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Governo do Estado do Ceará

Tasso Ribeiro Jereissati

Secretaria da Educação Básica

Antenor Manoel Naspolini

Coordenadoria de Desenvolvimento Técnico Pedagógico

Lindalva Pereira Carmo

Núcleo de Desenvolvimento Curricular

Maria Socorro Bezerra Leal

C387i Ceará. Secretaria da Educação Básica

Infância e educação infantil: resgatando um pouco

da história. / Sílvia Helena Vieira Cruz. Fortaleza,

SEDUC, 2000.

31p. (Série Ensinando e Aprendendo, v. 1)

1. Educação – Infantil
2. Criança

I – Título

CDU: 37 + 159.922.7 (091) (813.1)

_______________________________________________
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÕES EDUCIONAIS/SEDUC
Por que resgatar a História
da infância e da educação infantil?

Outro dia, li o seguinte episódio:


Calvin, menino de uns 6 anos, afirma para o seu tigre:
– Eu acredito que a História é algo muito forte. Sua maré inalterável varre todas as pessoas
e instituições ao longo de seu caminho. Tudo e todos servem ao propósito da História.
O amigo, bastante impressionado, pergunta:
– E qual é esse propósito?
Calvin responde, sem nenhuma dúvida:
– Ora, me criar, é claro! Eu sou o resultado final da História. Pense nisso! Milhares de
gerações viveram e morreram para criar meus exatos e específicos pais, que a razão de ser,
obviamente, foi para me criar.

É claro que a História é mais complexa do que o Calvin consegue perceber. E é claro também
que há múltiplos propósitos em jogo que ele, no egocentrismo típico da sua idade, não pode
admitir. Mas numa coisa ele tem total razão: a História é alho muito forte!

A História não é simplesmente a soma de fatos, datas e nomes a serem memorizados. A


História, como diz Kuhlmann Jr. (1998), “é a interação de tempos, influências e temas”. E ela não
pode ser negada nem esquecida porque o seu conhecimento nos faz compreender bem melhor
o presente. Se não conhecemos o que já aconteceu, podemos mais facilmente nos iludir
achando que é novidade o que apenas está sendo apresentado com uma roupa diferente e não
percebemos o que realmente inaugura uma nova maneira de pensar e fazer as coisas.

Além de poder identificar o que é novo e o que na verdade é continuidade ou repetição,


conhecer a dinâmica da História pode nos ajudar a ficar mais atentos para entender o porquê
dos acontecimentos atuais: por que tal fato ocorreu de uma determinada maneira? Por que tal
proposta veio nesse momento? Que influência tem para o nosso trabalho, nossas lutas etc?
precisamos conhecer o passado para entender o que está acontecendo no presente e tentar
antecipar alguns ajustes e soluções para o futuro.
Conhecer a História pode parecer uma tarefa simples, mas não é. Muitas vezes o
pesquisador enfrenta dificuldades para colher informações importantes, especialmente se o
assunto que está estudando aconteceu há muito tempo atrás e as pessoas que têm relação com
ele já não estão vivas e há poucos registros (documentos, cartas, jornais da época, fotos, objetos
etc.) à disposição para serem analisados. Um número reduzido de fontes de informação pode
levar a conclusões equivocadas ou trazem apenas uma parte ou uma versão do assunto tratado.
Pode acontecer também de se olhar apenas para um aspecto de um tema de forma que não
atentamos para as relações dele com o panorama geral, o contexto em que ele acontece. Além
disso, quando se trata de assuntos de ocorrência muito recente ou que têm relação mais direta
com o pesquisador, fica mais difícil de compreendê-los pois tudo isso influencia a percepção que
é possível ter.
Considerei importante fazer esses alertas porque não sou historiadora, mas respeito muito
o trabalho daqueles que se aventuram e se dedicam a resgatar o passado tão vivo das nossas
tradições, nossas instituições, nossos movimentos etc. – o passado das nossas vidas.
Por outro lado, apesar de ter muito interesse pela História, sei que as minhas leituras sobre
esse tema têm várias limitações. Atrevo-me aqui a partilhar parte do conhecimento que já pude
acumular acerca da história da infância e da educação infantil, sabendo que é um conhecimento
parcial, na confiança de que cada leitor irá consultar a bibliografia indicada e outros textos que
puder ter acesso. Assim, complementará e ampliará o que aqui é brevemente apresentado.

Infância, educação
e sociedade
A ideia de infância

Precisamos estar atentos para o fato de que a maneira de se perceber a infância vem
mudando ao longo dos tempos. Através das pesquisas de vários estudiosos, das pinturas, das
fotos, dos objetos, da literatura etc., podemos ter acesso à forma como a criança era vista e
tratada em diferentes épocas e lugares.
Assim, ficamos sabendo que a visão da infância como uma etapa do desenvolvimento da
pessoa, etapa que tem características bem definidas é relativamente recente. Hoje está muito
difundida a ideia de várias etapas do desenvolvimento. Já não se fala apenas em infância,
juventude, maturidade e velhice, mas essas grandes etapas são subdivididas – (outro dia ouvi
uma garotinha de 5 anos referir-se ao seu irmão, de 11 anos, como “pré-adolescente” e isso lhe
parecia muito natural).
Como Ariès (1981) chama a atenção, antigamente, principalmente até a idade média, as
condições de existência (saneamento básico, higiene, conhecimento sobre as doenças etc.)
eram bem mais precárias – e ainda piores para as camadas mais pobres, as quais ainda tinham
que conviver com a precariedade da alimentação; isso fazia com que a taxa de mortalidade
infantil fosse muito grande. Por outro lado, não havia essa longa preparação para ingressar no
mercado de trabalho, que é uma exigência dos tempos atuais; as crianças e jovens aprendiam
as profissões com a própria família ou com algum profissional que lhe tomasse como aprendiz
(o analfabetismo era a regra e isso não fazia tanta diferença no dia a dia das pessoas, pois a
leitura e a escrita não eram necessárias para exercer as atividades mais comuns na época).
Assim, havia uma rápida passagem para a condição de membro participante da sociedade,
inclusive partilhando com os adultos de suas festas, brincadeiras, diversões etc. Acrescente-se a
isso que não existia a mesma noção de família que geralmente temos (composta apenas pelos
pais e filhos) e as relações entre as famílias e a sociedade eram bem mais estreitas e difusas.
Nessas condições (alta taxa de mortalidade infantil, diferentes relações econômicas e sociais
entre adultos e crianças e entre a família e a sociedade), é fácil imaginar que a forma de se ver
a infância fosse diferente.
Na verdade, mesmo numa época, como a nossa, temos maneiras bem diferentes de ver a
criança, também influenciadas pelas condições econômicas e sociais: por exemplo, se nasce uma
criança numa família rica, ela pode ser encarada como alguém que será preparada para assumir
os negócios e, provavelmente, expandi-los; numa família pobre, pode significar uma boca a mais
para ser alimentada, aumentando as preocupações com a sobrevivência da prole.
Por outro lado, é comum vermos as condições de vida dessas famílias serem atribuídas ao
mérito, empenho ou direito de uma (a família rica) ou à imprevidência, desleixo, ou, no máximo,
à falta de sorte de outra (família pobre). Isso não ocorre ao acaso, mas ajuda a preservar o modo
como a sociedade está funcionando. E nessa sociedade, uma das divisões mais frequentes é
entre consumidores e não-consumidores; para a indústria de alimentação, de brinquedos, de
vestuário, de calçados, de diversão etc., a criança é uma ávida consumidora que precisa ser
conquistada – portanto, ela volta-se para a criança cujos pais têm poder aquisitivo e difunde
ideias e modas que estimulem o consumo de seus produtos.
Percebemos, então, que o “sentimento de infância”, a forma como vemos e nos
relacionamos com a infância, é construído social e historicamente, refletindo as condições em
que é gerado e os interesses dominantes presentes num determinado momento.

A ideia de natureza infantil e a pedagogia


Quando pergunto a um grupo “o que é a infância?” sempre tenho respostas bem diferentes.
Algumas pessoas respondem que é um período da vida muito bom porque não temos
obrigações, como trabalhar, por exemplo; outras lembram com saudade a sua infância e dizem
que é tempo maravilhoso porque “a criança pode se soltar, correr, brincar pelas ruas, subir em
árvores!”; algumas dizem que é uma etapa em que é preciso aprender muita coisa para vir a ser
um bom cidadão; outras enfatizam os cuidados necessários para que a criança não sofra a má
influência de delinquentes, programas de televisão desaconselháveis etc.; outras (bem mais
raras) lembram das dificuldades enfrentadas pelas crianças que vivem a sua infância sujeitas às
mesmas condições de exclusão econômica, social e cultural de suas famílias; outras... talvez
você, leitor(a) tivesse uma opinião bem diferente.
Qual dessas é a resposta correta? Todas e, ao mesmo tempo, nenhuma. Pode parecer
estranho, mas o que acontece é que cada uma dessas respostas falou de uma possibilidade,
então, enquanto possibilidade estava correta. Mas, como estava considerando uma
possibilidade como sendo possível de generalização, então, estava errada. Por exemplo, para
uma criança que nasceu numa família de classe média, que pode lhe oferecer tudo o que ela
precisa (alimentação, lazer, educação etc.), realmente não há necessidade de trabalhar; o
mesmo não se aplica para crianças que cedo precisam auxiliar a sua família, realizando trabalhos
em sua própria casa, nas vizinhanças ou mesmo na rua; então a resposta que fala de um período
da vida sem obrigações desse tipo é correta para esta infância. Tomemos também como
exemplo a segunda resposta: ela se refere a uma infância “de antigamente” que se torna cada
vez mais rara nos grandes centros urbanos, onde as crianças geralmente não têm mais
possibilidade de usar a rua para as suas brincadeiras nem tanto contato com a natureza.
Vemos que é necessário explicitar de que criança se está falando: qual a sua classe social?
Onde ela mora? Em que tempo? Não há uma infância única, igual para todas as crianças, nem
para as que vivem no mesmo período histórico.
Como a criança vive a sua infância num determinado tempo e lugar, imersa num certo
grupo social, do qual faz parte, recebe as suas influências e também o influencia. Ela vai conviver
com a sua família, parentes, vizinhos, amigos, colegas e professores e nessa convivência terá
múltiplas experiências que lhe ensinarão o que é adequado e inadequado, o que é apreciado e
o que é rejeitado, formará hábitos e desenvolverá habilidades específicas (por exemplo, a
criança que mora na cidade precisará aprender a atravessar uma rua movimentada).
Por outro lado, é preciso estar atento para outro aspecto da mesma questão: a ideia que
temos de natureza infantil. Quando uma pessoa afirma que a infância “é uma etapa em que é
preciso aprender muita coisa para vir a ser um bom cidadão” ela pode estar expressando uma
ideia pouco positiva acerca da infância. Primeiro porque fica clara a concepção de que a criança
ainda não é (ela apenas virá a sê-lo no futuro), segundo porque parece que só aprendendo muita
coisa, moldando-se, isto é, tendo a sua natureza domada, isso será possível. Já a pessoa que
preocupa-se com a “má influência de delinquentes, programas de televisão desaconselháveis
etc.” enfatizando o cuidado que a criança deve receber, parece exprimir uma noção bastante
positiva da natureza infantil, que precisa de máxima proteção para não ser corrompida pelo
meio.
Essas concepções opostas são muito antigas. Para a filosofia clássica, a criança é desprovida
da capacidade de pensar e interpretar e a infância é a idade do erro e da falta de reflexão, tendo
como referência o adulto sábio. Por outro lado, a crença na pureza da criança também é bem
antiga; talvez você já tenha ouvido a frase célebre “o homem nasce bom, a sociedade é que o
corrompe” que é atribuída a Rousseau, um filósofo francês que viveu no século XVIII. Essas
posições tiveram profundas repercussões no modo de pensar a infância e a educação até nos
nossos dias.
Segundo Charlot (1983), a primeira posição, marcada pela negatividade, justifica a forma
de educar conhecida como pedagogia tradicional: nela, toda a autoridade é conferida ao adulto,
que tem como tarefa domar a natureza rebelde da criança, a qual deve amoldar-se às suas
ordens. Já a chamada pedagogia nova (que não é tão nova assim, pois tem suas origens no
século XVIII), percebe o papel do educador como bastante diferente: ele deve cuidar para que a
criança possa desenvolver todo o seu bom potencial, respeitando a espontaneidade infantil.
No entanto, apesar de adotarem uma concepção de infância inteiramente diferentes,
ambas têm em comum a ideia de natureza infantil desenraizada das condições reais de
existência; como consequência, ambas mascaram a significação social da infância. O que isso
quer dizer? Que essas duas posições não levam em conta as relações sociais existentes entre
adultos e crianças (cujas modalidades, intensidades e duração são socialmente determinadas),
não consideram a classe social a que pertence a criança, nem as desigualdades sociais que
existem entre as crianças.

Visão de infância e classe social


Podemos imaginar que uma pessoa pode adotar tanto a percepção de criança como tendo
natureza boa como optar pela outra, vendo-a como possuindo uma natureza má e assim
perceber qualquer criança, numa dessas duas perspectivas. Mas, normalmente, não é bem
assim que as coisas acontecem. Primeiro porque é muito difícil encontrar uma posição em
estado totalmente “puro”, quer dizer, só de um tipo, em geral, o que existe são concepções
predominantemente de um tipo ou de outro. Segundo, e eu gostaria de chamar a sua atenção,
para isso, não são feitas escolhas de modo arbitrário. Podemos perceber isso no nosso cotidiano.
Tomemos como exemplo o que vemos todo dia, na televisão. Esse poderoso meio de
comunicação nos traz, grosso modo, dois tipos de imagens: imagens de crianças bonitas,
inteligentes, saudáveis, cândidas ou sapecas – todas igualmente encantadoras – que são
exploradas pela propaganda para vender quase qualquer produto; outra imagem, bem
diferente, é difundida pelo noticiário policial, que traz crianças sujas e mal vestidas, com
expressões agressivas ou insolentes que inspiram medo, asco ou pena, e que aparecem
associadas à maus tratos, drogas, prostituição, delinquência.
Geralmente, a que classe social pertencem as crianças do primeiro e as do segundo tipo de
imagens? E por que será que somos levados a construir imagens positivas de crianças
pertencentes às classes dominantes e imagens negativas das crianças pobres?

Não é difícil concluirmos que as imagens difundidas das crianças apenas reforçam as
imagens difundidas sobre as classes sociais às quais elas pertencem.

Eric Hobsbawn, um importante historiador contemporâneo, nos mostra que desde o


período logo após a revolução francesa (ocorrida em 1789), quando a burguesia tomou o poder
da aristocracia, as pessoas pobres eram mal vistas por aqueles homens ricos que “se fizeram por
si mesmo ou, pelo menos, sendo de origem modesta, deviam pouca coisa ao nascimento, à
família ou a uma educação formal superior” (1977, p. 207); desde essa época, os pobres eram
vistos como “os que não tinham virtude, os fracos, os pecadores (...), merecendo, na melhor das
hipóteses, a caridade dos mais bondosos” (idem, p. 209). Era como se a todos estivessem
igualmente abertas todas as oportunidades e só não as aproveitavam os que eram,
naturalmente, inferiores. Tal ideia mascarava a realidade bem diferente.

Educação e sociedade
Desde o início do século XIX, uma das possibilidades de acesso ao sucesso passou a ser a
educação, que por sua vez podia levar a três carreiras: o funcionalismo público, a política e as
profissões liberais. No entanto, a educação não era franqueada a todos, em nenhum país havia
um sistema de educação pública que garantisse a qualquer um obter esse sucesso – em geral,
mesmo onde existia a educação primária, “estava confinada, por razões políticas a um mínimo
de alfabetização, obediência moral e conhecimentos de aritmética” (ibidem, p.211-212). Assim,
era necessário ter algum recurso inicial e uma família pobre precisava submeter-se a grandes
sacrifícios para ver um de seus membros chegar a ser um funcionário público, um intelectual,
um advogado ou médico. Já para as famílias ricas o acesso à educação era bem mais facilitado.
Mas, para os nascentes empresários, que submetiam a massa de novos proletários a uma cruel
disciplina e péssimas condições de trabalho a fim de explorá-los ao máximo, era preferível (como
continua sendo até hoje) passar a ideia de que não havia injustiça na situação, apenas uma
distribuição de acordo com os méritos pessoais de cada um.
É importante destacar dois pontos. Primeiro: embora se propague que “a educação está aí,
não aproveita quem não quer”, podemos ver que, desde muito tempo a verdade é mais cruel.
Segundo: as diferenças que existem refletem e expressam os interesses da classe hegemônica,
isto é, que domina determinada sociedade – e entre esses interesses está continuar o seu
domínio.
É por isso que quando se afirma que a função da educação é distribuir igualmente o saber
que a humanidade acumulou, estamos falando de um ideal. Sabemos pela nossa própria
experiência que a educação oferecida às crianças e jovens ricas é de qualidade inferior àquela
oferecidas às crianças e jovens pobres, que precisam se submeter a aulas em geral menos
estimulantes, em escolas mal equipadas, sem o material didático necessário etc. Além disso, os
primeiros têm acesso a bens culturais, através de viagens, literatura diversificada, cinema,
cursos de línguas estrangeiras, computadores outras opções de canais de TV (porque podem
pagar assinatura) etc., que facilitam o seu sucesso escolar. E, apesar de tudo isso, não é raro que
se ouça autoridades e professores reclamando que as crianças e jovens pobres não saem bem
porque não são aplicados, são desnutridos, as famílias são problemáticas e não se interessam
pelos estudos do filho e várias outras razões que responsabilizam o aluno ou a sua família.
Mas a realidade é que a educação não distribui igualmente os bens culturais; há escolas
diferentes para diferentes classes sociais. As crianças e jovens pertencente a famílias com poder
aquisitivo podem escolher entre as escolas que disputam a sua matrícula enquanto os que não
têm essa possibilidade, dependem da educação que lhes é oferecida pelos equipamentos
públicos. E, nessas escolas diferentes, são transmitidos não só conhecimentos diferentes (no
sentido de mais completos, ricos etc.), mas valores e atitudes diferentes: as crianças e jovens
dos extratos superiores não são preparados apenas para assumir postos de trabalho mais
valorizados, mas também para ter uma posição mais independente e crítica, para assumir
liderança; já as crianças e jovens dos extratos inferiores da nossa sociedade são levados a não
questionar, a se submeterem às regras etc.; de certa forma pode-se dizer que uns são educados
para a autoridade enquanto outros são educados para a subalternidade.

Nesse sentido, é bom lembrar que uma importante função que a escola assumiu desde o
século XV, e especialmente séc. XVII, foi a de disciplinar as crianças e jovens, com o objetivo de
domar os seus impulsos e que aprendessem os modos considerados adequados em cada época
e sociedade.

Educação
A educação infantil não pode ser vista de forma isolada de outras etapas da educação, como
se ela tivesse vida própria. Ambas acontecem num mesmo espaço social, sujeitas às concepções
vigentes, sendo influenciadas por fatores de diversas ordens.
Por outro lado, o atendimento à criança pequena em instituições de educação infantil, faz
parte de uma série de iniciativas em relação à infância e à família que dependem de mudanças
que estão acontecendo desde o início do nosso século, tais como: a crescente urbanização (cada
vez mais pessoas deixam o campo para morar nas cidades), o aumento do número de mulheres
que trabalham fora de casa, a diminuição da taxa de natalidade (número de crianças que as
famílias têm) e os conhecimentos científicos acerca da criança.

As primeiras iniciativas voltadas ao


atendimento da criança pequena
Na segunda metade do século XIX, foram criadas diferentes instituições de educação
infantil, acompanhando o processo de expansão do ensino elementar. Algumas experiências
aconteceram anteriormente, mas foi nesse período que encontraram as condições ideias para a
sua disseminação. Essas instituições eram apresentadas em grandes eventos, as Exposições
Internacionais, que aconteceram de 1851 a 1922 na Europa, Estados Unidos, Argentina e Brasil
(o Rio de Janeiro sediou o último desses eventos).

As instituições de educação infantil eram apresentadas como modernas e científicas, o que


as diferenciavam das existentes anteriormente. Essas características eram exaltadas nessa
época em que o já valorizado desenvolvimento técnico e científico consolidava a importância da
infância.
É interessante citar, mesmo de forma resumida, alguns aspectos dessa assistência
científica, de acordo com Moysés Kuhlmann Júnior (1998, p.64-67):

• Não é apresentada como direito do trabalhador, “mas como mérito dos que se
mostrassem mais subservientes, segmentando a pobreza, procurando dificultar seu acesso aos
bens sociais. A sua função, de acordo com essa visão preconceituosa, seria disciplinar os pobres
e os trabalhadores” (p.64-65);
• A integração entre a ação do Estado e a iniciativa particular, unidos para praticar a
caridade ou a filantropia (expressão que foi substituindo a primeira);
• A utilização de um método, chamado de científico, através do qual o candidato a
beneficiário dos programas de assistência precisavam mostrar-se merecedores dos seus
benefícios; assim, respondendo a um minucioso questionário, onde expunha toda a sua
condição de vida, a pessoa era avaliada como “indigentes válidos e a prestação de auxílios
eficazes para promover a melhoria da raça e o controle social, na direção predeterminada do
progresso e da civilização” (p.66) 1

Objetivos
De um modo geral, o início do atendimento à infância, teve os seguintes objetivos:

• Diminuir a grande mortalidade infantil, integrando-se a um problema de saneamento


mais amplo (que incluía, por exemplo, a abertura de grandes avenidas), preocupação que era
predominante entre os médicos higienistas, que desde a década de 1870 vinham tendo grande
influência nas questões educacionais;

1
É bom lembrar que a escassez desses serviços levava a uma competição entre os que precisavam deles.
• Forma de evitar a criminalidade, o que é decorrente da preocupação jurídica e policial
com a “infância desvalida ou moral e materialmente abandonada”;
• Promoção da tranquilidade das elites; fruto tanto da influência jurídico-policial como da
visão, predominante na época, da Igreja Católica, que, seguindo os ensinamentos da encíclica
Rerum Novarum (1891), via a propriedade privada como inviolável, sendo que os pobres
deveriam sofrer e suportar a sua condição de subalternidade – assim, a dimensão religiosa e
educacional da assistência estava voltada justamente para evitar mudanças sociais, mantendo
os pobres agradecidos aos ricos.

É interessante assinalar uma das primeiras referências a creches populares ainda na


década de 1870, trazia a preocupação de acolher os filhos recém libertos das mães
escravas, após a chamada Lei do Ventre Livre (e até hoje uma grande parcela da clientela
dessas creches é atender os filhos das trabalhadoras domésticas). Apenas na segunda e
terceira décadas do nosso século é que a abertura das creches teve como objetivo propiciar
melhores condições para trabalho das operárias.

Algumas concepções vigentes


Já foi referido que a nova concepção assistencial passou a prevalecer a partir da segunda metade
do séc. XIX era a chamada assistência “científica”. Outras concepções merecem destaque:

• “Menor desvalido”, ou criança e adolescente pobre era associado com frequência à


delinquência e à criminalidade, inclusive no Código Civil da época;
• Grande preconceito em relação às mães negras, sendo a mortalidade infantil atribuído
à “falta de educação física, moral e intelectual das mães” que permitiam o “aleitamento
mercenário” (realizado por mulheres negras);
• O atendimento à infância não como um direito, mas como uma dádiva de filantropos e
de um Estado civilizado;
• As creches vistas como um “mal necessário”, que provocava controvérsia em torno do
papel da família, especialmente da mãe (uma boa mãe deveria cuidar pessoalmente dos seus
filhos);
• Os trabalhadores eram considerados como beneficiários e os pobres como assistidos
pelos programas de assistência.

Alguns marcos
As primeiras iniciativas voltadas para o atendimento à criança pequena estiveram a cargo
de particulares. Entre elas, destacamos:
• 1875: 1ª pré-escola (Colégio Menezes Vieira, no Rio de Janeiro); as pré-escolas das elites
passam a utilizar o termo “pedagógico” como estratégia de propaganda para diferenciar-se dos
asilos para pobres;
• 1986: jardim de infância da escola Caetano de Campos (SP) – pública, mais voltada para
as elites;
• 1899: fundação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro (IPAI-
RJ) – entidade particular de caráter médico (puericultura intrauterina e extrauterina), mas que
também tinha preocupações com os aspectos jurídicos e educacionais; em 1929 já tinha filiais
em todo o país;
• 1899: criação da creche da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado (RJ) – primeira
creche brasileira para filhos de operários;
• 1906: inauguração do Patronato de Menores, criado por juristas no Rio de Janeiro, que
fundaram creches para abrigar criancinhas cujas mães busquem trabalho fora do lar;
• Primeiras décadas do séc. XX: começam a se multiplicar creches criadas junto às
indústrias;
• 1919: criação do Departamento da Criança do Brasil-DCB, que pretendia centralizar
informações, estudos e pesquisas sobre a criança.

É importante assinalar que desde esses primórdios, havia basicamente dois tipos de
instituições para o atendimento à criança pequena: a creche, voltada para as crianças das
camadas empobrecidas da população, voltada mais para a sua guarda e alimentação, e as pré-
escolas, em geral direcionadas para as camadas médias e altas da população, com maiores
preocupações com métodos pedagógicos que favorecessem o desenvolvimento das crianças.

O papel do Estado
É interessante destacar o papel do Estado nesse início da breve história da nossa educação
infantil. Praticamente não houve nenhuma iniciativa ou investimento, até 1930. Apesar de
proclamar que “É preciso preparar a criança de hoje para ser o homem de amanhã”, o Estado se
afirmava sem condições financeiras para assumir o atendimento à criança. Apenas em 1940 foi
criado o Departamento Nacional da Criança, vinculado ao Ministério da Saúde, que tinha como
objetivo a proteção à infância, à maternidade e à adolescência, e imprimiu uma tendência
assistencialista e paternalista à proteção à infância. Um ano depois, foi criado o Serviço de
Assistência a Menores, para atender os menores de 18 anos abandonados ou delinquentes,
ligado ao Ministério da Justiça e dos Negócios Exteriores.
No âmbito do Ministério da Educação e Cultura, somente em 1975 foi instituída a
Coordenação de Educação Pré-Escolar.

A expansão da educação infantil no Brasil


Fúlvia Rosemberg, (1997) afirma que o modelo da educação infantil adotado nas últimas
décadas é o modelo da educação de massa. Por quê? Vamos a seguir nos deter um pouco em
alguns aspectos ou características dessa história mais recente.

O perfil sociodemográfico do país nas últimas décadas


Entre as principais características sociodemográficas do nosso país, nas últimas décadas,
podemos destacar:

• Aumento da migração da zona rural para a urbana;


• Maior participação da mulher no trabalho fora de casa;
• Diminuição da mortalidade infantil.

Nesse contexto, a reinvindicação por equipamentos sociais como creches e pré-escolas é


muito maior. Isto porque, em geral, na cidade torna-se mais difícil contar com familiares que
auxiliem nos cuidados com as crianças e, tradicionalmente, é a mulher que se responsabiliza
pela criação dos filhos.
É nas cidades, especialmente nas grandes cidades com alguma atividade industrial e com
uma grande massa de população concentrada nos bairros periféricos, que vamos encontrar uma
maior expansão das creches e pré-escolas.
Durante os governos militares (1964 a 1985), a expansão da educação infantil deu-se
principalmente através de programas implementados pelos extintos Movimento Brasileiro de
Alfabetização – MOBRAL e pela Legião Brasileira de Assistência – LBA.
A concepção de educação compensatória
A educação infantil vem cumprindo várias funções. Já nos referimos à função de guarda,
proteção e alimentação das crianças e também à função de desenvolver as capacidades das
crianças. Uma outra função que se atribuiu à educação da criança pequena e que fundamentou
a sua expansão durante as décadas de 70 e parte da década de 80 foi a função de compensar
supostas deficiências ou carências que as crianças pobres teriam. Como assim?
Em primeiro lugar, é preciso se dar conta que o discurso oficial, isto é, o pensamento
corrente entre os detentores do poder, não considerava as diferenças que existem entre as
crianças as quais são resultado da sua inserção social e cultural, isto é, da sua experiência num
determinado meio sociocultural. Então, tomava as características das crianças das classes
médias e alta como padrão e consideravam as crianças pertencentes às classes sociais
marginalizadas como inferiores.
Um exemplo típico é a linguagem: se uma criança fala palavras e expressões que são
correntes no seu meio (como rebolar no mato, arrodear, em riba etc.) é vista como ignorante. É
claro que essas crianças devem ter acesso à linguagem socialmente mais valorizada, ampliar o
seu vocabulário a fim de enriquecer-se e ter mais chance de sucesso profissional; no entanto, o
problema é que, em geral, humilha-se a criança por ela usar essas palavras e expressões e
considera-se que o seu vocabulário é mais estrito do que na verdade é.

De um modo geral, as carências atribuídas a essas crianças da mais variada ordem e


incluem a carência intelectual (seriam menos inteligentes), provocada pela carência de
estímulos (note-se que os estímulos presentes na vida dessas crianças são diferentes, mas
existem) e até carência afetiva (as famílias pobres não dariam atenção nem afeto às suas
crianças). Você acredita nisso?

Esse tipo de percepção deu origem, nos Estados Unidos, a um pensamento que foi
denominado de teoria da privação cultural. Essa pretensa teoria já sofria inúmeras críticas
quando foi importada para o Brasil. Assim, uma vez que a criança pobre era vista como sofrendo
de privação cultural, uma providência necessária era compensar as suas carências – e até hoje
o termo “criança carente” é tão comum! Profundamente influenciado por esse tipo de visão, a
defesa da expansão da educação infantil passou a se basear na necessidade de oferecer uma
oportunidade para que essas crianças superassem as suas dificuldades e, dessa forma, tivessem
sucesso no ensino fundamental.
É preciso deixar claro que uma educação infantil de qualidade deve enriquecer e ampliar
as experiências e os conhecimentos de todas as crianças, o que, provavelmente contribuirá para
o sucesso escolar delas. No entanto, essa visão da carência cultural e a sua decorrente educação
compensatória não consideram todas as habilidades e conhecimentos que a criança pobre
certamente tem e a discrimina, culpando a ela e à sua família por algo que é fruto da injustiça
social: o acesso desigual aos bens culturais.
Há ainda dois outros problemas em relação a esse raciocínio segundo o qual deve-se
proporcionar educação infantil para prevenir problemas no ensino fundamental: primeiro, não
se questiona o ensino fundamental, como se todas as dificuldades que as crianças aí enfrentam
fossem devidas unicamente a características suas e não houvesse nada a ser questionado nessa
etapa da educação (seus métodos, seus materiais pedagógicos etc.); e depois, como pretender
que o sucesso no ensino fundamental esteja vinculado à educação compensatória se apenas
uma porcentagem tão pequena das nossas crianças têm acesso à educação infantil? Por outro
lado, não se pode esperar que a frequência a qualquer tipo de educação possa dar igualdade de
condições a todas crianças, jovens ou adultos; para ser realmente efetiva, a igualdade de
oportunidades precisaria aliar-se à igualdade de condições, o que só será possível quando se
solucionar a injusta distribuição de riquezas e benefícios entre os homens.
A influência de organizações internacionais
A história recente da educação infantil no nosso país foi bastante marcada pela atuação
de organização internacionais, principalmente o Fundo das Nações Unidas para a Infância –
Unicef, criado pela Organização das Nações Unidas.
O Unicef iniciou sua atuação durante as décadas de 40 e 50 em países pobres com
trabalhos assistenciais de caráter emergenciais (campanhas de vacinação, distribuição de leite
etc.). Na década de 60, passou a atuar de maneira mais contínua junto aos governos dos países
ajudados no sentido de promover a melhoria das condições de vida das crianças. Influenciaram
profundamente os programas aqui implantados as recomendações deste organismo para que
os países subdesenvolvidos buscassem novas alternativas para o atendimento à criança
pequena, visando a diminuição dos custos para o atendimento de um maior número de crianças.
Isto deveria acontecer principalmente através de:

• Utilização de espaços disponíveis;


• Trabalho voluntário, da família e da comunidade.

Como se pode perceber, a adoção dessas soluções informais e parcialmente assumidas


pela família não garantem a qualidade do serviço oferecido.

A implantação do modelo de educação infantil de massa


Segundo Rosemberg (1997), o programa Educação Pré-Escolar: uma nova perspectiva
nacional, elaborado pelo Setor de Educação Pré-Escolar do MEC, em 1975, traduziu as
recomendações do UNICEF e assumiu formalmente a função de assistência ao definir como
áreas prioritárias as periferias das médias e grandes cidades e áreas onde houvesse uma taxa de
mortalidade infantil, principalmente no Nordeste.
Essa proposta tornou-se o modelo de atenção pública às crianças pré-escolares em todo
o Brasil. Mas não foi o MEC quem o implantou e sim a LBA, através do Projeto Casulo, lançado
em 1977. Também de acordo com Fúlvia Rosemberg, esse programa era justificado como parte
das estratégias de prevenção da desordem social, que poderia ser provocada pelas populações
empobrecidas. A expansão do atendimento foi possível pela diminuição do per capita mensal
repassado às entidades conveniadas.
Somente em 1981, é que o MEC, através do MOBRAL, lança o Programa Nacional de
Educação Pré-Escolar, que também adotou as propostas do UNICEF para crianças dessa faixa
etária provenientes de população de baixa renda e também vincularam a educação à assistência
definindo outra vez as periferias urbanas e as regiões Norte e Nordeste como áreas prioritárias
para esse atendimento que seguia o modelo de baixo custo. Apesar das avaliações realizadas
terem apontado problemas sérios (formação do pessoal inadequada, materiais pedagógicos
insuficientes, instalações e alimentação precárias) esse programa expandiu-se.
Outra caraterística da expansão do atendimento à criança pequena nos últimos anos no
nosso país foi o estímulo, pelo governo federal, à abertura de vagas através da administração
municipal, que passou de 12,9%, em 1969, para 51%, em 1993.

Algumas características atuais da cobertura

• Maior expansão nas regiões Norte e Nordeste: o atendimento às populações pobres é,


geralmente, de baixa qualidade;
• O modelo de antecipação de escolaridade: o atendimento é muito maior na faixa etária
de 5 a 6 anos, tendo em vista a preparação para o ensino fundamental, o que, muitas vezes, leva
ao equívoco de adotar as mesmas estratégias, métodos etc. dessa etapa da escolarização para
a educação infantil;
• A laicização do corpo docente: o número de professores chamados “leigos” (por não
terem ainda a formação de nível de ensino médio, na modalidade magistério), tem aumentado;
• Existência de variados tipos de atendimento (creches particulares, creches públicas,
creches conveniadas, pré-escolas particulares, pré-escolas públicas, pré-escolas conveniadas),
com qualidade extremamente desigual;
• As crianças pobres e negras, cujos pais têm baixa instrução, constituem a maioria dos
que são indevidamente retidos na educação infantil (permanecem nesta etapa do ensino básico
apesar de terem 7, 8, 9 ou mais anos), quando deveriam estar cursando o ensino fundamental;
• Maior proporção de professores com formação inferior ao ensino médio em estados das
regiões Norte e Nordeste (não por coincidência, os estados com os piores resultados na 1ª série
do ensino fundamental).

Conclusão
O simples fato de ter havido expansão do atendimento às crianças pequenas não
representa a democratização das oportunidades educacionais para essa faixa etária. Quando
analisamos a forma como isso ocorreu e algumas das características atuais desse atendimento
vemos que, ao contrário, as crianças que prioritariamente mereceriam um atendimento de
qualidade (devido à dívida social que temos com elas) são as que são alvo dos programas que
enfrentam os maiores problemas.
O mais triste é pensar que, mantemos um atendimento sem uma boa proposta
pedagógica com profissionais ainda não totalmente habilitados, trabalhando em condições
difíceis (baixos salários, grande número de crianças sob a sua responsabilidade, falta de um
acompanhamento próximo e frequente etc.), em ambientes muitas vezes inadequados
(quentes, pouco iluminados), sem os equipamentos e materiais necessários, com rotinas pouco
interessantes que deixam as crianças boa parte do tempo ociosas ou esperando algo (esperando
por atenção, esperando pela tarefa, esperando pra tomar banho, esperando para ir embora). E,
dessa forma estamos contribuindo para que, como diz Fúlvia Rosemberg (1997), a socialização
para a subalternidade das crianças pobres e negras (pretas ou pardas) se inicie na educação
infantil.

Novidades importantes

Uma nova concepção de criança e de educação infantil 2


O MEC tem expresso a sua preocupação com a questão da qualidade na educação infantil
por meio de alguns documentos como Política de educação infantil (1994), Por uma política de
formação do profissional de educação infantil (1994), Propostas pedagógicas e currículo em
educação infantil (1996), e, especialmente, Critérios para um atendimento em creches que
respeite os direitos fundamentais das crianças (1997).
Através da publicação destes documentos recentes, têm sido divulgadas novas
concepções acerca da educação dessa faixa etária (0 a 6 anos): sua natureza, objetivos,
prioridades etc. 3

2
Em outra ocasião (CRUZ, 1997), já chamei a atenção para essa mudança de concepções. Quase todo o
trecho a seguir é parte deste trabalho.
3
Uma boa novidade que logo chama a atenção nesses documentos é a contribuição, como consultores e
colaboradores, de pesquisadores e profissionais que atuam na área de educação infantil.
Neste sentido, é importante destacar que um dos princípios em que se baseiam as
diretrizes gerais da política de educação infantil assumida pelo MEC é que:

“A educação infantil é oferecida para, em com-plementação à ação da família,


proporcionar condições adequadas de desenvolvimento físico, emocional, cognitivo e
social da criança e promover a ampliação de suas experiências e conhecimentos,
estimulando o seu interesse pelo processo de transformação da natureza e pela
convivência em sociedade.” (Brasil/MEC, 1993. p. 15).

Coerentes com esse princípio, as diretrizes pedagógicas explicitadas nesse documento


expressam novos conceitos de criança e de educação infantil. A criança é vista como um ser
humano completo, ativo e capaz, sujeito social e histórico que produz e é influenciada pela sua
cultura, que se desenvolve através das interações que estabelece no seu meio físico e social num
processo que, “embora siga processos semelhantes em todas as crianças, obedece a ritmos
individuais peculiares a cada uma delas” (Brasil/MEC, 1993) 4.
Por outro lado, os novos documentos divulgados pelo MEC trazem uma mudança
fundamental em relação às funções da educação destinada a essa faixa etária: a integração entre
as diversas necessidades da criança que devem ser contempladas, sendo o cuidado e a educação
vistos como complementares e indissociáveis, além de complementares aos cuidados e
educação efetuados pela família 5. Assim tornam-se objetivos da educação destinada a essa
etapa do desenvolvimento do indivíduo:

“(1) favorecer o desenvolvimento infantil, nos aspectos físico, motor, emocional,


intelectual e social; (2) promover a ampliação das experiências e dos conhecimentos
infantis, estimulando o interesse da criança pequena pelo processo de transformação
da natureza e pela dinâmica da vida social, e (3) contribuir para que sua interação e
convivência na sociedade seja produtiva e marcada pelos valores de solidariedade,
liberdade, cooperação e respeito.” (Brasil/MEC, 1993. p.17)

É importante ressaltar ainda a ideia de que a educação da criança pequena


necessariamente inclui:

“todas as atividades ligadas à proteção e apoio necessários ao cotidiano de qualquer


criança: alimentar, lavar, trocar, curar, proteger, consolar, enfim, ‘cuidar’, todas
fazendo parte integrante do que chamamos de ‘educar’ “ (Campos, 1994b. p. 35).

A educação infantil como direito: “agora tá nas leis!”


Tem sido bastante saudado o ingresso do atendimento à criança pequena no âmbito da
educação, expresso tanto na nossa nova Constituição, promulgada em 1988, como no Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA e, especialmente, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação –
LDB. Tal fato, fruto de muitas lutas, é realmente muito importante, especialmente porque gera
uma responsabilidade nunca antes assumida pelo Estado: o atendimento gratuito em
instituições de educação infantil às crianças de zero a seis anos como parte do dever do Estado

4
Não se pode deixar de registrar o avanço dessa concepção em relação às contidas em documentos
anteriores onde transparecia uma ideia de carência e de falhas que a educação pré-escolar deveria suprir.
Além disso, mostra-se sensível às diferenças individuais entre as crianças.
5
O reconhecimento da realização dessas tarefas pelas famílias e a sua consideração enquanto parceira –
e não a quem se precise substituir ou com quem se deva competir, devido a sua incompetência para tanto
– também precisam se anotados como avanços significativos em relação às concepções anteriormente
em voga.
com a educação; assim, o que antes citado nas leis como amparo e assistência passou a ser um
direito. Nesse sentido, é bom lembrar que a educação infantil é um direito das crianças
(inclusive independente da mãe trabalhar fora ou não) e que deve complementar a ação da
família e da comunidade.
Essas leis (especialmente a LDB) trazem outras referências muito importantes, como:

• É direito da criança, dever do Estado e opção da família;


• A educação infantil é a primeira etapa da educação básica;
• A família pode optar se deseja ou não que seu filho(a) frequente essa etapa;
• A educação infantil é dividida em creche e pré-escola sendo a diferença entre ambas
unicamente em termos da idade atendida (creches para crianças de 0 a 3 anos e pré-escola para
as de 4 a 6 anos);
• A avaliação nessa etapa deve visar o acompanhamento do processo educacional da
criança, não sendo usada para determinar a sua promoção no agrupamento/série seguinte, nem
mesmo para o ingresso no ensino fundamental;
• O profissional que trabalhar diretamente com a criança deve ter no mínimo a habilitação
de nível médio, na modalidade normal.

Para você refletir

Assistencialismo x educação: será esta a questão?


Moysés Kuhlmann Júnior mostra em várias passagens do seu livro “Infância e educação
infantil: uma abordagem histórica” dois equívocos importantes que cometemos ao colocarmos
como problema central a necessidade das creches deixarem de ser assistencialistas e se
transformarem em instituições educacionais. Em primeiro lugar porque as creches e pré-escolas
assistencialistas foram concebidas e difundidas como instituições educacionais, locais onde as
crianças poderiam ser educadas de acordo com os interesses vigentes, aprendendo a assumir
valores, comportamentos etc. mais convenientes para a manutenção do status quo, para que a
sociedade permanecesse do mesmo jeito, dominada pelos grupos que tinham mais poder.
Depois, não se pode simplesmente associar assistencialismo à maldade e educação não é a
redentora da triste realidade”, como nos lembra esse autor.
E um alerta é importante: o que a história da educação infantil nos mostra é o
“predomínio da concepção educacional assistencialista, preconceituosa em relação à pobreza,
descomprometida quanto à qualidade do atendimento”. Isso, sim, precisa ser alvo da nossa
atenção e de nosso esforço no sentido de contribuirmos para uma mudança.

A qualidade na educação infantil


Pesquisas realizadas em diversas áreas como Psicologia e Educação já tornaram evidente
que o atendimento em espaços coletivos (instituições de educação infantil) pode ser algo muito
bom para a própria criança, não apenas um “mal necessário” resultante das necessidades das
famílias.

No entanto, para que isso aconteça, é necessário que se lute para se construir a qualidade
que é específica desse atendimento. O que isso quer dizer? Que não basta proclamar a
necessidade de qualidade no atendimento às crianças pequenas; é preciso deixar claro de que
qualidade estamos falando: a qualidade própria a esse atendimento. Portanto, é preciso
ressaltar essa especificidade para se garantir a qualidade que queremos ajudar a construir.
Na busca da identidade da educação infantil, o desafio atual é afirmar a necessidade de
se integrar educação e cuidado, o que decorre justamente da sua especificidade, isto é, desse
trabalho a ter como alvo a educação da criança de zero a seis anos. Então é imprescindível não
esquecer o que parece tão óbvio: estamos falando de educação e cuidados de bebês e crianças
de até seis anos. Como consequência, é preciso sempre considerar as características e
necessidades desses bebês e crianças que vivem em diferentes contextos socioculturais,
guiando-se pelos direitos fundamentais de todas as crianças (e não tendo como referência o que
as condições das suas famílias lhe permitem oferecer).
A defesa da função pedagógica da Educação Infantil é um avanço, pois todas as crianças
têm direito a enriquecer e ampliar o repertório de conhecimentos que já possuem. Mas
precisamos pensar com cautela o que isso significa e que ações devem ser realizadas para que
essa função se concretize sem que outros direitos que a criança tem, como o direito a brincar,
sejam também assegurados.
Por outro lado, quando nos referimos a cuidados, muitas vezes estamos pensando em dar
comida na hora certa, escovar os dentes, botar pra dormir etc. e nos esquecemos que perguntar
se a mamãe já teve nenen, dar um colo na hora certa, dar atenção a uma pergunta, participar
com alegria de uma brincadeira etc. também expressam cuidados que todas as crianças
precisam.
Para desenvolver um trabalho com boa qualidade as pessoas responsáveis pelo cuidado
e educação de crianças tão pequenas, precisam ter consciência da natureza e importância do
seu trabalho e não só aproveitarem as oportunidades que surgem, mas também lutarem por
melhorar a sua qualificação, entendendo que têm muito o que aprender para que seu trabalho
seja cada vez mais rico e prazeroso para si e para as crianças.
Por último, não podemos esquecer das condições necessárias para que os profissionais
da educação infantil desenvolvam um trabalho de qualidade. Tais condições envolvem diversos
aspectos, relacionados às próprias instalações, aos equipamentos e materiais existentes, ao
funcionamento da instituição e também ao acompanhamento e supervisão sistemáticos das
ações aí desenvolvidas. Tudo isso certamente contribui para que o pessoal de cada instituição
busque de maneira mais eficiente e proveitosa os caminhos de um trabalho de educação infantil
com a qualidade necessária.
Resumindo: na educação infantil, o grande desafio é a busca da sua identidade, que deve
aliar cuidado e educação, mas cuidado e educação com qualidade.

Todas as crianças precisam e merecem ser atendidas em instituições:

• Limpas e seguras;
• Com espaços amplos e que propiciem o contato com a natureza;
• Aconchegantes, alegres e estimulantes;
• Bem equipadas, inclusive com brinquedos adequados, variados e em quantidade suficiente;
• Que oferecem boa alimentação;
• Arejadas e bem iluminadas;
• Com uma proposta pedagógica.

E por profissionais:

• Habilitados;
• Bem remunerados;
• Motivados e comprometidos;
• Acompanhados frequente e regularmente.

Você não concorda?


Bibliografia

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981.

BRASIL, MEC/SEF/COEDI. Educação infantil no Brasil: situação atual. Brasília: 1994, a.

____.Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das


crianças. Brasília: 1995.

____.Política de educação infantil. Brasília: 1996.

____.Por uma política de formação do profissional de educação infantil. 1994,b.

CRUZ, Silvia Helena Vieira. Reflexões acerca da formação do educador infantil. Cadernos de
Pesquisa. São Paulo: n° 97, p. 79-87, maio 1996.

CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 1977.

KUHLMANN JR. Moysés. Infância e educação infantil. Porto Alegre: Editora Mediação, 1998.

KRAMER, Sonia. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro: Dois Pontos,
1987.

ROSEMBERG, Fúlvia. Educação, gênero e raça. Trabalho apresentado no Encontro da Latin


American Studies Association de 1997. Guadalajara: México (mimeo).

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