais do que interesses
materiais) na manutenção do statu quo.
I Não se pode escrever inocentemente sobre a imigração e sobre os imigran-
tes; não se pode escrever sem e perguntar o que significa escrever sobre esse
objeto, ou, o que é o mesmo, sem interrogar-se acerca do estatuto social e cien-
I tífico desse mesmo objeto. Objeto esse social e politicamente (ou nacionalmen-
te) sobredeterminado, e duplamente sobredeterminado, na medida em que con-
cem e a uma população social e politicamente dominada - a ciência do "pobre",
do "pequeno" (socialmente) seria uma ciência "pobre", seria uma ciência "pe-
quena"? - e na medida em que o investimento científico que se dedica a ele en-
contra-se, além disso, freqüentemente mesclado a investimentos de outra natu-
reza, que são como partis pris, tomadas de posição ao mesmo tempo políticas e
étnicas, ou seja, tomadas de posição que, além do objeto do qual se trata e atra-
vés desse objeto, envolvem uma visão do mundo social e político (do mundo
\ nacional). Seria então preciso, no caso desse tipo de objetos sociais, prevalecer-
se das boas intenções proclamadas e fazê-Ias prevalecer sobre a análise socio-
lógica lúcida ou mesmo apesar dela e erigi-Ias como uma premissa ética, uma
espécie de manifesto da benevolência a ela endereçada, para poder se dar o di-
reito do realismo sociológico e o direito de descrever com toda a objetividade?
Além disso, a sociologia, quando se aplica ao campo da imigração e, de forma
mais geral, a todos os objetos sociais dominados (as classes populares, a condi-
ção das classes trabalhadoras, a habitação social, o território dos subúrbios etc.),
não se veria condenada a ajustar seu sistema de interrogações, seus conceitos,
seus instrumentos e seus preceitos aos limites (simbólicos) socialmente determi-
nados por seu objeto? É o que acontece, por exemplo, com o chamado mé odo
da "bio rafia re tituída", do qual temos aqui algumas aplicações: sejam quais
forem seus méritos, a despeito daqueles que gostariam de ver nessa ferramenta
o prelúdio para uma "nova sociologia", não seria ele apenas uma das técnicas
às quais recorremos por falta de outros recursos e para compensar a indigência
do objeto e, ao mesmo tempo, a indigência da ciência desse objeto (ausência de
uma tradição de estudos, ausência de arquivos e de documentos objetivos, de
dados sociais rigorosamente coletados e gravados, de séries estatísticas suficien-
temente longas e homogêneas etc.). Contra essa sociolo ia do " e ueno" (so-

21
ABDELMALEK SAYAD

cialmente) - sociologia do "pequeno", quer dizer, sociologia dos objetos situa-


dos relativamente na parte inferior da hierarquia social dos objetos de estudo, ou
"pequena" sociologia; sabemos que a dignidade dos objetos sociais está na me-
dida da dignidade social desses mesmos objetos que foram convertidos em ob-
1 jetos intelectuais -, um duplo processo de intenção pode ser fácil e rapidamente
instruído: a dupla crítica, seja de cair numa espécie de reducionismo sociológi-
co, crítica essa que, no caso, frisaria a acusação de racismo na espécie do racis-
mo científico, seja de pecar contra o universalismo da ciência. Como fazer uma
sociolo ia do " e ueno" sem que essa sociologia-~ seja "pequena"?
o..---
Entendem-se
assim certas estratégias científicas (ou dos cientistas) que acreditam dever eno-
brecer o objeto "indigno" sobre o qual estão trabalhando, correndo o risco de
desnaturá-lo ou de afogá-Io em outro objeto possuidor de uma dignidade (cien-
tífica) mais elevada, apenas com o fim de enobrecer da mesma forma o trabalho
científico efetuado sobre esse objeto.
Chegados a este ponto, teríamos gostado, retomando esses textos já anti-
gos para alguns, de submetê-los a uma análise crítica, reexaminando seu con-
teúdo à luz precisamente do que acaba de ser dito sobre as condições sociais de
produção dos trabalhos sobre a imigração e à luz, também, de tudo o que foi con-
seguido pelos trabalhos posteriores e, mais ainda, levando em conta as mudan-
ças que se produziram na realidade social, na estrutura do conjunto das popula-
ções de imigrantes, objeto cujos contornos são cada vez mais difíceis de discernir
e que, além disso, sofre constantes e rápidas transformações - transformações
tão velozes que se tem impressão de que a ciência está a reboque de seu objeto
e de que a observação se esgota em acompanhá-los, destinadas que são a esta-
rem sempre atrasadas com relação à realidade estudada e não apenas afastadas
dela, como convém à atitude científica. Teríamos gostado de cornpletã-los em
muitos pontos, como, por exemplo, nas relações diferenciais dos homens e das
mulheres com a condição de imigrante, a reestruturação das relações internas da
família num contexto de imigração (relação entre marido e mulher, relações entre
pais e filhos e, mais amplamente, entre os sexos e as faixas etárias) etc., pontos
todos que, na ausência de todo o corpo de argumentos que teria sido preciso
produzir e, por conseguinte, dos desenvolvimentos que teria sido útil acrescen-
tar, permanecem quase que no estado de simples intuições. E, para terminar, te-
ríamos gostado de ordenar e organizar os diferentes textos em um conjunto mais
coerente, resultado que nunca se pode ter certeza de atingir plenamente; certa-
mente, esse trabalho com vistas a uma sistematização mais aprofundada teria
podido, por exemplo, apagar ou ao menos reduzir o que poderia aparecer como
"repetições", mas teria sacrificado, assim, a vantagem eda ógica dessas re eti-

22
INTRODUÇÃO

~es que são, na verdade, retomadas, em cada um dos textos e em cada assunto
tratado, do mesmo esquema de pensamento que, a cada vez, encontra-se em ação
nas diferentes operaçõe de construção do objeto.

23
Copyright © 1991 by De Boeck-Wesmael s.a.

Título do original em francês:

L' immigration ou les paradoxes de I'altérité

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Sayad, Abdelmalek.
A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade I Abdelmalek Sayad;
prefácio Pierre Bourdieu; tradução Cristina Murachco. - São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1998.

Título original: L' imnúgration ou les paradoxes de J'altérité.


Bibliografia.
IS,BN 85-314-044I-X

I. Emigração e Imigração - Aspectos Sociais 2. França - Emigra-


ção e Imigração I. Bourdieu, Pierre, 1930 11.Título. Ill. Título: Os
Paradoxos da Alteridade.

98-1250 CDD-304.8

Índices para catálogo sistemático:

I. Imigração : Sociologia 304.8

Direitos em língua portuguesa reservados à

Edusp - Editora da Universidade de São Paulo


Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374
6° andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (O 11) 818-4151
Tel, (01 I) 818-4008 / 818-4150 - e-mail: edusp@edu.usp.br

Printed in Brazil 1998

Foi feito o depósito legal


2

ELGHORBA: O MECANISMO
DE REPRODUÇÃO DA EMIGRAÇÃO*

o texto abaixo é a tradução, que desejamos a mais literal possível, do dis-


curso de um emigrante da Cabília coletado na França, em dois momentos dife-
rentes, antes e depois de um feriado passado na Cabília.
Seguem-se comentários que parecem necessários para a compreensão da
informação oferecida e também, visto que uma é condição da outra, para a com-
preensão dos mecanismos que presidem à produção da informação. Dois discur-
sos que são um só: o discurso do informante que o sociólogo constrói pela in-
terrogação, o discurso do sociólogo que, para apropriar-se da teoria da emigração
que o informante produz com os meios que lhe são próprios e com.ela trazer uma
contribuição à ciência sociológica, deve fazer a ciência das leis de construção
do que fala o informante. Isto quer dizer que o discurso do sociólogo não existe
para atenuar, com observações lingüísticas ou etnográficas e com comentários
"esclarecedores", logo reconfortantes, a opacidade do discurso autêntico, que
mobiliza todos os recursos de uma cultura e de uma língua originais para expres-
sar experiências que essa língua e essa cultura desconhecem, ou recusam. Essa
opâcidade de uma linguagem que não se entrega à primeira vista é, sem dúvida,
a informação mais importante, a mais rara em todo caso num momento em que
tantos porta-vozes de boa vontade emprestam aos emigrantes sua própria língua.

• Acres de Ia recherche en sciences sociales, n. 2, mar. 1975, pp. 50-66.


...BélE SAYAD

Fiquei órfão muito cedo. a verdade, sou filho de um velho ... ou, como se diz, o "filho
de uma viúva'". Foi minha mãe que me criou, não tem por que se envergonhar disso. Meu pai
me "deixou" quando eu tinha oito anos ... Assim, sou o último da ninhada ... Já, antes da morte
de meu pai - ele era muito idoso -, era minha mãe que cuidava de tudo; ela já era o "homem da
casa"! Em todo caso, a mulher de um velho é sempre uma velha! A idade de minha mãe, não
sei, mas ela é muito mais jovem que meu pai, ela é até mesmo mais nova do que minhas irmãs
mais velhas [na verdade suas meio-irmãs]; meu pai casou, acho, três vezes; em todo caso, ele
tem filhos com duas mulheres diferentes.

"Sou O FILHO DE UMA VIÚVA"

Por mais longe que eu me lembre, sempre vi minha mãe trabalhando dentro e fora de
casa ... e até hoje é assim, ela não pára nunca. Meu pai, lembro-me dele apenas como um velho
que não passava da soleira.
Minha mãe é uma pessoa difícil; é o que dizem, é a reputação que ela tem, acho que ela
precisava criar essa reputação para se defender, para não ser "devorada" pelos outros. Uma
viúva que fica à mercê de seus cunhados, que precisa esperar que seu filho cresça para que
tenha um homem entrando e saindo de sua casa, certamente não é uma felicidade para ela! Se
ela não se protege, eles a devoram, a roubam. Ela, por sua vez, não os poupou. Posso dizê-Io,
agora; qual de todos os meus tios pelo menos não a insultou? Quantas vezes ela não apanhou?
E sempre dos mais próximos, e não dos estranhos. Se aquele que é mais teu parente não te
"engole", não é aquele que é mais distante que vai te "engolir". De onde virá esse que não está
próximo de você? Quanto ao estranho completo, é inútil falar dele, ele vai ter medo, porque ela
continua sendo a mulher dos A ... Por outro lado, um parente, o que ele tem a temer? Ele sempre
pode dizer: é nossa mulher; vira uma questão entre parentes, e quanto mais próximo, mais ele
acha que tem direito de avançar. Um cara como El... - ainda que hoje ele esteja muito mais
ajuizado -, o que poderia segurá-Io? Você pensa que "a vergonha vai roer o rosto dele", que ele
vai pensar: "Meu tio [ainda era na época em que o pai do imigrante era vivo] está velho, ele não
tem ninguém, ele não pode fazer nada, ele só tem a ela e felizmente para nós ela está aqui; ela
é quem garante 'o abastecimento da casa"'? De jeito nenhum ...
Quando eu comparo os primeiros anos de minha infância e alguns anos depois, posso até
dizer que talvez manifestassem mais respeito por minha mãe depois da morte do meu pai do
que quando ele estava vivo. É verdade, parece que os "corações" mudaram depois [...] É assim
a vida de um "filho de viúva"! Muito cedo eu tive a minha cota de sofrimento, preocupações e
aborrecimentos. Não é a idade que faz os homens, é o que acontece na cabeça deles; o homem
se faz por seus atos, e não porque recebeu um nome de seus antepassados ... Pode ser fulano ... e
contudo, se ele não tem nada d~ntro de si, "se seu mercado está vazio"?

I. A expressão "filho de uma viúva" é tradicionalmente usada como uma injúria: um homem criado pelas
mulheres e cujas masculinidade e honra são suspeitas. A inversão dos valores antigos faz dela, hoje em
dia, uma qualidade que pode ser reivindicada: é como ser o "filho de suas obras".

26
ELGHORBA

"VOCÊ QUE NÃO ACORDA CEDO, POR QUE VAI AO MERCADO?"

[...] Você acha que na época deles [alusão a fatos que remontam aos anos 1942-1944 e a
pessoas falecidas, uma em 1954 e a outra em 1958], meus tios M ... E. .. e N ... L. .., estes que
espoliaram meu pai do único pedaço de terra que ele possuía e que Ihes foi entregue em penho-
ra, durante os anos de "elboun" [alusão aos anos durante os quais foi instituído, durante a
Segunda Guerra Mundial, o sistema de bônus de racionamento], para que pudessem comprar
sorgo para sobreviver, segundo contam - eu ainda não tinha nascido -; você acha que eles
teriam feito o que hoje seus filhos fizeram? "Você quer construir uma casa? Toma, aqui você
tem a metade de uma parcela, nós te damos, vai construir os alicerces!" Com eles, uma coisa
assim era impossível! Será que foi o ódio que saiu dos corações ou será que é porque agora as
barrigas estão mais cheias? Primeiro, agora você não encontra ninguém com quem brigar, não
tem mais motivos para brigar. Os xingamentos, os gritos, o ódio, os tapas de outrora eram para
quê? Um tinha passado pelo campo do outro, derrubado a cerca do campo do vizinho ou desvia-
do a água da canalização de seu dia de irrigação ... Era tudo isso que levava às brigas, "uma
parte é verdade, outra é inventada". Tudo isso, todo aquele ódio, aqueles sentimentos m~us,
aquela raiva, aqueles furores, aquelas inimizades ancestrais, de pais e avós, como dizem, era
por causa da terra, já que não tem mais ninguém para cuidar dela, não tem mais pretextos para
essas brigas. Porque então ter ódio de uma mulher? Principalmente quando, depois, ia ser
preciso ir pedir para ela cuidar dessa terra que ninguém mais quer. São todos aqueles que,
antes, não podiam suportar ver minha mãe se aproximar de suas árvores, das cercas de seus
campos, que hoje suplicam que ela explore suas terras quando ela não possui nem uma galinha.
Assim, a paz voltou à terra; mesmo se entre os homens sempre existe um motivo para briga, as
mulheres são mantidas longe dela.
O "filho de uma viúva", só esquecem da mãe dele quando ele provou que é um homem;
sem isso ele ia sempre ser o filho da fulana ... Como você quer, nessas condições, não desejar ir
embora rápido? Mas isso é precipitado quando não se pode nada; não se sabe aonde ir; pode ser
a "luz" [o sucesso, a felicidade], como pode ser a "escuridão" [o fracasso, a infelicidade]. É
preciso coragem. Como acabar com essa situação, como sair dela?
Só me restava trabalhar. No início, trabalhei muito. Via minha mãe que não parava de
trabalhar, trabalhei assim que pude. Trabalhei em todo lugar, para todo mundo, para fazer de
tudo, por dinheiro, "pelo bem" [trabalho benevolente]: lavrei, colhi nas terras de todos os pa-
rentes, nem esperava que viessem me pedir, eu mesmo oferecia meus serviços. O que eu podia
perder? Eu era pago de uma forma ou de outra. É melhor fazer assim do que ficar sem fazer
nada. E, de fato, fui pago por meu esforço, fui pago em dinheiro, em troca de outros serviços,
em alimentos, principalmente grãos. Eu podia "entrar nas colheitas de todos os meus parentes",
eles não recusavam porque eu não fugia do trabalho. Recebi estímulos de toda parte. De todos
os lados, diziam: "M ... é trabalhador. .. Ele ainda dá importância à terra".
Arrendei terras, tive até uma parelha de bois, o que ninguém da família jamais tinha
visto; ninguém se lembra de ter visto um dia um boi passar a soleira da porta, e não estou
falando da soleira de hoje, falo da de nossos ancestrais ... Eu tinha me tomado, em poucos anos,
um verdadeiro "felá". Mas isso só durou algum tempo, até que eu acordasse e percebesse que
até a condição de "felá" C"thafalahth") só me tinha sido dada porque era desconsiderada por

27
ABDElMAlEK SAYAD

todos os outros. Como se diz: "Você, que não se levantou cedo, por que vai ao mercado?" Então
eu pensei: "Descansa!"

"Eu ME TORNEI UM 'FELA' DE SEGUNDA MÃo"

Fui tomado pelo cansaço. Para que me esforçar tanto? Sou como todo mundo. Por que eu
seria melhor do que todos esses caras que possuem terras, mas que olham para elas de longe em
longe e que as entregam a mim para que eu as trabalhe? Eles não têm braços paralisados! Certas
horas eu me pegava pensando: "Você é um completo imbecil; enquanto você se esgota, ele [o
proprietário do campo] "está folgado", bem à vontade, não está nem aí com nada ("cem entram
e cem saem"). E você, que benefício teve?"
Eu me surpreendi também me comportando como todo mundo. Tomei-me um "felá" de
segunda mão, como os da hora: "um 'felá' por falta de coisa melhor", por obrigação. "Um nada
após um nada" [progressivamente], achei-me, em pouco tempo, atrapalhado com todos os há-
bitos adotados, com as promessas feitas, com as terras aceitas. Por seu lado, minha mãe tam-
bém acompanhou: furiosa comigo, ela não parava de me fulminar, de dia e de noite, pelas
costas quando encontrava um ouvido complacente. Pensou estar me pressionando quando re-
nunciou a muitos dos trabalhos que fazia para fora: "Se você não quer fazer mais nada, eu
também estou cheia, não vale a pena que eu me esgote sozinha. Enquanto você era criança, eu
fiz uma casa para você, mas agora que você cresceu é um problema seu; problema seu se você
.quer 'encher sua casa ou esvaziá-Ia'. Não posso fazer mais nada agora". De fato, ela se livrou
das terras que tinha arrendado, só manteve a horta e uma pequena parcela próxima da casa.
Aquilo virou seu domínio e ela cuidava dele sozinha.
Nosso país é bom para quem só quer viver [se alimentar] e ainda viver "segundo o estado
do país": você trabalha todos os dias sem contar, todos os dias que Deus criou, você traz o que
precisa para viver e só vive com o que você traz. Todo o resto fica de fora. Se você se contenta
com isso, melhor; se não, você precisa começar a correr. Se fosse só a fome da barriga? É
verdade, ninguém mais passa fome agora; mas a fome não é só o que a gente precisa pôr na
barriga, é também a fome das costas [que é preciso vestir], dos pés [que é preciso calçar], da
dor de barriga [que é preciso curar], do teto [que é preciso cobrir], da cabeça [das crianças, que
é preciso escolarizar]. ão basta: se você não tem sal, come sem sal, ou se você não tem
petróleo, deita na escuridão! Assim, você não pode querer nada e principalmente precisar de
dinheiro. Ora, é de dinheiro que todo mundo precisa; mesmo na aldeia, tudo se compra como na
cidade. Tomou-se a aldeia, "clfilª-i".

A ÚNICA PORTA É A FRANÇA

ão é porque liquidei tudo na agricultura, porque vendi os bois, o burro, devolvi as terras
a seus donos, que acabou e que parei completamente de trabalhar. Não, continuei a trabalhar,
mas de outra forma ... em outra coisa, em tudo. Se precisava trabalhar nos campos de alguém,
ou é porque estava com vontade de ajudá-Io, eu ajudava-o um, dois, três dias; ou então, era
como assalariado por dia e então, à noite, ele precisava colocar na minha frente [o salário do]
meu dia. Isso é claro ... O trabalho da terra é um trabalho como outro qualquer a partir do

28
ELGHORBA

momento em que me dá dinheiro. Não é mais duro do que trabalhar com os pedreiros ou até
num caminhão, como eu já fiz [...] O que eu não fiz para ganhar dinheiro? Cheguei a aceitar
bofetadas/ porque me renderam II mil francos [continua-se a contar em francos antigos mes-
mo quando se trata de dinares]*.
Minha mãe também fez o mesmo; parecia que ela queria me acompanhar em todas as
minhas ações: ela voltou a usar sua máquina de costura, embora dissesse que estava enjoada;
retomou seu comércio rendoso junto às mulheres e começou a vender de tudo: ovos, tecidos
que seu irmão, "uma verdadeira serpente", ele também, trazia-lhe da França, jóias verdadeiras
ou falsas, o mais das vezes de "cobre e de mentíra'". Todos nós nos tornamos "colhedores de
moedas"; nosso único problema era como catá-Ias.
Apesar de nossa insistência, minha e de minha mãe, em correr atrás do dinheiro, ele
sempre nos faltava. Nunca deixei de trabalhar, calos formaram-se nas minhas costas, mas quan-
to ao dinheiro eu continuava sem tê-Io; não tinha nem com que comprar cigarros. Para que
trabalhar para semelhante resultado? Tive a cabeça cheia de preocupações, ela fervia. Eu fuma-
va cada vez mais, precisava cada vez mais de dinheiro e tinha cada vez menos. Em um nada de
tempo, sem saber como, encontrei-me com 450 mil de dívidas, 450 mil! Só 50 mil a mais, e era
meio milhão! É uma quantia elevada! Aí, eu tive medo, fiquei completamente desanimado! O
que fazer? Onde encontrar um refúgio para minha cabeça? De onde tirar esse dinheiro para
devolver? Era uma situação sem saída; mais nenhuma saída, a única "porta" que restava era a
França ... Só restava esta solução. Todos aqueles que têm dinheiro, todos aqueles que fizeram
alguma coisa, que compraram, ou construíram, foi porque tinham o dinheiro da França.

As PESSOAS SÓ TÊM A FRANÇA NA BOCA

É assim que a França penetra até os nossos ossos. Uma vez que você enfiou essa idéia na
cabeça, acabou, não sai mais da mente; para você acabaram os trabalhos, acabou a vontade de
fazer outra coisa; não se vê outra solução a não ser partir. A partir de então, a França instalou-se
em você, ela não o solta mais; você a tem sempre nos olhos. A gente fica então como possuído.
Se lhe dissessem: "Se tal 'cheik' lhe escrevesse, você partiria'", com certeza você iria vê-Io. É '\

2. Alusão à prática que consiste em vigiar a implantação de barreiras policiais nas estradas que ligam a
aldeia às cidades vizinhas e avisar os numerosos "transportadores clandestinos" de viajantes (carros e
caminhões) para que mandem seus "clientes" descerem antes de atingir as barreiras; se, em troca desse
favor, os vigilantes recebiam dos transportadores uma parte da soma que estes teriam pago como multa
se tivessem sido pegos em flagrante, em troca estavam expostos, por parte da polícia, que desconfiava
de sua ação, a sérias reprimendas e, às vezes, a sanções físicas.
* Um franco antigo valia I centésimo do franco novo. (N. do R.)
3. Os termos nahas (cobre) e sakka (aço), quando se trata de jóias, são sinônimos de "hipócrita", de "fal-
so", de "mentiroso" e de "egoísta", porque são estruturalmente equivalentes na lógica e no vocabulário
mítico-rituais. .
4. Trata-se de amuletos que ora os letrados (um taleb ou um cheik), ora os adivinhos e outros mágicos
escrevem ou fabricam; esses amuletos, aos quais são atribuídos toda espécie de poderes mágicos, são
carregados por causa de suas virtudes curativas (curam de certas doenças), profiláticas (protegem do
mau olhado) ou ainda propiciatórias, como deveria ser o caso aqui: trariam sorte e favoreceriam os
projetos mais difíceis.

29
uma loucura' É assim para todos os "13 de hoje" [os jovens] que querem partir. Assim que um
deles começa a "recusar" [a desobedecer], a criar caso: ele se recusa a trabalhar, ele sai em
grupo com os outros, ele está sempre nos lugares que "não estão cheios" [fora do aldeia]; você
pode ter certeza, é porque está planejando partir. Antes a gente fazia isso para poder casar
quando os pais eram um pouco negligentes. Hoje, se são casados e querem partir para a França,
chegam a expulsar a mulher. É uma loucura, não tem outra palavra; é como beber e jogar; é um
vermezinho que "escava galerias em nós como numa mina". Quando penso hoje em tudo o que
corri, em tudo o que ouvi, em todas as viagens que fiz, em todas as pessoas a quem supliquei, é
preciso realmente estar maluco para aceitar tudo isso, só para poder chegar à França.
Eu também, como todo mundo, tive as mesmas palavras sobre a França, e isso dias,
noites e anos inteiros: "Que Deus me faça sumir desta terra!" A terra da "estreiteza", a terra da
pobreza, a terra da miséria, a terra "torta", "invertida", a terra do "contrário", a terra do declí-
nio, a terra que suscita merecimento para os seus, a terra incapaz de segurar os seus, a terra
abandonada por Deus ... E a gente jura, e promete: "No dia em que eu sair daqui [da terra],
nunca mais direi teu nome; não olharei em tua direção; não voltarei para ti". Eu mesmo, quando
me lembro, quantas vezes entreguei-me, não à "facilidade" e a todos os bons augúrios que
desejamos àquele que deve seguir seu caminho, e sim à força dos demônios. "Que eu seja
levado, raptado daqui" era uma expressão mais comum para mim do que aquela pela qual
invocamos os bons presságios: "Que Deus abra ou 'facilite' teu caminho".
a verdade, isso não passa de mentira, como se diz, "uma mentira em cima da outra".
Como és amarga, Ó terra, quando pensamos em te deixar! E como és desejada, ó França, antes
que te conheçamos!. .. Tudo isso porque nossa aldeia só pensa na França. As pessoas só têm a
França na boca.
Em nossa aldeia, temos mais gente na França do que na aldeia. Por mais que eu conte,
"como encontrar o fim" [e verificar], sempre encontro mais homens na França do que em
minha aldeia. Quando eu estava lá na aldeia, havia momentos em que nós [os poucos homens
da aldeia] éramos tomados pela "solidão selvagem" [o terror]. Eu estava a ponto de partir, todo
mundo dizia: "Só você sobrou, e agora você vai encontrá-Ios ... Você vai deixar um 'vazio"'.
Não temos muita gente na terra; toda nossa gente está na França; nós estamos "enchendo" a
França e "esvaziando" nossa terra. E ainda, quem está na aldeia? Somente os "quebrados" e os
"tortos", os que não servem para nada.
Só tem na aldeia os antigos [que voltaram] da França. Eles voltaram da França porque
estavam cansados dela ou talvez porque ela tenha se cansado deles ... eles não a [a França]
tiraram do coração. Por um lado, tem esses; por outro, tem aqueles que estão se preparando
para partir, um dia ou outro. São poucos, há alguns que - são todos os jovens da minha idade -
ninguém aprovaria se começassem a "ter em mente" ir embora, eles também. Mesmo esses,
talvez no fundo de si mesmos gostariam de partir: são aqueles que têm um lugar, em qualquer
lugar na Argélia. Então tem todos esses, são nossos homens que ficam. Tem aqueles de quem se
fala, como se fala do guardião do lar, "cheik do kanoun", "seu nome está aqui, mas, ele mesmo,
nunca o vemos" [para dizer que é fantasmático]; eles são um exército completo, o exército
daqueles - dos quais faço parte - que não param de ir e vir entre a terra e a França; a ida-e-volta,
isso é tudo o que fazem. Estes são uma espécie à parte; alguns acabam, com a idade, desistindo
da França, mas aqueles que os substituem, aqui na França, são mais numerosos; tem mais gente
xque vem para a França do que gente que volta para a terra. Alguns vão acabar morrendo aqui na

30
ELGHORBA

França, não sei porque na aldeia eles são contados como homens da aldeia; conta-se com eles,
"contam-se suas cabeças" em cada oportunidade [são contados em toda contribuição ou em
toda divisão segundo o número de homens de uma família], não são esquecidos, enquanto eles
esqueceram sua aldeia, seus pais [...] Alguns estão aqui na França há pelo menos vinte anos.
S ... é um parente, ele não conheceu seu filho antes que tivesse se tornado homem; ele partiu
quando seu filho nasceu, sua mulher morreu, quando ele voltou encontrou seu filho casado,
"com a casa dele", encontrou uma nora ... Parece um conto.
Os homens que ficam definitivamente na aldeia, pode-se dizer de quase todos que já
trabalharam na França. Se formos contar na aldeia os homens que nunca foram para França na
vida, acho que não encontraríamos uma dúzia ... Não conto as turmas jovens de hoje, aqueles
que são da minha idade. Na nossa casa [o grupo dos parentes], quem não esteve na França? Um
só! Porque a "máquina [o trem] o deixou" [ele perdeu o transporte]. Todos os outros são aque-
les que a França estragou; voltaram "balançados", "moídos" [como as oliveiras]. De toda for-
ma, eles não podem mais trabalhar, eles não são mais "trabalhadores" nem do lar [ou seja, na
terra] nem de fora [ou seja, na França]; só servem para fícar sem fazer nada na aldeia. Você os
vê vagando, indo e vindo nas ruas da aldeia, são eles que "enchem" a aldeia. Você não pode
entender o que eles são, eles são tudo o que você quiser: se você quiser, eles são os sábios da
aldeia, embora ainda sejam jovens; são os "homens ociosos" da aldeia, vestido a "gandurá" e o
turbante [roupa dos homens que estão ociosos em geral], ficam na aldeia como se estivessem o
tempo todo de férias; na casa deles, em sua própria casa, gostam de ser (tratados) como convi-
dados permanentes. Mas, se você quiser, eles também são trabalhadores de força com os quais
a aldeia conta.
Felizmente hoje não é mai como ante : não e deve mai temer as grandes rixas do
passado. porque e fô emo ata ado não haveria mais um homem com quem contar. Eles não
ervern nem para o trabalho nem para o combate; e tão quebrados, só servem para dormir até a
"hora mais quente do meio-dia". Para estes a terra serve, agora que da França eles trouxeram
suas carcaças; foi só o que ela Ihes deixou: um monte de ossos que eles preservaram; só Ihes
resta isso, o essencial, o que é "vivo", eles deixaram na França. Aliás, todos voltaram [da
França] com alguma coisa: alguns, com uma aposentadoria; outros, uma pensão por invalidez.
Eles trouxeram consigo, "da França, sua parte". A França continua a "socorrê-los", e o que ela
Ihes dá Ihes basta. Pelo menos é algo que restou; é "como encontrar, na sopa de favas, um
pedaço de toucinho!" Destes, dizem que [seu problema] está resolvido; eles não têm mais
grandes preocupações.
O que falta agora para todos esses antigos da França é poder 'partir quando tiverem
vontade, se o caminho estivesse aberto, partir assim ... de vez em quando, como turistas, por um
mês, dois meses". Cada um tem um filho, um irmão, um genro ou até uma filha que gostariam
de ir ver, de passar algum tempo com ele, mudar de ares e voltar trazendo dinheiro, roupas,
presentes. É assim que o turista faz! É assim que são as férias. Se fosse assim, não acabaria
mais; seria uma feira, um perpétuo ir e vir: os da França iriam para lá, nas férias de verão; os de

5. A entrevista foi realizada em 1975, ou seja, menos de dois anos depois de a Argélia ter proibido qual-
quer nova emigração para a França e menos de um ano depois de a França haver suspenso, por motivos
e~onômicos, qualquer nova imigração de trabalhadores; nisto, as palavras de Mohand A ... têm, retros-
pectivamente, algo de previsão. (Nota do Autor em 1989.)

31
ABDELMALEK SAYAD

lá viriam para a França, eles também de férias, no inverno. Mesmo nas conversas, do que falam
todos os homens do aldeia? Da França! Os antigos da França repetem suas lembranças ... Os
que estão "de folga" falam da França, no meio de sua aldeia eles acham que ainda estão na
França; os jovens que estão à espera de partir sonham com a França. Só se ouve falar da França:
a França é assim, a França é assado; parece que na França é assim; ou que fulano na França
disse isso ou aquilo; faz isso ou aquilo; comprou um táxi [ou seja, um carro; neste sentido, o
termo francês taxi se opõe a caminhão], uma moto e assim por diante... ossa aldeia é uma
aldeia "comida" pela França; ninguém escápa.
Na verdade, ninguém sabe nada [da França). As pessoas falam dela à vontade e a França
para todos parece iluminada [...] É assim. A França agrada a todos, ela é bela aos olhos de todos
[...] Mas, de verdade, da França, o que você quer que se diga? inguém a conhece. Dizem ...
dizem que é o "país da felicidade", e só!

A FRANÇA É AO MESMO TEMPO A ALDEIA

DOS PARENTES PATERNOS E DOS PARENTES MATERNOS

Antes de conhecê-Ia, eu não acreditava que a França era [uma terra] estrangeira. Eu
pensava que era como se a gente fosse para uma das aldeias nos arredores, só que era mais
longe ... como se a gente fosse para uma terra que a gente conhecesse [...] ão fui eu quem
inventou a França, quantos me precederam, e desde tempos imemoriais, não sou o primeiro
nem o último. A começar por meu irmão, já faz mais de quarenta anos que ele está na França.
Meu próprio pai, na época dele, já tinha vindo para a França; ele trabalhou nas minas de carvão
do Norte e até mesmo na Bélgica, ele conheceu a época em que havia cavalos no fundo das
minas, ele sempre contava [...] Quanto a mim, ouvi falar da França desde que nasci e todos os
dias, dez vezes por dia. É por isso que eu a imaginava completamente diferente; eu nem pensa-
va que ela podia ser como Argel. Em Argel, onde, contudo, não há muitos [homens] da aldeia,
não acho que me deixariam [entregue a mim mesmo]. Eu pensava isso menos ainda da França,
onde se encontra toda a aldeia, onde estão reunidos todos os parentes, tios paternos e tios
maternos. Então bastava, parecia-me, que eu saísse de Argel... Quanto ao resto, era como se a
gente fosse para a casa ... Ter tantos homens na França e ter medo [a ponto de dar] um passo
para a frente, um passo para trás, não vale a pena!
Eu pensava que, sem que fosse exatamente como na aldeia, eu ia encontrar-me um pou-
quinho como se estivesse num bairro de Argel, mas num bairro onde encontraria todos os meus
parentes. Não seria nada diferente de ir a uma aldeia vizinha; aquele que chega sabe aonde ir,
sabe o que o leva lá; vendo-o, todos sabem na casa de quem ele vai; espera-se que ele tenha
chegado e todos podem convidá-lo. Ele não é daqueles que esperam que alguém Ihes traga do
que comer ou que alguém os dirija para a mesquita porque não conhecem ninguém ali. Eu
esperava que fosse a mesma coisa para mim na França. É claro, eu chegaria primeiro ao meu
destino, à casa do parente mais próximo, ou seja, de meu irmão, e depois todos os parentes
estariam à minha disposição. Na verdade, não foi isso que aconteceu.

32
ELGHORBA

PODER PARTIR, SEM NADA TER DE PEDIR!

[...] Tive muitas dificuldades para poder chegar à França; é impressionante, as formali-
dades que a gente tem que cumprir", o tempo que precisa esperar; o mais difícil é ter de ouvir
tudo o que dizem de todos os lados toda vez que vêem a gente fazendo alguma coisa: "Quem
ele pensa que é? Espero que não consiga. É melhor que ele fique aqui, precisamos dele. Não lhe
falta pão, que mais ele quer? De toda forma, ele não tem nenhuma chance; quantos antes dele
pediram para partir-e ainda esperam há anos. Ele não vai sair voando sozinho; que fique onde
está!" Tudo isso eu sabia e pensava: "Se você quer partir, você não pode passar pela 'gente
daqui' [a autoridade local]". Já fizeram isso comigo com relação a outra coisa [...] Durante todo
o tempo das formalidades para partir, o que eu não tive de ouvir? Na aldeia, cada um dava sua
opinião de alguma forma; juravam que eu estava correndo por nada, que eu estava gastando
meu dinheiro à toa. "Fique quieto!", me aconselhavam. Eu deixava que falassem. Até meu tio,
aquele com o qual eu podia contar um pouco, não parava de dizer: "Ele vai quebrar a cara sem
nenhum resultado; ele está só correndo. Eu Ihes digo, definitivamente, ele vai se cansar lavran-
do L .. .',7. Quantas vezes chorei... Doía-me ouvir as chacotas: as pessoas têm todo o tempo de
sobra para cuidar da vida dos outros. Eu teria pagado caro para provar-Ihes o contrário. Eu
rezava para que não fosse desonrado. Graças a Deus, fui preservado dessa vergonha. Esperei
um ano para conseguir todas as autorizações necessárias e foi preciso que eu tivesse muito
apoio. Minha grande alegria, minha revanche, foi poder partir sem ter de pedir nada às pessoas
da aldeia. Cada "documento" que eu conseguia era, por si só, uma longa história.
O passaporte, quando o consegui, foi minha primeira vitória! Quando o tive nas mãos,
que fazer: exibi-Io ou escondê-Io esperando o resto? Nunca se sabe o que virá depois; paciên-
cia! ... Mas, apesar disso, a notícia vazou ...
Eu não podia ficar assim, no meio do caminho [...] A segunda vitória foi quando retirei
minha autorização de saída. Naquele momento, eu ergui a cabeça! Dizia para mim mesmo:
"Agora eu posso partir". Mas no fundo de mim eu não estava tranqüilo, estava mais preocupado
do que nunca: não basta poder deixar Argel, ainda é preciso passar lá, não ser recusado! É uma
aposta necessária; eu joguei. Dentro de mim, as coisas estavam certas: ou atravesso o mar, nem
que seja por alguns dias, então eu terei visto meu irmão, meus sobrinhos, vou me sentir satisfei-
to como se eu só tivesse ido para isso; ou então sou mandado embora de Argel ou da França e
daí nunca mais porei de novo os pés na aldeia, aconteça o que tiver de acontecer! De onde me
virá a cara com a qual ousarei enfrentar as pessoas quando, mal tendo partido, terei de estar de
volta? Dirão: "Ele trouxe consigo a comida que levou para a estrada"; e eu ouvirei apenas esse
rumor: "parece que ... parece ...". O pior dos exílios é melhor do que esse espetáculo vergonho-
so. Deus me protegeu de tal escândalo.
Minha mãe já tinha espalhado a notícia de que eu estava partindo, por todos os lugares
por onde passava. Não sei se era de alegria ou de tristeza que ela anunciava isso para todo

6. Para poder partir, Mohand A ... precisava tirar um passaporte e obter uma autorização de saída.
7. L ... é uma parcela pertencente a esse tio de quem o jovem emigrante esperava muito; distante da aldeia,
abandonada havia muitos anos, não era mais nada além de um pasto à disposição de todos os rebanhos
do aldeia. Para chegar a lavrar um campo como esse, é preciso realmente ter chegado ao nível mais ex-
tremo da indigência.

33
ABDELMALEK SAYAD

mundo, ou se era por desafio [...] Enquanto isso, as dívidas continuavam a se amontoar nas
minhas costas, todos os gastos feitos para conseguir os documentos, o preço da viagem de ida
e volta. Em minha pressa, paguei no mesmo dia em que consegui a autorização (de partida) ...
Uma semana depois, eu estava na França.

NA NOSSA FRANÇA, SÓ EXISTEM TREVAS

Que França eu descobri! Não era nada do qu'e eu esperava encontrar [...] Eu que pensava
que a França não era o exílio ["elghorba"]. É realmente preciso chegar aqui na França para
conhecer a verdade. Aqui, a gente ouve dizer as coisas que ninguém conta lá; a gente ouve dizer
tudo: "Não é uma vida de seres humanos; é uma vida que não se pode amar; a vida dos cães na
nossa terra é melhor do que isso ...". Guardarei sempre na memória a imagem de minha chegada
à França, foi a primeira coisa que vi, a primeira coisa que ouvi: alguém batendo à porta, ela
abre para um quartinho que recende uma mescla de cheiros, a umidade, a atmosfera fechada, o
suor dos homens adormecidos'', Que tristeza! Quanta infelicidade em seu olhar, em sua voz -
eles falavam em voz baixa -, em suas palavras. Eu percebi a partir disso o que é a solidão, o que
é a tristeza: a escuridão do quarto, a escuridão no quarto [...], a escuridão da rua ... , a escuridão
de toda a França, porque na nossa França só existem trevas.
[...] Eles falavam de mim para o meu tio que me trouxera com ele: "Por que tê-lo atraído
para esta armadilha, por que tê-lo enganado assim, por que ter-lhe dado esse golpe?" O que eu
estava ouvindo? Eu não entendia nada. Então onde estou? Estou na França ou será apenas uma
etapa intermediária, uma provação a mais antes de chegar à França? Contudo parece-me que o
aeroplano [o avião] realmente me deixou na França. E depois esses homens, eu os conheço
todos; eu sei que estão na França, me lembro bem deles; eu os vi na aldeia, não faz muito
tempo; eles estavam voltando da França, estavam contentes. Serão os mesmos? Na época me
pareciam altos, muito altos, e agora estão pequenos, bem pequenos, escondidos em suas ca-
mas! Que significa isso? A gente pode se enganar tanto assim? No fundo de mim mesmo, eu me
agarrava a outra coisa, preferia acusar a inveja, o egoísmo dos homens. Eu pensava: "É sempre
a mesma história, é como lá na terra; basta alguém conseguir se dar bem, ele quer ser o único a
'ganhar'. Eu ainda nem cheguei à França e estão fazendo tudo para que a deteste, me contam as
piores coisas ... Por que você veio?" Não sei o que me impediu de responder: "E vocês, o que
vocês vieram fazer aqui? Será que esqueceram? Vocês pensam que vão ser os únicos a 'ga-
nhar'?" Se eu não disse nada, foi porque minha cabeça estava toda "embaralhada", eu ainda não
sabia onde estava, eu ainda não estava "estabilizado", instalado.
Depois, tudo aconteceu muito rápido. Quando, depois de ter encontrado uns e outros,
depois de ter ido à casa de uns e outros, você percebe que todas as vezes é a mesma coisa: o que
um lhe disse, o outro repete; o que você viu na casa de um, você encontra na casa do outro, você
acaba se rendendo frente à evidência. Isso é a verdade. Se eu tivesse querido entender, logo na
primeira noite da minha chegada já tinham me explicado o que é a solidão, o que é a tristeza, a
escuridão do quarto apesar da luz elétrica acesa, a escuridão da rua na qual estávamos, a escu-

8. É um quarto totalmente semelhante a esse que Mohand A... divide atualmente, ele também, com outros
três companheiros, num hotel mantido por compatriotas perto de uma das portas do Norte de Paris.

34
Foto: Amar Oumalou

"Batemos em uma porta, ela se abre para um quartinho que cheira uma mistura de odores,
a umidade, a atmosfera fechada, o suor dos homens adormecidos [...]. Três homens estavam
deitados em suas camas, nós os acordamos. Receberam-nos, não sei como: não estavam
zangados, mas não podemos dizer que estavam entusiasmados. Bateram à sua porta, eles
abriram, pronto! Deitados, eu os via pequenos; eles são pequenininhos, escondidos em suas
camas!"
ABDELMALEK SAYAD

ridão de toda a França, porque na nossa França, só tem escuridão. Descobri o que é o exílio
["elghorba"]. Por mais que eles riam, quando voltam para o país, para a "terra natal que se
tornou para eles terra estrangeira ["elghorba"r, o exílio é sempre o exílio. Eles dizem: "Minha
terra para mim se tornou o exílio ["elghorba"r, quando eles são "presos na escuridão", mas, no
fundo, a gente não acredita neles.

TUDO O QUE DIZEMOS SÃO MENTIRAS

ão, nunca nos explicam a França como ela é antes que a conheçamos. A gente os vê
voltar, estão bem vestidos, trazem malas cheias, dinheiro nos bolsos, a gente os vê gastar esse
dinheiro sem cuidar; eles estão bonitos, estão gordos. E, quando falam, o que dizem? Eles
falam de seu trabalho. Quando dizem: "Faço um trabalho difícil", a gente os admira ... Se
suspeitamos que estão mentindo, é quando se vangloriam de fazer um trabalho difícil, um
trabalho duro; o trabalho é sempre duro, é preciso ser forte para fazê-Io, isso quer dizer que eles
ganham muito dinheiro. É isso que a gente entende quando não vimos com nossos próprios
olhos ... De todo o resto, ninguém fala.
Quando voltam de férias, é verão, tem muita gente na aldeia, é alegria por todo lado, são
os casamentos. Antes de saber, eu pensava que na França também era sempre assim, que eram
eles que traziam consigo toda aquela alegria... ão, o que esperar dos rostos da desolação? Eu
percebi que aquela alegria não era a deles, e que era até o contrário, eles vêm buscá-Ia na terra,
seja o que for que digam [...] Eu também, como eles, quando volto para a aldeia, o que você
quer que eu diga? Mesmo se eu falasse do meu trabalho e que dissesse a verdade, eu diria por
exemplo: "Meu trabalho é sujo, veneno que entra na minha barriga; eu me mato de trabalhar; os
franceses com quem trabalhamos e nós, é como cães e gatos ••...9 Tudo isso, é como se eu não
estivesse dizendo nada. O que conta para eles é que eu Ihes diga que eu estou trabalhando, é
tudo o que vão ouvir. Então por que fazer cair sobre eles a "escuridão"? De toda forma, nada vai
abalar sua fé. Para entender algo da França, é preciso ter passado antes por ela [...] Aquele que
não viu nada [da França], este escuta e se convence de que a felicidade é "futura", que o espera
lá e que lhe basta ir em frente ... Se é preciso chegar até aqui na França para conhecer a verdade,
é um pouco tarde ... tarde demais.
[...] Eu também vou responder às perguntas que me fizerem. O que mais posso fazer?
Isso não é mentir. .. Mas o que não se deve fazer é aumentar por orgulho ou por fanfarronice.
E daí, eu prefiro me calar em vez de falar a torto e a direito ... Isso é que é mentira!. .. É culpa
nossa, dos emigrantes, como somos chamados: quando voltamos da França, tudo o que faze-
mos, tudo o que dizemos é mentira; é engano nosso. Se déssemos algum valor ao nosso di-
nheiro, isso não aconteceria. ÓS gastamos nosso dinheiro muito fácil, parece que ele pula

9. Mohand A ... teve apenas um emprego desde que está na França: foi contratado numa pequena empresa
de polimento e de decoração em metais, por intermédio de um parente que é chefe de equipe; traba-
lhando na mó, ele se queixa de que respira todos os pós que são liberados pela fricção e que "entram",
como ele diz, "em sua barriga". Além disso, ao ficar ao lado dos trabalhadores estrangeiros, que, na.
empresa, são muito poucos (dois portugueses, um mali, um marroquino, cinco argelinos ao todo, ou
seja, um total de nove trabalhadores estrangeiros em cinqüenta), ele tem a tendência de se fechar sobre
si mesmo e de aumentar intencionalmente seu isolamento.

36
ELGHORBA

sozinho para fora de nossos bolsos: nós o jogamos como ele vem, pelas portas e pelas jane-
las. Todo mundo pode imaginar que o ganhamos sem dificuldade. É agora que a história que
a gente contava antes se realiza: parece que, lá, basta a gente se abaixar para catar as "folhas"
de dez mil. Na verdade, se eles vissem como tiramos esse dinheiro, em que miséria vivemos
para poder economizá-Io, a gente tem motivo para odiar esse dinheiro, ele é muito amargo, é
um verdadeiro "loureiro rosa"!", Estamos aqui, não lembramos de nada ... Quando a gente
comeu, a gente esquece que teve fome, a gente começa a gastar, assim como já se diz, "como
aqueles que voltaram da França". Quando a gente precisa, é como se a necessidade fizesse
esquecer tudo por que passamos. Se não fosse isso, por que voltar para a França quando a
gente já viu o que é a França? É realmente preciso que a necessidade nos obrigue. Todos nós
somos assim: parece que foi Deus quem nos "tocou", basta que a gente esteja num lugar para
que imediatamente Deus torne o outro lugar melhor. Mal "descemos" [desembarcar, para
dizer "chegar à terra"), já é o esquecimento. A gente recomeça tudo e volta para a França,
como se nada tivesse acontecido.
Agora que eu vi, juro que não enganarei mais ninguém! Este verão, pela primeira vez
em que voltei para a aldeia - ainda não fazia um ano -, eu os vi chegando, todos, eu estava lá
bem antes deles, eu estava lá no mês de agosto. Eles me encontraram na aldeia como nos
anos anteriores, eu estava com a roupa de trabalho, eu tinha feito a colheita como no passado.
Nada mudou; é o mesmo Mohand de sempre da aldeia, é tudo! Quando acontece que nos
encontremos assim em grupo, aqueles que voltam e aqueles que ainda não partiram: aí come-
ça! Fanfarronices, mentiras: "Eu fiz assim, eu fiz assado; eu tenho isso, eu tenho aquilo"; e
assim por diante! Eu deixo falar, e quando o outro não tem mais o que dizer eu o assusto: "Eu
também estou voltando de lá..." Muitos ainda não sabem que estou na França; aqui em Paris,
eles [os emigrantes de sua aldeia) não são muitos e em Lyon [onde se concentrou a emigra-
ção comum da aldeia) só os mais próximos sabem. A todos os outros, no fundo de mim mes-
mo, eu digo: "Podem ir, eu vou 'pôr para fora' todas as suas mentiras, vocês podem enfeitar
as coisas, e adornar suas palavras!" E, quanto mais miseráveis, mais exageram. "- Olha,
você, eu estou por dentro, eu sei tudo o que você faz, como você vive ... Eu o vi lá. - Você está
brincando, como você fez para me ver, você tem um binóculo que enxerga daqui até lá? -
Porque eu também, se você não sabe, eu estava lá; estou voltando de lá, estou aqui só faz
alguns dias, é só ... Então, não minta, minta para os outros, mas não para mim que vi. Ou
então você está achando que eu vou lhe cobrir e ficar do seu lado? Agora, já que você quer,
vamos contar a verdade para aqueles que nos ouvem, aqueles que não viram nada. Você conta
que está ganhando tanto ... a verdade é que você não ganha nem a metade ... Você não conse-
gue juntar as 'duas partes' do que eu ganho. Seu quarto que não é seu, é de B... , não foi ele
quem 'pegou você com ele'? Você nega? Quantas vezes você não tinha como pagá-Io? Foi
preciso que ele ou D ... pagassem em seu lugar, sem isso você teria catado sua mala na rua;
você come fiado no café, estou certo que isso fez ainda hoje, contudo você está aqui entre
nós, você ainda tem dívidas: você não pagou o que comeu no mês passado. Vocês todos são
testemunhas, vão perguntar a Ch ... , a Y..., se esta viagem que o trouxe aqui, ele a pagou com
seu dinheiro. Se alguém pagou, mentiroso, fui eu, e não ele!. .. Porque lá também, como aqui,

10. O loureiro rosa é o símbolo do amargor enganoso, do amargor que se esconde sob uma aparência
agradável. .

37
ABDELMALEK SAYAD

você tem tua 'cabeleira' sempre ao vento. Ele deixa seus cabelos compridos, ele foi ao bar-
beiro quando chegou a Argel. Ele tem algum dinheiro em seu 'bolsinho' dois dias depois de
receber o pagamento, é só; dois dias, não se pode pedir mais dele. Além disso, para tudo, até
mesmo um cigarro, se não mendigar para alguém ele não fuma. É esse o 'homenzinho' que
temos na França, este que enche o mundo aqui com todo seu barulho ... Lá, quando este se-
nhor tem dinheiro, você o vê sair, porque eu o vi saindo assim e me contaram suas proezas,
arrumado no seu 'terninho'; ele fica aqui, ali, de um café para o outro, o primeiro que ele
encontra pode levá-Io para onde quiser ... E assim por diante, até que seus bolsos estejam
vazios. Sacode os bolsos, esvazia, não cai nenhum centavo. Então você vê nosso homem
voltar para o bairro onde está todo mundo, então ele está de cabeça baixa, nenhuma palavra,
ele vai encostado nos muros; quando voltou para eu quarto, não sai mais ... porque ele não
tem mais nenhum 'grão' no bolso. E então ele parece um 'asceta' ... E agora ele fica à vonta-
de, quando a 'situação está boa para ele', ele começa a divagar à vontade ..."

Mohand A ... é um jovem imigrante de 21 anos que chegou à França há


pouco mais de um ano apenas. Oriundo de uma aldeia que, como ele mesmo diz,
conta "mais gente na França do que lá", pertence à geração de jovens campone-
ses que, numa região de tradição de emigração muito forte e muito antiga (as
montanhas da Cabília), não possuem outra perspectiva de futuro e, inicialmente,
outra ambição além de partir. Com efeito, por um lado porque ele não pode be-
neficiar-se a tempo do esforço de escolarização recentemente empreendido em
meio rural (segundo seus próprios termos, ele mal "passou furtivamente" pela
"escola de circunstância" aberta no lugar em que se reunia a "djemaâ" da aldeia),
ele não podia, ao contrário de todos os jovens providos de um mínimo de instru-
ção e às vezes de títulos requeridos (certificado de estudos primários, CAP), es-
perar encontrar nem na cidade, nem nas aldeias vizinhas, nem mesmo em sua
própria aldeia um emprego estável que o dispensasse de emigrar; por outro lado,
porque não pertencia a nenhuma das grandes famílias camponesas de tradição,
proprietárias de campos, de árvores e de gado, não podia, independentemente do
abandono generalizado que vem atingindo a agricultura tradicional e ao qual não
escapam nem mesmo as famílias donas das terras, resignar-se a sua condição de
meeiro, ou seja, de felá na terra de outro e por conta desse outro.
Tendo assim uma consciência muito apurada da posição singular que ocu-
pa no conjunto dos homens da aldeia, armado para não empreender nada que não
seja no tom do desafio ou da resposta àquilo que percebe como um desafio,
Mohand A ... vai viver, em poucos anos, num atalho impressionante e no m~do
da experiência direta, toda a mudança que se apossou da antiga ordem social
camponesa. Numa comunidade rural em plena desagregação e na qual, sob in-
fluência de diversos fatores (e principalmente a emigração com todas as suas
conseqüências, que não são apenas econômicas), não são somente as tarefas agrí-

38
ELGHORBA

colas tradicionais, cuja obsolescência e inanidade são descobertas, que vão sen-
do cada vez mais abandonadas: é toda a mentalidade camponesa que vai sendo
seriamente modificada e todos os antigos valores que vão sendo vencidos; acre-
ditar ainda (ou fazer de conta que se acredita), nem que seja apenas por algum
tempo, na condição camponesa, aderir (ou fazer de conta que se está aderindo) à
terra com todo o vigor do neófito só pode ser, neste caso, uma atitude de desafio.
Para este "filho de viúva", como ele gosta de se autodenominar; que veio de
uma "família que nunca possuiu um campo ou um boi", que se vangloria por ter-
se "tornado um homem sozinho, pelos seus atos e não pelo seu nome" (transmi-
tido como o resto do patrimônio), por ter feito sua entrada na vida adulta e ter-se
imposto conformando-se primeiro às normas tradicionais que definem a excelên-
cia camponesa (thafallahth), é de certa forma uma revanche contra a antiga "aris-
tocracia fundiária", a mesma cujos filhos, eles também se desviando do trabalho
da terra, estão atualmente no mesmo patamar de todos os outros homens da al-
deia, ora assalariados locais ou emigrantes, ora simplesmente "ociosos", marthah
de um novo tipo. Com efeito, ao contrário dos homens (o mais das vezes chefes
de família) cuja posição social designaria outrora como tendo o estatuto de "ho-
mens que podem ficar descansando" e que eram dispensados do trabalho da terra
(pelo menos das tarefas mais penosas) para poderem se dedicar a funções de
prestígio que poderíamos chamar de funções de "representação", os "ociosos" de
hoje estariam inclinados a se considerarem como "desempregados" se, para não
se confessar como tais, eles não se esforçassem por encontrar toda espécie de
álibis: doença, estatuto ambíguo de antigo e de futuro emigrante.
Antes de cair demasiado rápido e demasiado facilmente nesse abandono
comumente partilhado das atividades tradicionais, não era preciso que ele se
convencesse a si mesmo, primeiro, e que convencesse os outros depois, de que
çonhecia e podia conformar-se ao antigo ideal do homem honrado e do campo-
nês completo? Provar a si mesmo e provar que era capaz, embora saindo do nada,
de "ter sua casa", até mesmo de fazer dela uma "casa cheia" no sentido antigo
do termo, ou seja, de ter sua terra, seu gado, suas produções, continua sendo
evidentemente uma realização eminentemente meritória que só pode impor a ad-
miração; mas o fato de ter sido obrigado a operar a contrapelo só podia resultar
em desilusões, notadamente a desilusão de ter investido tarde num mercado que
perdeu seu valor. Com efeito, pelo valor demonstrativo que lhe foi atribuído, está
na própria natureza da iniciativa assim efetuada que, logo que tenha obtido su-
cesso, e precisamente porque o obteve, lia função desapareça. Segue-se então
todo um processo que, de abandono em abandono, faz tomar consciência da inu-
tilidade de querer perpetuar a agricultura em sua forma antiga; leva a acumular

39
ABDELMALEK SAYAD

dívidas; e, de desafio em desafio, conduz a pensar na emigração como o único


recurso, a solução definitiva que permite romper o círculo infernal da proletari-
zação dos trabalhadores rurais, e também como o ato de "emancipação" por
excelência: "que aquele que quer ser homem vá para a França!" ão adianta
nada, hoje, demonstrar que se pode trabalhar a terra dos "proprietário melhor
do que eles ofariam", que se pode "viver tão bem quanto eles viviam outrora",
que se pode possuir como eles um rebanho, quando o que importa para ser re-
conhecido é "provar o que se é" em outro campo, fora da aldeia e, segundo ou-
tra lógica, não trabalhando a terra.
A aldeia de onde vem Mohand A ..., bem corno todo o grupo de seus pa-
rentes patrilineares, é fortemente marcada pela emigração. Segundo o próprio
A ..., que com alguns outros emigrantes gosta de proceder ao censo dos homens
da aldeia que se encontram na França ou que ficaram ou voltaram para a terra,
essa aldeia viu partir para a França 92 famílias e 197 homens. Por causa dessa
emigração, restam apenas 146 homens no lugar, dentre os quais 105 são antigos
emigrantes. Sozinho e com a condição de excluir os homens que, na Argélia,
emigraram com sua família para as cidades (quer tenham emigrado para a Fran-
ça, quer não), o grupo agnático ao qual pertence A. .. possui 33 homens na Fran-
ça (dos quais 13 emigraram com sua família) contra apenas 18 na aldeia. No seio
dessa minoria que garante a presença de seu grupo na aldeia, apenas dez homens ,
jamais viveram na França e, se não contarmos os mais jovens, apenas um tem
uns cinqüenta anos e, por motivos de saúde, jamai emigrou. Dentre todos os ou-
tros, todos com menos de trinta anos, apenas dois poderiam ser eventuais can-
didatos à emigração porque, ao contrário dos outros, não conseguiram encontrar
lá mesmo um emprego assalariado relativamente estável.
A emigração repousa em uma longa tradição. No conjunto dos 51 homens
que constituem atualmente o mesmo grupo de parentesco (adhrum), 38 têm um
pai que emigrou para a França (quando ainda está em condição de trabalhar na
França) ou que foi, a seu tempo, trabalhador na França (ou na Bélgica, como foi
o caso do pai de Mohand A ...) e 11 um avô. A antiguidade desse movimento
migratório aparece ainda melhor se tentamos reconstituir a evolução do número
de homens que entravam sucessivamente no ciclo da emigração a partir do ano
de 1913, data à qual remonta, ao que parece, a primeira partida do primeiro
emigrante da aldeia (é óbvio que só se levam em conta emigrantes dos quais se
guardou, por qualquer motivo, a lembrança): de 1913 a 1920, ou seja, durante
toda a Primeira Guerra Mundial, houve onze homens que emigraram para a Fran-
ça; de 1921 a 1928, houve mais dez; é preciso esperar 1936 para que haja novas
partidas de emigrantes, e houve sete até 1939; a Segunda Guerra Mundial inter-

40
ELGHORBA

m=;ileu o movimento, mas a partir de 1946 assistimos às partidas mais impor-


- ·i to que num intervalo de três anos houve 15 novos emigrantes, todos
menos de 24 anos; durante os dois decênios de 1952 a 1962 e de 1963 a
- . foram respectivamente 15 e 10 novas pessoas registradas na emigração.
Não só a duração das estadias fora do país se torna cada vez mais longa
ela é às vezes superior a dez anos) e se realiza de forma quase contínua (são
muitos os emigrantes que, no intervalo de uns vinte anos, voltaram para a aldeia
apenas uma ou duas vezes e somente durante suas férias anuais) como também
é a própria condição de emigrante que tende a se tornar permanente e, assim, o
estatuto do emigrante se estabiliza. Com efeito, somente na categoria dos emi-
grantes mais jovens, que chegaram pela primeira vez à França a partir de 1946
(a média de idade na época da primeira emigração era muito baixa: o mais ve-
lho tinha menos de 24 anos), sobre o total de 34 homens que podemos contar
hoje (exceção feita aos emigrantes falecidos nesse meio tempo, todos os faleci-
mentos ocorridos na França), apenas cinco voltaram definitivamente para sua ter-
ra; aliás, três deles fixaram-se, após sua volta para a Argélia, nas cidades.
Dentre os emigrantes muito antigos que continuam na França - são também
os mais idosos -, alguns passaram quase toda a sua vida ativa na França; alguns
deles até passaram a idade da aposentadoria (dois irmãos que emigraram em 1919
e em 1927 e que têm atualmente 73 e 61 anos; dois outros emigrantes de 67 e 59
anos, que chegaram à França também um em 1928 e o outro em 1938 etc.)
Tão intimamente penetrada pela emigração, não é de admirar que toda a
vida da aldeia seja, enfim, estreitamente dependente da vida dos emigrantes; toda
a comunidade local vive como que "suspensa" em sua emigração, que ela chama
de "França"; está constantemente alerta e à escuta dessa parte de si mesma que
está separada dela; encarrega-se de aumentar, à sua maneira, os ecos que lhe
chegam; adota os ritmos impostos pelas notícias - cartas e envios de dinheiro -
que lhe chegam, bem como pelos retornos que ocorrem em datas periódicas.
Mais fundamentalmente, a própria posição de cada família ou grupo de
famílias na estrutura da aldeia é determinada pela antiguidade e pela intensida-
de de sua emigração: as primeiras famílias a terem "delegado" emigrantes para
a França também foram as primeiras a dispor de um capital monetário; e hoje
as famílias que ainda são ricas o bastante em homens para estar presentes ao
mesmo tempo na aldeia e na emigração estão certas de poder acumular as van-
tagens e os sinais das duas espécies de capital que se encontram no princípio da
hierarquia social, o capital econômico (que é cada vez mais fornecido pela emi-
gração) e o capital simbólico (que existe em função do "bom uso" que os ho-
mens que ficaram na aldeia souberem fazer desse capital econômico).

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ABDELMALEK SAYAD

No limite, o estatuto de cada indivíduo só se pode definir em relação à


emigração: os homens da aldeia se dividem entre aqueles, muito raros, que po-
dem se dispensar de emigrar (ao menos para encontrar um emprego assalariado
relativamente estável) e aqueles que, muito numerosos, são forçados ou vivem
sua emigração repetida como obrigação; estes últimos se dividem, por sua vez,
entre aqueles que, obedecendo às exigências impostas para a entrada e a esta-
dia na França, têm a possibilidade institucional de emigrar na data e pelo tempo
que lhes convém e, por outro lado, aqueles que, não podendo conformar-se à
regulamentação, só podem manter a esperança ilusória de um dia fazer parte dos
possíveis "partintes".
Com efeito, tanto uns como outros (com exceção daqueles que decidida-
mente se excluíram dos emigrantes potenciais), na medida em que toda a sua prá-
.tica cotidiana está determinada pelo projeto de emigração, vivem na aldeia ape-
nas "provisoriamente", como se "só tivessem que passar as férias lá". Eles são
.chamados de "homens da 'pior das hipóteses '" ou "homens do momento", por
oposição à força que abandonou a aldeia; ou ainda "os homens da casa, do inte-
rior", ou seja, aqueles das tarefas ingratas e obscuras do trabalho da terra, por
oposição aos "homens de fora", aqueles das relações públicas, das relações com
o exterior, do mercado e, é claro, do trabalho fora, ou seja, do trabalho na Fran-
ça. Contando unicamente com sua presença física na aldeia, são "emigrados no
lugar": os mais jovens, liberados da necessidade de emigrar, estão inclinados a
romper ou já romperam, precisamente por causa dos empregos que ocupam,
bastante estáveis e prestigiosos, com a condição camponesa tradicional; os ou-
tros, mesmo quando voltaram da França há muito tempo, continuam a se com-
portar como "emigrantes", ou seja, como "convidados em sua própria casa" ou
então como "donos do lugar, que só tivessem voltado para a terra para novamente
partir cedo ou tarde", mas que, por enquanto, fazem questão de perpetuar "en-
quanto durar o dinheiro da França", como dizem, uma situação que querem exi-
bir como sendo a mais confortável possível.
Convidado a contar sua experiência de emigrante e, em particular, a con-
tradição que descobre entre a realidade de sua condição de imigrante e a ima-
gem encantada que tinha da França antes (porque era aquela que seu grupo lhe
propunha), o informante demonstra as condições sociais que produzem essa con-
tradição.
Porque ele se transporta incessantemente de um mundo para outro, toda a
visão que tem da emigração - o que ele chama de "a França" - e o discurso pelo
qual comunica essa visão se vêem condenados a buscar suas fontes nos dois
universos dos quais todos os emigrantes participam. Expressão dessa situação

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ELGHORBA

instável, a própria linguagem "joga" com a possibilidade de recorrer aos dois


registros que lhe são oferecidos. Independentemente dos freqüentes empréstimos
ao francês (que estão sublinhados no texto), alguns usados em seu sentido ori-
ginal, outros reinterpretados, é a própria estrutura da linguagem que aparece
como resultado de combinações "insólitas" entre uma forma e um fundo que,
aparentemente, parecem impossíveis de se combinarem perfeitamente.
Às vezes, é por meio de expressões novas tomadas de empréstimo ao fran-
cês e reinterpretadas que o informante melhor consegue dar conta de uma expe-
riência que, mesmo quando aparece como nova, continua ligada ao campo da
tradição: assim thajarnat (o dia) designa o dia de trabalho assalariado ou o sa-
lário, por oposição ao dia de trabalho a título de auxílio (ass elmu ' I awana) ou
de troca (ass urattal); às vezes, pelo contrário, é a forma tradicional do discur-
so, com suas locuções, ditados, modos de falar e todas as expressões singulares
que convinham aos modos de pensar tradicionais, que é usada para expressar um
conteúdo novo: elghith (o socorro), que pertence ao vocabulário dos ritos de chu-
va pelos quais se "implora a piedade (do céu) pelo sacrifício de uma vítima de-
sesperada", serve para nomear as pequenas rendas (semelhantes à chuva que na
tradição camponesa assegurava a prosperidade durante o ano) que os antigos
emigrantes recebem.
A própria experiência da imigração é organizada e relatada segundo os
esquemas tradicionais, e é pelo recurso ao vocabulário do sistema mítico-ritual
que o informante fala da "França". A descrição das condições de existência dos
emigrantes remete às grandes oposições míticas da tradição: interior-exterior,
cheio-vazio, claro-escuro etc.
Quer seja descrita como o oposto estrito à terra natal (quando lhe são atri-
buídas todas as qualidades que são negadas à terra natal ou quando, inversamen-
te, lhe são imputados muitos dos males desconhecidos naquela), ou, ao contrá-
rio, como seu equivalente, pelo menos em alguns de seus aspectos (a forte
presença dos parentes), a França é, a cada vez, caracterizada por uma série de
atributos que constitui, com a série antitética que seria aplicada à terra natal, um
conjunto de oposições.hornólogas:

.1 Cabília França Cabília França


Estreito Amplo Fraco Forte
Torto Direito Mal Bem
Inverso Certo Pobre Rico
Invertido Direito Escuro Claro
Atrás Frente Maldito Bendito

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ABDELMALEK SAYAD

Cabília França Cabília França


Contrário Favorável Solidão Companhia
Difícil Fácil Temor Confiança
Declínio Ascensão Tristeza Alegria
Desprezo Valor Etc. Etc.

Para que a mesma série possa expressar a experiência inversa, basta pro-
ceder a uma mudança de sinal ou, mais diretamente, invocar o vocabulário do
avesso cujo papel conhecemos nas práticas rituais da inversão (aqLab); daí vem
o uso de todo um vocabulário de conotações míticas (abedeL: a mudança, a 'waj:
a torção, a inversão, aquL: inverter etc.) e as inversões à quais está submetida a
oposição entre a terra de exílio (eLghorba) e a terra natal ("eLghorba virou a ter-
ra"; "a terra natal tornou-se eLghorba").
Todo o discurso do emigrante se organiza em torno da tripla verdade da
elghorba, Na lógica tradicional, a verdade da eLghorba é a de ser associada ao
"poente", à "escuridão", à distância e ao isolamento (entre os estranhos, logo à
sua hostilidade e ao seu desprezo); ao exílio; ao terror (aquele que é provocado
pela noite e que o faz se perder numa floresta ou numa natureza hostil); à perda
(por perda do sentido de direção); à infelicidade etc. Na visão idealizada da emi-
gração, fonte de riqueza e ato decisivo de emancipação, elghorba, intencional e
violentamente negada em seu significado tradicional, tende (sem todavia conse-
guir completamente) a trazer uma outra verdade que a identificaria com a felici-
dade, a luz, a alegria, a segurança etc. A experiência da realidade da emigração
vem desmentir a ilusão e restabelecer a elghorba em ua verdade original.
Podemos dizer que é toda a experiência de vida do emigrante que oscila
sem cessar entre essas duas verdades contraditórias da elghorba. Por não.con-
seguir resolver a contradição em que se encontra encerrado, pois deveria então
renunciar a emigrar, ele só pode mascará-Ia.
Percebemos assim como, usando os recursos do aparelho tradicional, o
informante produz o próprio modelo do mecanismo segundo o qual se reproduz
a emigração e no qual a experiência alienada e mistificada da emigração preen-
che uma função essencial. O desconhecimento coletivo da verdade objetiva da
emigração que todo o grupo se esforça por manter (os emigrantes que selecio-
nam as informações que trazem quando passam algum tempo na terra; o anti-
gos emigrantes que "encantam" as lembranças que guardaram da França; os
candidatos à emigração que projetam sobre a França suas aspirações mais ir-
realistas etc.) constitui a mediação necessária através da qual se pode exercer a
necessidade econômica.

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