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A luz, o tempo e o movimento

Roberto Grosseteste

A luz, o tempo
e o movimento
Edição bilíngüe

Tradução:
Renato Romano
Apresentação:
Raphael De Paola
A luz, o tempo e o movimento, Roberto Grosseteste
© Editora Concreta, 2016

Títulos originais:
De luce seu de inchoatione formarum
De finitate motus et temporis

O texto latino dos dois opúsculos deste volume é o da edição de Die Philosophischen Werke
des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln (Münster i. W., Aschendorff, 1912).

Os direitos desta edição pertencem à


Editora Concreta
Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330
Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br
Editor:
Renan Martins dos Santos
Coordenador editorial:
Sidney Silveira
Tradução:
Renato Romano
Revisão:
José Renato Lima
Capa & Diagramação:
Hugo de Santa Cruz

Ficha Catalográfica
Grosseteste, Roberto, 1168?-1253
G8786a A luz, o tempo e o movimento [livro eletrônico] / tradução de Renato Romano,
apresentação de Raphael De Paola. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016.
136p. :p&b ; 16 x 23cm

ISBN 978-85-68962-21-3

1. Ciência. 2. História da ciência. 3. Filosofia. 4. Filosofia medieval. 5. Metafisica.


6. Cristianismo. 7. Catolicismo. I. Título.

CDD-509.4

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer


reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica
ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br
C OL EÇ ÃO ESC OL Á S T IC A

F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da
dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história
da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,
a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas
demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a
partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica
que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-
zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da
materia prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como
Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha
ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho
metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias
esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios
dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen
Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-
menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno:
o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em
ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras
obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-
tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios
filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-
centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter
atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar
diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da
desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual
fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a
política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas,
mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora
Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico
confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior
deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas
pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande
maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-
vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est
diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens,
para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-
gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes
que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-
pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas
raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-
rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em
tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto
foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a
certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada
terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com
edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo
de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-
te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-
mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será
o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.

Sidney Silveira
Coordenador da Coleção Escolástica
Agradecimentos aos colaboradores

Através de campanha no website da Concreta para financiar a produção de A luz,


o tempo e o movimento, 262 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tor-
nasse realidade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir,
listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção:

Alexandre Reis Bruno Marinho


Allan Victor Almeida Marandola Caio Graco Da Silva Purita Ferreira
Álvaro César Pestana Caio Ometto
Amanda Kelly Rodrigues Sampaio Carla De Carli
Amantino de Moura Carlos Alberto Leite de Moura
André Caniné de Oliveira Machado Carlos Alexander de Souza Castro
Andre Couto Carlos César Lazarini Jr.
André Luiz Vaz Bez Carlos Eduardo Monteiro
André Ortlieb Quinto Carlos Eduardo N. Nigro
Andre Santos Cintia Teixeira
Arthur Burle Monteiro Claudia Pompein Lizardo Gomes
Augusto Cardoso de Moraes Cristiano Eulino
Augusto Carlos Pola Jr. Cristiano Xavier
Bernardo Vieira Emerick Davide Lanfranchi
Denis Gomes Aquino Gustavo Costa Santos
Diego Gonçalves de Araújo Gustavo de Araújo
Diogo Gonçalves Gustavo Silva Costa
Douglas Caldeira da Conceição Hellyandro de Sousa Ferraz
Ederson Oliveira Herbeth Luiz Reis
Eduardo Cardoso de Moraes Hermano Zanotta
Eduardo César Silva Humberto Campolina
Eduardo Dos Santos Silveira Iago Uliano
Eduardo Mohallem Ivan Lago
Eric Cari Primon Jairo da Silva
Erick Robles Lima Jefferson Bombachim Ribeiro
Evandro Ferreira Jefferson Nascimento
Ewerton Caetano João Francisco Winckler
Fabio Dias Jorge F. Alvares
Fábio Reis José Alexandre
Fabio Seiji Koguti José Armando Vinagre della Rovere
Felipe Corte Lima José Barbosa
Felipe Pina Kênio Barros de Ávila Nascimento
Félix Ferrà Krishnamurti Andrade
Fernando Belmonte Archetti Leandro Marchezan
Fernando Henrique Cesar Leitão Leonardo Domingos Fonseca
Fernando Henrique Pereira Menezes Leonardo Ferreira Boaski
Fernando Ribeiro Leonardo Henrique Silva
Fernando Rodrigues Felix Leopoldo Ferezin
Flavio Aprigliano Filho Lhuba Saucedo
Fortunato Baia Luana Martini Centeno
Gabriel Henrique Knüpfer Lucas Felipe Wosgrau Padilha
Gabriel Melati Lucas Lacerda
Genésio Saraiva Lucas Rodrigues de Macedo
Gilson Bezerra Jr. Luiz Antonio Folador
Gio Fabiano Voltolini Jr. Luiz Gustavo De França Lima
Giovane Goulart Fiorentino Luiza Jandira Varela de Araújo
Giuliano Bastos Estrela Lutio Henrique
Giuliano Lucas Magno Marciete Nascimento Oliveira
Gláucio de Queiroz Bretas Marcelo Assiz
Gracian Li Pereira Marcelo Guizzo
Guilherme Batista Afonso Ferreira Marcelo Hipólito
Gustavo Alves Sousa Marcelo Melhorança
Gustavo Bertoche Marcia S. R. Carneiro
Marcio Antonio de Castro Campos Ryszard Dygas Filho
Marcio Fernando de A. Moreira Samuel da Silva Marcondes
Marcio Pereira de Souza Samuel Pereira Viana
Marco Hermeto Silvio Camargo
Marcos Biancar Silvio José de Oliveira
Marcos Costa Sonia Leite
Marcos Pires de Campos Thauan Monteiro
Mateus Cruz Thiago Junglhaus
Matheus Perelli A. de Almeida Tiago Campos Rizzotto
Maurício Paraboni Veríssimo Anagnostopoulos
Mauro Ribeiro Vitor Matias
Milena Menezes Carvalho Wilson Junior
Moroni Linhares
Oacy Junior
Odysseus Achiles
Otávio Lins
Paulo Brito
Paulo Henrique Brasil Ribeiro
Pedro Alexandre Matsu M. da Silva
Pedro Benedetti
Pedro Correa
Pedro Gonçalves de Oliveira
Rafael Bassoli
Renato Elesbão
Renato Guimarães
Renato Romano
Ricardo Rodrigues
Ricardo Schiavão
Roberto Barros Santos
Roberto Gomes do Nascimento
Roberto S. Almeida
Roberto Smera
Rodolfo Melchior Lopes
Rodrigo Celeste
Rodrigo Dubal
Rodrigo Prestes
Rogério S. Costa
Ronaldo Fernandes da Silva
Ronaldo Henrique Bertoni
Sumário

Apresentação - Anões, gigantes e deuses 13 


Grosseteste 17
O lugar da Escolástica no desenvolvimento da ciência 18
Física e matemática – e metafísica, claro 21
Descrição ou explicação? A física matemática moderna 41
Física, matemática e física de novo 54
Dois paralelos entre os textos de Grosseteste e a Física contemporânea 63
Luz, tempo e movimento 71
Bibliografia 77

Sobre a luz 83

Sobre a finitude do movimento e do tempo 103

Posfácio - Um gigante do passado e os anões do presente 123

Bibliografia citada  127

Roberti Lincolniensis episcopi Opera Omnia  129


Apresentação

Anões, gigantes e deuses


RAPHAEL DE PAOLA*


S
e minha vista alcança mais longe é porque subi no ombro de gigantes”.
O juízo a que alude Newton nesse aforismo é tão verdadeiro e tão ób-
vio, que só pode parecer novidade para um recém-chegado ao mundo
do saber: de que outro modo, senão através da transmissão de pessoa a pessoa,
poderia o conhecimento se propagar, acumular e evoluir?
Quem quer que se disponha a trabalhar em algo não o faz nunca no vazio,
sendo obrigado a se inserir, conscientemente ou não, em alguma tradição de
conhecimento. Na verdade, a frase de Newton faz tanto sentido como expres-
são da transmissão do saber, que ela mesma tem uma tradição e uma história:
ela nasce mais de cinco séculos antes de Newton com o monge cristão de
orientação platônica Bernardo de Chartres, ao qual João de Salisbury atribui,
em seu Metalogicon, o pensamento de “nos comparar a anões montados sobre
os ombros de gigantes”. Desde a sua origem, a própria expressão passou por

* Raphael D. M. De Paola doutorou-se pelo CBPF em 2001 na área de Teoria Quântica de Campos.
Interessando-se pela fundamentação filosófica dos conceitos e teorias físicas, retirou-se da pesquisa
na universidade para dedicar-se ao estudo autônomo a fim de entender melhor de que trata a Física.
Desde então lecionou oito anos no Ensino Médio e atualmente leciona no Departamento de Física
da PUC-Rio. Traduziu para o português O Enigma Quântico – Desvendando a chave oculta (2011), de
Wolfgang Smith, e Física e Realidade – Reflexões Metafísicas sobre a Ciência Natural (2013), de Carlos
Casanova, ambos publicados pela Vide Editorial, Campinas, SP.
14 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

tantas transformações que chegou a poder ser usada, se dermos crédito à es-
peculação de Robert Crease, do modo sarcástico com que Newton a brandiu
contra seu rival Robert Hooke: ao fazê-lo, Newton quereria mostrar-se inde-
pendente das idéias de Hooke aludindo à baixa estatura física deste. i
O reconhecimento da importância de pensadores passados sobre os das
gerações posteriores é parte integrante de qualquer tradição, e quem quer que
não respeite essa cadeia de transmissão corre grande risco de só pronunciar
desatinos – e é praticamente inevitável que isso ocorra quando alguém se mete
a falar daquilo que não estudou. Desde que Aristóteles estabeleceu como ab-
solutamente necessária a ambientação do filósofo nas “opiniões dos sábios”,
sedimentando com isso um dos fundamentos do método filosófico-científico,
o conhecimento do status quaestionis tornou-se imperioso em qualquer campo
da atividade humana. E, claro, aquilo que conhecemos modernamente como
“ciência” não poderia fugir a esta regra. Não poderia nem foge, mas dá a pa-
recer que sim, ao menos com relação a uma época em particular: a ciência
praticada no período medieval, sobretudo pelos escolásticos.
Não há um só historiador da ciência que negue a este período o seu lugar
próprio no encadeamento das idéias que vêm desde a Grécia antiga até os tempos
de Kepler, Galileu e Descartes. E isto não apenas ao ponto de enxergarem na Es-
colástica vagas inspirações de princípio e de método, ou ainda de especulações me-
tafísicas que fizessem pouco mais que preparar o ambiente intelectual para futuras
descobertas; no campo das próprias descobertas científicas, não é mais possível
negar que muitos resultados difundidos e aproveitados posteriormente – no perí-
odo conhecido como “período clássico” da ciência moderna – foram conquistas
dos escolásticos. Mas, com relação à ciência medieval, e ao período medieval como
um todo, verifica-se hoje uma situação no mínimo curiosa: apesar de estarmos na
época que se gaba de sua fome pelo saber, que prega o “respeito aos especialistas”
e a ida às “fontes autorizadas”, a opinião média do homem educado moderno está
nos antípodas do que dizem e sabem os estudiosos do assunto.
Ao falar daquilo que, genericamente, se convencionou chamar de “ciência”,
quem hoje em dia não sai do sistema de “ensino”, do fundamental à universidade,
acreditando piamente que o primeiro homem a usar sua inteligência de modo
científico tenha sido Galileu Galilei? Quem duvida que, entre os tempos de Eu-

iRobert P. Crease, The Great Equations: Breakthroughs in Science from Pythagoras to Heisenberg,
Nova York, W. W. Norton & Co., 2011, p. 82. Newton usa a expressão em carta a Hooke, cf. H.
W. Turnbull (ed.), The Correspondence of Isaac Newton: 1661-1675, Londres, publicado pela Royal
Society na University Press, 1959. p. 416.
Apresentação 15

clides e o realmente maravilhoso século XVII, só o que houve no campo da ciên-


cia foram trevas e obscurantismo? Faça esta experiência: pergunte a um professor
universitário de física ou de matemática – que, em princípio, deveria ter noção
abrangente sobre a história das idéias de seu próprio campo – se ele sabe que o
autor da “lei da velocidade média” não foi Galileu, mas, trezentos anos antes dele,
os calculadores de Merton.ii Que os fundamentos teóricos e primeiras aplicações do
uso de gráficos e coordenadas para a representação, tanto de quantidades como
de qualidades, ferramenta fundamental para toda a física matemática a partir de
então, não foi obra de Descartes nem de Galileu, mas de Thomas Bradwardine
e Nicolau Oresme, também com antecipação de três séculos. E que a primeira
descrição praticamente completa do arco-íris não é a de Descartes, mas a de Te-
odorico de Freiberg, novamente cerca de trezentos anos antes. E que a descrição
do sistema solar dada por Copérnico só foi possível devido ao conhecimento acu-
mulado ao longo de séculos de observações astronômicas cada vez mais refinadas.
Os calculadores de Merton foram um grupo reunido no Merton College
de Oxford em meados do século XIV, cujas raízes remontam a Roger Bacon e
cuja inspiração originária foi Roberto Grosseteste, que tem duas obras editadas
no presente volume da Coleção Escolástica, da editora Concreta. Seus princi-
pais expoentes foram William de Heytesbury, Richard Swineshead, Thomas
Bradwardine e John de Dumbleton. Maior ainda que essa contribuição da
lei da velocidade média, alcunhada pelos historiadores de “lei de Merton”, é
a conceituação lógica feita por eles de velocidade e de aceleração, seguida do
meticuloso desembaraço entre esses dois conceitos e que constitui a base de
todo o desenvolvimento que a cinemática alcançou nos séculos seguintes. iii
Não é impossível, mas apenas improvável, que um homem de ciência hoje
reconheça esses fatos. Se ele os conhecer, indague-se dele se supõe que esses
saberes, e muitos outros, foram redescobertos independentemente por Galileu,
Descartes e Copérnico, ou se porventura ele tem notícia de ter havido uma lon-
ga e complexa cadeia de transmissão que os fizeram chegar à entrada da moder-
nidade. No caso de Galileu em particular, apontado de modo quase unânime na
literatura científica popular como “o descobridor do método científico”, quem,
senão o historiador especializado, é capaz de ligar as origens de seu pensamento
às obras das gerações anteriores, em especial Pietro d’Abano, Paulo de Veneza,

ii A “lei da velocidade média” diz que um móvel que acelere uniformemente desde uma velocidade de,
digamos, 40 km/h, até a velocidade de 60 km/h, percorrerá a mesma distância que um outro móvel
que se movesse sempre a 50 km/h, considerando que ambos se movam por tempos iguais, obviamente.
iii Cf., p. ex., William A. Wallace, Causality and Scientific Explanation, Ann Arbor, The University
of Michigan Press, 1972, vol. 1, cap. 2.
16 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Agostino Nifo e Jacopo Zabarella, conhecidos como os “aristotélicos de Pádua”,


cujo conhecimento foi transmitido a Galileu no Collegio Romano pelos jesuítas
Joannes Lorinus e Paolo Vallius – a ponto de Galileu ter-se apropriado de um
tratado justamente sobre metodologia científica e lógica deste último? iv
É claro que, tão logo confrontado com a pergunta sobre o desenvolvimen-
to das idéias científicas, o público letrado de hoje se vê obrigado a reconhecer
que a ciência moderna não pode ter nascido sozinha e há de ter tido prede-
cessores. “Conhecimento não nasce em árvore” é a resposta quase natural de
quem se habituou a ver conhecimentos evoluindo a partir de conhecimentos
prévios. Contudo, a concessão de que a ciência moderna deva ser devedora de
pensadores anteriores é feita de modo apenas genérico, da boca para fora. Se
alguém pede por uma lista de nomes que desempenhem, na mente do univer-
sitário médio de hoje, o papel de origens e cadeias transmissoras do conheci-
mento científico, só o que ouvirá são os nomes de dois grupos, separados por
mais de quinze séculos: os da Antiguidade grega e os do Renascimento. Entre
estes dois períodos, o mais puro vácuo.
Desde a famosa era grega das especulações filosóficas sobre a matéria feitas por
Tales e pelos atomistas,v e ainda das investigações matemáticas de Pitágoras, Eu-
clides e Arquimedes, até a era das invenções de Leonardo da Vinci e das descober-
tas de Copérnico, Gilbert, Harvey e Kepler, só o que povoa o imaginário da classe
universitária – distante da área especializada da história da ciência – é uma vasta
era de sombras. É como se nada tivesse sido feito pelo conhecimento científico
durante um milênio e meio. Daí o público supostamente “informado” que sai
de nossas universidades tirar o corolário óbvio: se nós, que estamos em plena era
do saber, não sabemos de nada que eles realizaram, só pode ser porque eles não
fizeram nada mesmo, nada que valha a pena saber ou que tenha valor científico.
Um mínimo de honestidade no exame desta situação já nos permite identi-
ficar a irônica projeção de ignorância: se o público moderno estivesse realmente
imbuído da busca pelo saber alardeada como característica definidora de nossa
época – há quem afirme estarmos na “era da informação” –, uns meses de leitura

iv Para uma introdução ao assunto, ver William A. Wallace, op. cit., e The Modeling of Nature.
Para um estudo em profundidade, ver, do mesmo autor, Galileo and His Sources e também Prelude
to Galileo.
v Escandalosamente, Platão e Aristóteles jamais são citados a esse respeito. Em alguns textos moder-
nos com enfoque propriamente filosófico, as especulações de Platão e Aristóteles sobre a matéria são
analisadas com profundidade, mas isso jamais ocorre em textos com enfoque mais “científico”, nos
quais os nomes deles sequer são mencionados. É óbvio que esse divórcio insanável entre filosofia e
ciência é obra não de ciência, mas de filosofia – uma má filosofia, evidentemente.
Apresentação 17

dos estudos especializados disponíveis há décadas o convenceria de que aquela


idade não foi “das trevas”; o que são trevas é o conhecimento do cidadão letrado
médio de hoje a respeito daquela época. A nossa própria ignorância acerca de
toda uma era é ironicamente exibida como prova de que ignorantes eram eles.
Você não sabe o que eles sabiam; logo, eles é que não sabiam nada.
Uma conseqüência caricata da presunção de datar dos séculos pós-Idade Mé-
dia todas as conquistas da ciência é o puxa-saquismo endeusador dos pensadores
deste último período: “Nature and Nature’s laws lay hid in night: God said, Let
Newton be! and all was light” foi o epitáfio escrito pelo poeta Alexander Pope em
homenagem a Isaac Newton (“A natureza e as suas leis jazem escondidas na noite:
Deus disse, que seja Newton!, e tudo fez-se luz”). Coisas não menos ridículas
foram escritas a respeito de Galileu e de outros: Paolo Sarpi achava que “para nos
dar a ciência do movimento, Deus e a Natureza se deram as mãos e criaram o
intelecto de Galileu”. Essa propaganda desproporcional dos feitos de uma época
em detrimento total das épocas que a antecederam passa a idéia simetricamente
oposta ao aforismo de Newton sobre “apoiar-se nos ombros de gigantes”. Proce-
dendo assim, lançando exclusivamente nos ombros dos homens do período mo-
derno o peso pela descoberta de todo o conhecimento científico – numa alegação
explícita de que eles nada devessem aos homens dos séculos anteriores –, agimos
como anões míopes que se recusam teimosamente a subir nos ombros dos gigan-
tes que nos precederam, preferindo antes acreditar que homens como Galileu,
Descartes e Newton não fossem gigantes apenas, mas nada menos que deuses.

Grosseteste

Roberto Grosseteste foi um desses gigantes do período medieval. A tal


ponto o foi que o historiador Alistair Crombie chegou a datar as origens da
ciência moderna no próprio Grosseteste, em Robert Grosseteste and the Origins
of Experimental Science, 1100-1700. vi As duas traduções apresentadas no pre-
sente volume têm mais o sabor daquilo que hoje chamaríamos de metafísico
que propriamente científico, mas toda classificação moderna deve ser tomada
cum grano salis, e nossa apresentação pretende aplainar o caminho do leitor.
Como o próprio leitor constatará, Grosseteste trata aqui de temas da metafí-
sica, da física, da matemática, da cosmologia, da psicologia e da religião, não
diferindo, nisto, de muitos escritos de homens de ciência de todas as épocas

vi O livro foi publicado em 1953, mas no prefácio à segunda edição, de 1961, Crombie atenua a alegação.
18 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

– da nossa, inclusive. O leitor também constatará que todos os temas tratados


são, ainda hoje, objeto de intenso debate, e perceberá que, em alguns deles, o
avanço alcançado nos últimos oitocentos anos reside muito mais nos detalhes
do que nas questões de fundo, não se tendo avançado nestas tanto quanto a
propaganda cientificista faz crer. Mas tampouco as novas descobertas trou-
xeram apenas confusão e loucura, como querem fazer crer grupos avessos às
aquisições que a “ciência moderna” trouxe ao conhecimento.
Excluamos do nosso horizonte as seguintes atitudes: nem a pressa de al-
guns em rejeitar os pensadores passados por falarem em linguagem muitas
vezes religiosa; nem a aversão de outros aos modernos por estes não falarem
numa linguagem religiosa; nem a vontade de ver nas discussões modernas
nada mais que ecos dos pensadores passados, como se nada tivesse sido des-
coberto desde então; nem, muito menos, ver na ciência moderna uma súbita
aparição da curiosidade e da inteligência humanas, como se essas qualidades
tivessem sido infundidas no homem pela primeira vez em Galileu. Nada disso
deveria desviar nossa atenção do fato de que, em todas as épocas, sempre hou-
ve homens voltados à descoberta e ao entendimento da realidade.
Para além de visões deformadas que os vários “nós” projetam sobre os vá-
rios “eles”, não custa deixarmos cada um falar a sua própria língua e permitir
que a própria discussão mostre aonde está indo. Quando, portanto, nós nos
orgulhamos da “civilização científica” em que vivemos, e historiadores e filó-
sofos são unânimes em apontar a importância, para o entendimento de nossa
própria época, das contribuições que o pensamento medieval europeu trouxe à
ciência, a cautela aconselha mergulharmos naquele universo cognitivo na ten-
tativa de haurir dele lições corretivas para a nossa própria época. Ou estaremos
nós na única época da história que não precisa da correção e da ajuda de tem-
pos passados, contendo em si, paradoxalmente, o remédio para seus próprios
males? Aliás, talvez essa seja a maior lição que aquela época tenha a transmitir
à nossa: não foi justamente a injeção do “sangue novo dos séculos passados”
que infundiu vida renovada na civilização medieval? Por que nós também não
podemos “experimentar de tudo e ficar com o que é bom”?

O lugar da Escolástica no desenvolvimento da ciência

A visão a respeito do tipo de ciência praticada durante a Idade Média va-


riou nos séculos seguintes conforme o freguês. Já a acusaram de ser total-
mente apriorística, desprezando a riqueza variadíssima dos fatos concretos e
Apresentação 19

forçando-os a se encaixar em esquemas metafísicos previamente desenhados,


mas também já a acusaram do contrário, de só procurar colher e acumular re-
sultados desconexos, sem nenhum interesse de produzir uma visão de conjun-
to, resultando numa espécie de enciclopedismo estéril. Já a acusaram de se ater
ferrenhamente aos textos bíblicos ou então aos de Aristóteles; de tentar manter
próximos demais os dados dos sentidos, mas também de tentar alçar vôo dema-
siado rápido às especulações metafísicas; de buscar somente correlações causais,
e apenas por analogias simbólicas; de ser puramente matemática e de desprezar
totalmente a matemática; de ser regida pela teologia e de tentar destruir a teolo-
gia; de ser um tributo à crença em Deus e de destruir a crença em Deus. Não é
preciso dizer que todas essas percepções são parcialmente verdadeiras, mas, por
isso mesmo, absolutamente falsas quando tomadas como visão do todo.
Até o final do século XIX, não se empreendeu nenhum esforço sério de
compreensão das obras daquele período que tivessem algum conteúdo cientí-
fico, e por um motivo simples: ninguém as lia porque acreditava na propagan-
da de que nada havia ali de científico a ser estudado. Tão logo Pierre Duhem
disseminou as primeiras obras, produziu-se uma mutação na visão moderna
sobre o tipo e o nível da ciência que se praticava na Idade Média. Como
conseqüência, uma avalanche de historiadores e filósofos debruçou-se sobre
aquele rico acervo de textos medievais: Charles Haskins, Lynn Thorndyke,
Edwin A. Burtt, Eduard Dijksterhuis, Alistair Crombie, René Dugas, Mar-
shall Clagett, Anneliese Maier, Alexander Koyré, William A. Wallace, Bernard
Cohen, Edith Sylla, John Murdock, William Newman, Edward Grant, James
Weisheipl, David Lindberg, Rupert Hall, Mary Boas Hall, Stillman Drake,
Richard Westfall, Mary Hesse, Max Jammer, Geoffrey Lloyd... Uma pequena
lista com alguns trabalhos relevantes é apresentada no final desta apresentação.
O conhecimento acumulado desde Duhem desfez por completo a noção
vigente até então – puramente propagandística, aliás – de que aquele tivesse
sido um período infértil para o conhecimento do mundo natural, sob qual-
quer prisma e com qualquer régua que se medisse. Conquistas metodológicas,
avanços conceituais e matemáticos, observação cuidadosa de fenômenos – não
raro até em condições de observação controlada em laboratório –, coleção de
resultados e tentativa de articulação de conjunto, troca de informações por
meio da circulação de publicações; enfim, todos os ingredientes que consti-
tuem o “método científico” e tudo o que o possibilita já estavam presentes e
eram aplicados com algum sucesso na ciência medieval, em particular a reali-
zada pelos escolásticos. Por que então ainda é universalmente aceita, fora do
ambiente restrito dos especialistas da história da ciência – e a despeito de todas
20 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

as suas descobertas –, a tese de que a ciência medieval não tenha dado nenhum
aporte à ciência moderna?
O principal motor, a principal causa eficiente não é nova: é o prossegui-
mento dos gigantescos esforços, originados nos séculos finais da Idade Média,
de substituição de uma autoridade moral por outra – do clero em favor daqui-
lo que Olavo de Carvalho chama de “intelectualidade palaciana” –, guinada
que deve sempre vir acompanhada de alguma demonstração de superioridade
intelectual, real ou imaginária. O grande beneficiário dessa megaoperação, que
se arrasta até os dias de hoje, viria a ser a formação e progressivo fortalecimen-
to do Estado moderno. A princípio, os Estados nacionais; nos tempos atuais,
o “Estado” global, a administração global, ampliada através dos organismos
e poderes que o implantam à força. Para este empreendimento, então como
hoje, sempre contribuíram semiconscientemente muitos homens de ciência: a
ocultação de fontes “inconvenientes”, um dos esportes preferidos de Galileu, é
justamente o instrumento utilizado hoje para negar o acesso do público mais
amplo às verdades que todo historiador da ciência já sabe há décadas.
Outro instrumento deste empreendimento é a imposição farsesca de debates
do tipo ciência x religião ou conhecimento x fé. Esses debates são apresentados
hoje em dia como se no final da Idade Média o julgamento científico sobre os
assuntos terrenos tivesse a urgência de ser transferido – trazendo a reboque a
autoridade dos julgamentos políticos e morais – das mãos daqueles que falavam
“das coisas do céu” para as mãos daqueles que pareciam falar apenas acerca “das
coisas da terra”. No formato asséptico em que os termos são colocados hoje, a
cosmovisão ocidental teria passado de uma visão “teocêntrica” para uma visão
“antropocêntrica”. Ora, nada pode estar mais distante dos fatos: é só abrir qual-
quer escrito de Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, por exemplo, e verificar
que, longe de eles deixarem de lado as questões “do céu” para se concentrarem
nas questões “da terra”, seu principal esforço era por ligar céus e terras, era atingir
um conhecimento mais adequado, no entender deles, das coisas “da terra”, que
possibilitasse ao mesmo tempo e por isso mesmo um melhor vislumbre “do céu”.
Na verdade, a ligação entre as coisas do céu e as da terra era tão orgânica
na cabeça dos homens de ciência da entrada da modernidade, que nunca falta-
ram duras acusações recíprocas de ateísmo entre eles, cada um querendo ver nas
idéias filosóficas e científicas dos outros um rumo inequívoco para o abandono
de Deus e para a instalação definitiva do império terreno da estupidez e da lou-
cura. Mas a ocultação da motivação religiosa por detrás dos esforços científicos
dos homens de ciência daquele período foi um truque tão bem sucedido, que
é com assombro que todo mundo recebe a notícia de que ainda hoje a maioria
Apresentação 21

dos cientistas tem alguma religião. Segundo pesquisa de Baruch Aba Shalev – no
livro 100 Years of Nobel Prizes –, cerca de 65% dos ganhadores de Prêmio No-
bel em ciência proclamam-se pertencentes a alguma ramificação religiosa cristã.
Ora, mas se é fácil ocultar que hoje a maioria dos cientistas que estão vivos e res-
pirando na nossa cara é composta de gente religiosa, quão mais fácil não é fingir
que os cientistas tenham sido ateus e materialistas desde sempre?
Contudo, não é mais possível vivermos de mitos e lendas sobre épocas
passadas e sobre a nossa própria e as suas origens: num tempo em que goza-
ções macabras como a “ideologia de gênero” e o “sócio-construtivismo” são
proclamadas do alto das cátedras universitárias como modalidades genuínas
de “conhecimento científico” e implementadas em todo o mundo à força de
pressões de organismos internacionais, chegou o momento de pararmos de
brincar de esconde-esconde e nos debruçarmos seriamente sobre as origens e
rumos que tomou a ciência, sob o risco de mergulharmos toda a sociedade no
irracionalismo que já tomou conta de intelectuais e de departamentos univer-
sitários inteiros – e, por conseguinte, de governos, nações e regimes políticos.
Deixando para um outro momento a análise destes fatores que parecem
não pertencer intrinsecamente ao conteúdo do conhecimento científico ad-
quirido desde então, podemos fazer a pergunta de David Lindberg (em The
Beginnings of Western Science, p. 360): será que na ciência do século XVII ocor-
reu realmente uma mutação tão radical e profunda, com alcance, fôlego e in-
fluência suficientes, que a permita ser qualificada como “revolucionária”? É
possível identificar algum fator de mudança de mentalidade tão radical que
justifique situar as origens do pensamento científico exclusivamente no século
XVII, como se ali tivesse ocorrido uma espécie de abiogênese da razão científi-
ca? Lindberg apresenta duas hipóteses recorrentes no contexto dessa discussão
no meio acadêmico: uma espécie de “cura” do cisma entre física e matemática
que supostamente prevalecia até então, e a invenção e a colocação em prática
do “método experimental”. O problema, porém, como aponta Lindberg, é que
nenhuma dessas hipóteses sobrevive ao teste dos fatos históricos.

Física e matemática – e metafísica, claro

Alega-se, em favor da primeira hipótese, que até a entrada da modernidade


tivesse sempre havido rígida separação, quase aos moldes da existente entre de-
partamentos numa universidade contemporânea, entre os estudos matemáticos
e os de filosofia natural. Essa separação às vezes é apresentada como resquício de
22 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

um platonismo degradado que julgava ser impossível adotar as certezas atem-


porais da geometria como instrumento para a investigação do mundo natural
sempre mutável, e às vezes é apresentada como fruto do desprezo de Aristóteles
pela matemática. Os estudiosos da natureza limitavam-se, segundo a tese, a bus-
car explicações físicas apenas qualitativas e sem nenhum auxílio dos métodos
quantitativos postos à disposição pela matemática, mas o panorama teria muda-
do drasticamente a partir dos séculos XVI e XVII, quando se passou a confiar à
matemática o papel de regente dos estudos de filosofia natural. Galileu é sempre
apresentado como desbravador desta simbiose físico-matemática, e seus anteces-
sores são vistos, inclusive por ele próprio, como insensíveis a tão fértil casamento.
Esta tese é não somente errada do ponto de vista histórico, como absurda
do ponto de vista das doutrinas filosóficas mesmas. Platão, sendo o autor da
idéia da participação dos entes materiais nas formas ideais, seria o último a negar
à geometria a utilidade e até o dever de se ver aplicada aos estudos do mundo
natural. Mal é preciso lembrar a inscrição no pórtico de entrada da Academia:
“Que ninguém ignorante em geometria entre aqui”. Mesmo que as primeiras
alusões a tal inscrição datem de muitos séculos depois de Platão, elas aparecem
pelas mãos de filósofos que se consideravam, eles mesmos, herdeiros da filosofia
platônica. Ainda que não seja materialmente verdadeira a afirmação de que exis-
tisse tal inscrição na época em que Platão estava vivo e lecionando, dificilmente
se poderia exagerar a importância que teve a matemática para a sua filosofia.
É certo que Platão não concedesse ao estudo do mundo natural o estatuto
de sabedoria primeira: pelo fato de seu objeto ser mutável, seria impossível
alcançar um conhecimento certo a seu respeito. No entanto, o fato de, no pen-
samento platônico, o conhecimento sobre o mundo natural poder atingir no
máximo o estatuto de conhecimento provável, atingir um conhecimento ape-
nas provável não é o mesmo que não atingir conhecimento nenhum. E como
para Platão a matemática tinha como objeto entes eternos – cujo conhecimen-
to, portanto, uma vez atingido, podia ser considerado certo –, o encaixe entre
as formas matemáticas eternas e o mundo físico mutável adquiria uma impor-
tância crucial. vii O exemplo máximo deste esforço em Platão era a explicação
dos elementos físicos (terra, ar, fogo, água) em termos dos sólidos geométricos
– e a destes em termos de figuras planas. Seus alunos e ouvintes sentiram com

vii
Nos estudos sobre a filosofia de Platão, às vezes se enfatiza mais a participação, às vezes a imitação
das formas no mundo físico, dependendo de o enfoque ser mais o da imanência ou o da transcen-
dência. No entanto, esta não é uma questão em que faça sentido a adesão exclusiva a uma dessas
abordagens com a exclusão da outra, já que imanência e transcendência não são conceitos contrários,
mas complementares.
Apresentação 23

tanta premência o chamado à aplicação da matemática ao mundo físico que


o impulso matematizante se fez sentir sobre os estudos de astronomia já nas
primeiras gerações dentro da Academia: segundo Simplício, viii Platão teria le-
gado às gerações seguintes o problema de dar conta dos movimentos aparentes
dos planetas a partir de movimentos uniformes e ordenados, ou seja, a questão
proposta era “qual arranjo de movimentos circulares uniformes centrados na
Terra descreveria a trajetória visível de cada planeta?”
Igualmente absurdo é atribuir um desprezo pela matemática a Aristóteles,
autor, ao mesmo tempo, da definição da matemática como a ciência do estudo
da quantidade e da tese de que o acidente da quantidade é aquele que mais
proximamente inere na matéria. Os escritos de Aristóteles abundam em apli-
cações matemáticas ao estudo do movimento, do tempo, do lugar, do peso dos
objetos, da astronomia e até da anatomia: ele diz que cabe ao geômetra, mais
que ao anatomista, saber o porquê de uma ferida em formato circular demorar
mais para cicatrizar que as de outro formato qualquer. Também a ciência pra-
ticada na Idade Média via na astronomia, na óptica, na estática e na dinâmica
(estudo do movimento) um rico campo de aplicação de técnicas matemáticas.
Ao afirmarmos alguma continuidade de épocas passadas com a moderna
e a nossa no que diz respeito à aplicação matemática ao mundo natural, não
precisamos negar que muitas vezes a função atribuída à matemática no estudo
da natureza não tenha sido a mesma que ela tem na ciência moderna – ou, pelo
menos, a que os homens de ciência parecem conferir-lhe hoje. Por exemplo, as
tendências matematizantes platônicas no século anterior a Grosseteste influen-
ciaram o pensamento em seu próprio tempo de um modo que surpreende a
nossa mentalidade “cientificista” de hoje. A função eminente da matemática não
era a de mera quantificação das leis naturais ou a de prover uma representação
geométrica para os fenômenos físicos, mas a de responder a critérios que consi-
deraríamos metafísicos e teológicos. Desde Boécio que a teoria dos números era
encarada como veículo para o entendimento das relações entre a unidade divina
e a multiplicidade das coisas criadas, e é neste sentido que Thierry de Chartres
escrevia que “a criação do número é a criação das coisas”. ix
A propósito, atribuir à matemática papel metafísico não é, de nenhuma
maneira, prerrogativa daquele período, já que ele foi o principal motor das in-
vestigações em ciências naturais realizadas no Renascimento, e não é raro que

viii
Cf. Geoffrey E. R. Lloyd, Early Greek Science, Nova York, W. W. Norton and Co., 1974, p. 84.
ixCf. David C. Lindberg, The Beginnings of Western Science, 2ª ed., Chicago, University of Chicago
Press, 2007, p. 215.
24 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

alguma forma de platonismo seja sempre esposada por matemáticos de todas


as épocas. Pensemos nos exemplos recentes de Kurt Gödel e de Roger Penrose
e no caso atual do “matematismo” de Max Tegmark. x Qualquer aversão que al-
gum moderno professe à metafísica é sempre apenas da boca para fora, porque
o núcleo mesmo das teses que embasam seus pensamentos, mesmo que sejam
de viés materialista, matematicista ou idealista, nunca passam de afirmações
metafísicas e só aí encontram plena justificação – ou refutação.
O próprio Grosseteste tinha especial motivo para acreditar que um entendi-
mento do mundo natural fosse impossível sem a matemática, mesmo que, como
veremos, nem ele nem nenhum escolástico visse nos princípios da geometria a
possibilidade de esgotar a descrição dos fenômenos naturais. No famoso escrito
De Luce – o primeiro opúsculo do presente volume –, ele sustenta que a luz é
a “primeira forma corporal” e o primeiro princípio efetivo de movimento, por
meio do qual as operações da natureza se sucederiam umas às outras. xi A partir
da Criação, a luz teria tido a função de, por autodifusão, produzir primeiramen-
te as dimensões do espaço. Do movimento desta primeira forma corpórea tor-
nara-se possível a diversificação de outras formas, mais específicas, que viriam a
constituir os demais entes sensíveis que compõem a riqueza do mundo natural.
A “forma da corporeidade” postulada por Grosseteste era um conceito já
consagrado por Avicena e Averróis na tradição de alguns filósofos islâmicos. A
eles parecia inconveniente que os quatro elementos, tomados em sua concre-
tude, pudessem advir da simples imposição de suas formas elementais direta-
mente à materia prima; devia haver um passo intermediário que atuasse sobre
a materia prima e a preparasse para a tridimensionalidade. Para isso lançaram
mão do conceito de “forma corpórea”, a qual devia ser antes imposta à mate-
ria prima de modo a produzir a corporalidade em três dimensões, formando
uma espécie de “matéria secundária”. Só então os elementos poderiam receber
suas formas correspondentes e, a partir daí, vir a constituir os corpos sensíveis
concretos do mundo físico.
O tema das relações entre os entes físicos e os entes matemáticos – para
começar, entre matéria e quantidade – foi objeto de intenso e complexo es-
tudo durante a Escolástica, em particular por Grosseteste. Ele acreditava que
a ciência da óptica, por exemplo, podia, em suas demonstrações, fazer uso de
termos médios matemáticos. Mas, de acordo com ele, a “matéria”, o assunto,
numa ciência média, deixa de ser puramente física, sendo modificada de al-

x Cf. os artigos “The Mathematical Universe” e “Shut up and Calculate”.


xi Cf. p. 85 desta edição.
Apresentação 25

gum modo pela formalização imposta através da conceptualização matemáti-


ca. As ciências intermediárias possuem um objeto misto para demonstração e
não um objeto puramente físico.
É interessante notar aqui que os escolásticos utilizassem o termo sujeito da
ciência e não objeto da ciência, como se tornou comum a partir do corte sub-
jetivista imposto ao conhecimento humano desde Descartes, Hume e Kant.
O termo se adapta melhor à relação real existente entre o intelecto e o que lhe
está sujeito numa investigação: é dele, do sujeito, que se predicam a essência,
as partes, as propriedades e as causas nas proposições e demonstrações feitas
naquela ciência. Ademais, o termo “sujeito” sugere muito mais de perto um
quase sinônimo seu, o de “matéria” ou “assunto”, aquilo que está sob escru-
tínio, sob exame do intelecto. Em língua inglesa, o termo “subject matter”,
que não apresenta correlato perfeito em português, transmite a idéia de modo
bastante adequado.
O “sujeito” da ciência média da óptica, por meio do que se fazem as de-
monstrações, não é o visível enquanto tal, mas as linhas visíveis, nas quais
está presente uma mistura de algo da física, o visível ou sensível, e algo da
matemática, as linhas ou traçados. De fato, esta se tornou a visão de muitos
escolásticos a respeito da subalternação da física à matemática: os termos pu-
ros da ciência mista são termos médios matemáticos, mas o “sujeito” não é
puramente físico nem puramente matemático, é físico-matemático. Um outro
modo de dizer a mesma coisa é dizer que a matéria desta ciência média é física,
são os entes do mundo sensível, mas que a forma da ciência é matemática, os
objetos presentes à mente que resultam da abstração da quantidade.
A partir deste indício já se vê a importância que Grosseteste atribuía à
matemática no estudo da óptica, em particular, e da física, em geral. Em seu
Commentarius in VIII Libros Physicorum Aristotelis, ele afirma: “Por isso eu
digo que existem três coisas: o corpo físico, as magnitudes que pertencem aos
corpos físicos e os puros acidentes das magnitudes. Os matemáticos abstraem
as magnitudes do movimento e da matéria e tomam como seus sujeitos [obje-
tos] as magnitudes abstratas e delas demonstram acidentes que são acidentes
per se das magnitudes. Mas o físico não demonstra os acidentes per se das mag-
nitudes como se pertencessem simplesmente a magnitudes, mas demonstram
as magnitudes figuradas dos corpos físicos tal como pertencem a corpos físicos
e enquanto são físicos”. xii

xii Apud Alistair C. Crombie, Robert Grosseteste and the Origins of Experimental Science, 1100-1700,
Oxford, Clarendon Press, 1953 (segunda edição em 1961), p. 94.
26 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

A tradicional teoria dos graus de abstração de Aristóteles diz que, de um


ente físico concreto – uma pedra de formato cúbico, por exemplo –, podemos
fazer abstração da matéria em três diferentes graus. Em primeiro lugar, nossa
inteligência abstrai da matéria concreta, particular, que constitui a pedra, dei-
xando de lado, portanto, a matéria sensível particular com todos os acidentes
que contribuem para constituir o ente concreto e considerando apenas aquilo
que ficou conhecido como a matéria sensível comum. É impossível separar-
mos totalmente da idéia de “pedra” a consideração da sensibilidade: não faz
sentido dizermos que estamos considerando como objeto de discussão uma
pedra impossível de ser vista ou tocada. O que resulta dessa operação do in-
telecto, então, é a consideração de “pedra”, e não a “daquela” pedra, porque
afastamos todos os aspectos acidentais, não essenciais, que a constituem no
mundo real. Não sendo possível a consideração nem uma ciência “daquela pe-
dra” particular, mas apenas uma ciência “das pedras” em geral, a ciência à qual
incumbe o estudo dos entes naturais em geral é a física, a ela correspondendo
este primeiro grau de abstração da matéria.
O segundo grau de abstração da matéria é aquele que levará ao objeto
(sujeito) de estudo da matemática: a abstração, a desconsideração da matéria
sensível ou matéria natural. Na geometria espacial, não importa que o cubo
que constitui a pedra original seja de sal ou de cobre – elementos naturais
sensíveis e, portanto, mutáveis. O matemático só levará em conta a extensão, a
quantidade, o ens quantum, abstraindo de tudo o que faz daquele ente original
um ente concreto apenas aquelas notas quantificáveis: comprimento, largura,
altura e formato. Em termos usuais na alta filosofia do Medievo, os acidentes
individuantes da matéria.
Na exposição dos escolásticos e do próprio Aristóteles, diz-se que o objeto
de estudo da física tanto só pode ser pensado quanto só pode existir na matéria
sensível. Já o objeto de estudo da matemática, apesar de só poder existir na ma-
téria, pode ser pensado como existindo separado da matéria sensível. Diz-se que
o objeto da matemática não pode existir fora da matéria porque, na opinião de
Aristóteles, não existe no mundo real o “cubo em si”; só existem realmente este
ou aquele cubo concreto, pois a essência “cubo” se vê instanciada neste ou na-
quele corpo em particular. A essência “cubo” é abstraída pelo intelecto do único
lugar em que as coisas existem de fato, o mundo físico, e só então pode ser toma-
da como objeto de consideração de uma ciência. Aristóteles aproveita para fazer
aqui uma distinção mais fina: mesmo no objeto de consideração da matemática
resta ainda na consideração do intelecto algo a modo de matéria, aquilo que faz
com que seja possível pensar em dois cubos idênticos mas distintos, separados
Apresentação 27

um do outro, ou ainda a consideração de “dois números cinco” que podem


ser adicionados produzindo “dez” (os dois “cincos” são o mesmo ou são apenas
iguais?). A esta “matéria” Aristóteles chama de matéria inteligível (hýlê noetê).
Há ainda o terceiro grau de abstração, aquele que leva o intelecto à con-
sideração do ser enquanto ser, abstraindo totalmente da matéria, tanto sensí-
vel quanto inteligível. Este é o nível e o objeto de consideração da terceira e
última ciência teorética segundo Aristóteles, a metafísica, atingida, segundo
a terminologia escolástica, não mais através de uma abstractio, mas de uma
separatio. xiii Que não se entenda que a metafísica se restrinja exclusivamente
ao estudo do ser separado da matéria; ela estuda o ser das coisas que são, sejam
elas materiais ou imateriais. Aqui, uma observação importante é que não se
devem confundir os três graus de abstração com os dois modos de abstração
acessíveis ao intelecto. Um é o modo de abstração de uma parte a partir de
um todo (abstractio totius), de um universal a partir do particular; outro é a
abstração de uma forma a partir da matéria (abstractio formae). Segundo Santo
Tomás, ao primeiro modo corresponde a ciência da física, que considera a es-
sência de animal abstraída da essência de homem, e ao segundo, o da matemá-
tica, a qual considera a forma da quantidade abstraída da matéria sensível. xiv
No caso da matemática, pelo fato de seu objeto de consideração ter sido
abstraído da matéria sensível, a ciência abstrai por isso mesmo de todo mo-
vimento, de toda mudança. Como aponta muito apropriadamente o tomista
Álvaro Calderón, e como, aliás, sempre reclamaram os aristotélicos e até al-
guns filósofos modernos – Henri Bergson, por exemplo –, não é verdade que a
física matemática dos últimos séculos tenha logrado domar matematicamente
o movimento; o que ela tem feito é considerar matematicamente o tempo – su-
gestão, aliás, nunca interditada, antes incentivada, por Aristóteles: para o Esta-
girita, o tempo é o número do movimento segundo o antes e o depois. Como
o espaço já é um conceito imediatamente quantificável, advindo daí a ciência
da geometria, ao quantificar também o tempo o que se logra é a quantificação
da velocidade, a razão entre espaço percorrido e tempo, que é apenas um índi-
ce, uma nota do movimento local. Sendo o movimento um conceito radicado

xiiiO termo separatio ocorre em uma única obra de maneira inequívoca em Santo Tomás, no sentido
aqui aludido: no corpus do terceiro artigo da Questão 5 do livro Super Boetium De Trinitate, ou seja,
no comentário do Aquinate ao denso De Trinitate de Boécio. Ali, Santo Tomás nomeia em quatro
passagens o termo separatio em oposição a abstractio. O tema do sujeito da Metafísica em Tomás de
Aquino ainda hoje suscita acaloradas discussões no seio da escola. Cf. Santiago. R. M. Gelonch,
“Separatio” y objeto de la Metafísica en Tomás de Aquino, EUNSA, 2002.
xiv Cf. Álvaro Calderón, Umbrales de la filosofía, Mendoza, Argentina, edição do autor, 2011, p. 321.
28 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

na matéria sensível, ele é um conceito propriamente físico e não matemático,


e é à física que cabe o estudo do ens mobile.
Sendo assim, não é impossível enxergar no conceito matemático moderno de
velocidade instantânea uma aplicação da definição aristotélica de movimento, o
ato de uma potência enquanto tal. Mas isso só pode ser feito se tivermos em mente
que a velocidade é apenas uma aplicação dessa definição, uma instância sua, nunca
um sinônimo, nem muito menos algo pelo qual se possa substituí-la. Um ponto
matemático considerado geometricamente não se move, nem pode mover-se. Se
ele sair de onde está, o espaço ali passaria a apresentar um buraco? É evidente,
portanto, que, quando vemos a trajetória que um projétil traça no ar, e a partir
daí desenhamos numa folha de papel um ponto e uma curva, o desenho consiste
apenas na representação do movimento do corpo, que, por sua vez, passa a ser
representado pelo ponto. Mas ninguém se engane com a representação e tome o
símbolo pelo simbolizado: a linha desenhada apresenta de modo simultâneo todos
os seus pontos, mas o movimento real do corpo não é simultâneo, e sim, sucessivo.
A velocidade instantânea é uma medida da intensidade do movimento, es-
pécie de “densidade” do espaço percorrido em relação ao tempo durante o qual
transcorre o movimento. O seu correto entendimento é uma conquista que teve
de amadurecer ao longo de dois milênios e meio: Aristóteles responde às (supos-
tas) aporias de Zenão acenando com a possibilidade de encontrar uma definição
metafísica que satisfizesse a todos os casos possíveis de mudança: movimento é o
ato de uma potência enquanto potência. Ao definir deste modo o movimento, a
mudança, Aristóteles está apontando, em primeiro lugar, para a evidência de que
o movimento não é algo irreal, não é um ente de razão apenas, nem tampouco
uma mera impressão enganosa advinda dos sentidos. Não, o movimento é algo
real, é algo que de fato pertence à natureza das coisas, e é em reconhecimento
a isto que Aristóteles sinaliza chamando o movimento de ato. Mas, no mundo
físico, todo ato só se torna ato porque havia antes a possibilidade para tal: aquilo
que não pode ser, jamais será. Por isso, todo ato é o ato de uma potência. Algo
passa a ser somente porque antes podia ser, porque antes tanto ele quanto as
circunstâncias continham em si alguma possibilidade ainda não realizada mas
em vias de ser, ou seja, ainda não atualizada.
Com isso evidentemente não estamos defendendo uma espécie de anterio-
ridade da potência em relação ao ato. Tudo que estamos afirmando diz respei-
to somente às condições para a existência do movimento e da mudança, e não
do ser enquanto tal. Claro que a mudança seria impossível se não houvesse
potência ou possibilidade para tal. Entretanto, se mudar é poder ser o que não
se é – o que envolve a possibilidade necessariamente –, não podemos perder
Apresentação 29

de vista que, em sentido absoluto, a doutrina de Aristóteles preconiza a ante-


rioridade do ato em relação à potência, ou seja: a ordem do ser não poderia
provir de uma espécie de meramente possível, de uma potência solta no vazio,
pois o nada nada pode causar – e nada transita da potência ao ato senão por
intermédio de um ente em ato.
Contudo e ademais, nenhum movimento é ainda um ato perfeito, finaliza-
do e definitivo de uma vez para sempre, porque, enquanto está se processando,
cada movimento aponta sempre para novos acontecimentos em sua própria
estrutura. De fato, o que no mundo físico repousa de modo definitivo no
“estado” em que se encontra? É a isso que sinaliza Aristóteles com o comple-
mento da definição: enquanto potência.
Uma nota importante é que, não obstante ser verdade que nenhum movi-
mento quando se completa se torna ato puro sem mescla de potência passiva
(nas discussões metafísicas há uma distinção crucial entre potência passiva e
potência ativa), nem por isso deixa de ser verdade que, uma vez terminado,
aquele movimento atingiu sua perfeição, atingiu seu término, ele se per-fez,
ele se encontra per-feito. A verdade de que todo e cada movimento atinge um
término depois do qual ele cessa não significa que cessem todos os outros mo-
vimentos que pudessem também ocorrer, inclusive os que poderão advir àque-
le mesmo corpo que acabou de ter seu movimento cessado. Todo movimento
particular tende a um fim, não existe um movimento eterno – o que não é
o mesmo que afirmar que não haja sempre algum movimento. Esta última é
uma questão metafísica delicadíssima, na qual toca Grosseteste em De finitate
motus et temporis, o segundo opúsculo integrante desta edição da Concreta.
Nisto Grosseteste contrapõe-se à opinião de Santo Tomás: este acha ser im-
possível demonstrar, de modo cabal, que o movimento total do cosmos teve
um início no tempo, sendo possível e aceitável pela razão humana que tenha
sempre havido algum movimento, ou, noutras palavras: de potentia absoluta,
o Próprio Ser Subsistente, Deus, se quisesse, poderia ter criado o universo – e,
portanto, o movimento – desde a eternidade, e não no tempo; já Grosseteste
se aventura a tentar demonstrar que é possível uma prova racional de que o
universo teve um início.
Absolutamente todas as especulações da física e da matemática, antiga, me-
dieval e moderna, sempre andaram em paralelo com essas discussões metafí-
sicas, e volta e meia se imiscuem nelas tentando dar sua contribuição. Desde
a aceitação do princípio de inércia de Galileu, cuja descoberta passa pelas
investigações decisivas de Kepler e cujas raízes remontam a João Filoponus,
no século VI, e a Jean Buridan e outros escolásticos, acredita-se na realidade
30 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

de um movimento sem término, indefinido, o movimento retilíneo uniforme.


Alega-se, com base em sua aceitação por Newton como parte integrante da
nova “filosofia da natureza”, que este seria um princípio que poria por terra
um dos mais caros preceitos da cosmovisão aristotélica – e, na verdade, a de
qualquer cosmovisão religiosa: o preceito da finalidade das coisas, de que todo
movimento tende a um término, a um repouso. Uma vez demonstrada a exis-
tência de um movimento que tende a se perpetuar indefinidamente – e, mais
ainda, uma vez que se admita justamente este movimento como o movimento
natural no cosmos –, parece aberta a porta a uma física sem tendências, sem fi-
nalidade, sem nisus, onde os movimentos se seguiriam ao sabor do puro acaso.
Mesmo que assim fosse, somente alguém que caiu de pára-quedas ontem
na discussão poderia acreditar que isso não seja uma conclusão metafísica. Um
sujeito assim pode querer tirar daí as bases para doutrinas materialistas, por
exemplo, ao elevar a mera suposta falta de finalidade dos movimentos da ma-
téria mais inorgânica a um princípio que deva reger a todo o cosmos. Ora,
como a nenhum ser humano com alguma capacidade intelectual faltam as mais
elementares intuições metafísicas, ele sente que suas colocações são já uma pro-
posta de discussão metafísica, porque ele está a tirar conclusões para além dos
dados que o estudo da pura matéria jamais poderia sugerir-lhe. Como pode
ter pouco estudo em metafísica, mas não é burro, e sentindo que é absurda
a proposta de erigir a falta de ordem como princípio ordenador cósmico, ele
abandona as discussões metafísicas como se fossem meros passatempos absur-
dos. Esforça-se então para se convencer de que toda proposta metafísica é tão
absurda quanto a dele, e passa a exigir que a sua autocastração intelectual se
torne obrigatória a todos, quando não imposta pelo próprio Estado. Nenhum
gigante do espírito faz isso, só as arraias-miúdas.
Outro modo pelo qual a nova física parecia colocar em cheque a física anti-
ga era que a lei da inércia – de novo ela! – parecia desmentir o princípio de que
algo só pode ser movido por outro: omne quod movetur ab alio movetur. Dava a
parecer que um corpo tenderia a permanecer em movimento retilíneo unifor-
me sem que fossem necessárias forças agentes para manter o movimento. Aqui
não faria mal às pessoas que vêem na lei da inércia a negação da física e da
metafísica medieval darem uma olhada nos argumentos até hoje incontestados
de James A. Weisheipl em Nature and Gravitation e Nature and Motion in the
Middle Ages. Argumentos menos completos, porém mais fáceis de entender,
foram expostos por Edward Feser no artigo Motion in Aristotle, Newton, and
Einstein, em Aristotle on Method and Metaphysics. Apenas como amostra desta
última fonte – mas poderíamos prescindir de sua leitura porque qualquer ob-
Apresentação 31

servador cuidadoso pode perceber sem ajuda –, não é difícil constatar que, ao
colocar em pé de igualdade o movimento retilíneo uniforme com o estado de
repouso, o que a primeira lei de Newton (princípio de inércia de Galileu) está
admitindo é uma equiparação qualitativa entre essas duas situações, cabendo
então à segunda lei o papel de agente provocador de mudança. Mudança, no
contexto da mecânica newtoniana, seria aquilo que é abordado apenas na se-
gunda lei, não na primeira, a qual estabelece não mais que a definição do que
se quer dizer com o termo “repouso” ao longo da teoria.
Pode-se alegar que mesmo num movimento retilíneo uniforme existe alguma
mudança, a mudança de posição do corpo animado daquele movimento, e que,
portanto, a mecânica de Newton estaria, sim, falando de um movimento que pa-
rece prescindir de causa externa. O problema é que é você, o cientista, quem está
ao mesmo tempo vendo o movimento real do corpo e aplicando a teoria abstrata,
mas o fato é que a teoria mesma é “cega” a este movimento do corpo em relação
aos outros corpos, porque ela não traz em seu formalismo um algoritmo que “li-
gue” os corpos uns aos outros por meio de uma interação identificável fisicamente.
Há dois caminhos para “resolver” isto, mas são ambos externos à mera con-
sideração das três leis de Newton: ou supor que o movimento do corpo se dá
em relação ao espaço absoluto, um conceito que tem que ser imposto ad hoc
(somente para isso, ou seja: um conceito que cumpre somente esta função na te-
oria), ou supor, por meio de sua teoria da força da gravitação universal, que haja,
afinal de contas, interação entre os diferentes corpos. Mas aí, na presença dos
outros corpos, o movimento retilíneo uniforme já se torna impossível, porque
em situação praticamente nenhuma um corpo deixará de sofrer aceleração. Em
outras palavras, ou ficamos com o fato de que o movimento retilíneo uniforme
não existe nem na própria teoria, servindo apenas como uma espécie de medida
“do repouso”, daquilo que será perturbado, ou com o fato de que a teoria prevê
que o movimento retilíneo uniforme é um movimento em princípio real, sim,
mas que só existe se outra parte da teoria for irreal ou “desligada”.
Cabe aqui como parênteses um comentário que Einstein fez à sua própria
Teoria da Relatividade Geral, no artigo “Physik und Realität”. Sua teoria trata
a gravitação não como uma força, no sentido daquelas tratadas na segunda lei
de Newton, mas como um campo gerado por um corpo e sofrido por outros,
campo este que se transmite a velocidade finita através do espaço. Ele tentou as-
sim seguir os passos que deram Faraday e Maxwell para formalizar as interações
eletromagnéticas em termos de campos mais que de forças propagadas instanta-
neamente à distância, algo visto como defeituoso já desde a gravitação universal
de Newton quase duzentos anos antes. Ou seja, sua teoria sintetizava gravitação
32 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

e espaço de um modo muito mais orgânico que o da teoria de Newton, mas


mesmo assim ele ainda a via como o edifício no qual uma ala é primorosa por-
que é feita de mármore, e outra ala foi construída com madeira inferior. Ele está
referindo-se aos dois membros da equação fundamental da teoria, respectiva-
mente o “lado esquerdo”, que integra de modo orgânico gravitação e espaço, e
o “lado direito”, que não passa de “uma descrição fenomenológica” da matéria,
a qual é apenas “uma tosca substituta de uma representação que faça jus a to-
das as propriedades conhecidas” suas (representação esta que ele supunha que
seria alcançada um dia). Este comentário pode ser transladado integralmente à
consideração da gravitação universal de Newton como algo “externo”, “forçoso”
e “tosco” imposto ao edifício de sua mecânica, e é neste sentido que vai meu
comentário do parágrafo anterior.
Mas além do fato de que o movimento retilíneo uniforme só pode ser man-
tido precariamente e observado por breves instantes, pois no mundo real todos
os movimentos acabam por cessar e dar origem a outros, acelerados ou desacele-
rados, a verdade é que também a física de Newton viria a ser, senão totalmente
superada, ao menos integrada em nova síntese: a cosmologia de Einstein subs-
tituiria o movimento retilíneo uniforme como “estado natural” de movimento
pelo de movimento curvilíneo acelerado. O público leigo deve esquecer o que
ouviu no Ensino Médio – ou, pelo menos, integrar aquilo numa síntese superior
–, porque na relatividade de Einstein o movimento considerado inercial é o mo-
vimento em queda livre acelerada e não um movimento a velocidade constante.
Na nova teoria da gravitação, assim como na antiga de Newton, o motivo da
aceleração é a presença da massa de outros corpos, só que Newton imaginou que
o “natural” seria pensar o espaço como vazio primeiramente e somente depois
como sendo preenchido com “matéria”. Para Einstein, a noção de espaço físico
sem matéria corpórea não faz sentido. Portanto, sendo obrigatória a consideração
da presença dos outros corpos, é impossível um movimento que não tenda por
si mesmo a acabar, porque a partícula, mais cedo ou mais tarde, vai se chocar
com algum outro corpo e ter seu movimento cessado. Neste sentido, podemos
dizer que a teoria de Einstein aponta para uma finalidade, um término de cada
movimento. Por admitir um maior número de formas quantitativas, a física de
Einstein é um quadro explicativo mais vasto capaz de acomodar de modo “na-
tural” um número maior de fenômenos.
É claro que uma física baseada nesse pressuposto trará como conseqüência,
quando aplicada à “história do cosmos”, a idéia de um início de tudo, e é jus-
tamente daí que nasce a hipótese moderna do Big Bang, ou seja, a de que não
tenha havido sempre algum movimento, de que as coisas começaram “um dia”.
Apresentação 33

É congruente também que daí surja a necessidade de especular sobre o futuro


último do cosmos, assunto sobre o qual os cosmologistas físicos ainda estão
longe de chegar a um acordo: o universo poderá continuar a se expandir para
sempre mesmo que de modo desacelerado, poderá expandir-se para sempre
de modo acelerado (hipótese mais aceita hoje em dia, devido à observação da
expansão acelerada atual), ou poderá chegar a um limite máximo e colapsar de
volta a partir daí, no que é chamado de “Big Crunch”. Essas especulações só
fazem sentido porque a nova física, de Einstein, toma como movimento natu-
ral um movimento que “não é igual a si mesmo em todos os seus instantes”; as
especulações sobre a “evolução do cosmos” não faziam nenhum sentido numa
física que tomava por base um movimento sempre igual a si mesmo. xv
Não há dúvida de que esta consideração não satisfaz a todos os critérios de
finalidade maximamente inteligíveis que a razão possa conceber, mas, o que
se pode esperar aqui? Afinal, esta é uma análise apenas dos componentes mais
materiais do cosmos. Nem Santo Tomás de Aquino nem Aristóteles jamais ne-
garam que a finalidade é uma exigência da inteligência humana, a qual encon-
tra máxima realização nas coisas mais altas do espírito, e que, quando se desce
às coisas mais imersas na matéria, ou seja, as que mais dependem da matéria
para ser, a causa final se torna nebulosa, difícil de ser discernida. Tomemos a
analogia da estátua de Aristóteles: dispondo-se de um bloco de mármore, não
está nele a sua tendência inequívoca para ser transformado em Apolo ou em
Afrodite, e é somente por sua indeterminação que o mármore pode vir a ser
um ou o outro. A causa final é chamada de causa causarum, causa das causas,
justamente porque empresta causalidade às outras três causas – a material, a
formal e a eficiente –, imprimindo-lhes as suas respectivas forças causais.
Como toda definição, a definição de movimento que Aristóteles dá é univer-
sal e assim deve ser entendida. A sua aplicação a um dado caso concreto requer
o entendimento dos elementos em jogo naquele caso particular. Quando uma
flecha se encontra em movimento no ar, afirmar que seu movimento é o ato
de uma potência enquanto tal não é o mesmo que dizer que dali poderão advir
quaisquer conseqüências imagináveis, que todo o mundo esteja em potência à
espera do que resulte dali e que tudo pode ser de modo radicalmente diferente

xv No final do século XIX, ainda antes da relatividade e da mecânica quântica, portanto, houve, sim,
especulações sobre como se daria o final do universo, época em que surgiu a hipótese da “morte térmica
do universo”, hoje em dia enquadrada no formato einsteiniano. Mas isso só foi possível devido à consi-
deração da nova teoria do calor, a termodinâmica, ciência não inteiramente domada pelos métodos da
física newtoniana, por mais que se alegue o contrário: a mecânica estatística, além de todo o ferramental
newtoniano, lança mão de conceitos que lhe são estranhos, como o de entropia, por exemplo.
34 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

a partir daquele momento, como se estivesse sendo afirmado que pudesse advir
a criação de todo um novo cosmos apenas a partir de uma flecha voando no ar.
Não, aquele é apenas o movimento de uma flecha determinada desde um arco
determinado até um alvo determinado, todos em ato, todos sendo atos ante-
riores ao movimento da flecha e constituindo, portanto, as condições sobre as
quais repousa a concepção e a realidade daquele movimento em particular. Todo
e qualquer movimento é o movimento de algo que ainda não é per-feito, ou
seja: está no modo do que pode vir a ser. No mundo físico, o movimento existe
porque aquele algo pode ser de outro modo, que ainda não é, e este componente
de potência é o que se denomina comumente como matéria. xvi
Por ser o espaço um conceito que convida quase imediatamente à matema-
tização, e sendo o tempo passível também de um entendimento quantitativo,
será que no movimento da flecha existe alguma quantidade que possa respon-
der à definição aristotélica de movimento? As aporias de Zenão resultam do
fato de que ele achava que bastava a matematização do espaço e do tempo sepa-
radamente: é claro que, tão logo se considere a posição da flecha num instante
atomista de tempo, a flecha parece ter ali uma posição bem definida. Parece
e tem, sem dúvida. O problema é que o “estar ali” da flecha em qualquer dos
pontos intermediários ao longo de seu trajeto não assume o mesmo caráter do
“estar ali” ainda no arco ou do “estar lá” já no alvo. Tanto no arco quanto no
alvo, a flecha não apenas “está”, mas também fica ali – a menos, evidentemente,
que algo lhe ocorra e modifique a situação; mas aí já é o caso de outro movi-
mento e não mais daquele no qual primeiro fixamos a atenção e o interesse. A
consideração deste último caso nos revelaria a existência de um novo movimen-
to, justamente porque será outro ato com novas potências enquanto tais-outras,
cada uma contendo todas as determinações que as farão ser parte do mundo
real e contribuirão para tornar aquele novo movimento um acontecimento real
e não apenas uma consideração interna da razão humana, um ens rationis.
Uma ressalva importante a ser levada em conta a respeito da matematização
dos aspectos quantificáveis do movimento é a afirmação taxativa de Aristóteles
de que “não existe movimento num instante”. É claro que não; no mínimo
porque sem transcurso de tempo não faz sentido falar de deslocamento. Mas
para Aristóteles a objeção se faz ainda mais forte, porque o tempo não é um

xviFizemos questão de colocar em destaque a expressão “no mundo físico” porque não estamos a
entrar no mérito dos movimentos cuja potência não radica na matéria, como os dos entes imateriais,
ou seja: as substâncias separadas da matéria. Adentrar tão árido terreno da metafísica escaparia ao
escopo desta apresentação.
Apresentação 35

conceito primário em relação ao movimento, sendo antes o contrário: primeiro


há o movimento, a mudança; o tempo consiste “apenas” numa medida sua. Mas
do fato de que não exista movimento num instante não se conclui que não exista
nada no instante que indique a presença do movimento. Se nada existisse de real
em cada instante que sinalizasse o movimento, ele mesmo seria ou impossível
ou uma ilusão, coisa que resolutamente Aristóteles nega. Como bem viu o ma-
temático escocês Colin Maclaurin, sendo o movimento a manifestação de uma
potencialidade, “a velocidade [...] em qualquer instante de tempo dado não deve
ser medida pelo espaço que é efetivamente [atualmente] percorrido ao longo de
um intervalo dado a partir daquele instante, mas pelo espaço que seria percorri-
do caso o movimento continuasse durante algum intervalo de tempo”. xvii
Para terminarmos a exposição conceitual da quantificação do movimento
da flecha, é necessária uma última distinção. Aristóteles define e discute qua-
tro espécies de movimento ou mudança. A mudança qualitativa se dá quando
uma qualidade de um ente se altera; por exemplo, quando uma banana ama-
durece, entre outras mudanças qualitativas, sua casca passa da cor verde para a
amarela. Já quando um ser vivo cresce, o que muda é sua quantidade, daí este
tipo de mudança ser chamado de mudança quantitativa. A espécie mais radical
de mudança é aquela na qual um novo ente surge ou desaparece, sendo este
tipo de movimento o responsável pela geração de um ser que inexistia antes
ou pela corrupção de um ser que existia e passa a não existir mais. A este tipo
de movimento Aristóteles chamou mudança substancial, porque para ele subs-
tância era o termo apropriado para denotar os entes concretamente existentes:
um gato nasceu e veio à existência, uma banana foi digerida e deixou de existir.
Como não há intermediário entre existir e não existir, pois o ser não admite
gradações, as mudanças substanciais devem ocorrer abruptamente no tempo.
Apesar de lateral ao nosso assunto de agora, a consideração deste fator
é parte essencial do entendimento da mecânica quântica, a qual lida com
a criação e a aniquilação de partículas o tempo todo. Os surgimentos e as
desaparições de partículas, descritos teoricamente e observados experimen-
talmente, causaram grande assombro nos primeiros vinte anos do século XX
porque a física matemática newtoniana não dava conta da possibilidade de
mudanças substanciais, já que, em seu arsenal teórico, contava apenas com
equações diferenciais contínuas. Estas últimas, por outro lado, e toda a me-
cânica newtoniana, portanto, contêm as ferramentas necessárias e suficientes
para o tratamento matemático dos movimentos locais, a quarta espécie de

xvii Cf. Carl B. Boyer, The History of the Calculus, Mineola (NY), Dover, 1959 (orig. 1949).
36 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

movimento, e que, segundo Aristóteles, representa o conceito de movimento


de modo mais próprio.
Voltando ao vôo da flecha, na consideração de todos os pontos interme-
diários pelos quais passa a flecha durante seu trajeto desde o arco em direção
ao alvo, o mais apropriado não é falarmos em termos de “estar em”, mas de
“passar por” aqueles pontos intermediários. Nem mesmo a expressão alterna-
tiva “estar passando por” nos deve induzir a uma espécie de “estatismo” por
fazer uso do termo “estar”; ao contrário, este termo aí desempenha a função
exatamente que o ato desempenha na definição de Aristóteles: a de ser algo e
não um nada; a de ser um acontecimento e não uma ilusão da razão. É claro
que o gerúndio “passando por” desempenha o papel do resto da definição.
Quando se tenta aplicar a definição de movimento ao movimento local, é im-
prescindível encontrar-se algum atributo quantitativo presente naquele ato que o
represente de modo mais eminente, e esse atributo é a velocidade instantânea. Ou-
tro será a aceleração instantânea. Contudo, uma coisa é estabelecer-se, hoje, uma
relação entre a definição de movimento e o conceito matemático de velocidade
instantânea, outra bem diferente é encontrar uma definição matemática logica-
mente sustentável. A definição de velocidade instantânea como a taxa instantânea
de variação da posição, assim como a de aceleração como a taxa instantânea de
variação da velocidade, foram conquistas que tiveram de atravessar percalços di-
ficílimos nas mãos dos maiores gênios da matemática, da física e da filosofia ao
longo de mais de dois milênios. Especulações sobre o contínuo, o movimento, o
infinito, o vazio e o tempo permeiam toda a história da matemática, da física e da
metafísica. Pitágoras coloca o problema da radical distinção entre discreto e con-
tínuo; Heráclito e Parmênides colocam o problema da mudança; Zenão acredita
impugnar as noções de mudança e movimento; Sócrates e Platão estabelecem as
bases firmes sobre as quais erigir praticamente quaisquer discussões; e Aristóteles
acomoda a todos numa síntese talvez insuperável até hoje e na qual parece ser
possível acomodar qualquer desenvolvimento posterior.
Desde que os matemáticos gregos, em particular Arquimedes, formularam
os primeiros “métodos de exaustão”, até a formulação moderna do cálculo dife-
rencial e integral por meio da análise do contínuo de Bolzano, Cauchy, Weiers-
trass, Dedekind e Cantor, a matemática evoluiu desde uma consideração de
objetos mais próximos dos sentidos e da intuição direta em direção a entes mais
abstratos, da geometria até a teoria dos números, com a conseqüente tentativa
de descrever aquela em termos desta. Carl Boyer acerta ao dizer que a extensão
do significado de número desde os números naturais até o que se conhece hoje
como “números reais” possibilitou um entendimento logicamente rigoroso, não
Apresentação 37

somente do cálculo, mas inclusive dos aspectos quantitativos mais proximamen-


te relacionados aos sentidos, como os de extensão e velocidade, por exemplo.
O entendimento moderno dos conceitos da derivada e da integral, em
termos dos quais se descreve toda a ciência da cinemática, prescindem, em si,
das noções intuitivas do contínuo e do movimento que acompanharam, e até
originaram, as próprias questões. A análise de Augustin-Louis Cauchy e Karl
Weierstrass define a noção de limite sem recorrer à noção, intuitiva, mas vaga,
de “quantidade infinitesimal” à qual recorreu Leibniz, entre muitos outros ao
longo da história, ou à noção física de “fluxo” ou “movimento”, à qual recor-
reu Newton, entre muitos outros também.
Assim como Joseph-Louis Lagrange já sinalizava para a falta de necessidade
da consideração do tempo e do movimento na matemática, Bernard Bolzano
apontou um caminho que definiria a atitude dos matemáticos na segunda
metade do século XIX: a de que em suas provas se evitassem quaisquer con-
siderações de intuição espacial, fazendo apelo apenas a noções da álgebra, da
aritmética e da análise. Nas palavras de Boyer, “[...][a matemática do século
XIX] percorreu um caminho seguro entre a intuição do concreto na natureza,
na qual a geometria está sempre à espreita, e o misticismo da especulação ima-
ginativa, na qual viceja a metafísica [...] O conceito de derivada, durante todo
seu desenvolvimento, sempre esteve precariamente situado entre o fenômeno
científico da velocidade e o númeno filosófico do movimento. [...] Somente a
precisão da definição matemática – obra do século XIX – permite à derivada
e à integral manterem suas posições autônomas de conceitos abstratos, pro-
vindas talvez, mas mesmo assim tornadas independentes, tanto da descrição
física, quanto da explicação metafísica”. xviii
Como diria Leibniz, Boyer acerta naquilo que afirma, mas erra naquilo
que nega. Afirmar que a matemática é uma ciência distinta da física e da
metafísica, constituindo portanto uma ciência legítima em si com seu objeto
próprio, e dizer que ela prescinde da noção de movimento, são afirmações
absolutamente corretas, mas acho que alguém já disse isso há dois milênios e
meio. O ridículo é pretender que ela seja independente da física e da metafísica.
A matemática depende da física, dos sentidos e do movimento na medida em
que colhe do mundo concreto seu objeto, fazendo abstração do movimento
que há neles. O péssimo sentido que a palavra “abstração” assumiu em todas
as discussões há mais de duzentos anos resulta, no final das contas, do absurdo
viés cartesiano que cava um abismo insuperável entre res extensa e res cogitans.

xviii Op. cit., pp. 5 e 6.


38 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Isto acaba produzindo uma psicologia que, negando a definição aristotélica


da psique como forma do corpo, dá a impressão de que qualquer coisa que o
homem pense não tem relação nenhuma com o mundo físico, não passando
de puras elucubrações do espírito, totalmente divorciadas dos dados dos senti-
dos e da memória. As investigações em psicologia da matemática, desde Henri
Poincaré e Jacques Hadamard até os dias de hoje, mostram sem espaço para
dúvida que a intuição matemática é impossível sem os dados dos sentidos. xix
A propósito, a ligação da matemática com os sentidos ficou estabelecida des-
de que Pitágoras procurou relações numéricas entre os sons musicais. A palavra
“abstração”, na terminologia em que a Escolástica expunha a psicologia de Aris-
tóteles, tem o sentido preciso de “extrair de” e não de pura invenção. xx A noção
de que a mente esteja totalmente livre para inventar e estabelecer o que bem en-
tenda, sem referência a algum conteúdo material do qual se extraíram os concei-
tos primitivos e bastando que haja coerência na articulação dos termos definidos
“no vazio”, é a base da filosofia formalista da matemática. David Hilbert, com
isso, fundamenta a aquisição dos objetos da matemática numa suposta liberdade
de operação do intelecto. Ora, basta explicar isso para perceber que essa filosofia,
que essa explicação da matemática não é senão uma dedução de uma teoria da
psicologia, e que, portanto, não conseguirá se desvencilhar nunca do mundo
físico. Estão convocando demônios para expulsar Belzebu.
Mais deslocada ainda é a pretensão de divorciar a matemática – ou a pró-
pria física – da metafísica. Vejamos de perto alguns dos passos que levaram à
formulação rigorosa de algumas noções da matemática moderna. Um deles é
a conceituação lógica da noção de função por Euler e Lagrange como o reco-
nhecimento, por parte do intelecto, de uma relação entre duas variáveis que,
conforme a necessidade, poderiam assumir valores determinados, fixos – as
chamadas constantes matemáticas. As variáveis não são outra coisa que a apli-
cação matemática do conceito de potência, daquilo que pode ser várias coisas,
daquilo ainda indeterminado, e as constantes são como atos, pois assumem
um valor determinado. Em poucos outros lugares se pode encontrar uma apli-
cação tão apropriada dos conceitos de ato e potência quanto aqui.
O passo seguinte, dado por Bolzano e Cauchy, foi desvencilhar a noção de
limite das intuições da geometria e do contínuo, porque as noções geométricas
e o próprio contínuo não podem ser concebidos de modo suficientemente

xix Cf. os livros de Elisabeth Ströker, de Reuben Hersh e de James Franklin listados na bibliografia.
xx A respeito disso, tenhamos em vista a definição de S. Tomás de Aquino de que a essência das coisas
materiais (quidditas rei materialis) é o primeiro objeto da inteligência humana.
Apresentação 39

explícito e preciso. Aquilo que a geometria domina é a forma, são os limites


das figuras, não a matéria, constituída pelo contínuo potencialmente divisível
ao infinito. Até então, baseava-se a noção de limite na de continuidade, mas
a construção de Cauchy parece apontar para uma possível inversão na ordem
desta hierarquia. Antes, porém, seria necessário o aprofundamento da noção
de número e uma definição logicamente consistente deste. E é nisto exatamen-
te que consistirá a obra de Karl Weierstrass: ele se esforçará por fundamentar
logicamente o conceito de número de modo a poder estender a noção daquilo
que agora chamamos “números naturais”, únicos admitidos como verdadeiros
números por Leopold Kronecker, a outras classes de quantidades, aqueles que
desde então chamamos de “números racionais” e “números irracionais”.
O trabalho de Weierstrass vai no sentido de definir os números racionais não
inteiros como números independentes e legítimos em si, sem a necessidade de
fazer referência aos inteiros. Isso foi uma novidade porque os racionais sempre
haviam sido pensados como a razão de dois inteiros advindos da divisão de mag-
nitudes e não como constituindo unidades de significado próprias. A definição
que ele dá de número inteiro é a de um agregado de unidades que satisfazem
uma propriedade em comum, partindo daí para a definição de números racio-
nais como um complexo limitado de várias unidades de espécies distintas (os
todos inteiros e suas partes alíquotas, ou, como poderíamos chamar, as casas deci-
mais) e os irracionais como um complexo ilimitado. Essa tarefa seria estendida e
completada por Richard Dedekind e Georg Cantor, os quais substituirão como
noção básica a noção de magnitude pela de ordem e de agregados ordenados,
os quais tornariam a reta um conjunto ordenado denso (isso o conjunto dos
números racionais já era: entre dois quaisquer, sempre há outros) e perfeito, no
sentido de satisfazerem o axioma da disjunção em classes através da noção dos
“cortes de Dedekind” que passam simplesmente a definir os irracionais.
Deste modo estaria completa a tarefa de resolver o contínuo em pontos nu-
merados discretos, logrando-se assim uma redução da geometria, sempre arre-
dia ao intelecto em virtude da matéria que constitui o contínuo, à aritmética,
a qual sempre impõe a forma acabada dos números. Há quem acredite ainda
que esse modo de pôr as coisas evita a questão de como se dá a aproximação
“móvel” em direção a um limite, simplesmente trocando a pergunta pela mera
assertiva da definição, liberando a noção do contínuo das noções de movimen-
to e fazendo do contínuo um campo simultâneo e estático.
Segundo Aristóteles, a categoria da quantidade apresenta duas classes dis-
tintas, a da multitude discreta e a da magnitude contínua, constituindo, assim,
os dois ramos separados da matemática, a aritmética, ou teoria dos números, e
40 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

a geometria. A tentativa de numerar o contínuo é um impulso quase inevitável


da mente humana pelo modo como essas noções nos chegam ao intelecto. A
ordem do conhecer dispõe a ordem do conhecido (com isto, evidentemente
não queremos dizer que a ordem do conhecer coincida com a ordem do ser).
Na ordem do conhecido, corretamente entendida depois de uma análise da
experiência, primeiro vem o contínuo, depois o discreto, depois o movimento
e depois o tempo, medida deste último. xxi Primariamente em nosso modo
de conhecer, o qual sempre parte dos dados dos sentidos, vem o contínuo, a
apreensão intuitiva de uma unidade quase indistinta e indiferenciada. Somen-
te a seguir nosso intelecto passa a considerar e distinguir unidades distintas,
separadas, que constituem indivíduos – indivisos em si e separados dos outros.
A alegada redução do contínuo material da geometria à numeração formal
da aritmética, realizada pela matemática moderna, é inteiramente baseada numa
grande analogia, na transposição do significado de número a um contexto que é
ameno apenas até certo ponto. Os problemas de teoria dos conjuntos implica-
dos nesta tentativa de aritmetização do contínuo e em todas essas noções viriam
a fazer frutificar grande parte da matemática do século XX. Um exemplo é a
non-standard analysis de Abraham Robinson nos anos 60, tentativa de voltar à
consideração do contínuo como um conceito primitivo e não derivado.
Todas essas noções podem e devem ser discutidas. O que não se pode é
afirmar que elas não tenham relação com a metafísica – ou, a propósito, com a
religião. Um escolástico na segunda semana de aula daria risadas da afirmação
de que nada têm a ver com metafísica as noções de relação, movimento, quan-
tidade, número, definição, analogia, agregado, disjunção, divisão, proprieda-
de, limite, matéria, forma, ato, potência, determinação, indeterminação, clas-
se, finito, infinito, todo, parte, contínuo, hierarquia e ordem. É claro que o
matemático tem o direito de estabelecer suas próprias definições e trabalhar a
partir delas, mas há uma diferença entre as reflexões que fará a partir delas e as
que fará acerca delas (circa quae), e uma diferença maior ainda entre estas últi-
mas e outros princípios supostos nelas mas que não são tratados nelas mesmas
(ex quibus), e sim numa ciência superior, a metafísica – a qual, obviamente,
está, também ela, sempre em discussão.
Aliás, não somente os escolásticos dariam boas risadas com a pretensão de
isolar a metafísica das outras ciências. É um espetáculo cômico assistir a qual-
quer moderninho querer desvencilhar-se de questões metafísicas no estudo da
física e da matemática e, mesmo assim, se achar um continuador do que fizeram

xxi Cf. Vincent E. Smith, The General Science of Nature, Milwaukee, The Bruce Pub. Co., 1958, p. 352.
Apresentação 41

os grandes espíritos do passado. Se o sujeito quer falar de física e de matemáti-


ca, mas não quer falar de metafísica e de religião, que ele não se considere um
herdeiro de Pitágoras, Platão, Newton, Descartes, Fermat, Pascal ou de Leibniz;
nem tampouco de Georg Cantor, o qual escreveu ao Papa Leão XIII e a teólogos
jesuítas e dominicanos para avaliarem sua teoria dos transfinitos xxii e utilizou as
noções de infinitos categoremáticos e sincategoremáticos do lógico escolástico
português Pedro Hispano (Papa João XXI); nem de Kurt Gödel, que desenvol-
veu um profundo interesse pela “prova ontológica” da existência de Deus de
Santo Anselmo. Essa separação administrativa em atividades profissionais pode
ser útil para você conseguir um emprego universitário ou para pedir um finan-
ciamento de pesquisa, mas a nada corresponde no mundo do espírito.

Descrição ou explicação? A física matemática moderna

O fato é que a “matematização da natureza” é, ao mesmo tempo, um em-


preendimento necessário e problemático. Necessário, porque a quantidade é um
acidente que inere na matéria, nas substâncias, nos entes concretos, sendo até,
na verdade, o acidente que mais proximamente inere na matéria. Mas a mate-
matização da física é problemática porque parece afastar o intelecto da conside-
ração dos entes físicos, tais como eles se apresentam aos sentidos, e nos remeter
a entes de razão que dão a forte impressão de ser puras lucubrações da mente;
chega-se a fundamentar filosofias inteiras da ciência e do conhecimento que
preconizam o total divórcio entre o intelecto e a realidade. O próprio Pierre
Duhem dá a impressão de pensar assim, ao menos a respeito do modo como a
astronomia e a ciência do movimento utilizavam a matemática na Antiguidade.
Segundo Duhem, pela ausência, na Europa, dos textos de Aristóteles
de cunho mais científico, as ferramentas causais da física aristotélica para a
explicação do mundo físico não tiveram nenhum uso na investigação dos
fenômenos celestes desde Ptolomeu até meados do século XII, época em que
começaram a ser difundidas as traduções e os comentários da obra do Esta-
girita. O interesse em astronomia limitava-se até então, segundo Duhem, à
mera coleção de dados seguida de uma descrição unificada dos fenômenos
com o maior grau possível de detalhamento. Os “mathematici”, como às
vezes eram chamados os astrônomos do período, se ocupavam unicamente

xxii
Cf. Joseph W. Dauben, Georg Cantor: His Mathematics and Philosophy of the Infinite, Princeton,
Princeton Univ. Press, 1990, cap. 6.
42 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

de “salvar os fenômenos”, o que equivalia, na prática, a simplesmente intro-


duzir novas variáveis sempre que surgisse uma discrepância entre o modelo
matemático usado e a descoberta de um novo dado, sem nenhuma preocu-
pação de ordem causal.
A entrada em cena das obras de Aristóteles, junto com suas diversas inter-
pretações, teria gerado um breve interregno que suscitou nos filósofos fortes
tendências explicativas dos fenômenos naturais. A possibilidade de explicação
causal se teria mostrado tão viável, o poder explicativo agora disponível parecia
tão persuasivo, que não demorou para colocarem em xeque até a onipotência
divina. Começaram a brotar perguntas como: poderia Deus ter criado outro
mundo? Deus criou de fato outro mundo? Poderia Deus deslocar todo o con-
teúdo material do universo um metro para a direita? A matéria é infinitamente
divisível? Apenas potencialmente ou também atualmente? Segundo Aristóteles,
apenas potencialmente; mas, nem mesmo Deus a poderia dividir infinitamente
em ato? Além da classificação metafísica de infinito entre atual e potencial, faz
sentido buscar uma classificação lógica? Há diferença quantitativa entre a maté-
ria inteligível do contínuo matemático e a matéria sensível do mundo físico? A
persuasiva demonstração de Aristóteles da eternidade do mundo e do movimen-
to ameaça a doutrina bíblica da criação do mundo num instante determinado
do tempo? O mundo (cosmos, universo) teria um centro? Seria este centro um
corpo físico que ocupa um lugar no espaço e que apresenta propriedades sensí-
veis ou seria ele apenas um ponto matemático? Em sendo físico, seria a Terra?
Em sendo matemático, poderia (ou deveria) ele coincidir com o centro da Terra?
Impossível não perceber aí muitas questões que serão tema de debate até
nossos dias. A introdução de elementos tão formidáveis, mas ao mesmo tempo
tão potencialmente perigosos, acabou motivando as famosas proibições do en-
sino das teorias aristotélicas nas faculdades de Artes e Teologia na Universidade
de Paris na segunda metade do século XIII. Nunca faltam os que alegam, com
boa parcela de razão, que o objeto das condenações não foram propriamente as
idéias de Aristóteles, mas sua deturpação por tradutores, comentadores e exposi-
tores. Contudo, a força mesma das idéias foi o que impulsionou sua interdição,
e muitas delas passaram a poder ser ensinadas apenas como hipóteses, nunca
defendidas como teses sobre a realidade. Enquanto os homens estiverem des-
preocupados com afirmações sobre a “realidade das coisas”, ocupando-se apenas
com cálculos “vazios”, “jogos de linguagem” e em retirar conseqüências lógicas
de premissas que eles mesmos alegam ser puramente inventadas, parece que não
vão matar e morrer pelas suas idéias. Deve ter parecido, então, que o descompro-
metimento com afirmações sobre a verdade amainaria os espíritos e promoveria
Apresentação 43

um ambiente sadio para as discussões. Mas nós, os modernos, já não podemos


dizer o mesmo: o século XX foi o século do relativismo e do experimento social,
no qual a palavra “verdade” foi banida das conversações elegantes – e nunca se
matou tanto em toda a história.
Qualquer que seja o caso, Duhem chega a datar destas proibições o surgimento
do espírito de livre exame das hipóteses sem nenhum compromisso ontológico, o
mesmo espírito que parece animar a ciência moderna – ou, pelo menos, algumas
filosofias a respeito dela. Há um forte motivo para isso, apesar de não parecer
suficiente. As idéias passaram a não poder ser ensinadas mais como doutrinas “ver-
dadeiras”, e sim apenas como hipóteses meramente especulativas, como, aliás, o
são até hoje, não se exigindo delas uma explicação até as últimas conseqüências,
mas apenas um acordo razoável com os fenômenos. Não se pode negar que este
seja um forte componente do método científico, o de permitir “livres criações do
espírito humano”, para citar uma expressão de Einstein. Esse laissez-faire científico
é tanto mais necessário quanto mais afastado se encontra o assunto em estudo da
possibilidade de teste imediato através do testemunho pelos sentidos, e os resulta-
dos positivos desse expediente são inegáveis. No entanto, justamente devido a este
sucesso, a pergunta se faz sentir com maior premência ainda: a física matemática
moderna tem algum contato com a realidade? E de qual tipo?
Em La Théorie Physique, Duhem elenca seis graus diferentes de adequação
entre as teorias físicas e a realidade, sendo os dois primeiros apenas descritivos e
os quatro últimos explicativos, estando cada um destes últimos de acordo com di-
ferentes metafísicas subjacentes. O grau mais fraco de adequação corresponderia
a nada mais que uma “classificação artificial” das leis e dos fenômenos para fins
meramente práticos, sem nenhuma pretensão de “veracidade”. É a famosa “física
dos modelos” em que se concebe algum modelo mecânico que satisfaz à imagina-
ção e descreve algum campo limitado de fenômenos. Neste modo de ver a ciência
física, não é impossível que outro modelo, concebido para articular os dados de
outro campo de fenômenos, entre em conflito com o primeiro. Os modelos são
usados apenas como suporte imaginativo para a descoberta de leis físico-matemá-
ticas e descartados depois disso. Impossível não reconhecer neste expediente uma
prática constante dos homens de ciência que movem a física moderna.
O segundo grau seria a busca de uma “classificação natural”, a concatena-
ção logicamente articulada entre vastos campos de fenômenos que – depois
de virada e revirada e posta em confronto com os fenômenos novamente –
pareça sugerir uma correspondência com os fatos, mas ainda sem pretensão
metafísica alguma de explicar profundamente nada por não se comprometer
com nenhuma concepção do que seja a matéria, em última instância. O fator
44 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

diferenciador entre a “classificação natural” e a “artificial” seria a busca da uni-


dade e da coerência lógica das hipóteses. Duhem aponta ser este o modo ao
qual acabam tendendo todas as teorias físicas.
Já os quatro graus “explicativos” se diferenciam pelo grau de comprome-
timento e rigidez com o qual concebem a matéria, correspondentes às quatro
“grandes” escolas cosmológicas, segundo Duhem. Em graus crescentes de rigi-
dez, ele lista o aristotélico, o newtoniano, o atomista e o cartesiano. O cartesiano
é o mais rígido porque procura reduzir toda a matéria à mera extensão, a um
“plenum” contínuo tridimensional, excluindo qualquer outra propriedade que
não a extensão pura e procurando, em última instância, reduzir a física à geome-
tria. A seguir na escala de graus explicativos, a escola atomista já admite atribuir
à matéria, além da extensão pura, as noções de impenetrabilidade, rigidez, movi-
mento e impacto, noções estas que, quando transpostas a equações matemáticas,
exigem os conceitos de massa, peso, velocidade e aceleração, por exemplo.
Algo que a escola atomista não admitia, e que a terceira escola, a newto-
niana, aceita é a noção de interação à distância entre os corpúsculos. Quando
Newton propõe a gravitação universal, ele é bombardeado tanto pelos carte-
sianos quanto por atomistas como Christian Huygens por parecer reintrodu-
zir no seio da física causas ocultas, não imediatamente redutíveis a forças de
contato, de superfície, as únicas concebíveis pelos esquemas mecanicistas. Os
conceitos de massa e de peso apelam a noções de intensidade, rejeitadas pelos
cartesianos, mas admitidas pelos atomistas; o que a estes últimos era inaceitá-
vel era que a ação de um corpo pudesse “penetrar” em outro e ser proporcional
a todo o seu volume. Se a gravitação universal de Newton em 1687 já causou
tamanho horror metafísico aos atomistas e cartesianos, imaginem se as des-
cobertas de Coulomb sobre a atração e a repulsão eletrostática de cem anos
depois, e as de Ampère sobre as interações eletrodinâmicas, do início do século
XIX, tivessem sido descobertas naquela época?
Já a quarta escola, a aristotélica ou “peripatética”, seria a mais versátil em
virtude de sua capacidade de absorver quaisquer propriedades atribuídas à ma-
téria que as teorias físicas viessem a descobrir, sem rejeitar praticamente nada
de antemão. Sua flexibilidade advém, entre outros motivos, da doutrina de
matéria e forma, a qual atribui a qualquer ente natural uma constituição em
termos dos co-princípios de materia prima e forma substancial, primeiramen-
te abandonada e depois rejeitada por todas as escolas anteriores por postular
a existência de algo rebelde aos métodos matemáticos: a forma substancial.
Alexander Koyré aponta, em Metaphysics and Measurement, não a matemati-
zação da natureza, mas a adoção da metafísica atomista por parte dos cientistas
Apresentação 45

da entrada da modernidade como o motor principal para o rápido crescimento


da ciência a partir de então. Esta tese de Koyré contém uma parcela importante
da verdade, mas exige muitas ressalvas, algumas de cunho mais científico, ou-
tras de cunho mais filosófico, apesar de quase sempre ser impossível traçarmos
uma fronteira rígida entre ciência e filosofia, como a própria discussão a seguir
deixará claro. A primeira é que parece ser lícito, afinal de contas, fazer aquilo de
que sempre se acusou a ciência medieval, ou seja, reduzir os fenômenos a um
recorte metafísico já desenhado de antemão e procurar encaixar aqueles neste.
A metafísica atomista, ao contrário da aristotélica, surge não a partir de uma
elaboração intelectual erigida sobre os dados da experiência humana direta,
mas de uma hipótese postulada desde o início em busca de uma justificação
posterior. A prova disso é que os métodos matemáticos que possibilitariam a
redução teórica dos corpos às suas supostas partes mínimas (átomos) ficariam
prontos e postos a serviço de uma teoria matemática somente na segunda meta-
de do século XIX com a teoria cinética, a qual, mesmo assim, foi aplicada com
algum sucesso apenas no estudo dos gases.
Em segundo lugar, a atitude “atomista” que possibilitou essa redução pas-
sou a ser, desde Antoine Lavoisier, Amedeo Avogadro e John Dalton, no final
do século XVIII e início do XIX, totalmente neutra em relação ao atomismo
filosófico de Galileu, Gassendi, Huygens e Boyle, de cento e cinqüenta anos
antes. Para Lavoisier, Avogadro e Dalton, o “átomo” não assumia mais o esta-
tuto de um corpo simples que alguma doutrina filosófica declarasse indecom-
ponível, mas apenas o de um corpo que simplesmente ainda não foi capaz
de ser decomposto; que resistiu aos meios de análise usados nos laboratórios
até então. Em terceiro lugar, como mostra Duhem, a ligação entre a hipótese
atomista última e a criação de teorias matemáticas por parte dos atomistas é,
no caso de Boyle, bastante tênue, e no caso dos outros, praticamente nula.
Huygens, por exemplo, não apenas “não extrai sua teoria da dupla refração [da
luz] a partir dos princípios de uma física atomista, mas, nem mesmo depois de
formulada a teoria, ele procura articulá-la com tais princípios.” xxiii
A quarta ressalva vem do estado a que chegou a física moderna. O grande
sonho de todos os atomistas em particular, e dos materialistas em geral, sem-
pre foi o de reduzir, pelo menos em princípio, a explicação dos fenômenos do
mundo às manifestações mais simples da matéria. “Tudo são átomos e vazio”,
podendo todo o resto ser explicado com base apenas nestes elementos. O sucesso

xxiii
Pierre Duhem, The Aim and Structure of Physical Theory, Princeton, Princeton University Press,
1991, p. 35.
46 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

crescente das aplicações do mecanicismo das leis de Newton fez muita gente inte-
ligente imaginar que seria viável, num futuro não tão remoto, reduzir a química à
física, a biologia à química e a psicologia à biologia. xxiv Ainda em 1963, ninguém
menos que Richard Feynman parece defender essa possibilidade. xxv O problema
é que quanto mais se conhece a respeito do mundo físico, mais distante parece a
possibilidade desta redução teórica. Quanto mais se estudam, em detalhe, cam-
pos de fenômenos em escalas de tamanho, tempo e energia diferentes, mais se
multiplicam as novas teorias físicas que os descrevem. O prêmio Nobel de física,
Anthony Leggett, afirma: não é que as teorias da química não venham jamais a
ser reduzidas à física das partículas elementares, mas isso não será possível nem
mesmo à física da matéria condensada, um ramo da física que estuda escalas de
tamanho muito mais próximas dos átomos que a química é capaz de fazer. xxvi
Sem negarmos a importância nem a necessidade do esforço de unificação
teórica, não podemos negar também que, no momento atual, parece que o mo-
vimento nesta direção tem sido frustrado. Ao ser apontado o hiato crescente das
descrições teóricas entre os diversos níveis, a tentação do reducionista é dizer que
a redução é difícil de ser feita por envolver, na passagem de um nível mais básico
para o superior, um grande número de “unidades básicas” ou partículas. Como
a transição envolve cálculos demasiado complexos, ele alega que se faz necessária
a postulação de propriedades “emergentes”, ou seja, propriedades ou qualidades
presentes no nível superior, mas não no inferior, em função das quais se descre-
vem as unidades deste nível superior. A própria vastidão da quantidade das “uni-
dades básicas” obriga a uma transição da descrição da quantidade em direção à
qualidade, de propriedades que estão mais próximas à categoria da quantidade a
outras que estão mais próximas à da qualidade. Ora, tudo isso faz muito sentido,
mas já foi dito por Santo Tomás de Aquino e outros escolásticos, e é exatamente
o contrário daquilo que apregoa o reducionismo mecanicista.
Na verdade, a falta de entendimento da doutrina aristotélica de matéria e
forma é a origem de desentendimentos completamente evitáveis. Por exemplo, o
grande historiador da química William R. Newman tem feito um trabalho pri-
moroso na recuperação das fontes alquímicas dos trabalhos de Boyle, Newton
e outros, mas fica claro, para quem lê suas obras, que ele não entendeu nem a

xxiv Alguns regimes políticos reduziram os homens a meros átomos soltos e realocáveis no espaço,
promovendo deslocamentos de populações inteiras como num gigantesco Lego de peças humanas.
xxv The Feynman Lectures on Physics, Addison-Wesley, 1963, cap. 3.
xxvi Em “On the Nature of Research in Condensed-State Physics”, in Foundations of Physics, Vol. 22,
n. 2, 1992.
Apresentação 47

teoria aristotélica de matéria e forma nem a teoria de Santo Tomás de Aquino


da presença virtual das partes num todo composto, e somente por isso ele pode
acreditar, ainda hoje, que todos os achados da química desde Boyle até hoje rati-
fiquem a metafísica atomista. O dia em que se entender de uma vez para sempre
que não existe matéria sem forma, que ninguém sequer é capaz de conceber uma
coisa assim, e que qualquer ciência que se faça nunca versará sobre outra coisa
senão sobre formas, a pretensão de sustentar um materialismo aliado a um pen-
samento científico somente merecerá risadas de escárnio. Por enquanto, poucos
têm sido agraciados com a possibilidade de dar essas gargalhadas.
Ainda neste sentido, é absolutamente falsa a alegação de que a metafísica
atomista tenha abdicado das formas substanciais e das propriedades aristoté-
licas. O que ela faz é transpô-las a entes de outra ordem. Quer-se negar que
exista algo como a forma ou essência do gato, por exemplo, porque este seria
nada mais que um composto de moléculas de carbono – estas, sim, “reais” –,
mas não se nega que exista a forma ou essência de elétron e de moléculas de
carbono. Afinal, um elétron não é um próton, que não é um átomo de hidro-
gênio, que não é uma molécula de carbono, etc. Também, apesar de se negar a
existência de qualidades sensíveis tais como o azul, não se nega, antes afirma-
-se, a existência das qualidades do elétron como spin, carga e massa.
Outra ressalva de acachapante obviedade: se um cientista quer ter uma atitude
mecanicista, ele pode ser tudo, menos ateu. Quantos neurônios precisa alguém
para entender que qualquer mecanismo exige a existência do projetista? Aliás,
nunca foi outra a opinião dos “mecanicistas” Newton, Descartes e Leibniz. Além
disso, como não perceber que a noção de mecanismo exige a noção de função e
da articulação entre partes e todo e as de causalidade eficiente e final? Qualquer
que seja o nome que se queira dar a essas noções, não é nem poderia ser outra a
conclusão a que chegaram os maiores especialistas em teoria das máquinas e em
teoria dos sistemas, Norbert Wiener (Cybernetics: or Control and Communication
in the Animal and the Machine) e Ludwig von Bertalanffy (General System Theory).
O que esses autores mostram é que o estudo até mesmo das “máquinas” e dos
“sistemas” mais simples e inorgânicos possíveis morreria no berço sem o recurso às
noções de causa e de relação, noções estas que são eminentemente metafísicas, por
mais que se esperneie contra a legitimidade da metafísica como ciência.
Pior ainda é a tentativa de juntar mecanicismo e evolucionismo, como se
da concatenação de duas cegueiras surgisse uma visão aguda. Como aponta
Robin Collingwood, em The Idea of Nature, uma máquina é essencialmente
um produto final. Até que esteja terminada, ela não é uma máquina e não
pode, portanto, evoluir, porque evoluir significa operar em direção a algo.
48 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Ora, se há um algo que evolui, antes de tudo ele é algo, e que mais seria senão
um composto de matéria e forma? Ademais, ele evolui em direção a algo que
não é ele e, portanto, assumirá uma forma que ainda não possui; que é isso
senão a causa final? E o que seriam as condições, entes e mecanismos que dis-
parariam e dirigiriam o processo senão causas agentes e eficientes? Mecanismo
e evolução podem até existir – e, na verdade, é praticamente inevitável que
existam –, mas somente se estiverem integrados a algo que os transcenda.
A terminologia utilizada pelos próprios materialistas para explicar suas
teorias mecanicistas e evolucionistas está repleta das noções de “finalidade”,
“função”, “agência”, “propósito”, “projeto”, “inteligência”, “adequação” e até
“egoísmo”. Como diz o filósofo Olavo de Carvalho, trata-se não apenas de
uma concessão por parte deles ao baixo entendimento do público leigo, que
não alcançaria a teoria se esta fosse colocada em termos mais técnicos – os
quais eles jamais revelam, não é mesmo? –, mas é da própria natureza, tanto
das coisas como do intelecto, que somente nestes termos algo adquira inte-
ligibilidade. O sujeito passa horas explicando sua teoria utilizando palavras e
conceitos inteiramente normais e aceitáveis, tudo para no final ele dizer que
a explicação é falsa, mas a teoria é verdadeira? Abdicar da inteligibilidade das
coisas para parecer inteligente não é sinal de inteligência, mas quem hoje em
dia resiste a parecer inteligente exibindo enigmaticamente a própria estupidez?
Contudo, há sinais de que a comunidade científica esteja se recuperando,
ainda que lentamente, do divórcio quase obsceno entre filosofia e ciência. Já
é possível voltar a falar na noção de forma, mesmo que de modo acanhado e
com o nome de informação. John Archibald Wheeler, um dos maiores físicos da
segunda metade do século XX, cunhou a famosa frase “It from bit”, explicando
que “todo ‘it’ [algo] – toda partícula, todo campo de força, até o próprio contí-
nuo do espaço-tempo – deriva sua função, seu significado e sua existência mes-
ma dos ‘bits’ ”. Em breves palavras, a matéria só adquire inteligibilidade e ser em
função da forma, algo em perfeita conformidade com a Escolástica e com o bem
pensar de quem está acordado. E Seth Lloyd, que dirige o centro de computa-
ção quântica do MIT, diz que “terra, ar, fogo e água são todos feitos de energia,
mas as formas diferentes que eles assumem são determinadas pela informação.
Para fazer qualquer coisa, requer-se energia. Para especificar o que se vai fazer,
requer-se informação”. xxvii Eu sei que falar em matéria e forma os faria perder o
emprego, mas – cá entre nós – é disso que se trata, não é mesmo?

xxvii Em Programming the Universe, Nova York, Knopf, 2006, p. 22. Cf. também o excelente livro The
Information, de James Gleick.
Apresentação 49

Outro sinal de arejamento é a consideração de filosofias de tipo “histórico-


-dialético” na construção de teorias da física, em particular sobre o tempo,
como as de Lee Smolin em Time Reborn. A relatividade de Einstein, pelo fato
de tomar o tempo como parâmetro geométrico, de muitos modos análogo às
três dimensões espaciais, acaba por, de alguma maneira, “congelá-lo”, como se
ele estivesse todo presente de uma vez para a consideração do intelecto e como
se o seu fluxo tivesse sido eliminado dessa consideração. Neste caso, o tempo,
segundo Smolin, inspirado abertamente nas idéias do “Brazilian philosopher”
Roberto Mangabeira Unger, não é visto como fator de novidade, mas apenas
de progressão, estando “tudo já dado de antemão”. Muitos já criticaram esta
visão de block universe, a visão da história do universo como tomada de uma
só vez, como um sistema de eventos conectados por relações causais em bloco.
Segundo Smolin, as teorias de Einstein compõem os mais fortes argumentos
em favor de o tempo ser uma ilusão que mascara a realidade mais verdadeira
e atemporal. Apesar do principal motor das idéias de Smolin ser o tradicional
horror às palavras “verdade” e “eternidade”, o livro traz muitas sugestões in-
teressantes; basta o fato de ele fugir um pouco ao espectro mecanicista e nos
colocar num ambiente de tipo hegeliano que já sentimos algum alívio por sair
daquele reme-reme de Descartes, Hume, Kant e neopositivistas, mas é também
verdade que Alfred North Whitehead já tentara algo neste sentido no início
do século XX, com sua teoria da gravitação, sem obter sucesso.
Outro aspecto da fuga do mecanicismo é que as descobertas da física quân-
tica trazem implícita uma filosofia que acomoda a matéria, o espaço e o tempo
de modo mais abrangente que o do mecanicismo, embora não seja comum
alguém reparar neste fato. A noção de que as partículas tratadas pela mecâ-
nica quântica possam ser tomadas como corpúsculos, como miniaturas de
bolas de bilhar, é totalmente inadequada. Em qualquer livro ou curso profis-
sional de física, o aluno é alertado, desde o início, para não tentar conceber
os objetos descritos pelas equações da teoria como se fossem meros “corpos
pequenininhos”, que são inacessíveis aos sentidos humanos somente devido
a pertencerem a escalas de comprimento muito pequenas. Isto não funciona.
Interpretações da teoria nesse sentido foram tentadas, mas acabaram sempre
desmentidas pelos experimentos. Em praticamente noventa anos, o único
resultado prático dessas tentativas – todas meritórias e, no final das contas,
belíssimas – é que acabam dando munição, cada vez mais, à interpretação
indeterminista dos fenômenos.
A noção de “corpo” como individualidade tridimensional, autônoma sob
alguns aspectos, e que possui, conforme discutimos na seção anterior, uma
50 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

posição e uma velocidade instantânea bem definidas em cada instante de


tempo, não se aplica aos objetos descritos pela teoria quântica. É verdade que
a palavra “partícula” é usada na teoria, mas adquire significado estranho e, no
máximo, análogo à noção comum de corpo, presente tanto nas conversações
ordinárias quanto na filosofia medieval e na física clássica “de Newton”. O
fato é que a noção de átomo não faz sentido “num instante”, porque a no-
ção de átomo aparece indissoluvelmente ligada à de processo, movimento,
comportamento. Aquele modelinho imaginário de átomo como composto
de um núcleo central circundado por elétrons em órbitas, lembrando um
sistema solar, é apenas isto, um modelo imaginário. Na teoria, os elétrons não
são descritos – nem, a propósito, o próprio núcleo – como corpúsculos com
localização e trajetória bem definidos; ou seja, eles não são corpos. O objeto
matemático de que faz uso a teoria é um ente abstrato chamado função de
onda, da qual se obtém a descrição apenas de uma distribuição de probabili-
dade, espalhada em regiões inteiras do espaço, de encontrar o elétron em tal
ou qual localização, caso se realize uma medida.
Collingwood faz interessante reflexão em The Idea of Nature: numa filo-
sofia mecanicista, a noção de função é subordinada à da substância, ao passo
que esta relação se inverte numa filosofia de tipo “evolucionista”, a qual “leva o
tempo a sério”, para nos valermos de uma expressão de Lee Smolin. No meca-
nicismo, a função que dado componente, dada peça assumirá numa máquina
depende inteiramente daquilo que constitui a natureza, a substância da peça.
Já numa filosofia de tipo historicista, a natureza é entendida como constituída
por processos, e a própria existência das coisas na natureza deve ser entendida
a partir de processos de algum tipo. Por exemplo, a noção mesma do metal
que constituirá uma dada peça é a de um rápido movimento das partículas
que a compõem. Algo muito semelhante a isto é a descrição que a mecânica
quântica fornece do átomo, na medida em que ela se baseia no conceito de
onda, que está indissoluvelmente ligado ao de um ritmo de eventos, exigindo,
portanto, a noção de “tempos mínimos” e “espaços mínimos” para que algo,
mais que ocorra, exista. Como diz Whitehead em Nature and Life, “não existe
natureza num instante”.
Não precisamos, com isso, concordar com Collingwood em toda a linha,
como quando ele afirma que “a física moderna nega a distinção entre função e
substância”, porque toda a noção de substância estaria, segundo ele, fincada na
de processo, movimento e ação. A pergunta que imediatamente surge é: mas,
movimento de quê? Apesar de muito sugestivas as discussões dele, não me
parece que se possa negar o princípio escolástico de que agere sequitur esse, o
Apresentação 51

operar se segue ao ser. Aliás, não me parece nem mesmo que a física moderna
o tenha feito, apesar de alegações em contrário vindas de todas as partes. Neste
sentido é também sugestiva a compreensão de Newton sobre a matéria, a qual
não parece diferir muito da de Aristóteles e da dos escolásticos, pelo menos
do modo como a expõe Ernan McMullin em Newton on Matter and Activity.
Por último, a respeito da constituição última da matéria, tanto a hipótese
cartesiana quanto a atomista, um pouco mais que a newtoniana e muito mais que
a aristotélica, são de fácil entendimento: a matéria ou é pura extensão privada de
quaisquer outras qualidades, ou é composta de corpos simples indivisíveis que se
movimentam e se entrechocam, dotados de poucas qualidades “primárias” como
extensão, tamanho, formato, pluralidade, impenetrabilidade, posição, repouso
ou movimento, e algumas outras que advirão no curso da matematização das suas
relações, como a massa, por exemplo. Em ambos os casos, essas poucas qualida-
des são tidas como responsáveis pela produção de todos os fenômenos, inclusive
as qualidades sensíveis chamadas pela filosofia da época de “secundárias”, tais
como cor, som, sabor, cheiro, textura e temperatura. Demócrito afirma não ver
necessidade de “postular” a existência destas últimas, mas apenas das primeiras, e
Galileu, em Il Saggiatore, chega ao radicalismo de dizer que, se não fosse a existên-
cia dos animais, não teríamos a necessidade sequer de discuti-las.
Ora, Aristóteles nunca negou que, de certo modo, os sensíveis não existissem
em ato na ausência dos sentidos, mas apenas em potência. xxviii Por exemplo, na
ausência de ouvidos, o que há não é propriamente som, mas apenas as condições
materiais para tanto, as ondas elásticas no meio. Afirmar isso, contudo, não é o
mesmo que, como sempre pretenderam os atomistas, eliminar completamente
da consideração todo o âmbito de fenômenos relativos à percepção; antes o
contrário, é reconhecer a radical irredutibilidade deles à consideração da mera
materialidade bruta. Seja como for, não há dúvida de que, eliminando-se do

xxviii De Anima, Livro III, cap. 2, 426a, 16 a 26: “Visto que o ato do sensível e da faculdade perceptiva
são um mesmo, embora o seu ser seja diferente, é necessário que a audição, entendida como ato, e o
som, e ainda o sabor e o gosto (e os outros de modo similar) pereçam e permaneçam em simultâneo;
já quanto aos mesmos, mas entendidos como potência, tal não é necessário. Os primeiros fisiólogos,
todavia, não diziam bem isto. Julgavam, pois, que não existiam branco nem negro sem a vista, e que
não existia o sabor sem o paladar; umas coisas diziam corretamente, outras não. Ora, a percepção
sensorial e o sensível dizem-se de duas maneiras: de umas coisas, em potência; de outras, em ato. No
caso das últimas, com efeito, acontece o que disseram; no caso das primeiras, já não. Eles pronuncia-
vam-se, de fato, de forma unívoca a respeito de coisas que não podem ser ditas de forma unívoca.”
É impossível, aqui, não nos lembrarmos da queixa de Einstein, proferida no contexto das discussões
sobre a mecânica quântica: “Prefiro acreditar que a lua está sempre lá, mesmo quando ninguém está
olhando.” Todavia, aqui introduz-se um terceiro elemento, ausente das preocupações de Aristóteles
no trecho acima: as teorias físico-matemáticas.
52 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

universo aquilo que sua teoria não é capaz de abranger, ele fica naturalmente
muito mais simples, o mundo passa a ser aquilo que seu método é capaz de
explicar. Não é difícil concordar com Paul Feyerabend e manifestar-nos aqui –
neste sentido! – contra o método.
Claro que, se até as formas sensíveis são ou relegadas ao mundo da men-
te, como se fossem puras produções arbitrárias do cérebro sem conexão com
o mundo material, ou simplesmente eliminadas de qualquer consideração,
como meras manifestações fantasmagóricas pairando acima do “mundo ver-
dadeiro da matéria bruta”, as velhas formas substanciais aristotélicas dos entes,
aquilo que faz com que uma laranja seja uma laranja – aquela laranja –, já ha-
viam caído em desuso muito antes. Os escolásticos também faziam um elenco
das qualidades corpóreas, praticamente as mesmas, só que com uma denomi-
nação que as dispunha na ordem do conhecer antes de tentar alcançar algu-
ma ordem do ser, como propunha a metafísica atomista. xxix Ao conjunto de
qualidades como o som, a cor, o sabor e o cheiro, eles chamavam de sensíveis
próprios, pois cada uma delas é própria de um sentido corporal distinto, não
havendo confusão entre o captado por um sentido e o captado pelos outros; e
ao conjunto de qualidades sem as quais parece impossível conceber a noção de
corpo, como extensão tridimensional, formato, tamanho e impenetrabilidade,
eles chamavam de sensíveis comuns.
A diferença de atitude entre a “nova filosofia” e a antiga está ancorada
em teorias diferentes da psicologia: enquanto para Aristóteles o campo dos
sensíveis comuns, que coincide em grande medida com o da substância quan-
tificada (com o ens quantum, objeto da matemática), é obtido a partir de uma
abstração da experiência sensível, para os atomistas o campo das qualidades
“secundárias” é um campo quase paralelo, sem conexão orgânica praticamente
nenhuma com o mundo das qualidades “primárias”: res extensa aqui, res cogi-
tans ali, vivendo em mundos paralelos e desarticulados, colados apenas pelo
pensamento. Deste modo, a quantidade, em vez de ser o primeiro acidente
que inere na matéria, é tomada como toda a essência da substância mate-
rial. Só é real aquilo que possa ser quantificado, tudo o mais são produtos
da mente. Claro que não é preciso ser um gênio da Escolástica para derrubar
uma teoria tão infantil. George Berkeley fez este trabalho simplesmente ao
apontar que sem o concurso das “qualidades secundárias” não teríamos sequer
acesso às “primárias”. Se primeiro não virmos e não tocarmos as coisas, como
será possível depois considerá-las meras quantidades? É evidente que, junto

xxix Cf. John Deely, Four Ages of Understanding, Toronto, University of Toronto Press, 2001.
Apresentação 53

com toda essa confusão, desaparece por completo o conceito de explicação,


restando à ciência assim concebida a tarefa mais modesta de mera descrição,
classificação ou taxonomia dos fenômenos.
Tem sentido dizer que as leis da física, as quais supostamente regem o
mundo material, fazem previsões sobre acontecimentos futuros, mas certa-
mente não faz o menor sentido dizer que as relações matemáticas façam “pre-
visões” sobre o comportamento de números ou figuras geométricas. Portanto,
como a matemática prescinde do movimento, duas das quatro espécies de
causas aristotélicas permanecem fora do seu alcance: a causa agente ou eficien-
te e a causa final, justamente as que mais eminentemente merecem o nome
de causa. Restam na consideração matemática apenas as causas material – o
contínuo da matéria inteligível – e a formal, com a ressalva de que esta última,
mesmo assim, apenas remotamente se dirige àquilo que os escolásticos chama-
vam de forma substancial dos entes, captando dela somente alguns aspectos
quantitativos. Não surpreendem, portanto, as queixas que Bertrand Russell
expressa contra a noção de causa. Ele chega a dizer que a física moderna não
faz nenhum uso dela, e que ela somente sobrevive – assim como a monarquia!
– porque ninguém percebeu o mal que ela faz. xxx
O próprio Bertrand Russell pergunta: o que nas equações diferenciais da
mecânica newtoniana sugere a noção de causação? As equações diferenciais
descrevem como dada configuração de bolas de bilhar leva necessariamente a
uma configuração posterior, mas em que sentido se pode dizer que a primeira
causou a segunda? Pior ainda, de modo completamente contrário à noção co-
mum que se tem de causa, as equações diferenciais “rodam” tanto para frente
no tempo quanto para trás, numa relação simétrica no tempo, algo impossível
de se pensar quando se considera a noção comum de causa. xxxi
A nossa concepção intuitiva de causa alcança e a metafísica explica que a
causa é mais que o efeito, porque contém em si o ser dele. Em que sentido
se pode dizer que uma configuração anterior de bolhas de bilhar é “mais”
que a posterior? Para chegar-se a uma noção matemática que expressasse algo
disto quantitativamente, foi necessária a descoberta do conceito de entropia
na segunda metade do século XIX. Há configurações de bolas de bilhar mais
ordenadas que outras. Quando, portanto, se compara uma fotografia daquela
disposição triangular inicial das bolas de uma partida de sinuca com outra

xxx Mysticism and Logic, p. 180, Londres, Allen and Unwin, 1949.
xxxi Cf. Roberto Torretti, The Philosophy of Physics, Cambridge, Cambridge University Press, 1999,
pp. 132-3.
54 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

configuração na qual as bolas aparecem espalhadas “aleatoriamente” durante a


partida, o conceito de ordem faz as vezes do conceito de causa, expressando-o
matematicamente, algo que, aliás e para variar, Aristóteles já dizia: o conceito
de ordem é eminentemente um conceito matemático. xxxii
Aristóteles afirmava que ciência é conhecimento por causas. Quando Hume
e Kant alegam que é a nossa mente que conecta as percepções de fenômenos
sucessivos, e que os fatos sucedidos no tempo são apenas “alterações”, e que a
noção de causa é apenas uma “analogia” imposta pela razão ao mundo externo,
estão dizendo algo inteiramente falso quando aplicado à intuição humana or-
dinária. Ocorre que – e aqui está o motivo deste erro parecer tão persuasivo a
uma civilização tão dependente psicologicamente da técnica – isto é verdadeiro
quando aplicado à “nova ciência”. A grande inversão do pensamento moder-
no é, como fizeram Hume e Kant, seguindo nisto a Descartes, tentar primeiro
construir a nova ciência e somente a partir do entendimento que se extraia daí
articular todo o restante da realidade, em vez de empreender antes uma análise
cuidadosa do sentido comum e só então e com base nisto fazer uma filosofia
da ciência. Qualquer pessoa com inteligência mediana percebe que as noções
da essência de gato e de azul são “sabidas e não pensadas” e que as noções da
física matemática e das demais ciências contêm um forte aspecto de “pensado”
e apenas um leve e problemático sabor de “sabidas”. Ora, a filosofia moderna
quer-nos fazer crer justamente o contrário, que as noções intuitivas de gato e de
azul são meramente “pensadas, nunca sabidas”, mas que as afirmações da ciência
newtoniana – ah!, essas, sim, são sabidas com certeza em vez de pensadas. É por
isso que chegamos, depois de dois mil anos de discussões, à tentativa, considera-
da elegante por Russell, de entender a ciência como empreendimento desligado
da noção de causa. Como diz o padre Álvaro Calderón, a física moderna não é
ainda uma ciência; é conhecimento que aspira a ser ciência um dia.

Física, matemática e física de novo

Contudo, é possível fazer melhor. O filósofo e historiador dominicano


William A. Wallace, no prefácio ao primeiro volume de Causality and Scienti-
fic Explanation, conta que circulava uma piada no meio da filosofia da ciência

xxxiiAristóteles, Metafísica, M 1078 a36-b5: “As supremas causas do belo são: a ordem, a simetria
e o definido, e as matemáticas os dão a conhecer mais do que todas as outras ciências. E como essas
coisas – ou seja, a ordem e o definido – são manifestamente causas de muitas coisas, é evidente que as
matemáticas também falam de algum modo desse tipo de causa, justamente enquanto o belo é causa”.
Apresentação 55

nos anos sessenta: Thomas Kuhn era um homem que acreditava na ciência,
mas não na realidade, enquanto Paul Feyerabend, sendo um realista, acredita-
va na realidade, mas não na ciência. A raiz de tal confusão deve-se, em parte,
àquilo que se espera da ciência – se uma explicação ou uma descrição. Na
seção anterior vimos que a entrada em cena, no meio universitário medieval,
das obras científicas de Aristóteles propiciou a possibilidade de uma ciência
da natureza de cunho mais explicativo que somente descritivo. No entanto,
o movimento neste sentido não durou mais de cem anos, porque as segui-
das proibições do ensino das doutrinas aristotélicas obrigaram as pesquisas
a tomarem novamente teor mais especulativo e descritivo que propriamente
explicativo, e a atitude predominante dos homens de ciência do final do perí-
odo medieval passou a ser a do “nominalismo”, uma postura que voltaria com
força no século XX com as roupagens da filosofia formalista da matemática e
da filosofia positivista da ciência.
Porém, é neste ambiente de nominalismo que surge, na passagem do século
XVI para o XVII, um novo movimento em direção a uma física mais explica-
tiva. Ainda que, pelos motivos mais díspares e até opostos, como mostram os
exemplos de Kuhn e Feyerabend, a postura positivista nos tenha acostumado
a alegar que a ciência matematizante moderna não tem por ambição alcançar
a intimidade causal dos fenômenos, a verdade é que houve, principalmente a
partir de Kepler, uma tentativa de reinserir questões causais no seio da preo-
cupação científica. Enquanto a astronomia na Idade Média era predominan-
temente matemática, parecia realmente que ela só “salvava os fenômenos”, só
descrevia os acontecimentos sem explicá-los. Quando Kepler começa a dar
clareza aos conceitos de massa e de força, e à medida que eles vão sendo ma-
tematizados e passam a figurar na álgebra das “novas leis”, volta-se, segundo
Wallace, à possibilidade da articulação de uma ciência verdadeira. Neste caso,
mesmo os conceitos novos de massa e força tendo sido formulados de modo
quantitativo e postos em linguagem matemática, a articulação deles com os
conceitos de posição, tempo e velocidade alcança uma unidade até então desco-
nhecida em qualquer área da ciência: aliam-se a descrição matemática precisa
e a procura por causas físicas.
A unificação dos conceitos de força e de massa na ação exercida entre corpos
terrestres acessíveis à experimentação e na ação entre corpos celestes acessíveis
somente à observação é obra completada por Newton. A ligação destes concei-
tos matematizados com os sentidos, apesar de problemática, existe, xxxiii e tem

xxxiii Cf. Max Jammer, Concepts of Mass e Concepts of Force.


56 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

sua origem no esforço muscular que empregamos ao empurrarmos objetos no


dia-a-dia. Obviamente, se não fôssemos dotados do sentido do tato seria pra-
ticamente impossível concebermos esses conceitos somente através do sentido
da visão. Descartes, por exemplo, chegou à sua idéia de matéria como pura
extensão porque provavelmente considerava apenas o sentido da visão como
legítimo para construir sua física, a qual tendia, por isso mesmo, a ser uma geo-
metria – a geometria parece ser a ciência dos puros aspectos visuais dos recortes
corpóreos. Psicologicamente, o sentido da visão parece ser mais objetivo que o
do tato, porque parece nos dar informações sobre o que está “lá”, enquanto que
para o sentido do tato é preciso tocarmos o objeto, e a informação transmitida
através do tato adquire, assim, uma componente mais subjetiva. xxxiv
Sendo possível, então, um resgate da noção de causa eficiente atribuível à
descrição dos fenômenos, e sendo possível, até, encontrar um modo de formu-
lá-la matematicamente, a ciência média da física matemática poderia passar
a ser considerada verdadeira ciência? Neste tema da aplicação da matemática
ao mundo físico, William A. Wallace coloca a Santo Tomás de Aquino como
mantendo posição intermédia entre os extremos representados por Galileu e
por Einstein. xxxv Segundo Wallace, que cita em seu apoio Edwin A. Burtt xxxvi e
Giorgio de Santillana, xxxvii Galileu teria tido uma visão simplista da relação entre
a matemática e a física, fazendo a opção metafísica que era, de fato, a de um
realismo matemático strictu sensu. O aspecto mais significativo do “método de
Galileu” não seria sua insistência no “experimento”, mas na matematização do
mundo natural, na noção de que, nas palavras do próprio Galileu, “o livro da
natureza está escrito em linguagem matemática e seus símbolos são triângulos,
círculos e outras figuras geométricas, sem a ajuda das quais é impossível com-
preender uma única palavra sua, sem as quais vagamos por um labirinto escuro”.
Ainda de acordo com Wallace, os experimentos não teriam, para Galileu
valor probatório, sendo desenhados apenas para “satisfação da mente popular

xxxiv Santo Tomás de Aquino observa, na esteira de Aristóteles, o seguinte: a visão e a audição são os
sentidos externos que dão notícia da realidade com precisão maior que os demais, pelo seu alcance,
digamos, extra-corpóreo. Daí serem os sentidos que mais auxiliam as potências superiores da alma
humana, inteligência e vontade. Especificamente com relação à visão, trata-se do sentido que melhor
ajuda o intelecto a alcançar o seu objeto formal próprio: o inteligível, ao qual o ser humano chega
valendo-se dos sentidos. Cf. Tomás de Aquino, De Sensu et Sensato, I, 2, nº. 25
xxxv Cf. seu artigo “Einstein, Galileo and Aquinas. Three Views of Scientific Method”, Washington,
D.C., Compact Studies, The Thomist Press, 1963.
xxxvi Em The Metaphysical Foundations of Modern Physical Science, Londres, Kegan Paul, Trench,
Trubner & Co., 1925.
xxxvii Em The Crime of Galileo, Chicago, The University of Chicago Press, 1955.
Apresentação 57

– [pois] aqueles que sabiam matemática não precisavam realmente deles”. É


uma interpretação razoável da atitude do cientista que via nos sentidos um
“excesso de bagagem metafísica”, dispensável à luz da certeza do método mate-
mático. Não cabe aqui falarmos de platonismo, mas de pitagorismo ingênuo,
porque, como lembra Edmund Husserl em The Crisis of European Sciences,
“para o platonismo, o real possui uma methexis mais ou menos perfeita no ide-
al. Isso permitiu à antiga geometria possibilidades de uma aplicação primitiva
à realidade. [Mas] através da matematização da natureza de Galileu, a própria
natureza é idealizada sob o guia da nova matemática; a própria natureza se
torna... uma ‘variedade’ [um campo da] matemática”. xxxviii
Classificar a posição de um cientista de acordo com os termos e com as
escolas filosóficas é tarefa quase impossível, e ninguém menos que Einstein re-
clama das tentativas de enquadrá-lo filosoficamente: o cientista “deve parecer
ao epistemólogo sistemático [sic] um tipo de oportunista inescrupuloso: ele
parece realista na medida em que procura descrever um mundo independente
dos atos da percepção; idealista na medida em que enxerga nos conceitos e
teorias livres invenções do espírito humano, não deriváveis logicamente da-
quilo que é dado empiricamente; positivista na medida em que considera seus
conceitos e teorias justificados apenas ao fornecerem uma representação lógica
das relações entre experiências sensoriais. Ele pode parecer até um platônico ou
pitagórico na medida em que considera o ponto de vista da simplicidade lógica
como uma ferramenta indispensável e efetiva em sua pesquisa”. xxxix Apesar
disso, partindo de algumas declarações de Einstein, não é impossível classificar
sua atitude como praticamente oposta à de Galileu, pelo menos no que diz
respeito às relações entre matemática e física. Além da famosa expressão sobre
as “livres criações do espírito” no mesmo sentido de uma desconfiança quanto
ao ingênuo otimismo dos físicos do período clássico, há a seguinte afirmação:
“Na medida em que as leis da matemática se referem à realidade, não são cer-
tas; na medida em que são certas, não se referem à realidade”.
A visão do que seja, no final das contas, a ciência da física, deixou de ser um
problema para os próprios cientistas desde a entrada da modernidade. O tema
insiste em retornar, mas como eles perderam o treino filosófico, suas posições
ficam à deriva e reagem ao sabor das modas filosóficas do momento. Os físicos

xxxviii The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology, Evanston, Northwestern Uni-
versity Press, 1970, p. 23.
xxxix Cf. Paul Schilpp (ed.), Albert Einstein, Philosopher-Scientist, Nova York, MJF, 1970 (orig. publ.
em 1949). p. 684.
58 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

sabem muita física, não há dúvida, mas não sabem o que é a física, pois perde-
ram o interesse na questão da definição mesma da ciência que praticam. Não
surpreende, portanto, que não saibam exatamente a que correspondem suas
teorias quando confrontadas com a realidade. Se procurarmos nas obras dos
mais eminentes cientistas dos últimos séculos por um esclarecimento do que
seja a física, encontraremos as mais diversas atitudes, desde a (supostamente)
de Kuhn, até a de Feyerabend. E se perguntarmos a uma comunidade de
físicos “a que, no mundo concreto, correspondem as teorias físicas e de que
modo o fazem”, também ouviremos as respostas mais desencontradas. Talvez
por causa da falta de entendimento desta questão, na reclamação de Einstein
quanto à classificação do cientista nas diversas escolas filosóficas, ele não se
lembre de citar justamente a posição aristotélica, a qual está aberta à pletórica
variedade do real e pode abarcar – porque as transcende – todas as atitudes
filosóficas mencionadas por ele.
A propriedade dos entes do mundo físico – a saber: a de serem sensíveis
– é de importância fundamental porque, uma vez abstraídas as noções mate-
máticas e formuladas as teses e proposições da ciência média, nos incumbe o
dever de retornar ao mundo concreto e verificar se as asserções quantitativas
atingidas pela mente do cientista correspondem, ou não, aos entes físicos,
e em que medida o fazem. Quando falo em retorno ao mundo concreto,
não me refiro simplesmente à verificação por experimentos, mas à verificação
pelas experiências cognitivas reais. Os experimentos científicos são atos ex-
tremamente complexos nos quais aparecem indissoluvelmente ligados tanto
os dados brutos fornecidos pelos equipamentos quanto as mais diversas teo-
rias físicas. Todo equipamento científico é desenhado tendo por pressuposto
alguma teoria físico-matemática, e é impossível a operação daquele sem o
conhecimento intencional desta. Um olho não treinado nunca saberá pelo
que procurar no equipamento. Mas, mesmo depois de uma teoria ser com-
provada por experimentos, a ninguém escapa que ainda lhe falta a ligação
com o mundo concreto, no qual vivem todos os seres humanos, inclusive
os próprios cientistas. Em síntese, estava certíssimo o filósofo basco Xavier
Zubiri, que privou da companhia de alguns dos maiores físicos da primeira
metade do século XX, xl ao escrever o seguinte: “El hombre es un animal de
realidades”. xli Mas que realidades? As formas alcançáveis pelo intelecto em
cooperação com os sentidos.

xl Cf. Jordi Corominas e Joan Albert Vicens, Xavier Zubiri: La Soledad Sonora, Madri, Taurus, 2006.
xli Xavier Zubiri, Sobre el Hombre e Inteligencia Sentiente – Inteligencia y Realidad.
Apresentação 59

Somente por meio do retorno à experiência humana concreta é possível


completar o movimento da ciência em direção aos conceitos mais básicos da
vivência humana – como os de causa, valor, finalidade, ato, potência, matéria
e forma, por exemplo. É claro que, ao dizermos que estes são conceitos básicos
da vivência humana, não queremos afirmar que sejam de apreensão imediata,
nem de fácil definição; nem que, uma vez definidos, sejam de fácil compreensão
para os não estudiosos, nem mesmo que, uma vez compreendidos, não devam
ser discutidos. Porém, e por isso mesmo, a tarefa de uma filosofia sã é justa-
mente ater-se o mais possível à experiência, retirar dela seu material, elaborá-lo
analiticamente e devolvê-lo ao teste, este sim, da experiência. Neste sentido,
não apenas as filosofias modernas falham miseravelmente, como até mesmo o
“platonismo vulgar” parece impotente na medida em que “desliga” os sentidos
do intelecto, e acaba por nos remeter a um outro mundo cuja ligação com este
daqui é, no máximo, alusiva. O platonismo, tal como entendido pelas popula-
ções universitárias modernas, parece uma grande mudança de assunto, e por esta
razão é usado como um tranquilizante, como muleta psicológica.
Em Física e filosofia, de 1958, Werner Heisenberg tenta uma aproximação
das descobertas da mecânica quântica com as noções aristotélicas de potên-
cia e ato e de matéria e forma, apontando um caminho pelo qual já se havia
aventurado Vincent E. Smith em 1950. xlii Em 1965, Vincent Smith voltará a
reelaborar o assunto de modo ainda melhor e já com conhecimento da obra
de Heisenberg, em Science and Philosophy. Ainda nos anos sessenta do século
passado, William A. Wallace trilha o mesmo caminho, penetrando mais fundo
nas noções aristotélicas desenvolvidas pela Escolástica. xliii
Em 1995, o físico e filósofo americano Wolfgang Smith, em O enigma
quântico, reelabora as mesmas relações em termos de uma distinção já presen-
te, pelo menos em germe, em La Théorie Physique, de Pierre Duhem, de 1906.
Duhem afirmara que o físico experimental tem em mente dois equipamentos
de laboratório: um é o real que ele manipula sensivelmente; o outro é apenas
esquemático, idealizado, pensado de acordo com a teoria que guiou sua cons-
trução. Wolfgang Smith – não se sabe se conhecendo ou não as explicações
de Duhem – estende esta oposição também ao próprio objeto descrito pela
teoria: uma coisa é o mundo concreto, sensível e inteligível, no qual todos
vivemos e que inclui vários “objetos” ou entes corpóreos; outra são os objetos

xlii
No livro Philosophical Physics.
xliii
Cf. coletânea de artigos enfeixados em From a Realist Point of View e Causality and Scientific Ex-
planation, em dois volumes, no ano de 1972.
60 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

considerados de acordo com a teoria física. Ao mundo real, formado pelos ob-
jetos do primeiro tipo, Smith chama “mundo corpóreo”; ao segundo, “mundo
físico”, sobre o qual versam as teorias abstratas da física matemática, ou, nou-
tras palavras, o conjunto de objetos descritos pelas equações da física matemá-
tica. A pergunta “a que correspondem, no mundo real, as teorias físicas e de
que modo o fazem?” pode tomar, assim, o seguinte formato na terminologia
de Smith: “Estes dois mundos, o físico e o corpóreo, coincidem?”.
Podia parecer que sim, a julgar pelo sucesso que obteve a mecânica newto-
niana na descrição dos fenômenos. Mas, cunhando outro termo, Smith expli-
ca que isto se dá pelo fato de o objeto físico, neste caso, ser de tipo “subcor-
póreo”. Quando, na teoria, se substitui mentalmente uma bola de bilhar real,
concreta, que tem cor, textura e cheiro, por uma esfera de raio R e massa m
construída com material de coeficiente de elasticidade Y, a mecânica newto-
niana trata este objeto como o que de mais próximo corresponde aos atributos
quantitativos da noção de corpo. Por outro lado, evidentemente, não se trata
de um corpo, pois em nenhum lugar dessa descrição se faz alusão a qual-
quer dos atributos imediatamente sensíveis, captáveis pelos sentidos huma-
nos. Aliás, nem era essa a intenção dos cientistas da entrada da modernidade,
se lembrarmos da diferenciação que a eles tanto importava entre qualidades
primárias e secundárias. Ora, mesmo não sendo propriamente corpos, mesmo
tratando-se apenas dos atributos quantitativos mínimos da noção de corpo, o
fato é que os objetos do “mundo físico newtoniano” apresentam identificação
quase imediata com os corpos concretos. Isto acarreta a conseqüência de eles
apresentarem posição e velocidade bem definidas.
Tanto o espaço tridimensional abstrato tratado pela teoria “cola sem so-
bras” com o espaço concreto da experiência como a “bola de massa m” tem
com a bola concreta uma correspondência identificável e única em termos
espaço-temporais. É possível “rodar” as equações, olhar para o espaço abstra-
to representado na folha de papel, identificar ali uma posição, procurar sua
correspondente no espaço real e apontar o dedo para lá, dizendo: “A massa
m estará ali naquele ponto daqui a tantos segundos”. Talvez a realização mais
fantástica deste método tenha sido a descoberta do planeta Urano, previsto
matematicamente antes de sua identificação no céu.
O problema é que essa correspondência não é mais possível – pelo menos
não em geral – para os objetos tratados pela mecânica quântica. O espaço abs-
trato ainda “cola” com o espaço real, mas não os entes que os habitam, e por
isso Smith chama a estes últimos de “objetos transcorpóreos”. Não é possível
apontar o dedo para um lugar do espaço real e dizer: “A função de onda está
Apresentação 61

ali”! A noção de corpo – na verdade, de seus atributos quantitativos mínimos


– tem que ser abandonada em prol dos objetos tratados por essa teoria, e o ca-
ráter probabilístico de suas descrições adquire, diferentemente daquele que ti-
nha na termodinâmica clássica, um sabor que se pode chamar de “ontológico”.
Wolfgang Smith, como já haviam feito Heisenberg, Vincent Smith e
Wallace, xliv acredita ver no objeto “físico” tratado pela mecânica quântica um
estrato da realidade. Supondo que toda a teoria esteja correta, ela trataria de
algo real, sim, mas não concreto – em outras palavras, de algo “físico”. A pro-
pósito, isto se aplicaria a toda a física matemática: a lição da física matemática
dos últimos séculos parece ser a de que ela vem tratando apenas aspectos quan-
titativos do real, e não a realidade concreta. xlv A física matemática descreve
o que e como seria o mundo se só o que existisse fossem quantidades, e este
obviamente não é o caso. Aliás, não é nem poderia ser: toda quantidade é sem-
pre quantidade de alguma coisa e em algo. As quantidades são, por exemplo,
quantidade de espaço ocupado pela água – volume de uma porção de água –
ou quantidade de massa de um bloco de ferro. A quantidade é atributo de uma
substância, e não a própria substância ou ente, mas a física matemática trata
as quantidades ao modo de substância, o que Aristóteles já dizia ser possível. xlvi
Dois aspectos são deixados de fora na consideração da física matemática.
Um deles básico, do ponto de vista ontológico; e o outro superficial. Como a
matemática promete ser, mas ainda não é, de pleno direito, uma ciência geral
das relações, xlvii tudo com o que lida propriamente são quantidades. Ora, a
quantidade é apenas uma das dez categorias do ser, de acordo com Aristóteles.
A categoria principal é a de substância, e é nela que “inerem” as demais cate-
gorias, a começar pelas de quantidade e qualidade. Não existem “dois quilo-
gramas” por assim dizer soltos na ordem do ser, o que existe é, por exemplo,
um gato de dois quilogramas. E mais, não existem gatos sem as qualidades
sensíveis de cor, cheiro, som, etc. No entanto, o estudo quantitativo dos entes
abstrai, retira de sua consideração essas duas categorias, sem as quais as pró-
prias quantidades sequer existiriam no mundo concreto. As quantidades estão
no mundo, mas não são o mundo. Neste sentido, Wolfgang Smith diz que o

xliv Ver também as posições de Bernard Mullahy, Rodolfo Petrônio, Adam Schulman e Stanley Grove
na bibliografia.
xlv Concreção vem de cum+crescior, crescer junto.
xlvi Cf. Hippocrates Apostle em Mathematics as a Science of Quantities, Grinnel (Iowa), The Peri-
patetic Press, 1991.
xlvii Ela tende a isso, de acordo com James Franklin em Mathematics as the Science of Quantity and
Structure.
62 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

objeto da mecânica quântica é um algo à espera do ato de concretização sen-


sível por meio de um aparelho corpóreo, o qual retira aquele algo do mar de
possibilidades de manifestações sensíveis em que transita. A esse algo faltam as
qualidades sensíveis, que são supridas no ato de medição.
A abstração dos “sensíveis próprios” e do movimento parecia permitir, se-
gundo Santo Tomás de Aquino e outros escolásticos, o acesso da inteligência a
um objeto de consideração que dá forte impressão de constituir também um
estrato da realidade chamado por eles de materia signata quantitate, a matéria
assinalada pela quantidade. Esta seria a matéria “descarnada” tanto dos objetos
dos sentidos quanto, mais ainda, das próprias formas substanciais dos entes.
É, obviamente, um objeto precário, e cuja existência no mundo real é bastante
problemática. A questão é que ora parece que esse objeto constitui um fundo
mais substancial da natureza, ora parece que estamos lidando apenas com a su-
perfície das coisas, e é neste sentido que Seyyed Hossein Nasr tece uma crítica
à intepretação de Wolfgang Smith, o qual parece apontar no objeto da teoria
quântica um transfundo mais primordial da realidade. De qualquer modo,
devemos ressaltar que “quantidade”, para os escolásticos, se resumia apenas
às quantidades contínua e discreta da geometria e da aritmética. Hoje em
dia, quando se fala em quantidade, a física moderna descobriu um zoológico
inteiro de novas quantidades que parecem estar presentes na natureza e sem
as quais não se pode dar um passo na sua investigação: velocidade, aceleração,
massa, carga elétrica, spin, entropia, paridade, função de onda, tensor métrico,
“cor” e “sabor” dos quarks, etc.
A física matemática como ciência média tem por objeto material os entes
concretos do mundo sensível e por objeto formal os entes quantitativos da
matemática. Ou seja, é com as formalidades matemáticas que se procuram
descrever os entes naturais. Mas os escolásticos faziam ainda outra distinção:
entre objeto formal motivo e objeto formal terminativo. Objeto formal moti-
vo é o que move a ciência em suas definições e raciocínios – no nosso caso,
a matemática –, e objeto formal terminativo é o que indaga acerca do tipo
de pergunta que se pretende responder no final da investigação. Certamente,
aquilo que queremos com a física matemática é um retorno ao mundo sensí-
vel, à física, ao mundo da natureza, ao mundo “concreto” de Wolfgang Smith.
Esta volta ao mundo da natureza poderia completar o movimento de tornar a
física matemática uma ciência de pleno direito.
Contra a física matemática moderna costuma brandir-se o argumento de
que ela não é capaz de explicar nem mesmo os seus conceitos básicos: a per-
gunta “que é uma carga elétrica?”, por exemplo, é lançada na cara do cientista
Apresentação 63

como desafio intransponível, o que supostamente desabonaria todo o esforço


do empreendimento científico. Esse desafio é realmente intransponível, pois
nunca haverá resposta satisfatória de ciências particulares a perguntas desse
tipo; e o pior é que, se e quando houver, será sempre em termos ainda mais
obscuros. Quando se faz uma pergunta como a aludida acima, o que se espera
é uma resposta em termos de conceitos mais inteligíveis, e não menos inteligí-
veis, porém tudo o que a ciência moderna pode fazer é explicar o obscurum per
obscurius. Não obstante, isto só desabona a ciência matematizante moderna na
visão de quem não entendeu que o objeto de investigação dela é a “matéria”,
aquele co-princípio da realidade que carece de inteligibilidade. Assim, toda
forma que revista a matéria em níveis cada vez mais fundamentais parecerá
cada vez mais ininteligível, mesmo quando se trate de questões com alto grau
de inteligibilidade. Por exemplo, a pergunta sobre a criação do universo, que
parece ter alto grau de inteligibilidade, é “explicada” em termos da flutuação
de um campo quântico no estado de falso vácuo por meio de uma transição
de fase, etc.
O ponto quase paradoxal é que isto não satisfaz à inteligência, mas pode
ser verdadeiro. Sempre que a física matemática descobre um conceito que
parece possuir maior inteligibilidade, ela o faz de modo problemático e confli-
tivo. A entropia como conceito de grau de desordem é um exemplo. Outro são
as relações entre a causalidade final aristotélica e o conceito físico-matemático
de ação na óptica e na mecânica analítica, as quais nasceram com Fermat, e o
princípio do tempo mínimo para o trajeto da luz, que passou por Maupertuis,
Euler e Lagrange, até chegar aos princípios variacionais estudados por Hamil-
ton, Lanczos e outros. Leonhard Euler, por exemplo, em De motu projectorum,
está convencido de que nos movimentos descritos pelos projéteis “deva existir
alguma propriedade de máximo ou de mínimo [matemático]”, e que “quando
esta propriedade tiver sido provada, ficará fácil perguntar-se acerca das mais
íntimas leis e causas finais da natureza”. Há uma relação entre uma coisa e
outra? Claro que sim, mas vá entender-se o que é entropia e ação física.
Não surpreende que a ponte ontológica entre os objetos de estudo da física
matemática moderna e o mundo concreto seja tão problemática: por sua pró-
pria natureza, ela deixa de fora da consideração continentes inteiros da reali-
dade, a começar pelos objetos dos sentidos – os sensíveis próprios –, seguidos
dos objetos do intelecto – as formas substanciais. Heisenberg, em Philosophi-
cal Problems of Quantum Physics, mostra que este sempre foi o movimento da
ciência matematizante: desde que Platão “explicou” os quatro elementos em
termos das superfícies bidimensionais que formariam os sólidos geométricos
64 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

até a descoberta da função de onda no século XX, a matemática tende a excluir


os aspectos sensíveis da experiência, e por isso acaba mostrando um mundo ao
mesmo tempo preciso e vazio, fascinante e cadavérico, racional e ininteligível,
belo e aterrador.

Dois paralelos entre os textos de Grosseteste


e a Física contemporânea

Ao traçarmos paralelos entre pensadores de épocas tão distantes, sempre


corremos o risco de cometer anacronismos. É preciso, portanto, ter o cuida-
do de não forçar os conceitos e as épocas a dizerem o que não disseram nem
poderiam ter dito, como se fosse possível os homens de um período passado
já terem discorrido sobre aquilo que somente viria a ser expresso séculos
depois – como se os homens de depois estivessem atribuindo exatamente
os mesmos significados aos termos que os homens das épocas anteriores
atribuíram. Não obstante, como entre esses dois períodos as noções de luz,
universo, início, tempo, espaço e movimento não mudaram tanto assim, a
ponto de se tornarem termos totalmente equívocos, não nos custa traçar
aqui dois paralelos entre os escritos de Grosseteste constantes da presente
edição da Concreta e alguns aspectos da física contemporânea.
O primeiro é a evidente similaridade daquele quadro que Grosseteste
apresenta no De Luce – da luz se autodifundindo, formando o espaço e a
tridimensionalidade e possibilitando a formação dos outros entes – com o
desenvolvimento cósmico segundo a moderna teoria do Big Bang. Segundo
esta, o próprio espaço-tempo é criado num instante e se difunde juntamente
com o conteúdo energético original. Esse conteúdo material-energético utiliza
o espaço como plataforma e sustentáculo para seu movimento, claro, mas ao
mesmo tempo o gera e o determina de acordo com a Relatividade Geral. A
Relatividade Geral é uma teoria da gravitação que não se limita a especificar
somente o movimento dos corpos num espaço com estrutura fixa, dada de
uma vez por todas, mas também permite a influência no sentido oposto: em
vez de apenas o espaço determinar o comportamento dos corpos, estes tam-
bém determinam a estrutura do espaço, numa espécie de “reação” da matéria
sobre o espaço – sobre o espaço-tempo, em verdade.
À medida que o conteúdo material se expande “juntamente com o teci-
do espacial”, seu concomitante resfriamento, efeito do espaçamento crescente
entre as partículas, possibilita a formação de estruturas mais complexas, an-
Apresentação 65

tes proibidas pelas altíssimas temperaturas. Altas temperaturas são o efeito de


uma densidade relativamente alta de partículas de luz, os fótons, que proíbem
a estabilização de átomos e, num nível mais profundo, até mesmo de seus
núcleos e das partículas que os constituem (prótons e nêutrons). Tão logo
as partículas de cargas elétricas opostas, o próton e o elétron, encontrem-se
suficientemente próximas, a ponto de atingirem uma proximidade tal que
permita a formação de um átomo de hidrogênio, um fóton “desligaria” a for-
mação, espalhando-os outra vez e obrigando-os a viajar sozinhos novamente,
nunca permitindo o casamento. A formação de novas estruturas – o átomo de
hidrogênio, neste caso – somente se tornará possível quando a densidade de
fótons relativa à quantidade de “matéria” (prótons e elétrons) cair abaixo de
determinado limite.
Em outras palavras, a formação de novas estruturas só se torna possível
após a temperatura ter baixado aquém de determinado valor – precisamente
calculável pelas teorias modernas, diga-se de passagem. Deste modo, o desen-
volvimento temporal do universo, tal como o entende modernamente nossa
ciência, é o de uma sucessão de fases em que simetrias presentes até determi-
nado momento se rompem, possibilitando a conteúdos materiais, que antes
se distribuíam de modo homogêneo e isotrópico, se diferenciarem especifica-
mente em estruturas sempre novas e cada vez mais complexas. xlviii
O outro paralelo com a física moderna é com respeito ao modo como se
comporta a luz segundo Einstein. Grosseteste sustentava que a luz se propa-
gava instantaneamente e sem perda de sua própria substância. Apesar de que,
em pleno século XVII, Descartes ainda defendesse a instantaneidade da “ação
luminosa”, como ele a chamava, em meados do século XIX, após a velocidade
da luz em variados meios ter sido medida, não se acreditava mais que sua pro-
pagação fosse instantânea. Para Einstein, portanto, a luz não viaja instantane-
amente, decerto, embora apresente uma propriedade que nos faz pensar numa
espécie de instantaneidade. Para entendê-la, precisamos fazer um preâmbulo.
Tendo em mente o eletromagnetismo de Maxwell, Einstein perguntou-se
o que se passaria caso alguém, olhando no espelho a imagem de uma lâmpada
atrás de si, começasse a acelerar juntamente com o espelho até atingir a velo-
cidade da luz. No momento em que o viajante atingisse a velocidade da luz,
o trem de ondas emitido pela lâmpada jamais o ultrapassaria. Como, então,
nenhuma onda luminosa atingiria o espelho, a imagem nele desapareceria.

xlviii
O termo complexo, aqui, deve ser entendido do ponto de vista material, porque a noção de sim-
plicidade metafísica vai em sentido contrário à de simplicidade material.
66 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Einstein achou que isso seria absurdo por quebrar o princípio da relatividade
do movimento presente na Mecânica de Newton, o qual estabelece que nenhu-
ma velocidade é passível de ser detectada de modo absoluto.
Para vislumbrar-se o desconforto de Einstein, convém trazer à baila a mo-
tivação por trás de seu pensamento e que o conduziu à formulação da teoria.
A Teoria da Relatividade apresenta como conteúdo epistemológico último a
relação entre as descrições de um mesmo fenômeno quando observado a partir
de dois pontos de vista. Tomemos um fenômeno qualquer, visto por duas pes-
soas: um sujeito, dentro de um trem que viaja em movimento retilíneo uni-
forme, solta uma bola. Tanto o sujeito que largou a bola, quanto um segundo
sujeito que esteja em repouso sobre a plataforma da estação, descrevem o mo-
vimento da bola. O que a teoria da relatividade faz é simplesmente relacionar
essas duas descrições. Em outras palavras, a pergunta a que ela responde é:
como aquilo que um observador descreve como espaço e tempo xlix se relaciona
com os análogos dessas mesmas grandezas descritas pelo outro observador?
Será que aquilo que um mede como um metro é o mesmo que o outro medirá
como um metro quando eles compararem suas medidas? E com relação a um
intervalo de um segundo? Examinando preliminarmente o caso acima, já no
nível qualitativo vemos que a forma da trajetória da bola é diferente quando
vista pelos dois observadores: quem está viajando junto com o trem observa a
bola caindo na vertical em linha reta, e quem está sobre a plataforma enxerga
a bola percorrendo um arco de parábola, tanto mais alongada quanto maior
for a velocidade do trem relativamente à plataforma da estação.
Até o final do século XIX, a concatenação das medidas de um mesmo fenô-
meno realizadas por observadores em diferentes referenciais inerciais teve por
critério aquilo que passaria a ficar conhecido como Transformações de Galileu.
Elas ditavam as regras de como se relacionam as medidas de tempo e espaço
feitas a partir de referenciais que possuem distintos estados de movimento iner-
cial – ou, para seguir mais de perto o espírito da Relatividade, no caso em que
um observador possui movimento em relação a outro. Todos os fenômenos
de origem mecânica pareciam obedecer às Leis de Newton, as quais supõem,
logicamente, as Transformações de Galileu. Estas assumem, de modo explícito,
que não haveria maneira de medir absolutamente velocidade alguma, apenas
acelerações, ou seja, taxas de mudança de velocidade. Porém, o estudo dos
fenômenos eletromagnéticos parecia privilegiar a medição de uma velocidade
em particular, a da luz, que aparece explicitamente nas equações do Eletromag-

xlix O mais correto seria dizer coordenadas espaciais e coordenada temporal.


Apresentação 67

netismo de Maxwell. Estas últimas tomam como pressuposto uma velocidade


constante para todas as ondas eletromagnéticas no vácuo – ou éter, como se
acreditava então –, independentemente de quaisquer outros efeitos externos.
Durante os dez anos que antecederam o trabalho de Einstein sobre a
Relatividade Especial, o esforço de diversos físicos – em particular Lorentz,
Poincaré, Larmor e FitzGerald – para resolver a inconsistência entre o com-
portamento da luz e o espírito relativístico das Leis de Newton frente à mu-
dança de um referencial inercial para outro culminou no descobrimento das
Transformações de Lorentz, que desbancaram as de Galileu. Elas forneceriam,
finalmente, a ponte, o dicionário perfeito entre as descrições de um fenômeno
físico qualquer feitas a partir de referenciais inerciais distintos.
No entanto, logo surgiram problemas. Poderia parecer que a linha princi-
pal de questionamento às Transformações de Lorentz dissesse respeito às estra-
nhas previsões acerca da relatividade do espaço e do tempo embutidas nelas, l
mas a verdade é que elas foram tecidas exatamente para produzi-las como
efeito desejado porque isso acomodava uma série de resultados já conhecidos.
Ao contrário, a linha principal de ataque foi o fato de que as Transformações
de Lorentz pareciam ter sido produzidas de modo puramente arbitrário, sem
balizamento de nenhuma questão de princípio e exclusivamente para respon-
der a determinadas perguntas ad hoc. A entrada em cena da Teoria da Rela-
tividade formulada por Einstein modifica este panorama na medida em que,
nela, as Transformações de Lorentz li são deduzidas a partir dos dois princípios
da própria teoria, o princípio da relatividade de todos os fenômenos da física (os
mecânicos e os eletromagnéticos) e o da constância da velocidade da luz em
todos os referenciais inerciais.
A Relatividade de Einstein abraça tanto os fenômenos mecânicos quanto
o Eletromagnetismo de Maxwell, anterior à Relatividade em quase cinqüenta
anos. Nele a luz viaja a uma velocidade finita. De acordo com o segundo prin-
cípio da Teoria da Relatividade, observadores em todos os referenciais inerciais
observarão um facho de luz no vácuo com a mesma velocidade, não importan-
do a velocidade dos observadores uns em relação aos outros. Isto soa estranho
porque se meço algum objeto com certa velocidade, e se alguém se move em
relação a mim, o esperado seria esse alguém atribuir àquele objeto uma velo-
cidade diferente da que eu atribuo. A não ser que a propagação da luz fosse

lChamadas de “contração espacial” e “dilatação temporal”.


li
Na verdade, o grupo de transformações mais gerais obedecidas dentro da Relatividade Restrita é o
Grupo de Poincaré, que contém o de Lorentz como um subgrupo.
68 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

instantânea: aí não haveria problema com a afirmação de Einstein, porque eu


mediria a luz com velocidade infinita e o outro observador, não importando
sua velocidade com relação a mim, também mediria a luz com velocidade
infinita. Afinal, “infinito menos finito é infinito também”.
A dificuldade que se apresenta ao entendimento do leigo, desarmado das
técnicas e teorias matemáticas, é que a velocidade da luz é a mesma quan-
do medida a partir de qualquer referencial, mas não é, diferentemente do
que pensava Grosseteste, infinita – ou seja, sua propagação não é instantânea.
Ainda que pareça absurdo, a teoria da relatividade afirma que a luz, propa-
gando-se no vácuo, é observada a partir de qualquer referencial com a mesma
velocidade finita. Parece absurdo. Porém, em mais de um século de intenso
escrutínio sobre a fundamentação lógica da teoria jamais se descobriu incon-
sistência alguma, e suas previsões experimentais são confirmadas com exatidão
milimétrica. Não é o caso aqui de fazermos um comentário ontológico sobre a
teoria, o qual certamente cabe. Uma crítica contundente aparece em William
L. Craig, na obra Time and the Metaphysics of Relativity.
Para Grosseteste, a luz propagava-se – repitamos— de modo instantâneo.
Pode-se entender essa afirmação como dizendo que a velocidade da luz seria
infinita: a luz percorreria qualquer distância num transcurso de tempo nulo.
Já a espécie de instantaneidade que a luz apresenta na teoria da relatividade ad-
vém, de modo quase paradoxal, da finitude de sua velocidade. Claro que não
diretamente apenas desta finitude, mas do fato de que essa finitude é postu-
lada como sendo a mesma para todos os observadores. Tanto para Grosseteste
quanto para Einstein, a velocidade da luz é a mesma para todos os referenciais;
a diferença está em que Grosseteste a supõe infinita, lii e Einstein, não.
A Teoria da Relatividade pode ser encarada como tendo nascido de uma
espécie de “metafísica da luz’” tal como a entendia Einstein. Coincidentemen-
te, mas muito a propósito, a expressão “metafísica da luz” é aplicada em 1927
por C. Baeumker – no trabalho intitulado Der Platonismus im Mittelalter –,

liiAqui é necessário fazer uma advertência: os escolásticos do século de Grosseteste tinham a clara
noção de que infinito é um conceito que só pode ser aplicado com total propriedade a Deus, o qual
não é, nem pode ser, quantificável sob nenhum aspecto. Portanto, ao associar o conceito de infinito
à velocidade da luz, Grosseteste faz uso de uma analogia. Isto torna-se evidente se considerarmos o
seguinte: no segundo opúsculo do presente volume – o De finitate motus et temporis –, Grosseteste
defende, contra Aristóteles, a finitude do movimento e do tempo, e, a fortiori, a finitude da veloci-
dade da luz. Fugiria ao escopo desta apresentação esmiuçar o conceito de instante para os filósofos da
virada dos séculos XIII para o XIV, mas vale deixar consignado que o instante pode dizer-se partícipe
da infinitude, sem, contudo, ser a infinitude, de modo análogo a como o ente tem ser (habet esse),
mas não é o ser.
Apresentação 69

ao referir-se à física matemática aplicada aos estudos da óptica por Grossetes-


te como filosofia posta imediatamente a serviço da teologia, o que seria um
desenvolvimento do platonismo cristão na escola de Oxford. liii Para Einstein,
a luz tem o papel de portadora de informação por excelência, de modo que a
informação transportada por ela não muda durante sua transmissão. liv O feixe
de luz que emana dos ponteiros de um relógio, assim que bateu meio-dia,
chega ao receptor não interessando quão longe este se encontre do relógio,
portando a informação de que saiu do relógio ao meio-dia. Para este feixe de
luz a hora não muda; para ele, o tempo não flui: ele sai ao meio-dia do relógio
e chega ao receptor ao meio-dia em “seu” relógio, sua marcação do instante
de partida é a mesma que o de chegada. “A luz não envelhece”, diz Michael
Shallis. “A atemporalidade da luz e a constância de sua velocidade com respei-
to a qualquer observador estão na raiz da relatividade de Einstein, pois a luz é
utilizada como meio de comunicação através do espaço e para realizar medi-
ções de movimento. Einstein considerava ‘espaço e tempo como produtos de
medições’, e a relatividade nasceu das medições de tempo e das conseqüências
de sua comunicação entre observadores”.
Não é de estranhar que, se uma teoria começa com uma suposição que de-
safia de modo tão flagrante o chamado “senso comum”, ela produza efeitos pelo
menos tão bizarros quanto a suposição inicial. Um deles é o efeito da “dilata-
ção temporal”: a comparação entre as medidas de intervalo de tempo, de um
mesmo fenômeno, realizadas por observadores em movimento relativo, mostra
que o ritmo dos relógios dos diferentes observadores é distinto. Para um dado
observador, o relógio de um outro que esteja dotado de velocidade em relação
ao primeiro sempre baterá em ritmo mais lento que o seu, sendo o efeito tanto
maior quanto maior for a velocidade relativa entre os dois observadores.
Nesta altura, uma observação importante, apesar de lateral a nosso as-
sunto, é que todas as tentativas de enxergar paradoxos na simetria destas
afirmações acabaram destinadas ao fracasso. Argumenta-se tentando pôr em
xeque a teoria: se o relógio de B, visto por A, bate em ritmo mais lento, a
teoria não estaria ao mesmo tempo afirmando que o relógio de A, tal como
visto por B, também bateria em ritmo mais lento? Sendo afirmativa a respos-
ta que dá a teoria, isto não acarretaria uma inconsistência interna que poria
por terra a própria teoria? A resposta à primeira pergunta é sim, e à segunda

liii Cf. William A. Wallace, “Einstein, Galileo and Aquinas”. O mais ilustre seguidor de Grosseteste
foi Roger Bacon, que acabou inspirando os calculadores de Merton.
liv Cf. Michael Shallis, On Time, Nova York, Schocken Books, 1983, p. 41.
70 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

é não. Em suma, o que começou sendo chamado de “paradoxo dos gêmeos”


passou a ganhar aspas duplas na palavra paradoxo, porque a conclusão é de
que não há, realmente, paradoxo algum. Um exame cuidadoso da aplicação
da teoria revela um caso de estarrecimento, não de incoerência. Uma segunda
observação lateral, antes de prosseguirmos examinando a dilatação temporal
e suas conseqüências para a luz, é quanto ao espírito que animou Einstein ao
formular a teoria. É precisamente pelo fato de a Teoria da Relatividade, na
comparação das medidas feitas por observadores diferentes, só levar em conta
o modo como um observador enxerga o outro, desconsiderando tudo mais
que lhes seja alheio – além da luz, que intermedeia a comunicação entre eles
–, que se diz que ela teria abolido as noções newtonianas de espaço e tempo
absolutos. Nela, não se faz referência a nenhum fator externo.
Voltemos ao assunto da dilatação temporal e de seu emprego à luz. O co-
eficiente de dilatação temporal, chamado de “fator de Lorentz”, só depende
da velocidade relativa v entre os observadores e da velocidade da luz, c – a
qual, repitamos, possui o mesmo valor para ambos os observadores. O fator
de Lorentz é desprezível no caso de velocidades muito baixas comparadas
com a da luz, e por isso, de acordo com a teoria, é que o efeito da dilatação
temporal nunca havia sido observado antes. Por outro lado, quanto mais
próxima da luz é a velocidade relativa com que um observador vê o outro,
mais alto fica o fator de Lorentz. Quando v tende a c, o fator de Lorentz
cresce sem limite; isto significa que o efeito da dilatação temporal pode ser
tão grande quanto se queira: pode chegar a mil, um milhão, mil trilhões ou
qualquer gazilhão imaginável.
Num caso extremo como este, um intervalo de tempo de cinqüenta anos
medidos por um observador pode “equivaler” a apenas uma fração de segun-
dos no referencial do outro quando eles observam o mesmo par de acontecimen-
tos. Se fosse possível um corpo com massa atingir a velocidade da luz, a teoria
prevê que “o tempo não passaria” para ele. Melhor dizendo: o intervalo de
tempo entre quaisquer dois eventos, quando medidos por um esse viajante
“luminal”, seria nulo. Como todos já ouviram falar, a teoria nega a possibili-
dade de qualquer corpo com massa atingir a velocidade da luz, só permitindo
que corpos massivos viajem a velocidades infraluminais. Contudo, ao mesmo
tempo ela prevê que a luz só viaje à... velocidade da luz! Como o efeito da dila-
tação temporal, dentro da teoria, é conseqüência lógica do princípio da cons-
tância da velocidade da luz, não surpreende que a dilatação temporal, quando
aplicada a um raio de luz, forneça o mesmo resultado que a discussão anterior
sobre o relógio batendo meio-dia: o fator de Lorentz, aplicado à comparação
Apresentação 71

entre o relógio de um observador a velocidades infraluminais e o de um outro,


imaginário, que viajasse à velocidade da luz, é infinito.
À margem da centenária contenda entre as queixas opostas entre o “mas a
teoria funciona perfeitamente” e o “mas a teoria soa absurda, ela desafia tudo
que se sabe”, podemos e devemos discutir seus estatutos ontológico e gnosio-
lógico, sem nos alinharmos, de saída, a nenhum dos campos em disputa. É
óbvio que as discussões sobre a teoria só parecem não ter fim porque tanto é
verdade que ela “funciona”, quanto o é que ela “soa absurda”. Se fosse o caso
de ela “não funcionar”, ou o contrário, de ela “soar inteiramente natural”, a
análise filosófica sobre ela se reduziria a uma trivialidade de conversa em festi-
nha de aniversário. Contudo, creio não haver teoria científica – nem doutrina
filosófica – à qual não ocorra, em maior ou menor grau, algo parecido. Todas
são constantemente objeto de análise e discussão.
Um dos pontos que precisamos reconhecer a respeito da Teoria da Relativi-
dade é o seguinte: trata-se do ponto de maturação de uma longa linha de investi-
gação que considera o tempo como quantidade medida por relógios ideais. Tendo
isso em mente, para falarmos qualquer coisa de razoável sobre o tempo medido
em localizações espaciais diferentes daquela em que estamos, é absolutamente ne-
cessário pensarmos em um modo de efetuar trocas de sinais e informações entre
as diferentes posições, e os sinais eletromagnéticos – a luz! — são o “candidato”
por excelência. Não surpreende, portanto, que a luz, usada desde o início como
mediadora na construção da teoria, adquira, na estrutura da própria teoria, esta-
tuto diferenciado em relação a todo o resto. Assim, do ponto de vista dos diversos
estados de movimento concebíveis na teoria, a luz não apenas se propaga com
velocidade finita, como essa velocidade é a mesma para todos, ao passo que, em
relação a si própria, não parece haver nem tempo nem espaço. Nas palavras de
Michael Shallis: “A luz parece interpenetrar o universo inteiro como se todos os
lugares e todos os instantes fossem ‘aqui e agora’”, apontando, desde seu ponto de
vista, para uma espécie de atemporalidade, um sucedâneo da eternidade.

Luz, tempo e movimento

Sempre que pensamos exclusivamente no aspecto quantitativo do tempo,


tendemos a “espacializá-lo” de alguma maneira; tendemos a descrevê-lo como
uma coordenada espacial, tomando-o quase em pé de igualdade com as três
dimensões do espaço. Se tomarmos o tempo ao modo de mais uma dimensão
do espaço, o perigo é grande de perdermos de vista justamente o seu caráter
72 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

temporal, já que o tempo possui um ingrediente de negação impossível de


ser levado em conta em qualquer representação retilínea cujos pontos são to-
dos simultaneamente subsistentes. É claro que, como qualquer quantidade, o
tempo é uma quantidade de algo, e devemos ter sempre em mente precisamen-
te do que trata essa quantidade; devemos levar em consideração a qualidade da
qual o tempo é uma quantidade.
A perda de vista do aspecto qualitativo do tempo é uma das maiores
causas da sensação de “atomismo” na qual o homem moderno vive a sua
própria vida. Diga-se de passagem, mesmo as três direções espaciais diferem
qualitativamente entre si, aspecto este que é ignorado por completo nas te-
orias modernas sobre a matéria, desde quando Copérnico, na expressão de
Koyré, “colocou-nos a todos no céu”, borrando a evidente distinção entre
céus e terra. O “céu”, que passou a ser confundido com o espaço, começou a
ser imaginado a partir de então como um oceano infinito, homogêneo e iso-
trópico no qual, por pura casualidade, existem corpos gravitatórios boiando
aqui e ali. É o ressurgimento da antiga hipótese atomista aplicada agora ao
macrocosmo, inovação digna de crédito, mas que também deveria inspirar
cautela porque, se parece esclarecer algumas questões, falha miseravelmente
no tocante a outras.
Desde pelo menos a introdução, por Nicolau Oresme, da descrição das
grandezas físicas por intermédio de ferramentas gráficas, a tendência de con-
siderar apenas o aspecto quantitativo do tempo assumiu impulso invencível, a
ponto de modernamente Minkowski nos obrigar a pensar sempre em termos
do emaranhado “espaço-tempo”. Nessa espacialização do tempo, a luz desempe-
nha papel crucial. Sua velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo –
na verdade, definida como 299.792.458 metros por segundo – faz a conversão
entre medidas de tempo e de espaço, e não é raro falarmos de medidas de espa-
ço em unidades que lembram mais as de tempo. Por exemplo, um segundo-luz
é definido como a distância de 299.792.458 metros, dois segundos-luz como o
dobro disto, e assim por diante. A própria definição moderna de metro, estabe-
lecida em 1983 na 17ª Convenção Geral de Pesos e Medidas, depende da luz
e do tempo: o metro é definido como a distância percorrida pela luz na fração
de 1/299.792.458 de segundo. Já o segundo é definido de modo totalmen-
te independente, desde 1967, como o intervalo correspondente a exatamente
9.192.631.770 transições entre dois níveis hiperfinos do átomo de Césio 133.
Novamente, a luz aparece aí porque, cada vez que o átomo efetua uma dessas
transições – e são 9.192.631.770 delas por segundo! –, desde o nível mais ener-
gético ao de menor energia, ele emite um fóton, uma partícula de luz.
Apresentação 73

Aristóteles definia o tempo como “medida do movimento segundo o an-


tes e o depois”. A especificação “segundo o anterior e o posterior” fornece a
qualificação da quantidade, o aspecto qualitativo daquilo que se está medindo
quantitativamente. Nessa definição, medida apresenta duplo aspecto: (1) o
puramente operacional ou epistemológico; e (2) o ontológico. Faz sentido,
ainda, tendo em conta o método da física moderna, dividir o primeiro aspecto
em dupla perspectiva, uma de enfoque mais teórico, outra mais prática. O
enfoque teórico foi a preocupação principal de Einstein na formulação dos
conceitos operacionais de tempo e espaço. O enfoque “prático” preocupa-se
com os procedimentos de observação e operação (e a matéria escolhida, ar-
bitrária mas convenientemente) vantajosos para uma definição operacional
empiricamente compartilhável, de modo a diversas comunidades humanas
poderem adotar os mesmos padrões de contagem de tempo.
Voltando à qualificação anterior, o aspecto (1) é de cunho material; o as-
pecto (2), formal. O primeiro é como um número numerável concreto, o se-
gundo como um número numerante abstrato. lv Levando em conta o primeiro
aspecto, a relatividade de Einstein traz um avanço em relação à hipótese do
tempo absoluto de Newton, o qual, por outro lado, representa muito mais
adequadamente o segundo aspecto. Na Relatividade, a medição do tempo está
ligada intrinsecamente aos acontecimentos – ou eventos, como chama a teoria
–, de modo que o “tempo relativístico” é definido de acordo com o ritmo dos
acontecimentos, o ritmo de troca de sinais luminosos entre pontos do espaço.
Já o conceito de “tempo absoluto” de Newton passa em um ritmo que inde-
pende dos acontecimentos.
Neste sentido, pode-se dizer que as duas noções de tempo envolvem no-
ções diferentes de origem e ritmo, levando consigo a duas “imagens mate-
máticas” distintas: o relativístico einsteiniano, por medir o ritmo dos acon-
tecimentos materiais sempre fazendo referência a outros acontecimentos
materiais, leva a uma noção que poderíamos chamar de “logarítmica”, na
qual não faz sentido procurar por uma origem temporal identificável – o
instante t = 0. Não é que o conceito de origem não faça sentido aqui, mas
a questão é que nunca se pode “atingi-la”, e sim apenas aproximar-se dela
assintoticamente, como que por divisões da quantidade tempo. Aqui, o re-
cuo no tempo que faz sentido não é de tipo subtrativo, mas divisivo, porque
“sempre tem algo acontecendo”. Por mais que se recue na divisão de um

lv Cf. Kenneth L. Schmitz, Temporal Integrity, Eternity, and the Implicate Order, ed. David L. Schin-
dler, Londres, University Press of America, 1986.
74 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

intervalo de tempo, sempre haverá algo a descobrir, algum comportamento


que a matéria apresente em escalas cada vez mais diminutas do tempo. Já a
noção absolutista newtoniana de tempo remete a um conceito matemático
de tipo “linear”, no qual faz sentido o recuo subtrativo e em que se pode
identificar uma origem t = 0.
Não há dúvida, como sugere William Lane Craig em Time and the Meta-
physics of Relativity, de que a perspectiva de Newton carregue consigo um grau
de inteligibilidade maior que a de Einstein, tanto que a deste último perde
sentido se não fizer referência, de algum modo, a “tempos globais”. Contudo,
a de Einstein parece carregar em si aspectos importantes da realidade mais ma-
terial, porque ela como que “dobra” a matéria sobre si própria, estatuindo que
quaisquer afirmações sobre a matéria deveriam, em última análise, fazer refe-
rência a outras porções de matéria. Afinal, quem, no seu dia-a-dia, também
não conta o tempo de acordo com o ritmo dos acontecimentos? A relatividade
de Einstein é uma tentativa na direção de levar a sério esse “fechamento cós-
mico”, o qual, se é absurdo quando considerado como descrição da totalidade
da experiência humana, não deixa de apreender aspectos vigentes no mundo,
tanto que algo neste sentido se reflete nos fenômenos.
Toda a discussão sobre o aspecto quantitativo do tempo só é possível por-
que o tempo não é apenas número, mas é número de algo, e somente aí a
discussão adquire sentido. O tempo é a medida do movimento. Mas quais e
quantos movimentos existem? Somente os discutidos nos institutos de física?
Se for assim, em quais departamentos, especificamente? São movimentos reais
somente os processos de partículas elementares estudados no departamento
de física de partículas e teorias de campos, ou são reais também os estudados
no departamento de física do estado sólido e de eletrônica quântica? E que
dizer dos departamentos que estudam astrofísica e lidam com fenômenos com
duração da ordem de milhares de anos? E os que estudam cosmologia e relati-
vidade geral estariam tratando de processos irreais por lidarem com escalas de
tempo da ordem de bilhões de anos?
Uma vez mais: que movimentos existem? Não são reais também os fe-
nômenos históricos e os fenômenos do espírito? Se a espécie de movimento
muda, muda também a sua medição, tanto quantitativa como qualitativa.
Quanto mais radicado na matéria o fenômeno, mais quantitativo é; quanto
menos radicado na matéria, mais qualitativo, específico e diferenciado se
torna. Ora, por mais cuidadosos que tenham sido os físicos em suas teorias,
o fato de os objetos por elas descritos estarem fortemente radicados na ma-
téria leva, em alguns extremos, à inevitável sensação de perda das noções
Apresentação 75

de tempo e de causalidade. Lembremos das discussões sobre a aparente


falta de causalidade na mecânica quântica; da possibilidade de reversão
temporal nos processos virtuais estudados em teoria quântica de campos;
da reversão temporal em singularidades do espaço-tempo e em curvas de
tipo tempo fechadas descritas na Relatividade Geral; das já velhas conten-
das sobre a simetria temporal passado-futuro das equações da mecânica
newtoniana, as quais são resolvidas somente de modo ambíguo pelo recur-
so ao conceito de entropia. A “culpa”, aqui, não é dos cientistas nem das
teorias, mas parece ser da própria natureza da matéria, que em seus graus
mais fundamentais se apresenta com potência para formas menos distintas
qualitativamente.
Quanto à medição dos movimentos de ordens qualitativas mais nobres,
entre os quais a distinção entre “anterior e posterior” se torna cada vez mais
nítida, faz sentido – tanto em razão do aspecto (1) acima, mais gnosiológico e
“relativista”, quanto em razão do aspecto (2), mais ontológico e “absolutista”
– procurarmos por novos padrões e novas “unidades” de medida. Utilizar para
a duração dos fenômenos comunitários e humanos o procedimento teórico
de sincronização de relógios utilizado por Einstein na relatividade soaria hoje
ridículo. A escala de mudança dos períodos históricos é a de muitas gerações
e seu tipo de medição é muito mais qualitativo que quantitativo, tanto que
a precisão das datas para definir épocas históricas é sempre adotada de modo
mais ou menos convencional, sem que isto torne inválidos ou irreais nem as
datações, nem, muito menos, os fenômenos.
Se já é difícil persuadir o crente cientificista da inevitabilidade dessas no-
ções, qual seria o resultado de tentar explicar-lhe as noções ou descrever a
vivência do tempo sagrado, aquele que, segundo Jacques Le Goff, no livro Em
busca do tempo sagrado, entrelaça diversos estratos qualitativos da experiência
humana de modo orgânico? Estes são o tempo cíclico da liturgia, o tempo li-
near da sucessão das vidas dos santos e o tempo escatológico, que rege a história
inteira e ilumina a humanidade que caminha até o Juízo Final. Há também
os espíritos que, percebendo os absurdos das afirmações implícitas na postura
cientificista – que se diz materialista somente por engano do que seja a maté-
ria –, acabam encontrando refúgio num abstratismo platônico vulgar, o qual
insiste em ver na eternidade nada mais que uma estaticidade passiva e inerme,
sem a riqueza fecunda daquilo que o tempo nos mostra.
Como persuadir essas pessoas de que a eternidade não é a soma dos tempos,
mas que ela inclui todos os tempos, não de modo sucessivo e transeunte, mas de
modo completo e perfeito, conferindo-lhes realidade absoluta e iluminando-os
76 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

de modo eminentíssimo? Para tanto, seria preciso insuflar de volta na mentali-


dade moderna a viva consciência dos atos da inteligência; seria preciso mostrar
o “nexo indissolúvel entre sujeito, objeto e ato cognitivo que se dá de maneira
exemplar na percepção da luz, onde a luz é a um tempo objeto e condição
da percepção”, percepção essa na qual “o indivíduo humano só se conscientiza
como sujeito cognitivo no ato mesmo em que se conscientiza como objeto que
sofre a ação de uma fonte de luz”. lvi
Luz, movimento e tempo sempre estiveram indissoluvelmente ligados,
desde a Criação: “Disse Deus: Faça-se a luz; e a luz foi feita”. A luz participa,
como diria René Guénon, do mundo “manifestado”, apesar de sua participa-
ção no mundo do tempo dar-se de modo ambíguo: as partículas de luz não
são eternas, mas sabemos que, para elas, o tempo não transcorre. Assim, a
luz parece assumir dupla primazia em relação à matéria, na medida em que,
primeiro, conecta as partes do universo material, conferindo ao mundo físico
seu caráter de sucessão temporal, e, ao mesmo tempo e em virtude de sua
materialidade, adquirida no processo cósmico que ela mesma origina, aponta,
por meio dos atos cognitivos humanos, para a instância em que o tempo ana-
logicamente se transfigura na eternidade.
Encerremos aludindo às palavras de Roberto Grosseteste:
“O intelecto não distingue entre a anterioridade do tempo e a anteriorida-
de que significa a ordem da eternidade em relação ao tempo. De fato, não é o
tempo sem início, nem sequer o tempo, que mede o não-ser do mundo e das
coisas que começaram com o mundo, mas a eternidade. Logo, o seu não-ser
não existiu antes, isto é, “num tempo anterior”, do que o seu ser, mas existiu
antes, isto é, “numa medida superior ao seu ser”, porque o seu não-ser existiu
na eternidade e o seu ser no tempo.”. lvii

lvi Cf. Olavo de Carvalho, “Da Tripla Intuição”, in Apostila do Instituto de Artes Liberais; Curso
Online de Filosofia, no endereço: <http://www.seminariodefilosofia.org>.
lvii Cf. o segundo opúsculo desta edição, p. 111.
Apresentação 77

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Parte I
Sobre a luz
(ou o começo das formas)

(De luce seu de inchoatione formarum)


84 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Formam primam corporalem, quam quidam corporeitatem vocant, lu-


cem esse arbitror. Lux enim per se in omnem partem se ipsam diffundit,
ita ut a puncto lucis sphaera lucis quamvis magna subito generetur, nisi
obsistat umbrosum. Corporeitas vero est, quam de necessitate consequitur
extensio materiae secundum tres dimensiones, cum tamen utraque, cor-
poreitas scilicet et materia, sit substantia in se ipsa simplex, omni carens
dimensione. Formam vero in se ipsa simplicem et dimensione carentem
in materiam similiter simplicem et dimensione carentem dimensionem
in omnem partem inducere fuit impossibile, nisi seipsam multiplicando
et in omnem partem subito se diffundendo et in sui diffusione materiam
extendendo, cum non possit ipsa forma materiam derelinquere, quia non
est separabilis, nec potest ipsa materia a forma evacuari. – Atqui lucem
esse proposui, cuius per se est haec operatio, scilicet se ipsam multiplicare
et in omnem partem subito diffundere. Quicquid igitur hoc opus facit,
aut est ipsa lux, aut est hoc opus faciens in quantum participans ipsam lu-
cem, quae hoc facit per se. Corporeitas ergo aut est ipsa lux, aut est dictum
opus faciens et in materiam dimensiones inducens, in quantum participat
ipsam lucem et agit per virtutem ipsius lucis. At vero formam primam in
materiam dimensiones inducere per virtutem formae consequentis ipsam
est impossibile. Non est ergo lux forma consequens ipsam corporeitatem,
sed est ipsa corporeitas.
Amplius: formam primam corporalem formis omnibus sequentibus
digniorem et excellentioris et nobilioris essentiae et magis assimilatam
formis stantibus separatis arbitrantur sapientes. Lux vero omnibus rebus
corporalibus dignioris et nobilioris et excellentioris essentiae est, et magis
omnibus corporibus assimilatur formis stantibus separatis, quae sunt in-
telligentiae. Lux est ergo prima forma corporalis.
Lux ergo, quae est prima forma in materia prima creata, seipsam per
seipsam undique infinities multiplicans et in omnem partem aequaliter
porrigens, materiam, quam relinquere non potuit, secum distrahens in
Sobre a luz 85

A primeira forma corporal, chamada por alguns corporeidade, penso que é


a luz. Pois a luz, per se, difunde-se a si mesma por toda a parte, de tal maneira
que de um ponto de luz se pode gerar instantaneamente uma esfera de luz de
qualquer magnitude, contanto que algo opaco não se interponha como obs-
táculo. Da corporeidade é que sucede necessariamente a extensão da matéria
em três dimensões, apesar de serem, a corporeidade e a matéria, substâncias
simples in se, sem qualquer dimensão.1 Na verdade, uma forma simples in se e
sem dimensão não poderia introduzir, por toda a parte, dimensão na matéria,
a qual é igualmente simples e sem dimensão, exceto multiplicando-se a si mes-
ma, difundindo-se instantaneamente por toda a parte, e estendendo a matéria
nessa difusão de si mesma, uma vez que a forma não pode abandonar a maté-
ria, pois não é separável, nem pode a matéria ser esvaziada da forma. Eu disse
antes, porém, que a luz é que possui, per se, essa operação de multiplicar-se a si
mesma e de difundir-se instantaneamente por toda a parte. Portanto, o que faz
isso ou é a luz, ou é algo que o faz como participante da luz, a qual o faz per se.
Logo, a corporeidade ou é a luz mesma ou é aquilo que faz a referida operação
e introduz dimensões na matéria enquanto participa da luz e age por virtude
da luz. É impossível, porém, que a primeira forma introduza dimensões na
matéria por virtude de uma forma subseqüente a ela mesma. Logo, a luz não é
uma forma subseqüente à corporeidade, mas é a própria corporeidade.2
Além disso, pensam os sábios que a primeira forma corporal é mais digna,
de uma essência mais excelente e mais nobre, e mais assemelhada às formas
que existem separadas, do que todas as formas subseqüentes. Ora, a luz é de
uma essência mais excelente, mais nobre e mais digna do que todas as coisas
corporais, e se assemelha mais do que todos os corpos às formas que existem
separadas, que são as inteligências.3 Logo, a luz é a primeira forma corporal.
Portanto, a luz, que é a primeira forma criada na materia prima, multipli-
cando-se por si mesma, infinitas vezes, em todas as direções, e propagando-se
uniformemente por toda parte, foi no princípio do tempo estendendo a ma-
téria, da qual não podia separar-se, e espalhando-a consigo numa massa tão

1 Como se verá ao longo deste breve tratado, a luz é a primeira forma criada, a natureza existente mais
simples, a qual dá corporeidade à materia prima – concriada com ela por Deus. Em breves palavras:
segundo Grosseteste, a luz une-se imediatamente à materia prima no ato criador divino e com ela
compõe uma substância simples, corpórea e espacial, porém sem dimensões. [Nota do coordenador
da Coleção Escolástica; doravante, N. C.]
2 Trata-se da corporeidade em seu estado mais refinado, no qual, presumivelmente, a forma corpórea
que é a luz, expandindo-se, expande a matéria do universo. [N. C.]
3 As formas separadas da matéria às quais alude Grosseteste são os anjos, ou seja, as substâncias sem
composição de matéria em sua forma entitativa. [N. C.]
86 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

tantam molem, quanta est mundi machina, in principio temporis exten-


debat. Nec potuit extensio materiae fieri per finitam lucis multiplicatio-
nem, quia simplex finities replicatum quantum non generat, sicut osten-
dit Aristoteles in de caelo et mundo. Infinities vero multiplicatum necesse
est finitum quantum generare, quia productum ex infinita multiplicatione
alicuius in infinitum excedit illud, ex cuius multiplicatione producitur.
Atqui simplex a simplici non exceditur in infinitum, sed solum quantum
finitum in infinitum excedit simplex. Quantum enim infinitum infinities
infinite excedit simplex. – Lux igitur, quae est in se simplex, infinities
multiplicata materiam similiter simplicem in dimensiones finitae magni-
tudinis necesse est extendere.
Sobre a luz 87

grande quanto é a máquina do mundo.4 E essa extensão da matéria não podia


acontecer por uma multiplicação finita da luz, porque o simples replicado
finitas vezes não gera quantidade, como demonstra Aristóteles em De caelo et
mundo.5 Mas o simples multiplicado infinitas vezes gera necessariamente uma
quantidade finita, pois o produto da multiplicação infinita de algo excede
infinitamente aquilo de cuja multiplicação se produz.6 O simples, porém, não
excede [outro] simples infinitamente; só uma quantidade finita excede o sim-
ples infinitamente. De fato, uma quantidade infinita excede infinitamente o
simples infinitas vezes. Portanto, a luz, que é simples in se,7 sendo multiplica-
da infinitamente, deve necessariamente estender a matéria, que é igualmente
simples, em dimensões de grandeza finita.8

4 Com a expressão mundi machina, Grosseteste está a referir-se ao conjunto das coisas criadas – as
quais operam a partir das suas formas. Nos séculos seguintes, “máquina do mundo” foi a metáfora
que degenerou numa concepção mecanicista do universo dramaticamente empobrecedora em relação
à cosmovisão escolástica. [N. C.]
5 Aristóteles, Tratado sobre o Céu, I, 5-7. Ao fazer esta referência a Aristóteles logo no começo
do seu tratado, Grosseteste tem o intuito de mostrar que a multiplicação da luz e da materia prima
(que nela inere), ocorrida nos primeiros instantes do universo, não pode ter sido uma multiplicação
finita, pois uma seqüência finita de pontos não gera nenhuma dimensão. Em suma, um ponto de
luz hiperconcentrado multiplicou-se infinitas vezes, e, ao fazê-lo, multiplicou também a matéria que
trazia consigo. [N. C.]
6 O “simples” a que se refere Grosseteste não é, evidentemente, Deus – simplicidade absoluta inde-
componível e não multiplicável. A simplicidade de Deus não pode ser quantificada, daí a sua inco-
mensurabilidade. Não existe, pois, medida comum entre o Ser e os entes; entre o infinito e o finito;
entre o Criador e as criaturas. [N. C.]
7 A simplicidade da luz é entendida por Grosseteste de maneira estritamente geométrica, e não
metafísica. “Simples”, em seus tratados de cosmologia, é o que carece de dimensões, e não o que não
tem composição de nenhuma espécie. A ontologia da expansão da luz de Roberto Grosseteste guarda
notáveis analogias com a doutrina plotiniana do Uno como gerador de todas as coisas. Cf. Sebastián
R. C. Sierra, Plotino y Grosseteste: el neoplatonismo en la cosmología medieval. Apenas jamais esqueça-
mos que a luz é sempre entendida por Grosseteste como forma corporal, conceito que ele assimilara
de filósofos medievais árabes. [N. C.]
8 Como vimos, segundo Aristóteles é impossível que a multiplicação de um ser sem dimensão gere
um ser com dimensão – assim como o ponto pode ser multiplicado incontáveis vezes, sem que isso
gere uma linha. Isto ocorre porque a linha – ao contrário do que possamos ter aprendido na escola
– não é a soma de pontos; ponto e linha são dois entes essencialmente distintos e “inquantificáveis”
entre si. Em outras palavras, existe uma distância (matematicamente) “infinita” entre ambos.
Mas essa observação de Aristóteles deixa em aberto a alternativa de uma multiplicação infinita. Esta
sim, segundo Grosseteste, geraria um ente de uma nova dimensão, pois cobriria a distância infinita
entre as diferentes dimensões. Quando diz que “o produto da multiplicação infinita de algo excede
infinitamente aquilo de cuja multiplicação se produz” e que “existem infinitos que são maiores do
que outros infinitos, e infinitos que são menores”, Grosseteste antecipa em sete séculos a teoria dos
transfinitos de Georg Cantor. E utiliza até o mesmo exemplo que será dado pelo matemático russo:
o conjunto infinito dos números pares excede o conjunto infinito dos números ímpares, e assim
podemos concluir que existem (potencialmente) infinitas séries de infinitos (potenciais).
Ou seja, Grosseteste está evidenciando, por exemplos matemáticos, a “infinita” distância que existe
88 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Est autem possibile, ut aggregatio numeri infinita ad congregationem


infinitam in omni numerali se habeat proportione et etiam in omni non
numerali. Et sunt infinita aliis infinitis plura et alia aliis pauciora. Aggre-
gatio omnium numerorum tam parium quam imparium est infinita, et ita
est maior aggregatione omnium numerorum parium, quae nihilominus
est infinita. Excedit namque eam aggregatione omnium numerorum im-
parium. Aggregatio etiam numerorum ab unitate continue duplorum est
infinita; et similiter aggregatio omnium subduplorum illis duplis corres-
pondentium est infinita. Quorum subduplorum aggregationem necesse
est esse subduplam ad aggregationem duplorum suorum. Similiter aggre-
gatio omnium numerorum ab unitate triplorum tripla est aggregationi
omnium subtriplorum suorum istis triplis respondentium. – Et similiter
patet de omnibus speciebus numeralis proportionis, quoniam secundum
quamlibet earum proportionari potest finitum ad infinitum.
Si vero ponatur aggregatio infinita omnium duplorum continue ab
unitate et aggregatio infinita omnium subduplorum illis duplis correspon-
dentium, tollaturque de aggregatione subduplorum unitas vel quiuis nu-
merus finitus, iam subtractione facta non remanebit inter aggregationem
primam et residuum de aggregatione secunda dupla proportio; sed nec
aliqua numeralis proportio, quia si de numerali proportione per subtrac-
tionem a minori extremitate relinquatur alia numeralis proportio, opor-
tet, ut subtractum istius, a quo subtrahitur, sit pars aliquota vel aliquot
Sobre a luz 89

É possível, todavia, relacionar uma série infinita de números com um con-


junto infinito em qualquer proporção numérica e até mesmo não numérica. E
existem infinitos que são maiores do que outros infinitos, e infinitos que são
menores. A série de todos os números, pares e ímpares, é infinita, e portanto é
maior do que a série de todos os números pares – a qual, não obstante, é infi-
nita; de fato, aquela excede a esta pelo conjunto de todos os números ímpares.
Também a série dos números duplicados continuamente a partir da unidade
é infinita;9 e, de modo semelhante, a série de todos os subduplos correspon-
dentes àqueles números duplicados é infinita. É necessário que a série desses
subduplos seja a metade da série dos seus duplos. De modo semelhante, a série
de todos os números triplicados a partir da unidade é o triplo da série de todos
os subtriplos correspondentes aos seus triplos. E igualmente, quanto a todas
as espécies de proporção numérica, é evidente que, conforme qualquer uma
delas, pode o finito manter uma proporção com o infinito.
Mas suponhamos a série infinita de todos os números duplicados continu-
amente a partir da unidade e a série infinita de todos os subduplos correspon-
dentes a esses números duplicados; se for retirada do conjunto dos subduplos
uma unidade ou qualquer número finito, após essa subtração já não permane-
cerá entre a primeira série e o restante da segunda série uma proporção dupla,
nem qualquer outra proporção numérica, porque, para que outra proporção
numérica subsista de uma proporção numérica por subtração do seu menor
membro, é preciso que o subtraído seja uma parte alíquota ou algumas partes

entre cada um dos números – isto é, a sua diferença essencial (qualitativa), que é inexplicável pela
mera análise quantitativa. Essa distância infinita só poderia ser materialmente “transposta” pela forma
simples corpórea, que é a luz. Ou seja, sem a luz, não há a possibilidade da tridimensionalidade, e a
luz é, portanto, instrumento principal da Criação. Em outros termos, a luz pode ser dita princípio
de “expansão”, levando às conseqüências que Grosseteste enumerará mais abaixo. Por fim, existe uma
óbvia analogia entre a unidade (no sentido pitagórico-platônico) e a luz; a unidade é o fundamento
de todos os números, a luz, de todos os corpos. [Nota do Editor; doravante, N. E.]
9 Vemos aqui uma ressonância do princípio platônico segundo o qual os números ideais, formas ar-
quetípicas de natureza metafísica, são a essência dos números matemáticos e não podem ser submeti-
dos a operações aritméticas, não obstante sejam a base destas últimas. Como assinala Giovanni Reale
nalguns de seus estudos sobre Platão, a essência do número ideal consiste numa delimitação específica
produzida pelo Uno sobre a Díade, a qual é uma multiplicidade indeterminada de grande e pequeno.
“O Dois, que é a primeira determinação do grande e do pequeno, é multiplicidade e escassez, de-
finida por obra do Uno como dobro e metade; de fato, o Dois implica o dobro e a metade, ou seja,
uma relação intrínseca entre uma quantidade que é dupla (Dois) e uma metade (Uno), e a primeira é
excedente de modo determinado”. Giovanni Reale, Para uma nova interpretação de Platão [Capítulo
Oitavo: Números Ideais, Idéia, Números Matemáticos como “intermediários” e estrutura hierárquica
da realidade]. A multiplicidade indeterminada platônica parece estar no horizonte de Grosseteste
quando, neste trecho de sua obra, o filósofo medieval alude a infinitos maiores e menores. [N. C.]
90 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

partes aliquotae. Numerus vero finitus numeri infiniti aliquota vel ali-
quot aliquotae esse non potest. Subtracto igitur numero de aggregatione
subdupla infinita non remanet proportio numeralis inter aggregationem
duplam infinitam et residuum de aggregatione subdupla infinita.
His ergo ita se habentibus manifestum est, quod lux multiplicatione
sua infinita extendit materiam in dimensiones finitas minores et dimen-
siones finitas maiores secundum quaslibet proportiones se habentes ad
invicem, numerales scilicet et non numerales. Si enim lux multiplicatione
sui infinita extendit materiam in dimensionem bicubitam, eadem infinita
multiplicatione duplicata extendit eam in dimensionem tetracubitam, et
eadem subduplicata extendit eam in dimensionem monocubitam; et sic
secundum ceteras proportiones numerales et non numerales.
Iste, ut reor, fuit intellectus philosophorum ponentium omnia compo-
ni ex atomis et dicentium, corpora ex superficiebus componi et superficies
ex lineis et lineas ex punctis. – Nec contradicit haec sententia ei, quae
ponit, magnitudinem solum ex magnitudinibus componi, quia tot modis
dicitur totum, quot modis dicitur pars. Aliter namque dicitur medietas
pars totius, quae bis sumpta reddit totum, et aliter est costa pars diametri,
quae non aliquotiens sumpta reddit diametrum, sed aliquotiens sumpta
exsuperatur a diametro. Et aliter dicitur angulus contingentiae pars anguli
recti, in quo est infinities, et tamen finite subtractus ab eo diminuit illum;
et aliter punctus pars lineae, in qua est infinities, et finite subtractus ab ea
non diminuit eam.
Rediens igitur ad sermonem meum dico, quod lux multiplicatione
sui infinita in omnem partem aequaliter facta materiam undique ae-
qualiter in formam sphaericam extendit, consequiturque de necessitate
Sobre a luz 91

alíquotas daquilo que se subtrai. Ora, um número finito não pode ser uma
alíquota ou algumas alíquotas de um número infinito. Logo, subtraído um
número da série infinita de subduplos, não permanece uma proporção numé-
rica entre a série infinita dos números duplicados e o restante da série infinita
dos subduplos.
Sendo assim, é evidente que a luz, por sua multiplicação infinita, estende a
matéria em dimensões finitas menores e em dimensões finitas maiores confor-
me qualquer proporção que tenha uma com a outra, ou seja, numérica e não
numérica. De fato, se a luz, pela multiplicação infinita de si mesma, estende a
matéria na dimensão de dois côvados, com a mesma multiplicação infinita du-
plicada ela estende a matéria na dimensão de quatro côvados, e, com a mesma
multiplicação infinita subduplicada, estende-a na dimensão de um côvado, e
assim por diante, segundo as demais proporções numéricas e não numéricas.10
Esse era o entendimento, creio eu, dos filósofos que sustentavam que tudo
é composto de átomos e diziam que os corpos são compostos de superfícies,
as superfícies de linhas, e as linhas de pontos. E essa opinião não contradiz a
de que a grandeza se compõe somente de grandezas,11 porque há tantas ma-
neiras de dizer “todo” quantas de dizer “parte”. Ora, chama-se metade a parte
do todo que, tomada duas vezes, recompõe o todo; de outro modo, o lado
é a parte da diagonal que, tomada não importa quantas vezes se queira, não
recompõe a diagonal, mas, tomada algumas vezes, é menor que a diagonal. E,
de um terceiro modo, chama-se ângulo de contingência uma parte do ângulo
reto, no qual está infinitas vezes contido e, no entanto, se for subtraído deste
finitamente, o diminui; e, de modo diverso, o ponto é parte da linha na qual
está contido infinitas vezes, e, subtraído desta finitamente, não a diminui.
Voltando, pois, ao meu assunto, afirmo que a luz, por meio da multipli-
cação infinita de si mesma, realizada de modo igual por toda parte, estende a
matéria de modo igual em todas as direções numa forma esférica,12 e, como

10 Vale sublinhar que, segundo Grosseteste, a luz primordial – fonte de toda a multiplicação pos-
terior havida no universo – permanece, porque, em razão de sua simplicidade, é ontologicamen-
te indivisível. Portanto, a multiplicação infinita da luz não implica divisão numérica nem específica.
Trata-se da mesmíssima luz, cuja natureza é difundir-se. Em síntese, a luz primordial multiplica-se
permanecendo a mesma. [N. C.]
11 Opinião de Aristóteles.
12 Por que Grosseteste insiste em que a luz tem de se multiplicar infinitas vezes? Além da necessidade
cosmológica, impõe-se uma necessidade geométrica. Uma vez que a luz é propagação, tal propagação
(como ele explica mais adiante) necessariamente se dá no formato de uma esfera, expandindo-se a
partir de um centro em todas as direções. A intersecção de uma esfera é um círculo, e o círculo, figura
perfeita, como Aristóteles no mesmo De Caelo já bem havia explicado, é uma linha sem princípio
92 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

huius extensionis partes extremas materiae plus extendi et magis rare-


fieri, quam partes intimas centro propinquas. Et cum partes extremae
fuerint ad summum rarefactae, partes interiores adhuc erunt maioris
rarefactionis susceptibiles.
Lux ergo praedicto modo materiam primam in formam sphaericam
extendens et extremas partes ad summum rarefaciens, in extima sphaera
complevit possibilitatem materiae, nec reliquit eam susceptibilem ulterio-
ris impressionis. Et sic perfectum est corpus primum in extremitate spha-
erae, quod dicitur firmamentum, nihil habens in sui compositione nisi
materiam primam et formam primam. Et ideo est corpus simplicissimum
quoad partes constituentes essentiam et maximam quantitatem, non di-
fferens a corpore genere nisi per hoc quod in ipso materia est completa
per formam primam solum. Corpus vero genus, quod est in hoc et in aliis
corporibus, habens in sui essentia materiam primam et formam primam,
abstrahit a complemento materiae per formam primam et a diminutione
materiae per formam primam.
Hoc itaque modo completo corpore primo, quod est firmamentum,
ipsum expandit lumen suum ab omni parte sua in centrum totius. Cum
enim sit lux perfectio primi corporis, quae naturaliter se ipsam multiplicat
a corpore primo, de necessitate diffunditur lux in centrum totius. Quae
cum sit forma tota non separabilis a materia in sui diffusione a corpo-
re primo, secum extendit spiritualitatem materiae corporis primi. Et sic
procedit a corpore primo lumen, quod est corpus spirituale, siue mavis
dicere spiritus corporalis. Quod lumen in suo transitu non dividit corpus
per quod transit, ideoque subito pertransit a corpore primi caeli usque ad
centrum. Nec est eius transitus, sicut si intelligeretur aliquid unum nume-
ro transiens subito a caelo in centrum – hoc enim forte est impossibile –,
Sobre a luz 93

consequência necessária dessa extensão, as partes extremas da matéria se esten-


dem mais e ficam mais rarefeitas do que as partes internas próximas ao centro.
E, quando as partes extremas estiverem rarefeitas ao máximo, as partes mais
internas ainda serão suscetíveis de maior rarefação.13
Portanto, a luz, como se disse antes, estendendo a materia prima numa
forma esférica e rarefazendo as partes extremas ao máximo, realizou comple-
tamente na esfera mais externa a possibilidade da matéria, não a deixando
suscetível de uma impressão ulterior. E assim o primeiro corpo na extremidade
da esfera, que se chama firmamento, é perfeito, não tendo nada em sua com-
posição além da materia prima e da forma primeira.14 Por isso é o corpo mais
simples, com respeito às partes que lhe constituem a essência e à sua quantida-
de, a maior possível, diferindo do gênero “corpo” somente em que, naquele, a
matéria foi completamente realizada por meio só da primeira forma, enquanto
o gênero “corpo”, que está naquele e nos outros corpos, tendo em sua essência
a materia prima e a primeira forma, abstrai da completa realização da matéria
pela primeira forma e da diminuição da matéria pela primeira forma.
Assim, tendo sido desse modo realizado completamente o primeiro corpo,
que é o firmamento, ele expande sua própria luminosidade desde cada parte
sua para o centro do todo. Pois, como a luz é a perfeição do primeiro corpo,
multiplicando-se naturalmente a si mesma desde o primeiro corpo, necessa-
riamente a luz se difunde para o centro do todo. E, sendo forma totalmente
inseparável da matéria na difusão de si desde o primeiro corpo, ela estende
consigo a espiritualidade da matéria do primeiro corpo. E assim, do primeiro
corpo procede a luminosidade, que é corpo espiritual, ou, se se preferir, espírito
corporal. Essa luminosidade, em seu trajeto, não divide o corpo pelo qual pas-
sa, e por isso perpassa instantaneamente desde o corpo do primeiro céu até ao
centro. Todavia, não se deve entender o trajeto dela como algo numericamen-
te uno passando instantaneamente do céu para o centro – de fato, isso talvez

nem fim, com infinitos pontos eqüidistantes de um mesmo centro. Portanto, a superfície de uma
esfera contém infinitos pontos equidistantes do centro, mas em todas as dimensões possíveis. Por isso
a luz deve “multiplicar-se infinitamente”. [N. E.]
13 Difusão primordial, expansão (ou rarefação) e condensação são os processos implicados na forma-
ção do universo a partir da luz, de acordo com Grosseteste. Quando, pois, ele usa o termo “rarefação”
– neste e noutros tratados – está a referir-se à expansão da luz, e por conseguinte à da matéria, que a
acompanha. [N. C.]
14 Do firmamento, primeira esfera celeste na doutrina de Grosseteste, emanou a energia luminosa cha-
mada por ele de “corpus spirituale” ou “spiritus corporalis” (“...et sic procedit a corpore primo lumen, quod
est corpus spirituale, siue mavis dicere spiritus corporalis”); a luz então condensou-se, ao ir da extremidade
ao centro, e deste processo geraram-se, como se verá adiante neste tratado, treze esferas. [N. C.]
94 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

sed suus transitus est per sui multiplicationem et infinitam generationem


luminis. Ipsum ergo lumen a corpore primo in centrum expansum et col-
lectum molem existentem infra corpus primum congregavit; et cum iam
non potuit minorari corpus primum, utpote completum et invariabile,
nec potuit locus fieri vacuus, necesse fuit, ipsa in congregatione partes
extimas molis extendi et disgregari. Et sic proveniebat in intimis partibus
dictae molis maior densitas, et in extimis augmentabatur raritas; fuitque
potentia tanta luminis congregantis et ipsa in congregatione segregantis,
ut ipsas partes extimas molis contentae infra corpus primum ad summum
subtiliarent et rarefacerent. Et ita fiebat in ipsis partibus extimis dictae
molis sphaera secunda completa nullius impressionis ultra receptibilis.
Et sic est complementum et perfectio sphaerae secundae: lumen quidem
gignitur ex prima sphaera, et lux, quae in prima sphaera est simplex, in
secunda est duplicata.
Sicut autem lumen genitum a corpore primo complevit sphaeram se-
cundam et intra secundam sphaeram molem densiorem reliquit, sic lu-
men genitum ex sphaera secunda sphaeram tertiam perficit et infra ipsam
sphaeram tertiam molem adhuc densiorem congregatione reliquit. Atque
ad hunc ordinem processit ipsa congregatio disgregans, donec compleren-
tur novem sphaerae caelestes et congregaretur inter sphaeram nonam in-
fimam moles densata, quae esset quattuor elementorum materia. Sphaera
autem infima, quae est sphaera lunae, ex se etiam lumen gignens, lumine
suo et molem infra se contentam congregavit et congregando partes eius
extimas subtiliavit et disgregavit. Non tamen fuit huius luminis poten-
tia tanta, ut congregando partes eius extimas disgregaret ad summum.
Propterea remansit in omni parte molis huius imperfectio et possibilitas
receptionis congregationis et disgregationis. Et pars suprema molis huius
Sobre a luz 95

seja impossível –, mas seu trajeto acontece pela multiplicação de si e pela in-
finita geração de luminosidade. Logo, a própria luminosidade, expandida do
primeiro corpo para o centro e reunida, congregou a massa existente debaixo
do primeiro corpo; e como o primeiro corpo já não pudesse ser diminuído,
pois que estava completamente realizado e invariável, e como não pudesse
existir um lugar vazio, era necessário que na própria congregação dessa massa
as partes mais externas se estendessem e espalhassem. Assim sobreveio nas
partes mais internas da dita massa uma maior densidade, e nas mais externas
aumentava a rarefação.15 E tamanha era a potência dessa luminosidade que
congregava e que, ao congregar, separava, que as próprias partes mais externas
da massa contida debaixo do primeiro corpo se sutilizaram e rarefizeram ao
máximo. E assim nas mesmas partes mais externas dessa massa começou a
fazer-se uma segunda esfera completa e não suscetível de impressão ulterior
alguma. E assim foi a completa realização e perfeição da segunda esfera: certa-
mente, a luminosidade origina-se da primeira esfera, e a luz, que na primeira
esfera é simples, na segunda é duplicada.16
Assim como a luminosidade gerada do primeiro corpo completou a segunda
esfera e deixou dentro da segunda esfera uma massa mais densa, assim também
a luminosidade gerada da segunda esfera fez a terceira esfera e, congregando,
deixou debaixo dessa terceira esfera uma massa ainda mais densa. E nessa ordem
prosseguiu esse congregar que separa, até se realizarem completamente as nove
esferas celestes e se concentrar dentro da nona e ínfima esfera a massa condensa-
da, que seria a matéria dos quatro elementos. Ora, a esfera ínfima, que é a esfera
da lua,17 gerando luminosidade também de si mesma, com a sua luminosidade
congregou a massa contida debaixo de si e, congregando-a, sutilizou e desa-
gregou-lhe as partes mais externas. Mas a potência dessa luminosidade não foi
tão grande, que, ao congregar, desagregasse ao máximo as partes mais externas
dessa massa. Por causa disso, em toda parte dessa massa restou uma imperfeição
e a possibilidade de congregar-se e desagregar-se. E a parte superior da massa,

15 Densidade no centro e expansão nas extremidades; eis aqui o modo próprio de difusão da luz – e, por
conseguinte, do universo –, na teoria de Grosseteste. [N. C.]
16 Novamente assinalamos a ressonância, em Grosseteste, da teoria plotiniana da proveniência do
Múltiplo a partir do Uno. Nesta perspectiva, todo o conjunto da realidade que observamos é fruto
do desenvolvimento dinâmico, e perene, de uma potência engendradora radical. De maneira análoga
ao que acontece com a luz em Grosseteste, o Uno de Plotino é simples, permanece sempre o mesmo
e engendra ininterruptamente o múltiplo. Cf. Plotino, Enéadas, V. [N. C.]
17 Das treze esferas implicadas na teoria de Grosseteste, nove são celestes, concêntricas e incorruptí-
veis, sendo a última delas, como se vê aqui, a lua. As quatro seguintes – infralunares – são mutáveis
e corruptíveis. [N. C.]
96 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

disgregata non ad summum, sua tamen disgregatione ignis effecta, reman-


sit adhuc materia elementorum. Et hoc elementum ex se lumen gignens
et molem infra se contentam congregans eius partes extimas disgregavit,
minori tamem ipsius ignis disgregatione; et sic produxit ignem. – Ignis
vero ex se lumen gignens et molem infra contentam congregans eius par-
tes extimas disgregavit, minori tamen ipsius disgregatione; et sic aerem
produxit. – Aer quoque ex se corpus spirituale vel spiritum corporalem
generans et intra se contentum congregans et congregando exteriora eius
disgregans aquam produxit et terram. Sed quia in aqua plus remansit de
virtute congregante, quam disgregante, remansit etiam ipsa aqua cum
terra ponderosa.
Hoc igitur modo productae sunt in esse sphaerae 13 mundi huius sen-
sibilis: novem scilicet caelestes, inalterabiles, inaugmentabiles, ingenera-
biles et incorruptibiles, utpote completae, et quattuor existentes modo
contrario, alterabiles, augmentabiles, generabiles et corruptibiles, utpote
incompletae. – Et patens est, quoniam omne corpus superius secundum
lumen ex se progenitum est species et perfectio corporis sequentis. Et sicut
unitas potentia est omnis numerus sequens, sic corpus primum multipli-
catione sui luminis est omne corpus sequens.
Terra autem est omnia corpora superiora aggregatione in se luminum
superiorum. Propterea ipsa est, quae a poetis Pan dicitur id est totum; et
eadem Cybele, quasi cubile, a cubo id est soliditate nominatur, quia ipsa
est omnium corporum maxime compressa, hoc est Cybele mater deorum
omnium, quia, cum in ipsa superiora lumina sint collecta, non sunt tamen
in ea per operationes suas exorta, sed possibile est educi ex ea in actum
et operationem lumen cuiuscunque sphaerae volueris; et ita ex ea quasi
ex matre quadam quivis deorum procreabitur. – Media autem corpora in
duabus se habent habitudinibus. Ad inferiora quidem namque se habent
sicut caelum primum ad omnia reliqua; et ad superiora, sicut terra ad om-
nia cetera. Et sic modis aliquibus in quolibet eorum sunt omnia reliqua.
Et species et perfectio corporum omnium est lux: sed superiorum cor-
porum magis spiritualis et simplex, inferiorum vero corporum magis cor-
poralis et multiplicata. Nec sunt omnia corpora eiusdem speciei, licet a
luce simpla vel multiplicata fuerint profecta, sicut nec omnes numeri sunt
Sobre a luz 97

embora não desagregada ao máximo, feita porém fogo com sua desagregação,
permaneceu ainda matéria dos elementos. E este elemento, gerando luminosi-
dade de si e congregando a massa contida debaixo de si, desagregou-lhe as partes
mais externas, com desagregação porém menor que a do fogo, e assim produziu
o fogo. O fogo, no entanto, gerando luminosidade de si e congregando a mas-
sa contida embaixo, desagregou-lhe as partes mais externas, com desagregação
porém menor que a sua, e assim produziu o ar. O ar também, gerando de si um
corpo espiritual ou um espírito corporal, e congregando o que estava contido
dentro de si, e, ao congregar, desagregando-lhe as partes exteriores, produziu a
água e a terra. Mas, como na água ficou mais da força congregante do que da
força desagregante, a água, bem como a terra, ficou também com peso.18
Desse modo, pois, foram trazidas à existência as treze esferas deste mundo
sensível: nove celestes, inalteráveis, não passíveis de aumento nem de geração e
incorruptíveis, pois que completas; e quatro que subsistem de modo contrário,
alteráveis, passíveis de aumento e geração, e corruptíveis, pois que incompletas.
Ora, é evidente que todo corpo superior, em virtude da luminosidade proce-
dente dele, é a espécie e a perfeição do corpo subseqüente a ele. E, assim como
a unidade é potencialmente todo número subseqüente a ela, assim o primeiro
corpo, pela multiplicação de sua luminosidade, é todo corpo subseqüente a ele.
A Terra é, com efeito, todos os corpos superiores pela congregação, em si
mesma, das luminosidades superiores. Por isso os poetas chamam-na “Pan”, ou
seja, “todo”, e também lhe é dado o nome de Cibele, como se fosse cubile, de
cubo, isto é, solidez, porque ela é o mais compacto de todos os corpos, e ela é
Cibele, mãe de todos os deuses, porque, embora as luminosidades superiores es-
tejam congregadas nela, todavia não se originam nela por suas operações, mas é
possível de dentro dela conduzir para o ato e a operação a luminosidade de qual-
quer esfera que se queira; e assim de dentro dela será gerado, como de uma mãe,
qualquer dos deuses. Os corpos intermediários se comportam de dois modos.
Quanto aos corpos inferiores, se comportam como o primeiro céu em relação a
todos os restantes; e, quanto aos superiores, como a terra em relação a todos os
demais. E assim, de certo modo, em qualquer deles estão todos os outros.
A espécie e perfeição de todos os corpos é a luz: mas nos corpos superiores
ela é mais espiritual e simples, enquanto nos corpos inferiores é mais corpórea
e multiplicada. Mas nem todos os corpos são da mesma espécie, embora te-
nham sido produzidos pela luz simples ou multiplicada, bem como nem todos

18 Como se pode observar, para Grosseteste os quatro elementos (fogo, terra, ar e água) são fruto de
uma espécie de desagregação ontológica na menor esfera entre as nove incorruptíveis: a lua. [N. C.]
98 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

eiusdem speciei, cum tamen sint ab unitate maiori vel minori multiplica-
tione collecti.
Et in hoc sermone forte manifesta est intentio dicentium “omnia esse
unum ab unius lucis perfectione” et intentio dicentium “ea, quae sunt
multa, esse multa ab ipsius lucis diversa multiplicatione.”
Cum autem corpora inferiora participant formam superiorum corpo-
rum, corpus inferius participatione eiusdem formae cum superiore corpore
est receptivum motus ab eadem virtute motiva incorporali, a qua virtute
motiva movetur corpus superius. Quapropter virtus incorporalis intelligen-
tiae vel animae, quae movet sphaeram primam et supremam motu diurno,
movet omnes sphaeras caelestes inferiores eodem diurno motu. Sed quanto
inferiores fuerint, tanto debilius hunc motum recipiunt, quia quanto fuerit
sphaera inferior, tanto est in ea lux prima corporalis minus pura et debilior.
Licet autem elementa participent formam caeli primi, non tamen mo-
ventur a motore caeli primi motu diurno. Quamquam participant illa luce
prima, non tamen oboediunt virtuti motivae primae, cum habeant istam
lucem impuram, debilem, elongatam a puritate eius in corpore primo, et
cum, habeant etiam densitatem materiae, quae est principium resistentiae
et inoboedientiae. Putant tamen aliqui, quod sphaera ignis circumrotetur
motu diurno, et significationem ipsius ponunt circumrotationem come-
tarum, et dicunt etiam hunc motum derivari usque in aquas maris, ita ut
ex eo proueniat fluxus marium. Verumtamen omnes recte philosophantes
terram ab hoc motu dicunt esse immunem.
Eodem quoque modo sphaerae, quae sunt post sphaeram secundam,
quae fere secundum computationem in sursum facta nominatur octava,
quia participant formam illius, communicant omnes in motu suo, quem
habent proprium praeter motum diurnum.
Ipsae autem caelestes sphaerae, quia completae sunt, non receptibiles
rarefactionis aut condensationis, lux in eis non inclinat partes materiae
a centro, ut rarefaciat eas, vel ad centrum, ut condenset. Et propter hoc
ipsae sphaerae caelestes non sunt receptibiles motus sursum aut deorsum,
sed solummodo motus circularis a virtute motiua intellectiva, quae in sese
Sobre a luz 99

os números são da mesma espécie, conquanto derivem da unidade por uma


maior ou menor multiplicação.
Com esta discussão talvez se esclareça o que querem dizer os que afirmam
que “tudo é um pela perfeição de uma só luz” e os que afirmam que “o que é
múltiplo é múltiplo pela diversa multiplicação da própria luz”.
Mas, como os corpos inferiores participam da forma dos corpos superio-
res, o corpo inferior, pela participação na mesma forma que o corpo superior,
recebe o movimento da mesma força motora incorpórea pela qual é movido o
corpo superior.19 Por causa disso, a força incorpórea da inteligência ou alma,
que move a primeira e mais alta esfera com um movimento diuturno, move
todas as esferas celestes inferiores com o mesmo movimento diuturno.20 Po-
rém, quanto mais forem inferiores, tanto mais debilmente recebem esse mo-
vimento, porque quanto mais inferior uma esfera, tanto mais débil e menos
pura é nela a primeira luz corporal.
Porém, conquanto os elementos participem da forma do primeiro céu, todavia
não são movidos pelo motor do primeiro céu com movimento diuturno. Embora
participem dessa luz primeira, não obedecem à força motora primeira, porque a
essa luz possuem-na impura, débil, distanciada da pureza que ela tem no primeiro
corpo, e também porque possuem a densidade da matéria, que é princípio de re-
sistência e inobediência. Alguns pensam, contudo, que a esfera de fogo circungira
com movimento diuturno, e consideram como indicação disso o movimento de
rotação dos cometas, e também dizem que esse movimento se estende até às águas
marítimas, de tal modo que dele provém o fluxo dos mares. Mas, na verdade, to-
dos os bons filósofos afirmam que a terra é imune a esse movimento.
De igual modo, também, as esferas que estão após a segunda esfera – or-
dinariamente chamada oitava, a contar de baixo para cima –, todas, uma vez
que participam da forma da segunda esfera, compartem do movimento dela, e
a esse movimento têm-no como próprio, além do movimento diuturno.
E as esferas celestes, porque são completas e não suscetíveis de rarefação
ou de condensação, nelas a luz não inclina as partes da matéria para longe
do centro, a fim de as rarefazer, ou para perto do centro, a fim de as conden-
sar. Por causa disso, as esferas celestes não são suscetíveis de movimento para
cima ou para baixo, mas apenas de movimento circular a partir de uma força

19 O conceito de participação, de matriz platônica com adaptações neoplatônicas, também está pre-
sente na cosmogonia de Grosseteste, como se vê nesta passagem. [N. C.]
20 Optamos por traduzir “motu diurno” por “movimento diuturno”, e não “diurno”, para sermos
fiéis à intenção de Grosseteste de aludir à ininterruptibilidade dos movimentos no universo, espinha
dorsal de sua teoria. [N. C.]
100 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

aspectum corporaliter reverberans ipsas sphaeras corporali circulat revo-


lutione. Ipsa autem elementa, quia incompleta, rarefactibilia et conden-
sabilia, inclinat lumen, quod in eis est, aut a centro, ut rarefaciat, aut ad
centrum, ut condenset. Et propter hoc ipsa sunt aut sursum aut deorsum
naturaliter mobilia.
In supremo autem corpore, quod est simplicissimum corporum, est re-
perire quattuor, scilicet formam, materiam, compositionem et compositum.
– Forma autem, utpote simplicissima, unitatis obtinet locum. – Materia
autem propter duplicem potentiam ipsius, susceptibilitatem scilicet impres-
sionum et earundem receptibilitatem, et etiam propter densitatem, quae
radicaliter est ipsius materiae, quae primo et principaliter accidit binario, bi-
narii naturam merito sortitur. – Compositio vero ternarium in se tenet, quia
in ea patet materia formata et forma materiata et ipsa compositionis pro-
prietas, quae a materia et forma alia et tertia reperitur in unoquoque com-
posito. – Et quod est compositum praeter haec tria proprium, sub numero
quaternario comprehenditur. – Est ergo in primo corpore, in quo scilicet
virtualiter cetera corpora sunt, quaternarius, et ideo radicaliter numerus ce-
terorum corporum non ultra denarium invenitur. Unitas namque formae
et binarius materiae et ternarius compositionis et quaternarius compositi,
cum aggregantur; denarium constituunt. Propter hoc est denarius, numerus
corporum sphaerarum mundi, quia sphaera elementorum licet dividatur in
quattuor, una tamen est participatione naturae terrestris corruptibilis.
Ex his patet, quod denarius sit numerus universitatis perfectus, quia omne
totum et perfectum aliquid habet in se sicut formam et unitatem, et aliquid
sicut materiam et binarium, et aliquid sicut compositionem et ternarium, et
aliquid sicut compositum et quaternarium. Nec contingit ultra haec quattuor
quintum addere. Quapropter omne totum et perfectum est decem.
His autem manifestum est, quod solae quinque proportiones repertae
in his quattuor numeris unum, duo, tria, quattuor aptantur compositioni
et concordiae stabilienti omne compositum. Quapropter istae solae quin-
que proportiones concordes sunt in muscis modulationibus, gesticulatio-
nibus et rythmicis temporibus. Explicit tractatus de luce Lincolniensis.
Sobre a luz 101

motora intelectiva, que, refletindo corporalmente em si mesma o seu aspecto,


faz as esferas circularem numa revolução corporal. Contudo, os elementos,
porque incompletos e passíveis de rarefação e condensação, são inclinados pela
luminosidade, que está neles, ou para longe do centro, a fim de os rarefazer, ou
para perto do centro, a fim de os condensar. Por isso são capazes de mover-se
naturalmente ou para cima ou para baixo.
No corpo mais alto, que é o mais simples dos corpos, encontram-se qua-
tro características: forma, matéria, composição e composto. A forma, por ser
simplíssima, ocupa a posição da unidade. A matéria, por causa da sua dupla
potência, a saber, suscetibilidade das impressões e receptibilidade destas, e tam-
bém pela sua densidade, a qual é fundamentalmente própria da matéria e que se
aplica, primeiro e principalmente, ao binário, reveste com razão a natureza do
binário. A composição encerra o ternário, porque nela aparecem a matéria infor-
mada e a forma materializada, bem como a propriedade mesma da composição,
que se encontra em cada composto como uma terceira coisa, distinta da matéria
da forma. E o que é o composto próprio, além desses três, compreende-se no
número quaternário. Portanto, no primeiro corpo, no qual, a saber, estão vir-
tualmente os demais corpos, há o quaternário, e por isso o número dos demais
corpos basicamente não é maior do que dez. Pois a unidade da forma, o binário
da matéria, o ternário da composição e o quaternário do composto, quando se
somam, constituem um denário. Por essa razão, dez é o número dos corpos das
esferas do mundo, porque a esfera dos elementos, embora seja dividida em qua-
tro, todavia é una por sua participação na natureza terrestre corruptível.
Daí fica patente que dez é o número perfeito da universalidade, porque
qualquer todo perfeito tem algo em si como forma e unidade, e algo como
matéria e binário, e algo como composição e ternário, e algo como composto
e quaternário. E não cabe acrescentar um quinto a esses quatro. Por isso, qual-
quer todo perfeito é dez.
Com isto está claro que somente cinco proporções encontradas nesses qua-
tro números – um, dois, três, quatro – são aptas à composição e à harmonia
que dá estabilidade a todo e qualquer composto.21 Por isso, somente essas
cinco proporções são harmoniosas nas melodias musicais, nas danças e nos
tempos rítmicos.
Finda o Tratado Sobre a Luz, do bispo de Lincoln.

21 Parece-nos evidente que Grosseteste conhecia a Tetractys, ou seja, o triângulo equilátero perfeito,
que, para muitos pensadores pitagórico-platônicos, representava a força geradora na relação entre o
uno e o múltiplo: 1 + 2 + 3 + 4 = 10. [N. C.]
Parte II
Sobre a finitude do
movimento e do tempo

(De finitate motus et temporis)


104 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Primum argumentum, quod ponit Aristoteles ad probandum perpe-


tuitatem motus est hoc: Motus aut est perpetuus, aut fuit motus primus
ante quem non fuit alius.Sifuit motus primus ante quem non fuit alius,
ergo motus alius fuit postquam non fuit. Sed omne, quod est postquam
non fuit, prius fuit in potentia, quia omne, quod est et prius non fuit,
fuit in potentia. Sed omne, quod de potentia priore exit ad actum, non
exit ad actum nisi per motum praecedentem. Si ergo motus primus de
potentia priore exit ad actum, non exit ad actum nisi per motum pra-
ecedentem. Ergo si motus primus exivit de potentia ad actum, motum
primum praecessit motus alius; et ita motus primus non est motus pri-
mus, quod est inconveniens.
Haec autem propositio: “omne quod est, de potentia priore exit in
actum per motum praecedentem” sic ostenditur: Cum aliquid est in po-
tentia et nondum egreditur in actum, aut hoc est, quia causa efficiens
nondum est, aut si est, insufficiens est aut impeditur, aut quia illud in
quod agit efficiens, nondum est, aut si hoc fuerit, quia agens et illud in
quod agit disiuncta sunt. Sed si agens nondum est, oportet, ut per motum
fiat. Si insufficiens est, oportet, ut per motum fiat sufficiens. Similiter si
illud, in quod agat agens, nondum est, aut si disiuncta sunt, necesse est,
illud passim per motum fieri, aut ista disiuncta per motum coniungi.
Sobre a finitude do movimento e do tempo 105

O primeiro argumento que Aristóteles apresenta para provar a perpetuida-


de do movimento é este: ou o movimento é perpétuo, ou existiu um primeiro
movimento antes do qual não existiu outro. Se existiu um primeiro movimen-
to antes do qual não existiu outro, logo esse outro movimento existiu depois
de não ter existido. Mas tudo o que é depois de não ter sido, antes foi em po-
tência, porque tudo o que é e antes não foi, foi em potência.22 Ora, tudo o que
passa da anterior potência ao ato não passa ao ato senão por um movimento
precedente. Se, portanto, o primeiro movimento passa da anterior potência
ao ato, não passa ao ato senão por um movimento precedente. Logo, se o
primeiro movimento passou da potência ao ato, um outro movimento prece-
deu o primeiro movimento, e assim o primeiro movimento não é o primeiro
movimento, o que é inconveniente.23
Mas a proposição “tudo o que existe passa da anterior potência ao ato por
um movimento precedente” explica-se do seguinte modo: quando algo está
em potência e ainda não passou ao ato, ou é porque ainda não há uma causa
eficiente; ou porque, se há, é insuficiente ou está impedida; ou porque aquilo
em que age como eficiente ainda não existe, ou, se existir, é porque o agente e
aquilo em que age estão separados. Ora, se o agente ainda não existe, é preciso
que se faça [existir] por movimento. Se é insuficiente, é preciso que se torne
suficiente por movimento. Igualmente, se aquilo em que o agente pode agir
ainda não existe, ou se estão separados um do outro, é necessário que aquilo
de qualquer maneira se faça [existir] por movimento ou que ambos separados
se juntem por movimento.24

22 Ou seja, tinha potência para vir a ser, a qual não pode ter advindo do nada, pois ex nihilo nihil
fit. A potência para ser ou não ser, à qual alude Grosseteste no começo deste tratado, é própria dos
entes contingentes. [N. C.]
23 Para Aristóteles, não existe um momento “zero” antes do qual não teria havido movimento nem,
por conseguinte, tempo, sendo este, nas famosas palavras do Estagirita, a contagem do movimento
segundo um antes e um depois. É, pois, contra a tese da eternidade do movimento que Grosseteste
voltará as suas baterias neste opúsculo, afastando-se nisto de Santo Tomás de Aquino, que no livro De
æternitate mundi defende o seguinte: não repugna à razão pensar que o universo tenha existido desde
a eternidade, ou seja, que tenha sido criado por Deus fora do tempo, nem que tenha sido criado no
tempo. Para compreender-se de maneira devida a doutrina aristotélica da eternidade do movimento,
é necessário ter em conta a sua cosmologia, a qual pressupõe uma materia prima ingênita e esferas
celestes incorruptíveis. O Livro I da Física e o Livro I do Tratado Sobre o Céu são as obras do Estagirita
cuja leitura indicamos para a compreensão deste magno problema. [N. C.]
24 Sem dúvida, todo movimento supõe um trânsito da potência ao ato, e o que está em discussão
neste breve tratado de Grosseteste é se o movimento e o tempo são eternos, como supusera Aristó-
teles. Parece-nos escapar a Grosseteste, em sua crítica a Aristóteles, o fato de que, não sendo eterno
o movimento nem o tempo, a potência – no caso, a onipotência – que engendrou o primeiro movi-
mento não o fez por intermédio de um movimento. Noutras palavras, a criação dos entes ex nihilo
106 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

Et ut ad unum dicam: Causa, quare aliquid quod est in potentia non-


dum egreditur ad actum, est defectus alicuius conditionis ex parte agentis,
vel ex parte patientis. Quam conditionem oportet acquiri per motum,
antequam fiat de potentia agente actu agens. Ita in omni, quod fit sub
tempore, necesse est, eius fieri praecedere motum alium non disiunctum
a sequente per quietem.
Et in hac ratiocinatione manifestum est, quod omne, quod fit, necesse
est reduci ad motum continuum circularem.
Haec autem ratiocinatio, quae convincit, primum motum non fuisse,
convincit etiam, quod non fuit motus ante motum infinitum, ita quod
fuit aliquando quies absque motu intermedio.
Dico autem, quod haec ratiocinatio Aristotelis et philosophorum est
diminuta. Quod enim dicitur “motus aliquando primo fuit, postquam
non fuit”, distinguendum est, quia, si haec dictio “postquam” significet
ordinem temporalem, implicata est in sermone ideo contradictio, quia
implicatur, quod tempus praecesserit primum principium motus et ita,
quod motus fuerit ante motum primum et tempus ante tempus primum,
quod est impossibile. Et non est haec divisio sufficiens: motus aut est
Sobre a finitude do movimento e do tempo 107

Para dizer numa só palavra: a causa pela qual algo que está em potência
não passa ao ato consiste no defeito de alguma condição da parte do agente
ou da parte do paciente.25 Tal condição precisa ser adquirida por movimento,
antes que da potência ativa se torne agente em ato. Assim, em tudo o que se
realiza no tempo, o seu realizar-se deve ser precedido necessariamente de outro
movimento não separado do subseqüente por um repouso.
E nesse raciocínio fica evidente que tudo o que se realiza é necessário que
seja reduzido a um movimento contínuo circular.
Mas esse raciocínio, que convence não ter havido um primeiro movi-
mento, também convence que não existiu movimento antes do movimento
infinito, de tal modo que houve num momento repouso sem movimento
intermediário.
Afirmo, todavia, que esse raciocínio de Aristóteles e dos filósofos é estrei-
to.26 Ora, quando se diz “um movimento num momento existiu primeiro,
depois de não ter existido”, é preciso fazer uma distinção, porquanto, se a
expressão “depois” significa ordem temporal, introduziu-se na frase uma con-
tradição, pois implica que o tempo precedeu o primeiro princípio de movi-
mento e, assim, que existiu um movimento antes do primeiro movimento, e
tempo antes do primeiro tempo, o que é impossível.27 E não é suficiente esta

pelo Próprio Ser (Deus) se dá sem qualquer movimento, porque todo movimento supõe um ponto de
partida e um termo final; ocorre que, no caso da Criação, não havia nenhum sujeito anterior ou in-
dependente de Deus que, por intermédio da ação divina, transitasse da potência ao ato, pelo simples
fato de que nada é anterior ao ser divino. Quando Santo Tomás, numa importante passagem de sua
obra, diz que “nada preexiste à criação” (“nihil est quod creationi praexistat”, cf. Tomás de Aquino, II,
Sent., d. 1, art. 2), está a deixar consignada a impossibilidade de que a ação engendradora do universo
se desse por movimentos, pois não havia nenhum sujeito do movimento – seja formal, seja material
– de que se valesse Deus ao criar. [N. C.]
25 A exceção – não considerada aqui por Grosseteste – está na onipotência ativa do ser divino, o qual
pode não fazer algo transitar da potência ao ato sem, contudo, apresentar defeito ou carência de ne-
nhuma espécie. Daí provém a tese de Santo Tomás, compartida por todos os notáveis autores de sua
escola, de que a criação não esgota as possibilidades operativas de Deus. Noutras palavras: se quisesse,
Deus poderia ter criado um universo diferente – e mais perfeito – do que o existente. Sendo assim,
este não é “o melhor dos mundos possíveis”, como imaginara Leibniz; pressupor isto é impor limites
ao ser e ao operar divinos. Deus faz perfeitamente tudo o que faz, mas pode fazer infinitas outras
coisas com grau intensivo de ser mais perfeito do que o universo atual. [N. C.]
26 “(...) ratiocinatio Aristotelis et philosophorum est diminuta”. Se considerarmos que o raciocínio de
Aristóteles, apesar de não ser concludente no tocante a esta questão, não pode ser de nenhuma ma-
neira considerado “estreito”, vemos tratar-se de uma frase de efeito de Grosseteste. Com ela, o bispo
inglês fez eco à desconfiança da escola franciscana com relação às doutrinas aristotélicas que causaram
grande impacto no Ocidente latino. No período em que escreveu Grosseteste, as polêmicas relativas
à recepção de Aristóteles por teólogos cristãos estavam longe de terminar. [N. C.]
27 O “depois” implicado nesta questão não é de natureza cronológica – nem, portanto, física ou
matemática. É um depois metafísico que tem o nada (nihil) como antes, razão pela qual não cabe
108 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

perpetuus et sine initio, aut fuit postquam non fuit, quia sub neutram
partem divisionis cadit mundus, vel tempus, vel motus, vel aliquid, cuius
esse est esse cum tempore, quia nullum horum est sine initio. Nec tamen
aliquod horum habet initium sub tempore; tamen apud imaginationem
ponentem, quod idem est esse sine initio et habere esse extensum per mo-
ram infinitam, est illa divisio necessaria. Si autem haec dictio “postquam”
significet ordinem temporis ad aeternitatem et fuit primo positum, quod
significet tempus et secundo aeternitatem, verum est, quod mundus et
tempus et motus fuerunt postquam non fuerint, et priusquam essent, fue-
runt in potentia, ut designetur prioritas aeternitatis ad tempus et “poten-
tia” non dicat potentiam causae materialis, sed solum potentiam causae
efficientis. Haec autem propositio: “Omne, quod de potentia priore exit
ad actum etc.” vera est, si significetur prioritas temporalis. Et sic tenet
probatio illius. Et si significetur prioritas aeternorum ad temporalia facta,
haec eadem supradicta ratiocinatio Aristotelis ostendit, quod non fuerunt
mobilia prius quiescentia tempore infinito et coeperunt moveri.
Quia autem primum motum oporteret praecedere alium motum,
quaestio est an acquiretur nova conditio motori aut mobili, aut remotio
impedimenti, per quam conditionem aut impedimenti remotionem de
movente et moto in potentia facerent moventem et motum in effectu.
Ratio autem Averrois, qua putat, quod intentio Aristotelis sit de perpetui-
tate motus unius continuantis motus ceteros est hoc, quod Aristoteles in
Sobre a finitude do movimento e do tempo 109

divisão: ou o movimento é perpétuo e sem início, ou existiu depois de não


ter existido, porque em nenhuma das duas partes dessa divisão se enquadra o
mundo, o tempo, o movimento ou qualquer coisa cujo ser seja ser com tempo,
uma vez que nenhum destes é sem início; todavia, nenhum destes tem início
no tempo. No entanto, na imaginação de quem afirma que ser sem início e
ter ser extenso por atraso infinito28 é o mesmo, aquela divisão é necessária. Se,
todavia, a palavra “depois” significa a ordem do tempo para a eternidade, e
estabeleceu-se primeiro que significa tempo, e em segundo eternidade, é ver-
dadeiro, porque o mundo, o tempo e o movimento existiram depois de não
terem existido, e, antes que fossem, foram em potência, de modo que fique de-
signada a anterioridade da eternidade com relação ao tempo e que “potência”
não signifique a potência da causa material, mas apenas a potência da causa
eficiente. Todavia, a proposição “tudo o que passa da anterior potência ao ato”,
etc., é verdadeira se significar anterioridade temporal, e assim fica aprovada
a proposição. Mas se significa a anterioridade das coisas eternas em relação
às temporais, esse mesmo raciocínio de Aristóteles, já mencionado, mostra
que não existiram [entes] móveis que antes repousavam no tempo infinito e
começaram a mover-se.
Mas, como seria preciso que o primeiro movimento precedesse um outro
movimento, a questão é se será adquirida uma nova condição para o motor
ou para o móvel, ou uma remoção do impedimento, por meio da qual con-
dição ou remoção do impedimento se convertessem, de movente e movido
em potência, a movente e movido em efeito. O argumento de Averróis, no
entanto, segundo o qual ele pensa que a intenção de Aristóteles recai sobre a
perpetuidade de um só movimento que continua os demais movimentos, é

inferir um tempo antes do primeiro movimento apenas por conta da inserção do termo “depois” na
argumentação. Em breves palavras: antes do primeiro tempo e do primeiro movimento, os quais são
concomitantes, havia apenas o ser divino, imóvel por sua própria natureza e situado para além de
todo e qualquer tempo. Sendo assim, o “antes” pressuposto nesse “depois” não é numerável. Por isso,
nesta mesma passagem, Grosseteste relaciona esse “depois” à eternidade como a seu único anterior
filosoficamente aceitável. [N. C.]
28 Com a expressão moram infinitam, aqui traduzida por “atraso infinito”, Grosseteste tem em mente
a sua tese do infinito potencial, ancorada na teoria da relação matemática dos conjuntos infinitos.
Indicamos a leitura de dois trabalhos de Celina A. L. Mendonza: El comentario de Roberto Grosseteste
al libro VII de la ‘Física’ de Aristóteles e La infinitud del número según Roberto Grosseteste. A propósito,
este opúsculo de Grosseteste remete-nos a um consenso entre vários historiadores da filosofia: a
Universidade de Paris do século XIII concentrou os seus esforços na especulação metafísica, ao passo
que Oxford se orientou ao experimentalismo científico (num sentido próximo ao conceito que te-
mos hoje de “ciência”), o qual, naquela altura, acabou por desaguar no nominalismo e na crescente
problematização entre ser e conhecer. [N. C.]
110 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

septimo ostendit, quod in motis localiter necesse est esse primum motum
et primum motorem. Cuius ostensioni ibi coniungitur haec ratiocinatio:
convincitur primum motum moveri et primum motorem movere perpe-
tuo secundum dispositionem eandem, qua alterum nunc movet et alte-
rum nunc movetur; et est intentio secundum Averroem ostendere, quod
semper fuit et erit in dispositione, qua nunc est.
Secunda ratio Aristotelis de perpetuitate motus est haec: Si ponatur
motus simpliciter generatus et habens initium: ergo eius non-esse prae-
cessit eius esse; quia omne, quod habet initium, eius non-esse praecessit
eius esse; alioquin, cum non-esse alicuius initiati fuerit ab aeterno et sine
initio, et eius esse similiter fuit sine initio, quod est impossibile; ergo si
motus simpliciter est habens initium, eius esse et eius non-esse dividuntur
prioritate et posterioritate. Sed prius et posterius non sunt sine tempore.
Ergo cum prioritate non-esse motus fuit tempus. Sed tempus non fuit
sine motu. Ergo ante motum simpliciter fuit motus; quod est impossibile.
Dico, quod in hac ratiocinatione est deceptio propter hoc, quod in-
tellectus non distinguit inter prioritatem temporis et prioritatem, quae
Sobre a finitude do movimento e do tempo 111

este: o de que no sétimo [livro da Física], Aristóteles demonstra que nos movi-
mentos ocorridos localmente29 é necessário que haja um primeiro movimento
e um primeiro motor. A essa demonstração se combina o seguinte raciocínio:
prova-se que o primeiro movimento é movido e o primeiro motor move per-
petuamente segundo a mesma disposição pela qual um ora move e o outro
ora é movido; e a intenção é, segundo Averróis, demonstrar que [o primeiro
movimento] sempre existiu e existirá na disposição em que agora existe.
O segundo argumento de Aristóteles sobre a perpetuidade do movimento
é este: se se admite um movimento gerado simpliciter,30 e com início, o seu
não-ser precedeu o seu ser, porque em tudo o que tem início, o seu não-ser
precedeu o seu ser; caso contrário, visto que o não-ser de algo iniciado teria
existido desde a eternidade e sem início, também o seu ser seria igualmente
sem início, o que é impossível. Portanto, se o movimento simpliciter existe
tendo início, o seu ser e o seu não-ser se dividem segundo a anterioridade e
a posterioridade. Mas não há anterior e posterior sem tempo.31 Logo, com a
anterioridade do movimento do não-ser houve tempo. Mas não houve tempo
sem movimento. Logo, antes do movimento simpliciter houve movimento, o
que é impossível.
Afirmo que neste raciocínio há um engano, pelo seguinte: o intelecto
não distingue entre a anterioridade do tempo e a anterioridade que significa

29 “Tudo o que está em movimento é movido por algo”. Aristóteles, Física, VII, 1, 241b. Na
verdade, este princípio aristotélico – que na Escolástica ganhou a conhecida formulação “omne quod
movetur ab alio movetur” – refere-se não apenas ao movimento local, mas a todo e qualquer trânsito
da potência ao ato. No Livro VII da Física de Aristóteles, demonstra-se a impossibilidade de um
movimento infinito num tempo finito (VII, 1, 242b, 50) e também a necessidade de um primeiro
motor de todos os movimentos locais. Diz o Estagirita: “Se uma coisa é movida com movimento local
por outra que está em movimento, e esta que move é, por sua vez, movida por outra que não está em
movimento, e esta última por outra, e assim sucessivamente, terá de haver um primeiro movente,
porque não se pode proceder ao infinito” (Física, VII, 1, 242a, 50-55). [N. C.]
30 O termo simpliciter, em se tratando de filosofia escolástica, é de tradução problemática, porque
em boa parte dos casos não quer dizer “simplesmente”, como à primeira vista poderia parecer, mas
sim “em sentido absoluto”, em contraposição a secundum quid, cujo significado filosófico é “em certo
sentido”, “em dada perspectiva”, etc. Embora o uso do termo por Grosseteste não seja unívoco, quer
dizer, não aponte sempre para o conceito acima referido, optamos por manter a palavra latina no
corpo da tradução. [N. C.]
31 Grosseteste, em sua crítica a Aristóteles, entende que o Estagirita não concebe a sucessão não
cronométrica, ou seja, um trânsito da potência ao ato em que não esteja implicado o tempo. Para a
distinção entre sucessão cronométrica, sucessão evométrica e o “agora” eterno – o qual é medida de
todas as durações, sem ser medido por nenhuma delas –, indicamos o breve artigo do coordenador
desta Coleção Escolástica publicado no blogue Contra Impugnantes com o título Sobre a eternidade
do mundo – uma questão enfrentada por Tomás de Aquino, em <http://contraimpugnantes.blogspot.
com.br/2011/11/sobre-eternidade-do-mundo.html>. [N. C.]
112 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

significat ordinem aeternitatis ad tempus. Non-esse namque mundi et


eorum, quae cum mundo coeperunt, non mensurat tempus sine initio,
neque omnino tempus, sed aeternitas. Non ergo fuit eorum non-esse
prius id est tempore priori, quam eorum esse; sed fuit prius id est in su-
periori mensura quidem eorum esse, quia eorum non-esse in aeternitate
fuit et eorum esse in tempore.
Tertia ratio Aristotelis sumpta est a natura instantis. Instans enim omne
est continuatio praeteriti et futuri. Non fuit ergo instans, ante quod non
fuit tempus; nec erit instans, post quod non erit tempus. Et ita tempus
fuit sine initio et erit sine fine. Sed non est tempus sine motu, ut ostensum
est tractatu de tempore. Ergo motus est perpetuus.
Dico autem, quod haec est falsa: “Omne instans est continuatio prae-
teriti et futuri”, sed fuit instans primum et forte erit ultimum in tempore,
sicut sunt puncta in ultimo lineae, licet Aristoteles et Averroes et expositores
alii habeant hoc pro inconvenienti. Sed sine dubio ipsi non habent ad hoc
demonstrationem, sed sola imaginatio perpetuitatis et infinitatis temporis
fecit eos hoc falsum ponere. – Et quod dicunt expositores Aristotelis, quia
in motu circulari non est primum in tempore, quod in eo non est primum
in motu, falsum est: in motu enim circulari primum est, sicut in aliis moti-
bus. Manifestum est enim, quod omnis pars non sphaerica circulariter moti
habet initium in motu sibi proprio. Et dico, quod tota sphaera circulariter
Sobre a finitude do movimento e do tempo 113

a ordem da eternidade em relação ao tempo. De fato, não é o tempo sem


início, nem sequer o tempo, que mede o não-ser do mundo e das coisas que
começaram com o mundo, mas a eternidade. Logo, o seu não-ser não existiu
antes, isto é, “num tempo anterior”, do que o seu ser, mas existiu antes, isto
é, “numa medida superior ao seu ser”, porque o seu não-ser existiu na eterni-
dade e o seu ser no tempo.32
O terceiro argumento de Aristóteles é tomado da natureza do instante.
Ora, todo instante é continuação do passado e do futuro. Portanto, não existiu
instante antes que existisse tempo, nem existirá instante depois de não existir
tempo.33 E, desse modo, existiu tempo sem início e existirá sem fim. Mas não
existe tempo sem movimento, como foi demonstrado no Tratado sobre o tem-
po.34 Logo, o movimento é perpétuo.
Afirmo, porém, que é falso que “todo instante é continuação do passado e
do futuro”. Existiu um instante primeiro e talvez existirá um último no tem-
po, assim como existem pontos no fim de uma linha, apesar de Aristóteles,
Averróis e outros comentadores considerarem isso inconveniente. Ora, sem
dúvida eles não podem demonstrar nada contra isso; mas só a imaginação
da perpetuidade e da infinidade do tempo os fez afirmar que é falso. E o
que afirmam os comentadores de Aristóteles, que no movimento circular não
existe um primeiro no tempo, porque nele não existe um primeiro no movi-
mento, é falso: pois no movimento circular existe um primeiro, tal como nos
demais movimentos.35 Ora, é evidente que toda parte não esférica do movi-
do circularmente tem início no movimento próprio a si mesma.36 E afirmo

32 Ao dizer que “o seu não-ser existiu na eternidade” (“eorum non-esse in aeternitate fuit”), Grosseteste
faz referência aos possíveis radicados na onipotência divina – idéias da mente divina que Deus não
trouxe ao ser, mas poderia ter trazido, se Lhe aprouvesse. [N. C.]
33 De maneira implícita, Grosseteste atribui a Aristóteles a não-consideração do instante eterno do
ser divino, ou seja, do agora permanente do Próprio Ser, sem o qual sequer poderia haver “agoras”
temporais. Por isso, logo em seguida ele afirma: “Existiu um instante primeiro e talvez existirá um
último no tempo”. O pressuposto da crítica de Grosseteste é a existência de um “supra-instante” não
limitado pelas propriedades do tempo. [N. C.]
34 Isto é, o Livro IV da Física de Aristóteles.
35 O movimento circular ao qual alude Grosseteste é inerente aos corpos celestes, na cosmologia
aristotélica. E mais: para Aristóteles, o movimento circular tem primazia sobre o movimento retilíneo
e sobre quaisquer outros movimentos, por ser infinito e eterno e nele não poder distinguir-se um
ponto de partida, um intermédio e um ponto final. [N. C.]
36 Cf. Roberto Grosseteste, “De sphaera”, I: “Intentio nostra in hoc tractatu est describere figuram
machinae mundanae et centrum (et situm) et figuras corporum eam constituentium et motus corporum
superiorum et figuras circulorum suorum.” Para entender a expressão “parte não esférica”, nesta passa-
gem do opúsculo de Grosseteste, aludimos ao tratado De sphaera, no qual, logo no início, ele diz-nos
que a astronomia descreve a “máquina do mundo”, o lugar do mundo, as figuras e os movimentos dos
114 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

mota movetur per se et non solum per accidens, eo quod partes eius per
se moventur, et quod moventur etiam localiter, sicut dicit Aristoteles. Sed
localiter moveri, sicut dicit Averroes, est duobus modis: movetur enim
localiter quia transit de uno loco ad alium, et hoc est mutare locum secun-
dum subiectum; vel quia aliter est nunc quam prius et posterius in eodem
loco, et hoc est mutare locum non secundum subiectum, sed formaliter;
et sic movetur caelum localiter et per se. Et in tali motu per se est sumere
initium; et initium est modus caeli essendi in loco suo, in quo fuit in sui
creatione, a quo modo essendi in loco suo continue post sui creationem
recessit et omnes modos essendi in eodem loco renovavit, et in fine cuius-
libet revolutionis rediit caelum ad locum primum. – Nec putet aliquis,
Sobre a finitude do movimento e do tempo 115

que a esfera inteira movida circularmente move-se per se, e não apenas per
accidens, pelo fato de que as suas partes se movem per se e porque se movem
também localmente, como diz Aristóteles. Mas o mover-se localmente, como
diz Averróis, se dá de dois modos: move-se localmente, porque transita de um
lugar para outro, e isto é mudar de lugar segundo o sujeito; ou porque agora
é diferentemente de como era antes e [será] depois no mesmo lugar, e isto
é mudar de lugar não segundo o sujeito, mas formalmente; e, desse modo,
move-se o céu localmente e per se. E em tal movimento per se está o ter início,
e o início é o modo de ser do céu no seu lugar, no qual esteve na sua criação,
do qual modo de ser no seu lugar continuamente se afastou após sua criação
e renovou todos os modos de ser no mesmo lugar, e ao fim de uma revolução
qualquer retornou o céu ao primeiro lugar.37 E não se pense que Aristóteles

corpos que o constituem e os movimentos dos corpos superiores, com as formas respectivas dos seus
círculos. Em resumo, a astronomia – última ciência do Quadrivium – descreve matematicamente o
mundo, aqui entendido como o universo inteiro dos entes compostos de matéria e forma. Resuma-
mos: a astronomia descreve as formas do mundo valendo-se da geometria; os seus tempos e movi-
mentos mediante a aritmética; e a harmonia do todo por meio da música. Como se vê, a astronomia
abarca, em certo sentido, as outras três ciências do Quadrivium, segundo Grosseteste. No que tange
especificamente ao movimento, é preciso ter em mente o seguinte princípio implicado na doutrina
de Grosseteste: todos os movimentos infracelestes, como por exemplo os que sucedem na Terra, são
dependentes dos movimentos cósmicos, ou seja, os das esferas celestes. Ocorre que nem tudo o que
– direta ou indiretamente – se move graças ao movimento das esferas celestes pode dizer-se, também,
esférico, o que é manifesto se porventura vislumbramos que as partes de uma esfera Y podem ser
geometricamente divisíveis a partir das distâncias entre o centro e qualquer ponto de sua superfície.
Cada uma dessas divisões não será esférica, embora todas participem da esfera. Valendo-nos de uma
analogia, podemos afirmar que os trânsitos nessas partes não esféricas, ainda que distantemente de-
pendentes dos movimentos das esferas celestes, localmente passam da potência ao ato a partir dos
movimentos que lhes são próprios (“motu sibi proprio”, nas palavras de Grosseteste). [N. C.]
37 É difícil acompanhar este argumento de Grosseteste, com um texto tão elíptico e compacto, que
pressupõe uma série de postulados de Aristóteles e dos astrônomos e geômetras antigos, os quais
faziam parte do horizonte de consciência dos escolásticos. No fundo, seu argumento aponta para
o seguinte: tem de haver uma “instância” ou configuração do céu que seja a primeira (e também a
última). Ele estar configurado de uma certa maneira e não de outra é o seu “início”. O céu não podia
estar configurado de todas as maneiras ao mesmo tempo, ou seria eterno em sentido simples (o que
só se atribui a Deus, ser perfeitíssimo). Em outros termos: sofremos a ilusão de que o círculo não
tem princípio, porque seu formato “acabado” nos induz a essa conclusão, fazendo-nos desconsiderar
o evento concreto que o configura.
S. Basílio, um dos grandes Padres da Igreja, séculos antes usará argumento semelhante em sua obra
Hexaemeron (Os Seis Dias da Criação): “Sem dúvida o círculo (isto é, a figura plana descrita por uma
única linha) ultrapassa a nossa percepção, e é impossível descobrirmos onde ele começa e onde ter-
mina; mas nós não devemos por isso crer que ele não tenha um começo. Embora não percebamos,
ele realmente começa em algum ponto onde o desenhista principiou a desenhá-lo a um certo raio
de distância do centro. Assim, ao verdes que as figuras que se movem em círculo sempre voltam ao
mesmo ponto, sem interromper por um único instante a regularidade do seu curso, não imaginais,
em vão, que o mundo não tem princípio nem fim.” (PG 29, 10 A-B). [N. E.]
116 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

quod Aristoteles non intendit hoc ibi probare, quia tempus et motus sunt
coaequaeva, quia dicit in complemento rationis suae haec verba: “quia igi-
tur non verum tempus erat vel erit, quando motus non erat aut non erit,
tanta dicta sint” – quia haec dixit supponendo perpetuitatem temporis et
eius infinitatem ex utraque parte.
Consimilibus rationibus eis, quae praedictae sunt, ostendit Aristoteles,
quod motus est incorruptibilis, et iste perpetuus ex parte post, et quod
non interrumpitur quiete, nec erit post motum quies in infinito tempore.
Si enim ponatur motus ultimus, post quem non erit alius, necesse est, ut
post motum adveniat conditio aut motori, aut moto, aut utrisque, propter
quam fiat de motore in actu non-motor in actu et de moto in actu non-
-motum in actu. – Et ista etiam conditio aut est motus, aut acquisita per
motum; et ita post motum ultimum erit motus, quod est impossibile.
Dico, quod in hac opinione est imaginatio temporis post omne tempus;
et haec imaginatio est falsa, si stabit caelum; et haec opinio solvitur ut supra.
Item: ultimum motum aut est corruptible aut non. Si est ens corrup-
tivum, aut est corruptor aut non. Quod si est, erit processus in infinitum.
Ergo oportet ponere ultimum motum incorruptibilem et motorem incor-
ruptibilem. Si ergo aliquando cessabit motus, quaeritur ratio, quare tunc
plus, quam prius.
Et manifestum est, quod istas quaestiones et opiniones non inducit
nisi imaginatio temporis post omne tempus et impotentia intelligendi ae-
ternitatem simplicem motoris primi secundum dispositionem unam se
habentis, mutabilia tamen temporaliter variantis.
Nec moveat aliquem, quod Aristoteles et alii philosophi probant Deum
esse incommutabilem et intemporalem et cetera talia, ut putet eum vel
alios philosophos simplicitatem aeternitatis perspicue intellexisse. Quare
scire debemus, quod multa per discursum rationis convincimus esse vera,
Sobre a finitude do movimento e do tempo 117

não pretende provar aqui que tempo e movimento são coevos, porque diz, no
complemento de seu argumento, as seguintes palavras: “que, pois, em verdade
não existia tempo nem existirá, já que não existia nem existirá movimento, tal
já foi dito”38 – porquanto ele o disse supondo a perpetuidade do tempo e a sua
infinitude, de ambas as partes.
Com razões semelhantes às mencionadas anteriormente, Aristóteles de-
monstra que o movimento é incorruptível, perpétuo quanto ao posterior, e
não é interrompido por repouso, nem haverá após o movimento um repouso
no tempo infinito. Ora, se supomos um último movimento, depois do qual
não haverá outro, é necessário que, após o movimento, sobrevenha uma con-
dição ao motor ou ao movido, ou a ambos, pela qual se faça do motor em ato
um não-motor em ato, e do movido em ato um não-movido em ato. E tam-
bém essa condição ou é movimento, ou adquirida por movimento; e assim,
após o último movimento, haverá movimento, o que é impossível.
Afirmo que essa opinião supõe a imagem de um tempo após todo tempo,
e tal imaginação é falsa,39 se ficar estável o céu [ao final dos tempos];40 e essa
opinião se resolve como antes.
E também, o último movimento ou é corruptível, ou não. Se é ente cor-
ruptivo, ou é corruptor, ou não. Se o for, haverá um processo ao infinito.
Logo, é preciso propor um último movimento incorruptível e um motor in-
corruptível. Se, portanto, o movimento cessar em algum momento, busca-se
a razão: por que então e não antes?
Ora, é patente que o que induz a essas questões e opiniões não é senão a
imaginação de [que há] tempo após todo o tempo e a incapacidade de enten-
der a eternidade simples do primeiro motor, que se mantém segundo uma só
disposição, mas que varia temporalmente as coisas mutáveis.
E que Aristóteles e outros filósofos provem que Deus é imutável e intem-
poral e outras coisas semelhantes não deve fazer ninguém pensar que ele ou
os outros filósofos compreenderam claramente a simplicidade da eternida-
de.41 Com isso devemos saber que, pelo discurso da razão, somos convencidos

38 Aristóteles, Física, VIII, 1, 252b 5-6.


39 Ao contrário do que poderia parecer, o termo imaginatio, usado em diferentes passagens por
Grosseteste neste opúsculo, não tem intenções irônicas. Com ele o autor inglês apenas refere-se ao
que considera uma suposição filosófica sem base na realidade. [N. C.]
40 Cf. Isaías 60:20: “Teu sol não mais se deitará, e tua lua não terá mais declínio, porque terás cons-
tantemente o Senhor por luz, e teus dias de luto estarão acabados.”
41 Nisto damos total razão a Grosseteste: a Escolástica foi muitíssimo além da concepção aris-
totélica de Deus como Primeiro Motor Imóvel. O Estagirita, apesar dos seus geniais vislumbres,
118 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

quorum essentiam non intelligimus, sicut multi homines sciunt ostende-


re firma ratione, quod intelligentiae sunt et quod Deus est, non tamen
intelligunt essentiam divinam vel incorporeitatem intelligentiarum, sed
ea sub phantasmatibus corporalibus quasi solem sub nube vident, et si se-
quantur phantasmata, multas proprietates corporales de non corporalibus
false affirmant et dicunt et existimant contraria illis, quae alias per discur-
sus rationis suae invenerunt. Consimile accidit Aristoteli et aliis, qui per
discursum rationis firmiter sciunt aeternitatem simplicem esse et tamen
ipsam aeternitatem simplicem perspicue non intellexerunt, sed sub phan-
tasmate extensionis temporalis quasi a longe speculantes eam viderunt et
sequentes ipsum phantasma extensionis temporalis multa inconvenientia
affirmaverunt, sicut de perpetuitate motus et temporis et per consequens
mundi. Et necesse fuit philosophos in hunc errorem incidere, cum mentis
aspectus vel intelligentia non possit superius ascendere, quam ascendunt
eius affectus, et ita, cum philosophorum affectus ligati erant plus cum
transitoriis quam cum aeternis, ipsorum apprehensiva in phantasmatibus
mutabilium detenta simplicitatem aeternitatis attingere non potuit.
Arguit autem magister Ricardus de Sancto Victore, quod tempus
non sit infinitum ex parte ante: hoc scilicet totum tempus usque nunc
Sobre a finitude do movimento e do tempo 119

da verdade de muitas coisas cuja essência não compreendemos, assim como


muitos homens sabem demonstrar, com argumentação segura, que existem
inteligências e que Deus existe, mas não compreendem a essência divina nem
a incorporeidade das inteligências, e vêem isso encoberto por fantasmas cor-
póreos, como o sol sob nuvens, e, se seguem fantasmas,42 afirmam falsamen-
te muitas propriedades corporais acerca de coisas não corpóreas, e dizem e
pensam coisas contrárias àquelas que, em outro momento, encontraram pelo
discurso da sua própria razão. Algo semelhante acontece com Aristóteles e
com outros que, pelo discurso da razão, sabem seguramente que a eternidade
é simples e, contudo, não compreenderam claramente essa mesma eternidade
simples, mas, sob o fantasma da extensão temporal, viram-na como que ob-
servando de longe, e seguindo o fantasma da extensão temporal, afirmaram
muitas coisas inconvenientes, tal como sobre a perpetuidade do movimento,
do tempo e (por conseguinte) do mundo. Ora, os filósofos tinham de incorrer
nesse erro, uma vez que o entendimento43 ou a visão [aspectus] da mente não
pode subir mais alto do que sobem seus afetos [affectus], e assim, como os afe-
tos dos filósofos estavam presos mais às coisas transitórias do que às eternas, a
sua capacidade apreensiva, detida nos fantasmas das coisas mutáveis, não pôde
alcançar a simplicidade da eternidade.44
O mestre Ricardo de São Vítor, no entanto, argumenta que o tempo não
é infinito quanto ao anterior, ou seja, todo o tempo até agora é passado, mas

passou longe de esgotar as considerações filosóficas acerca da absoluta simplicidade metafísica da


eternidade. [N. C.]
42 “Fantasma” na terminologia escolástica (derivada de Aristóteles) significa “imagem mental”.
“Fantasmas corpóreos” querem dizer, portanto, as imagens que formamos mentalmente a partir das
impressões deixadas pelos corpos (entes físicos) em nossa alma. Grosseteste está defendendo, aqui e
em outros lugares, que a intelecção de realidades tão elevadas como a eternidade exige uma mente
purificada – como a água, que só reflete o céu com perfeição quando livre de quaisquer perturbações
na superfície. Perceba-se, com isso, como, na visão de Grosseteste (e da maioria dos autores escolás-
ticos), a prática científica tinha de permanecer vinculada à vida contemplativa, sem a qual perderia o
seu principal influxo de inteligência. [N. E.]
43 O termo técnico aqui é “intelligentia”, que remete ao “nous” de Platão e Aristóteles e significa “in-
tuição (ou visão) intelectual”, indo muito além do que hoje entendemos por “inteligência” (geralmente
confundida com “dianóia” ou raciocínio, um nível abaixo na hierarquia epistemológica). [N. E.]
44 Diz Grosseteste em sua obra Hexameron (Os Seis Dias da Criação), Particula Prima, VIII, 4-6: “A
ilusão dos antigos em postular que não houve um começo no universo se deveu principalmente à falsa
imaginação que os levava a conceber que houve um tempo antes do tempo, assim como a imaginação
concebe um lugar para além de todo lugar e um espaço para além de todo espaço, e assim infinita-
mente. Este erro só pode ser evitado pela purificação das afecções mundanas, de maneira que o olho
da mente, liberto das fantasias, possa transcender o tempo e compreender a simples eternidade, a qual
não se estende no tempo, mas, pelo contrário, da qual procede todo e qualquer tempo.”
120 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

praeteritum est; sed quicquid est praeteritum, aliquando fuit praesens.


Ergo nihil temporis est praeteritum, quod non fuit praesens; ergo praesens
fuit, antequam aliquid esset praeteritum. Et ita praeteritum finitum est.
Consimiliter potest esse ratio de futuro; licet enim idem magister non
retorqueat ea ad futurum, probant etiam aliqui tempus finiri ex parte post
hoc modo: Omnia facta sunt propter hominem. Motus ergo caeli est, ut
per ipsum sit continua generatio et corruptio, in quantum hae mutationes
et aliae sunt homini adiumentum. Ergo cum non egebit homo his mu-
tationibus, non erit causa, quare caelum moveatur. Stabit ergo caelum et
finietur motus et tempus, cum cessabit hominum generatio.
Sobre a finitude do movimento e do tempo 121

tudo o que é passado foi alguma vez presente. Logo, nada no tempo é passado
que não fora presente; logo, algo foi presente antes que fosse passado. E, assim,
o passado é finito.
De modo semelhante é possível argumentar acerca do futuro: pois, embo-
ra aquele mestre não se refira ao futuro, alguns provam que o tempo é finito
quanto ao posterior da seguinte maneira: tudo foi criado por causa do ho-
mem; logo, o movimento do céu existe para que, por meio dele, haja contínua
geração e corrupção, na medida em que essas e outras mudanças auxiliam o
homem. Quando o homem, pois, não precisar mais dessas mudanças, não
haverá a causa pela qual o céu se move. O céu, portanto, ficará estável, e o
movimento e o tempo terão seu fim, quando cessar a geração humana.45

45 Grosseteste, além de cientista, foi teólogo, e nada mais congruente com a sua formação do que
encerrar este denso tratado acerca do movimento com uma pressuposição teológica: o movimento
dos céus cessará quando o homem não mais necessitar dele, sob nenhum aspecto, para viver. Em
suma, Grosseteste está a referir-se ao estado glorioso no qual os bem-aventurados não estarão sujeitos
a mutações de nenhuma natureza. [N. C.]
Posfácio

Um gigante do passado
e os anões do presente
SIDNEY SILVEIRA

A
concepção arquitetônica que os medievais tinham do saber contribuiu
sobremaneira para os grandes pensadores do período – quase sem ne-
nhuma exceção – serem polímatas. Roberto Grosseteste (1168?-1253)
não escapou a esta regra: notabilizou-se pela proficiência em diversas áreas do
conhecimento, como óptica, matemática, metafísica, direito, lógica, teologia,
geometria, medicina, física, oratória, astronomia, etc., sem jamais deixar de
lado as atividades eclesiásticas e acadêmicas que estiveram sob a sua responsa-
bilidade. Para dimensionarmos o labor intelectual de Grosseteste, a quem de
pleno direito cabe o nome de “cientista”, consideremos que alguns dos seus
importantes tratados foram escritos nos últimos dezoito anos de vida, ao lon-
go dos quais ele foi bispo de Lincoln, na Inglaterra, e principal expoente da
escola franciscana de Oxford.
Muito do que hoje se conhece como “metodologia de pesquisa científica”
se deve a insights saídos da pena de Grosseteste, cujo espírito detalhista nos le-
gou vários escritos importantes nesta área, como, por exemplo, trechos do seu
comentário aos Segundos Analíticos de Aristóteles – no qual gnosiologia e epis-
temologia integram-se numa teoria da ciência bastante singular, que, segundo
124 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

alguns autores, faz a transição entre platonismo e aristotelismo.i Nela, a separa-


ção entre a teologia e as demais ciências não é formaliter, mas sim materialiter,
ou seja: sem negar a supremacia do conhecimento de Deus sobre o das criaturas,
Grosseteste tem diante de si o fato científico propriamente humano, ou seja, a
circunstância de que, para nós, as regras da ciência versam sobre fenômenos que
sucedem com constância, subdivididos por ele em propria dicta scibilia e scibilia
ut frequentium.ii Seguindo de perto neste ponto a Aristóteles, o Lincolnense frisa
em diferentes obras que a verdade científica é uma generalização conceptual a
partir da experiência repetida.
Conforme destaca o físico Raphael De Paola na Apresentação ao volume que
o leitor tem em mãos, desgraçadamente Roberto Grosseteste e vários outros
cientistas medievais são ilustres desconhecidos para estudiosos contemporâneos
debruçados – com antolhos! – sobre os objetos de suas ciências particulares, os
quais compraram, de maneira acrítica, a idéia de que a Idade Média fora um
período de trevas. Basta-nos a leitura dos dois opúsculos aqui reunidos para
jogarmos por terra essa absurda tese, nascida de ódios multisseculares contra a
Igreja Católica, alvo preferido, ainda hoje, de homens de ciência que pontifi-
cam nas universidades, mundo afora.
Certo ecletismo epistemológico – pelo qual uma doutrina da iluminação
de sabor agostiniano se mescla aos procedimentos dedutivos da ciência – faz
de Grosseteste um precursor do nominalismo que surgiria no século XIV,iii
devido ao fato de que, em sua teoria do conhecimento, iluminação e dedução
têm fontes distintas inconciliáveis. Seja como for, a verdade é que acertam os
historiadores da ciência para os quais o Lincolnense é a fonte comum daquilo
que veio a ser conhecido no Ocidente como ciência experimental, por seu rigor
na observação dos fenômenos e conseqüente associação destes a princípios
universais. Para Alistair Cameron Crombie, por exemplo, a distinção feita
por Grosseteste entre ciência quia e ciência propter quid serviu de base para a
construção da moderna teoria da ciência.iv

i Cf. James McEvoy, “Man and Cosmos in the philosophy of Robert Grosseteste”, in Rev. Phil.
Louvain, 72, 1974.
ii Cf. Celina A. Lértora Mendoza, “Gnosiología y Teoria de la Ciencia em Roberto Grosseteste”,
in Revista española de filosofía medieval, 16, 2009, pp. 11-21, disponível em: <https://dialnet.unirioja.
es/descarga/articulo/3144512.pdf>.
iii Op. cit.
iv Cf. A. C. Crombie, “Robert Grosseteste on the Logic of Science”, in Actes du XIème Congrès Inter-
national de Philosophie, v. XII, Bruxelas, 1953, pp. 171-3. Veja-se: <https://www.pdcnet.org/scholar
pdf/show?id=wcp11_1953XII_0171_0173&pdfname=wcp11_1953XII_0171_0173.pdf&file_
type=pdf>.
Posfácio 125

A proposta metodológica de Grosseteste possui três pontos a partir dos


quais se pode identificar uma viragem na história da ciência:
• Uma sólida teoria da indução científica;
• A construção de um sistema de verificação experimental;
• A matematização dos resultados da física.v
Como se vê, o que hoje se conhece por física matemática vi tem a sua fonte
longínqua em Roberto Grosseteste, cujo rigor lógico e metodológico é real-
mente notável, a ponto de nos perguntarmos como foi possível que, a partir
do Renascimento, se enraizasse um preconceito capaz de jogar para debaixo
do tapete a história de grande parte da Escolástica, como se esta nada tivesse a
acrescentar àquilo que hoje conhecemos como ciência.
Em Oxford, Grosseteste palestrou durante anos sobre a Sagrada Escritura,
envolveu-se em questões disputadas acerca de temas teológicos diversos e pre-
gou sermões universitários que marcaram época. Por volta de 1239, empregou
os seus conhecimentos de grego para patrocinar intelectualmente a tradução
para o latim das obras de São João Damasceno, além de todo o corpus das
obras do Pseudo-Dionísio Areopagita, empreendimento este de que se valeria
Santo Tomás de Aquino para escrever algumas de suas obras-primas, anos
depois. Consta que Grosseteste também foi responsável pela tradução do apó-
crifo Testamento dos Doze Patriarcas, o qual ele acreditava ser uma “prova” de
que Jesus era o Messias prometido.vii
Boa parte da produção científica de Grosseteste continua sem tradução
para línguas vernáculas – e isto não deixa de ser o signo de um tempo sombrio
que olha o passado com indefensável desprezo. Não erraria, pois, quem disses-
se o seguinte: em grande parte, a ciência contemporânea é fruto do trabalho
de anões incapazes de ver os gigantes sobre cujos ombros subiram e a quem
devem tanto. Trata-se de homens de talento, em muitos casos, porém cegos à
tradição que, consciente ou inconscientemente, renegam.
Um dos objetivos da Coleção Escolástica é colocar o dedo nesta ferida.

v Cf. Celina A. Lértora Mendoza, op. cit.


vi Optamos por grafar física matemática, em lugar de física-matemática (com hífen), porque o termo
“matemática” se refere aqui a uma qualidade da física contemporânea, em suas mais variadas vertentes,
e não à matemática como ciência autônoma — de grau superior de abstração relativamente à física.
vii Para esta e outras informações sobre a vida de Grosseteste, indicamos Richard William Sou-
thern, Robert Grosseteste: The Growth of an English Mind in Medieval Europe, Oxford, Clarendon
Press, 1986.
Bibliografia citada

A. C. Crombie, “Robert Grosseteste on “Gnosiología y Teoria de la Ciencia em


the Logic of Science”, in Actes du XIème Roberto Grosseteste”, in Revista española
Congrès International de Philosophie, v. de filosofía medieval, 16, 2009, pp. 11-21.
XII, Bruxelas, 1953, pp. 171-3.
Giovanni Reale, Para uma nova inter-
Aristóteles pretação de Platão, São Paulo, Edições
Loyola, 1997.
Física
James McEvoy, “Man and Cosmos in
Tratado sobre o Céu
the philosophy of Robert Grosseteste”,
Basílio de Cesaréia, Hexaemeron (PG in Rev. Phil. Louvain, 72, 1974.
29, 1-208).
Plotino, Enneads, Loeb Classical
Celina A. L. Mendonza Library, 7 vols., Cambridge, Harvard
University Press, 1966-1988.
“El comentario de Roberto Gros-
seteste al libro VII de la ‘Física’ de Sebastián R. C. Sierra, Plotino y Gros-
Aristóteles”, in Anales del Seminario seteste: el neoplatonismo en la cosmología
de Historia de la Filosofía, 2004, 21, medieval, Tese de mestrado, Universidad
71-88. del Rosario Estado, 2013.
“La infinitud del número según Roberto Tomás de Aquino, Scriptum super
Grosseteste”, in Naturaleza y Gracia, 40, Sententiis.
1993, 171-24.
Roberti Lincolniensis
episcopi Opera Omnia

Comentários De cessatione legalium


Commentaria in libros posteriorum De decem mandatis
Aristotelis Hexæmeron
Summa super octo libros physicorum Dicta
Aristotelis
Obras científicas
Filosofia e Teologia Libellus de phisicis lineis angulis et figuris per
De potentia et actu quas omnes actiones naturales complentur
De statu causarum De sphaera (Sphaerae compendium)
De subsistentia rei Compotus correctorius
De veritate propositionis De artibus liberalibus
De libero arbitrio De generatione sonorum
De veritate De calore solis
De unica forma omnium De generatione stellarum
De intelligentiis De colore
De ordine emanandi causatorum a Deo De impressionibus elementorum
De scientia Dei De motu corporali
130 Roberto Grosseteste · A luz, o tempo e o movimento

De finitate motus et temporis De differentiis localibus


De lineis, angulis et figuris De cometis
De natura locorum De impressionibus aëris
De luce De iride
De motu supercaelestium
Esta obra foi composta em Adobe Garamond Pro e
impressa pela Gráfica Pallotti em offset sobre papel Pólen
Soft 80g para a Editora Concreta em dezembro de 2016.

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