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A Importância dos Aspectos Éticos e

atualização Psicológicos na Abordagem do Intersexo

Angela Maria Spinola-Castro RESUMO

A história das condutas na intersexualidade passou por diferentes períodos ao


longo do tempo, sendo o mais importante a era cirúrgica. A condição de ser
homem ou mulher era considerada como não sendo inata, mas “apreendida”
e sujeita a influências culturais e ambientais. Assim, a conduta preferencial e sis-
temática era pela criação no sexo feminino, posto que do ponto de vista cirúr-
gico, seria mais fácil construir uma vagina do que um pênis com funcionalidade
sexual futura. Na década de 90, vários outros aspectos começaram a ser con-
siderados, como as questões éticas, ficando evidente a importância da
exposição fetal aos andrógenos, os fatores ambientais, culturais e, mais recen-
temente, do cérebro como órgão endócrino. Passou-se a tentar entender a
existência de um amplo espectro entre as identidades masculina e feminina,
assim como em relação à forma como o indivíduo conduz seu comporta-
mento sexual na sociedade. Ainda discute-se o aspecto cirúrgico, no sentido de
determinar qual o momento ideal para realizar os procedimentos necessários à
adequação de acordo com o gênero, e quais os principais aspectos éticos
envolvidos. Atualmente, vive-se em um momento mais complexo, onde, trabal-
hando em equipes multidisciplinares com as famílias, busca-se oferecer uma
orientação psicossocial adequada para os pacientes com intersexualidade
orgânica, mas ainda não se sabe, com segurança, como atingir esse objetivo.
(Arq Bras Endocrinol Metab 2005;49/1:46-59)

Descritores: Desenvolvimento psicossexual; Diferenciação sexual; Gênero; Her-


mafroditismo; Intersexo

ABSTRACT

Importance of Ethical and Psychological Features in the Intersex


Management.
Setor de Endocrinologia Pediátrica The treatment of intersex disorders has passed through different historical periods. The
e do Adolescente, Disciplina de most important was the age of surgery, during which the dominant concept was that
at birth the brain would be adaptable, psychosexually neutral and gender identity the
Especialidades Pediátricas do
result of educational and social processes. Thus, the preferred and systematic treat-
Departamento de Pediatria da ment was towards female assignment because from the surgical point of view it was
Universidade Federal de São technically more feasible the construction of a vagina than a penis with future normal
Paulo, SP. function. During the 90’s various other aspects began to be considered, mainly ethical
questions. It became evident the importance of prenatal exposition to androgens, the
various environmental and cultural factors related to sexuality and more recently the
recognition of the brain as an endocrine organ. It is now quite clear the existence of a
wide spectrum of sexual identities as well as the different ways individuals conduct their
social sexual behavior. Surgical procedures are still discussed, especially with the pur-
pose to determine the best moment to be performed and in the context of some eth-
ical aspects involved. Today the moment is more complex. The work is done with fam-
ilies by multidisciplinary teams in order to offer a more adequate psychosocial orien-
tation to intersex patients, but all the steps on how to achieve those aims are not known
yet. (Arq Bras Endocrinol Metab 2005;49/1:46-59)

Keywords: Gender; Hermaphroditism; Intersex; Psychosexual develop-


Recebido em 15/11/04 ment; Sex differentiation
Aceito em 20/11/04

46 Arq Bras Endocrinol Metab vol 49 nº 1 Fevereiro 2005


Intersexo: Aspectos Éticos e Psicológicos
Spinola-Castro

O PEDIATRA ENDOCRINOLOGISTA é chamado ao ber-


çário para avaliar um recém-nascido (RN) com
eminências labioescrotais parcialmente fundidas, gôna-
tasias de medo e questionamentos pessoais, que inter-
ferem no processo de decisão, assim como repercutem
em todo o processo de desenvolvimento, adaptação e
das não palpáveis, presença de seio urogenital, com um aceitação da criança nas diferentes etapas da vida.
falo pouco desenvolvido, hipospadia penoescrotal e Intersexo, de acordo com qualquer dicionário,
testosterona em níveis aparentemente apropriados para é aquele com características de ambos os sexos. Na
um RN. Conversa com os pais, faz as primeiras orien- concepção de todos, em especial na cultura ocidental
tações, explica que o sexo da criança não pode ser moderna, a noção do que se constituem os padrões
reconhecido apenas pelo aspecto externo dos genitais e de um homem e de uma mulher devem estar bem
que outros exames devem ser realizados, e somente estabelecidas, muito embora os comportamentos se-
após esses procedimentos será realizado o registro. Por- xuais tenham sofrido mudanças importantes nos últi-
tanto, a resposta à pergunta “Menino ou Menina?” mos 30 anos.
deve ser deixada para um segundo momento. Assim, quais as características a serem avaliadas
Todas as vezes que essa pergunta é feita e não na tentativa de definir o sexo de um RN: físicas,
pode ser prontamente respondida, ou seja, quando genéticas, hormonais?
não é possível a identificação do sexo pela simples visua- Do ponto de vista médico, são utilizados os
lização dos genitais externos, estamos perante uma seguintes aspectos para a definição orgânica do sexo:
emergência médica e social. Por exemplo, nesse genético/molecular, fenotípico, composto pelo sexo
momento, se o cariótipo fosse 46,XY ou 46,XX/46,XY, gonadal e sua potencialidade hormonal e gametogênica,
com apenas uma gônada palpável e níveis de testos- e os componentes dos genitais internos e externos, com
terona presentes, porém inferiores aos esperados para o objetivo de entender-se a fisiopatologia do processo
um RN, a solução seria mais simples? E se a criança e, portanto, tentar uma aproximação do que consti-
com cariótipo 46,XY apresentasse somente micropê- tuiria a base para um sexo de criação que permitiria um
nis? Em todas essas circunstâncias não existem condu- desenvolvimento mais apropriado e saudável (1).
tas simplistas ou que não dependam de uma avaliação E quanto ao sexo psicológico? Segundo os
mais criteriosa. critérios mencionados, podemos designar o sexo orgâ-
É evidente quão crítico é esse momento na vida nico de um paciente mas essa decisão, embora funda-
da criança e da família, e uma grande responsabilidade mental para o estabelecimento da identidade dessa cri-
para aqueles cujo objetivo é encontrar a melhor ança, não implica em qual será o seu sexo psicológico
resposta para essa pergunta. ou psicossocial. Existem vários fatores que podem
O que dizer aos pais? Provavelmente, eles irão influenciar o desenvolvimento dessas identidades;
ouvir muitas opiniões e receber “muitos e diversos entre esses, a visão dos pais sobre a criança que nasceu
conselhos”, assim como terão percebido a reação da e também todas as modificações causadas durante a
equipe que os assiste diante dessa situação. Uma das puberdade, em especial as hormonais e psicológicas.
impressões que permanece muito viva na memória das Frente ao imperativo de se estabelecer um sexo
famílias é a de que a criança “não tem” um sexo, ou de criação para qualquer RN, torna-se uma questão
que nasceu com “dois sexos”. importante saber, naqueles indivíduos com interse-
O nascimento de uma criança é sempre cercado xualidade orgânica, em qual sexo devem ser criados.
por uma grande expectativa, por projetos e perspecti- Apesar dos avanços, ainda não se conhecem todos os
vas. Esse é um momento difícil para os pais ou fami- mecanismos que determinam e/ou influenciam na for-
liares lidarem com perdas ou deficiências, pois embora mação da identidade e do comportamento (papel) se-
todos tenham conhecimento de que essas coisas po- xual. Tão pouco se pode determinar o quanto o ambien-
dem ocorrer, nunca se está preparado. Todos sonham te modifica ou influencia o reconhecimento de gênero
com filhos perfeitos. que os indivíduos em geral, e em particular aqueles com
Além disso, quando nasce uma criança, a impos- genitais ambíguos, fazem de si mesmos. Muito menos
sibilidade de saber de imediato o sexo, a necessidade podemos antever quais serão suas escolhas sexuais.
de vários exames, o tempo para a realização do diag- Há 20 anos atrás, provavelmente todos os
nóstico, as expectativas do grupo de convívio (amigos, endocrinologistas consultados não teriam dúvidas em
parentes), a angústia de não poder dizer se nasceu um orientar as crianças como as apresentadas no início
menino ou uma menina atinge os pais e familiares de desse artigo a serem criadas no sexo feminino. Os con-
uma forma muito contundente. Essa é uma situação ceitos em relação a esse processo têm passado por
com implicações legais e sociais, que cria inúmeras fan- modificações, principalmente relacionadas com o

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grande progresso do conhecimento biológico e médi- No final do século XIX, os médicos estavam muito
co, através da descoberta de novos genes envolvidos na preocupados com as chamadas “identidades político-
diferenciação sexual, da influência dos hormônios na sociais”, especialmente na França e Inglaterra. O
formação cerebral da identidade etc. Nenhuma número de homossexuais aumentava e uma minoria de
evolução na maneira como a intersexualidade é vista mulheres brigava por igualdade de direitos diante das
hoje, ou melhor, como o paciente com intersexo é leis, nas profissões e nas universidades. Em paralelo,
entendido, teria sido considerada possível sem terem vários casos de hermafroditismo começaram a ser diag-
ocorrido as mudanças de costumes, que introduziram nosticados e publicados, provavelmente devido à maior
conceitos mais tolerantes e maior ênfase na liberdade freqüência da procura por orientação médica e pelo
individual de escolha. Também contribuiu a experiên- começo da ginecologia como especialidade. Inicia-se a
cia revelada por vários indivíduos nascidos com inter- discussão sobre o papel e a identidade sexual (4).
sexualidade que hoje, na maturidade, relatam diversas Em 1896, durante a chamada era vitoriana, bus-
experiências relacionadas ao seu desenvolvimento. A cavam-se critérios estáveis e sem interfaces para definir
comunidade médica também evoluiu, associando-se a o sexo, quando então surgiu uma solução proposta por
profissionais de outras áreas, reviu pacientes e con- dois médicos ingleses, Blacker e Lawrence, que em
ceitos, acompanhou a evolução do conhecimento conjunto com pesquisadores americanos e europeus
sobre os fatores relacionados com comportamento concordaram com a idéia de que a natureza anatômica
humano e aos poucos vêm modificando a sua postura das gônadas deveria determinar o “sexo verdadeiro”
frente a circunstâncias tão peculiares. do indivíduo. Não importava a função dos tecidos,
Nesse artigo abordaremos a intersexualidade ovariano ou testicular, o aspecto do genital, o tamanho
orgânica sob o aspecto histórico, os aspectos psi- do pênis, a presença de vagina ou de mamas, a aparên-
cológicos e as controvérsias do tratamento, comple- cia ou o papel sexual. Na presença de ovários, o indi-
mentando com alguns dos aspectos éticos envolvidos. víduo deveria ser considerado mulher (pseudo-her-
mafroditismo feminino) e na presença dos testículos,
A História da Intersexualidade homem (pseudo-hermafroditismo masculino). Essa foi
O hermafroditismo ocupa um espaço muito impor- chamada de definição gonadal do sexo, que era bastante
tante na cultura greco-romana, fazendo parte da simples, determinando o feminino ou masculino ape-
história e principalmente da arte, através da qual os nas com base na presença de ovários ou testículos. As
mitos relacionados estão plenamente representados em mulheres com testículos tinham seu “problema”
esculturas, jóias e amuletos. Seu significado nesse resolvido pela remoção dos mesmos e uma vez estabe-
tempo é muito discutido, mas não se sabe se realmente lecido o sexo considerava-se o caso resolvido (4).
representam a intersexualidade como nós a entendemos, Com o avanço do conhecimento e da tecnolo-
ou se era apenas o símbolo da conjunção de um gia, a realização de biópsias tornou possível descobrir
homem e uma mulher no deus “Hermaphroditus”, a existência de hermafroditas verdadeiros, e começou a
uma divindade híbrida, filho de Hermes e Afrodite, ser questionado o significado social em denominar
conhecido pela sua extrema beleza. Diz o mito que aos pessoas como hermafroditas ou, uma mulher aparente-
15 anos ele preteriu a Ninfa Salmácia, que por vin- mente “perfeita” e bonita, como “homem”, baseando-
gança o enlaçou fortemente dentro de uma fonte, se apenas na presença de testículos. A partir desses
pedindo aos deuses para jamais separá-los, e os dois questionamentos, a definição gonadal do sexo
corpos se fundiram em um só, de dupla natureza (2). começou a ser reavaliada.
Na Grécia antiga, os intersexos eram reverencia- William Blair Bell, em 1915, argumentou que a
dos e mortos enquanto os romanos, ao contrário dos partir do momento onde foi possível demonstrar que
gregos, não eram ambivalentes e matavam a todos. Na os atributos físicos do sexo não eram obrigatoriamente
idade média, essa questão é raramente mencionada, a dependentes das gônadas, cada caso deveria ser con-
não ser como uma possível forma de punição divina ou siderado como um todo, ou seja, o sexo deveria ser
como seres enviados pelo diabo. Durante o período da determinado pelas características mais óbvias e pre-
Renascença, os europeus viam os intersexos como dominantes do indivíduo e não isoladamente, apenas
curiosidades ou erros da natureza. A perda da cono- pela presença de glândulas sexuais não funcionantes.
tação religiosa preparou as condições para o estudo sis- Apesar dessa aparente revolução com o abandono do
temático dos estados intersexuais (2,3). conceito de definição gonadal do sexo, dois aspectos
permaneceram inalterados: o objetivo de manter bem
A era das gônadas definidas em cada indivíduo e na sociedade como um

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todo as divisões entre os dois sexos, e o conceito de perfeitamente adaptados ao gênero designado ao
que cada corpo teria apenas um único sexo, indepen- nascimento (5,6,8).
dente dos órgãos sexuais. A partir desses conceitos, a criação ou o ambien-
Recomendava-se aos médicos que diagnosticas- te (nurture) passou a ser considerado como sendo a
sem um único sexo nos organismos anômalos e que principal influência na determinação da identidade de
ajudassem a eliminar as características incompatíveis gênero, enquanto a filosofia vitoriana entendia essa
com o sexo diagnosticado. A partir de 1920, iniciou- identidade como um produto da natureza (nature).
se a caminhada em direção à era cirúrgica. Embora opostas, ambas as concepções têm um funda-
mento semelhante: consideram o médico como o
A era cirúrgica agente determinante da identidade sexual e o corpo do
Durante esta fase, o sexo seria estabelecido pelo clíni- paciente como sendo a chave dessa decisão (4,5,7,8).
co e construído pelo cirurgião. Essa orientação persis- Dessa forma, ficou estabelecido que, para per-
tiu até recentemente, sendo reconhecida durante mitir à criança com ambigüidade genital o desenvolvi-
muitos anos, principalmente a partir dos trabalhos de mento de uma identidade de gênero estável e, conse-
John Money e colaboradores, da Universidade Johns qüentemente, ser mentalmente saudável e feliz, seria
Hopkins, como a conduta ideal para a orientação do necessário “corrigir” a aparência do seu genital (4,5,7).
paciente com ambigüidade genital (4-6). A partir do entendimento de que a etiologia da
ambigüidade genital não poderia interferir com a for-
As teorias de John Money: Gênero e Neutrali- mação da identidade ou com a designação do gênero,
dade Sexual o principal objetivo na resolução dos casos, sempre
Antes de 1955, a palavra “gênero” restringia-se quase que possível, era satisfazer a uma das seguintes possi-
exclusivamente ao domínio gramatical para indicar bilidades: o indivíduo manter relações sexuais e/ou
feminino ou masculino na definição dos substantivos, reproduzir-se na vida adulta. Embora a designação
pronomes e adjetivos. No artigo ‘Hermaphroditism, quanto ao gênero considerasse inicialmente os critérios
gender and precocity in hyperadrenocorticism: psycholog- bioquímicos e anatômicos, a avaliação do potencial
ical findings’ publicado no “Bulletin of the Johns Hop- existente para uma reconstrução cirúrgica tornou-se o
kins Hospital” em 1955, Money conceituou pela principal determinante da decisão final (3,4,6,7).
primeira vez o que denominou de “papel de gênero” A partir dessa época, a ambigüidade genital
(gender role), como sendo o conjunto de sentimentos, começou a ser tratada como uma emergência médica.
assertivas, atitudes e comportamentos a partir dos Criou-se o consenso de que a resolução dos casos e a
quais se reconhece o indivíduo como sendo menino, decisão quanto ao sexo de criação, sob responsabili-
menina, homem ou mulher. Esse reconhecimento dade de um grupo multiprofissional (urologista,
independeria das conclusões obtidas pela análise isola- endocrinologista pediátrico, geneticista e psicólogo),
da das gônadas. Money, a partir da demonstração de seria obrigatoriamente sempre muito rápida e sem a
que o comportamento e a orientação sexual estavam participação dos pais ou familiares (4,5,8-10). Todos
em desacordo com o gênero designado em apenas 5 os esforços estariam direcionados para criar como
pacientes (5/105) entre os avaliados nesse trabalho, menino ou menina uma criança fisicamente adequada
concluiu que nos indivíduos com intersexualidade, ao gênero designado, com o objetivo final de se obter
esses parâmetros (gênero e sexo de criação) poderiam indivíduos bem ajustados, heterossexuais, com aderên-
ser considerados mais sensíveis e confiáveis para prever cia ao tratamento hormonal, com uma boa relação
o futuro comportamento e a identidade (de gênero) familiar e que, preferencialmente, ignorassem sua
do que as variáveis estritamente biológicas: sexo cro- condição anterior de intersexo. Toda a orientação teria
mossômico, hormonal, estruturas internas e a mor- por princípio evitar possíveis confusões psicológicas ou
fologia do genital externo (6,8). qualquer ambigüidade por parte dos pais, principal-
Um outro conceito introduzido por Money foi mente na fase considerada crítica para a formação da
o de que todas as crianças nascem com uma neutrali- identidade de gênero do paciente. Nesse sentido, as
dade psicossexual, o que permitiria designá-las em discussões sobre intersexualidade deveriam ser limi-
qualquer gênero, desde que a anatomia do genital tadas, sem muitos detalhes ou informações, pre-
conferisse credibilidade à conduta a ser indicada. Essa conizando-se o uso de termos genéricos para evitar cria-
teoria baseou-se na comprovação de que diversos rem-se dúvidas quanto ao sexo estabelecido. A família
pacientes adultos, criados em oposição às variáveis era orientada para não discutir com a criança a sua
biológicas e independente do aspecto genital, estariam condição, e os profissionais responsáveis por esses

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pacientes eram, por sua vez, orientados a sempre Outros depoimentos sinalizam a atitude médica
reforçar junto à família a adequação do gênero estabe- e a falta de comunicação entre as principais causas das
lecido pelo corpo médico (3,7,10). dificuldades enfrentadas (10,11). A intervenção cirúr-
Money recomendava também que nos casos gica feita com o objetivo de adequar o aspecto do ge-
com incerteza em relação à designação do sexo, a nital ao gênero designado também é um aspecto muito
decisão final não deveria ultrapassar o período dos 18 discutido (10,11).
aos 24 meses, considerado crítico para a formação da O pensamento dominante passou a ser duramen-
identidade de gênero, sob pena de favorecer o desen- te questionado, à luz da experiência de muitos anos no
volvimento de uma identidade ambígua (6,8). trato da intersexualidade, e durante os anos 90 várias
A conduta a ser seguida designava o sexo femi- discussões tiveram lugar e iniciou-se uma caminhada na
nino tanto para as crianças nascidas com ambigüidade direção de uma fase de revisões de conceitos e de con-
genital e ausência do cromossomo Y, como para aque- dutas, pautadas pela experiência, pelo equilíbrio e con-
las com sexo genético masculino e cujo falo apresen- senso, e que serão apresentadas nesse artigo (3,4,10,11).
tasse comprimento inferior a 2,5cm, ou sem a possi-
bilidade de se desenvolver como pênis. O aspecto femi- Identidade de Gênero
nino seria obtido através de cirurgia e tratamento hor-
monal, o que permitiria o desenvolvimento de mamas. Sexo e gênero
Na presença de ovário e útero, a fertilidade seria a con- Esses termos não têm, do ponto de vista médico e con-
sideração mais importante e também estaria indicada a ceitual, o mesmo significado, embora com freqüência
criação como menina (3,7,11). sejam usados como sinônimos. Sexo deve ser entendi-
A conduta estabelecida para pacientes com do como sendo a representação das características físi-
ambigüidade genital a partir dos conceitos formulados cas do indivíduo, enquanto gênero representa a iden-
por Money orientou inúmeros profissionais e foi con- tificação psicossocial e emocional (6,8).
siderada eficiente e não questionável por 40 anos, O sexo é definido pelas gônadas, pelo fenótipo
fazendo ainda parte de diversos textos médicos ou genótipo e normalmente é reconhecido e estabele-
(7,8,10). Ainda não se tem clareza sobre as razões cido ao nascimento, com base na observação do geni-
pelas quais essas condutas permaneceram inalteradas tal externo. Essa é a avaliação que irá determinar o sexo
por tanto tempo, apesar da grande evolução do conhe- de criação. Portanto, o sexo de criação refere-se à iden-
cimento sobre os mecanismos da determinação e dife- tificação ou interpretação que os pais fazem do sexo da
renciação do sexo, das inúmeras dúvidas surgidas criança nos primeiros dias do nascimento. A partir daí,
frente à resolução dos casos, e das mudanças sociais em seguem os preceitos culturais, geralmente incorpora-
relação ao comportamento sexual dos indivíduos (4). dos pela criança sob a forma de comportamentos típi-
Na década de 90, começaram a ser ouvidos e a cos ou característicos de um ou outro sexo (7).
prestar depoimentos sobre a sua condição, os indiví- O conceito de gênero está subdividido em
duos que nasceram com intersexualidade e foram “papel de gênero” (gender role), já definido anterior-
tratados de acordo com os conceitos estabelecidos na mente e “identidade de gênero” (gender identity), que
“era cirúrgica”. A partir dai, inúmeras críticas foram se é o primeiro componente da diferenciação sexual com-
acumulando, sejam provenientes de trabalhos científi- portamental, definida como um sistema complexo de
cos, seja dos eticistas, clínicos e da própria comunidade crenças, percepções ou sentimentos do indivíduo a
dos indivíduos afetados (7,9). respeito de si mesmo: a percepção da sua própria mas-
Possivelmente o caso com maior repercussão no culinidade, feminilidade ou intersexualidade. O termo
meio científico tenha sido o de “John/Joan” um me- orientação sexual refere-se às respostas sexuais do indi-
nino XY, gemelar, atendido na pediatria do Hospital víduo frente a um outro indivíduo, sendo que sua
Johns Hopkins aos 8 meses de idade, que após sofrer dimensão mais evidente é manifesta pelo sexo do par-
uma lesão peniana grave durante uma circuncisão, foi ceiro escolhido. A orientação sexual construída deve
operado e teve seu sexo de criação modificado para o ser diferenciada da identidade sexual, que se refere ao
sexo feminino (7,9). Permaneceu nesse gênero, auto-reconhecimento como heterossexual, homosse-
enfrentando problemas sérios de identidade até os 14 xual ou bissexual (6,8). Embora freqüentemente com-
anos de idade, quando optou para a reversão para a con- patíveis, a identidade e a orientação sexuais podem
dição masculina. Seu depoimento foi publicado como algumas vezes não coincidir. O termo identidade se-
livro e teve um efeito muito importante para a orien- xual é às vezes utilizado por alguns pesquisadores para
tação de outros pacientes com intersexualidade (9). expressar a identidade de gênero (7,12,13).

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É importante destacar que o sexo de registro Durante décadas os psiquiatras acreditaram que
não é sinônimo do sexo, de gênero ou do sexo desig- a identidade de gênero forma-se entre 2 e 3 anos de
nado à criança, sendo a identidade de gênero algumas idade e atualmente existem evidências de que crianças
vezes distinta daquela do registro civil. com menos de 12 meses de idade são capazes de dis-
criminar homens e mulheres, tendo como base os
Determinantes da identidade de gênero cabelos, o tom da voz, provavelmente sem terem a
A partir das controvérsias geradas ao longo do tempo, consciência ou o entendimento dessa diferenciação. A
corroboradas pelas dificuldades enfrentadas por alguns partir dos 3 anos as crianças já se identificam como
pacientes com intersexo que sofreram algum tipo de meninos ou meninas, mas não está claro o quanto ela
correção para compatibilizar o sexo biológico ao psi- baseia-se no aspecto de seu próprio genital para fazer
cológico e social, tornou-se mais evidente o quanto a esse julgamento. Alguns argumentam que nessa fase as
diferenciação comportamental do sexo é muito mais comparações utilizam outros marcadores (roupas,
complexa e enigmática do que a diferenciação gonadal cabelo), e apenas mais tarde o genital externo seria
e genital (12,13). usado para rotular a si mesmo e aos outros (7,15,16).
A definição do gênero é obviamente mais com- Durante a infância, a identidade de gênero per-
plexa do que a simples determinação legal do sexo manece em um estágio incompleto, sendo que é nessa
(registro civil), e isoladamente o ambiente não é capaz fase que os pais condicionam os comportamentos ou
de causar mudanças na identidade dos indivíduos, ou papéis de gênero através de suas atitudes, que
tão pouco influenciar os comportamentos e as trans- divergem com o sexo dos filhos: as meninas são mais
formações idealizadas (4,7). tocadas e acarinhadas, enquanto os meninos são mais
A identidade de gênero é um sentimento, um incentivados a jogos com bolas e brincadeiras mais
estado subjetivo, e que não está diretamente relaciona- competitivas. Considera-se que essas atitudes
do à condição do indivíduo ser de fato homem ou parentais, assim como a oportunidade de experimentar
mulher (7). Alguns pacientes com intersexualidade or- (ou não) atividades estereotipadas de acordo com o
gânica, criados como meninas pelo aspecto do genital sexo, sejam as influências ambientais mais importantes
externo, têm modificado seu comportamento durante no desenvolvimento das identidades.
a puberdade. Conseqüentemente, tem sido revisto o As preferências pelos colegas do mesmo sexo já
conceito segundo o qual essa identidade seria formada se manifestam entre 3 e 4 anos e o papel correspon-
a partir da internalização de parâmetros sociais, condi- dente ao gênero é definido melhor nas interações, nos
ção legal, interações e experiências pessoais (4,7,13). brinquedos e nas atividades. A identidade de gênero
Alguns pesquisadores acreditam que o início do formada durante a infância e fase escolar é reforçada
desenvolvimento da identidade de gênero ocorra na pelos iguais, pela escola, que serve como um modelo
vida intra-uterina, a partir de estímulos hormonais pro- importante, e pelas mudanças físicas que confirmam as
duzidos de acordo com o sexo genético (ou gonadal) imagens internas (7).
e, portanto, segundo um dimorfismo sexual estabele- Ainda não está adequadamente estabelecido o
cido organicamente. Áreas do corpo caloso, amídala, quanto é possível haver uma plasticidade no estabele-
cerebelo e porções da região pré-óptica são maiores cimento da identidade de gênero ou o quanto essa é
nos cérebros expostos à testosterona. A impregnação uma característica inata. Ainda não se sabe ao certo
hormonal estabelece uma identidade rudimentar em qual (ou se realmente existe) o limite de idade a partir
todos os RN, que posteriormente será um fator impor- do qual não podem mais ocorrer modificações, mas
tante na determinação do gênero do indivíduo. Varia- acredita-se que a partir dos 6 anos já exista uma cons-
ções no ambiente fetal, decorrentes de fatores tância no gênero estabelecido. No entanto, uma iden-
endógenos ou exógenos, podem induzir a uma pro- tidade de gênero estável só é atingida na vida adulta,
dução hormonal discrepante do padrão geneticamente sendo expressa de forma mais clara e perceptível no
determinado e influenciar na identidade de gênero contexto da identidade sexual, que nem sempre corres-
(12). Por outro lado, a identidade de gênero também ponde à identidade desenvolvida durante a infância.
pode sofrer influências do ambiente, pois quando a Os dados sugerem que mudanças de gênero após esse
família tem conhecimento antes do nascimento (pelo período são muito difíceis, pois implicam em um
ultra-som) do sexo biológico do feto, cria-se natural- processo de desaprender o gênero original e aprender
mente uma idéia pré-formada das suas prováveis um novo. Portanto, é importante ressaltar as dificul-
preferências: estabelecendo-se expectativas, planos, dades decorrentes de uma situação de mudança do
reações, roupas, brinquedos etc (17). sexo com o qual a criança possivelmente já esteja iden-

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tificada (7,13). trato urogenital ou ambos). Também não está deter-


A sexualidade humana tem vários outros com- minado qual o andrógeno que tem o papel mais
ponentes, como o erotismo, a libido, entre outros, importante, a testosterona ou a dihidrotestosterona,
cujos mecanismos ainda não são totalmente entendi- mas sabe-se que essa ação não resulta da conversão
dos, mas essa discussão, embora importante, fica periférica da testosterona a estrógeno, diferentemente
além dos objetivos desse artigo; porem é preciso do que acontece em animais. Homens com alterações
ressaltar que estes aspectos também devem ser leva- no receptor de estrógeno não têm comprometimento
dos em consideração no paciente com intersexuali- da identidade masculina (15).
dade orgânica (6,7). É inegável a importância da ação androgênica
no estabelecimento do comportamento masculino e as
Fatores hormonais evidências reforçam a possibilidade de uma influência
Várias pesquisas têm mostrado efeitos significativos também no estabelecimento na identidade de gênero,
dos hormônios sexuais pré e peri-natais na diferenciação às vezes em desacordo com o sexo genético ou
sexual do cérebro de animais e também em humanos, endócrino. No entanto, o andrógeno não é o único
influenciando os comportamentos sexualmente rela- determinante desse comportamento e sem dúvida ou-
cionados, tais como brincadeiras, escolha dos par- tros fatores, entre os quais os sociais, psicológicos e
ceiros, comportamento com os pais, a percepção espa- biológicos, têm um papel semelhante ou talvez até
cial. Está bem estabelecido que os dimorfismos sejam tão importantes quanto na modulação dos com-
somáticos, cerebrais e do comportamento são resul- portamentos (12).
tantes dos hormônios produzidos após a diferenciação
das gônadas, e esses possivelmente influenciam tam- Sexo cerebral
bém o desenvolvimento do papel de gênero (14,15). Houve uma época em que, de acordo com a visão
No entanto, a maioria dos estudos sobre os mecanis- antropocêntrica prevalente, os humanos, diferente-
mos que controlam o estabelecimento da identidade mente dos animais, teriam sido emancipados dos con-
ou do papel de gênero recebe muitas críticas, por troles biológicos, que, dessa forma, não poderiam
terem sido feitos em indivíduos com distúrbios influenciar o seu comportamento. No entanto,
endócrinos e/ou com anormalidades no desenvolvi- pesquisas recentes vão muito mais longe, tentando
mento sexual, o que poderia dificultar a interpretação determinar se o cérebro pode atuar como um órgão
de alguns dados e interferir nos resultados obtidos. endócrino e até mesmo sexual e se determinadas áreas,
A mudança da identidade de gênero já foi ou até mesmo a produção de determinados hor-
descrita em algumas pacientes com intersexo que sofre- mônios, poderiam ser possíveis marcadores da identi-
ram exposição a andrógenos no período pré-natal. A dade sexual. Um núcleo responsável pelo dimorfismo
importância dos hormônios é valorizada a partir do sexual, com atividade durante uma fase muito precoce
estudo de patologias bem conhecidas, como a defi- do desenvolvimento, foi recentemente identificado em
ciência da 5α-redutase e da 17β-hidroxiesteróide transexuais, e o seu volume foi associado às questões
desidrogenase, nas quais a reversão sexual femini- do gênero desejado, independente dos cromossomos
no/masculino é muito freqüente no período da puber- sexuais ou da orientação sexual. Esse tema é discutido
dade. Nessas condições, as mutações detectadas expli- em outro artigo da revista (14,18).
cam o defeito enzimático, porém o padrão de com-
portamento varia e não pode ser considerado univer- Aspecto cultural
sal. A identidade de gênero feminina nos casos de Até recentemente a questão cultural não era
insensibilidade androgênica completa, apesar da pre- considerada quando se tratava das questões da inter-
sença dos testículos, mostra a importância do receptor sexualidade. Atualmente esse aspecto tem sido estu-
de andrógenos. No entanto, quando a insensibilidade dado e sua importância tem ficado mais clara, no con-
é parcial, a definição da identidade nem sempre acom- texto onde são tomadas as decisões sobre a designação
panha as alterações físicas e alguns pacientes podem do sexo em pacientes com ambigüidade genital, influ-
permanecer no gênero masculino (3,8,10,15,16). enciando o desenvolvimento psicossocial dos pacien-
Acredita-se que alguns aspectos da ação hor- tes e também as próprias decisões médicas. As dife-
monal ainda não estejam esclarecidos, como, por renças culturais são marcantes, na forma como a inter-
exemplo, em que momento do desenvolvimento ela sexualidade é entendida e como esses indivíduos são
ocorre (embriogênese, infância ou puberdade), nem aceitos pelo grupo social onde vivem (19). Essas dife-
tão pouco onde ela é exercida (sistema nervoso central, renças sempre devem ser consideradas na avaliação

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desses pacientes e principalmente na ocasião da cluiu que as atitudes comportamentais masculinas


decisão do sexo de criação. Em nosso meio é possível eram mais freqüentes nessas pacientes, mas não foram
vivenciar essa experiência com algumas tribos indíge- encontradas confusões na identidade de gênero ou dis-
nas, que muitas vezes não entendem as anomalias ge- forias. Nas entrevistas feitas com as meninas sobre qual
nitais como um problema, mas como um sinal que seria a melhor opção se pudessem escolher o próprio
deve ser temido e respeitado. sexo, mostraram que 35% teriam sido meninos, embo-
ra nenhuma delas estivesse insatisfeita com a identi-
A Identidade de Gênero na Intersexuali- dade feminina (8,22).
dade Orgânica O papel sexual masculinizado parece ser um
De acordo com Reiner, a maioria dos estudos que reflexo dos níveis elevados de andrógenos no período
avaliam a adequação psicossocial dos pacientes inter- pré-natal, mas não está associado a alterações na identi-
sexuais é muito heterogênea e não utiliza uma dade de gênero. Outros fatores, presentes no período
metodologia padronizada, o que pode dificultar nas pós-natal, tais como a época da cirurgia, o controle hor-
comparações entre os resultados obtidos. Na interpre- monal insatisfatório, condições de educação e criação
tação desses trabalhos é sempre necessário considerar a (rejeição?) podem predispor ou influenciar uma possí-
etiologia e os principais aspectos da diferenciação físi- vel mudança na identidade de gênero na vida adulta.
ca apresentados em cada síndrome (20). Em alguns países, as pacientes com genitália
Algumas anomalias da diferenciação sexual, externa muito virilizada (Prader grau V) são orientadas
como a Forma Completa da Insensibilidade Andro- para criação no sexo masculino, utilizando como
gênica, não resultam em incertezas quanto à desig- critério o grau de virilização do genital, o que é con-
nação do gênero. Nesses casos, as pacientes apesar de siderado um critério bastante controvertido. O princi-
apresentarem cariótipo 46,XY e testículos, têm o pal argumento para essa conduta é a preocupação com
genital externo feminino (ausência da ação da testos- uma possível masculinização do cérebro pelos
terona), desenvolvem as mamas na adolescência com andrógenos, que poderia influenciar na escolha das
identidade de gênero e comportamento feminino. identidades. Berenbaum e Bailey, a partir da avaliação
Geralmente obtém os índices mais elevados nas de 43 meninas com HAC, concluiu que a aparência
avaliações de feminilidade e os estudos disponíveis genital não reflete o grau de masculinização cerebral e
não relatam problemas de identificação ou solicitação não interfere com a identidade de gênero, que foi pre-
de mudança do sexo de criação. Do ponto de vista dominantemente feminina. Algumas pacientes identi-
psicológico, o ambiente ao qual essas pacientes estão ficaram-se com o sexo masculino, mas não exatamente
expostas durante seu desenvolvimento exerce sobre as que apresentavam o maior grau de virilização (23).
elas influências de socialização de gênero iguais às de Designação tardia para o sexo feminino ou a
mulheres não afetadas. Do ponto de vista biológico, mudança tardia de gênero predispõe a comportamen-
especula-se o quanto a resistência androgênica tos muito masculinizados. Os pacientes com diagnós-
favorece nessas pacientes uma diferenciação cerebral ticos tardios, erroneamente registrados, ou apresentan-
tipicamente feminina, que por sua vez poderia in- do formas não clássicas da doença, combinadas com
fluenciar a sua diferenciação psicossocial (8,16,21). fatores sócio-econômicos e culturais, podem per-
manecer no sexo masculino, salvo se houver alguma
Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) indicação que justifique a mudança. Essa conduta tam-
É considerada a causa mais freqüente de ambigüidade bém é alvo de discussões (14).
genital em RN com cariótipo 46,XX. Portanto são
meninas do ponto de vista genético, dos componentes Deficiência da 5α-redutase
gonadais e dos genitais internos, expostas aos A questão da identidade de gênero nesse grupo de
andrógenos durante a gestação, cuja criação no sexo pacientes é muito complexa. A mudança de gênero
feminino é sem dúvida a mais aceita, principalmente que apresentam durante a puberdade foi inicialmente
quando se avalia um RN afetado A virilização da ge- constatada por Imperato-McGinley e colaboradores e
nitália externa é bastante variável, desde uma discreta comprovada em diferentes estudos realizados em uma
hipertrofia de clitóris até uma fusão labioescrotal com- comunidade isolada na República Dominicana. Inicial-
pleta, com uretra fálica (1). mente, a maioria desses pacientes era criada como
Meyer-Bahlburg, avaliando o comportamento e meninas, devido à gravidade da ambigüidade genital
a identidade de gênero de 15 meninas com HAC ao nascimento, mas durante a puberdade os caracteres
através de entrevistas familiares e questionários, con- sexuais secundários se desenvolviam e freqüentemente

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percebiam a si mesmos como homens e adotavam De forma geral, predomina um papel de gênero mas-
comportamento masculino. O apoio dado pela comu- culino. Meyer-Bahlburg e cols. reavaliaram (24),
nidade e pelas famílias a partir do conhecimento da através de questionário, um grupo heterogêneo de 72
história natural dessa condição influenciou no processo pacientes com cariótipo 46,XY, com o objetivo de
da mudança e socialização, e representou um impor- estabelecer a satisfação desses pacientes com o sexo de
tante papel do ambiente na determinação do gênero. criação, e concluiu que a maioria desses não apresenta-
Portanto, fica clara a existência de um fator biológico, va queixas em relação à forma como foram tratados
ainda não determinado, capaz de influenciar a identi- nem tampouco referiam problemas na identificação
dade de gênero. Nesse sentido, esse papel já foi sexual.
atribuído ao aumento de testosterona na puberdade,
assim como durante a vida intra-uterina, masculinizan- A Identidade de Gênero nas Malformações
do o sistema nervoso central. Genitais Sem Intersexualidade
Os estudos feitos com as pacientes criadas no O conceito de identidade sexual nos pacientes com
sexo feminino mostram resultados contraditórios e malformações genitais tem sido um desafio. Tradi-
confirmam a existência de uma grande variabilidade de cionalmente, sempre que o tamanho do pênis é con-
gênero. A diferenciação da identidade feminina pode siderado inadequado para permitir um desenvolvimen-
ocorrer em uma minoria de pacientes, mesmo naque- to satisfatório, a conduta médica indicada é a desig-
les locais em que a pressão social em favor da mas- nação do gênero feminino e correção cirúrgica. Reiner
culinidade é importante (8). Essa perspectiva desafia a e Gearhart, em um trabalho publicado em 1999 (25),
crença de que a historia natural do desenvolvimento descreveram o perfil psicológico e sexual de pacientes
psíquico desses pacientes é invariavelmente masculina. adultos (idade superior a 20 anos) com extrofia de
Em alguns países, dependendo do grau de ambigüi- bexiga e concluíram que poderia existir uma alteração
dade genital, alguns pacientes têm sido criados no sexo ou um comprometimento do desenvolvimento psi-
feminino, submetidos à cirurgia de reconstrução geni- cológico relacionado com o comprometimento na
tal e reposição hormonal durante a puberdade. Naque- interação social e desenvolvimento sexual.
les locais com maior incidência da doença, os pacientes Durante 25 anos a conduta nesses pacientes
são criados no sexo masculino, mantendo até a puber- consistia na realização de cirurgia para designação
dade um certo grau de ambigüidade. Portanto, o desses pacientes no sexo feminino devido ao limitado
mecanismo de diferenciação da identidade de gênero desenvolvimento peniano. Posteriormente, avaliando
nesse grupo de pacientes ainda não está adequada- 14 pacientes com sexo genético masculino criados
mente esclarecido (7,8,16). como meninas (legal, social e cirurgicamente) e que
desconheciam sua história clínica em relação à identi-
Forma incompleta da Insensibilidade Andro- dade de gênero, observou-se que a identidade sexual
gênica era muito variável, sendo que 8 pacientes se
Talvez seja essa a condição que está mais freqüente- declararam como tendo identidade masculina (26).
mente associada a incertezas quanto ao sexo de criação. No entanto, em todos os pacientes o padrão de com-
O grau de resistência androgênica e a aparência do ge- portamento foi considerado masculino (preferências,
nital são muito variáveis, assim como a designação do forma de vestir, relação com os pais). A evolução desses
gênero. As publicações são poucas, com casos avaliados pacientes é imprevisível e a indicação desse tipo de
de forma distinta e sem um acompanhamento sis- cirurgia está em discussão, o que requer uma avaliação
temático. Os pacientes descritos foram criados tanto criteriosa caso a caso.
como homens como mulheres. Nesses pacientes, a for- Nos pacientes com micropênis não associado a
ma como se processa a diferenciação cerebral em respos- outras formas de intersexualidade também sempre
ta ao estímulo hormonal não é muito clara, e a ação da existiu um grande debate em relação a criá-los como
testosterona é sem dúvida inferior à de homens não afe- meninos. Embora as avaliações dos pacientes orienta-
tados, mas superior ao das mulheres normais. dos dessa forma sejam poucas, alguns trabalhos
As observações de Zucker (8) a respeito da mostram que a maioria tem experiências desagradáveis
identidade de gênero nesses casos sugerem um padrão e de conflito durante a vida, atribuídas à aparência do
misto: alguns pacientes se diferenciam sem compli- genital, e mesmo com desenvolvimento de gênero
cações no gênero feminino, enquanto outros têm um adequado ao sexo genético, o homossexualismo tem
perfil psicológico conflitado e optam na adolescência sido relatado, porém esta situação é atualmente con-
ou na vida adulta pela mudança para o sexo masculino. siderada uma opção sexual. Nos pacientes criados no

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sexo feminino, a avaliação do comportamento é difícil, pio, criada de acordo com papéis de gênero tradi-
pois a maioria dos casos publicados refere-se a pacien- cionais e partindo da premissa de que existe um sexo
tes com doenças genéticas associadas. neutro, sendo a humanidade tão antiga e com tantas
Nos casos de agenesia de pênis existe uma divergências culturais, seria de se esperar inúmeros
androgenização pré-natal. Esses casos são raros, mas papéis sexuais controvertidos (26). Outro argumento
com taxa elevada de mortalidade devido às compli- contrário à neutralidade é a reversão sexual de vários
cações urinárias e gastrintestinais. A observação cuida- pacientes após o período considerado crítico para o
dosa desses casos é muito importante, pois a partir desenvolvimento da identidade. Enquanto que essa
deles pode-se perceber que a identidade masculina teoria atribui uma grande flexibilidade à identificação
ocorre na ausência de um pênis, embora não sejam nessa fase, paradoxalmente ela também diz que após o
amplamente conhecidas as implicações de ordem psi- período crítico a identidade de gênero não poderá
cológica de chegar-se à vida adulta com ausência de mais ser modificada. No entanto, essas mudanças
pênis, pois não existem publicações sobre disforia ou ocorrem e muitas delas provavelmente por questões
reversão sexual nesses pacientes (8,13,25). internas, biológicas, pressionando os indivíduos a
assumirem um sexo oposto ao designado (10).
A Busca do Novo Paradigma: Em Direção à Money e Ehrhardt (5) em 1972, apesar de enfa-
Era do Consenso tizarem no livro Man and Woman, Boy and Girl a
A revisão das condutas na intersexualidade ocupa importância do ambiente, reconheceram a existência de
atualmente um lugar de destaque, pois as controvérsias um dimorfismo sexual na questão do gênero, provavel-
surgidas na última década renovaram as pesquisas em mente influenciado pela ação dos hormônios no perío-
relação aos determinantes da identidade de gênero, e o do pré-natal, evidenciando a possibilidade dos compor-
interesse pelas questões da qualidade de vida e dos tamentos expressarem a interação entre os fatores
aspectos éticos cresceu de forma a ser uma parte deter- biológicos e ambientais, mas nessa época, essa obser-
minante de várias condutas médicas (3,7,10,11). vação não alterou a conduta frente aos pacientes (5,6).
Nos últimos 50 anos, o tratamento dos Esse novo período pode ser chamado de era do
pacientes com intersexo foi baseado no conceito de consenso (4), porque propõe uma conduta individuali-
que ao nascimento o cérebro seria maleável e a identi- zada, com base nas características de cada caso, con-
dade de gênero resultante dos efeitos sociais na cria- siderando os aspectos culturais, religiosos e comporta-
ção, mais do que relacionada com fatores biológicos. mentais, entre outros, além de uma ampla discussão
Entendia-se que a condição de ser homem ou mulher das condutas futuras a serem estabelecidas para esses
não seria inata, mas “apreendida” e sujeita a influências pacientes em diferentes esferas de atenção.
culturais e ambientais. A preferência quase que sis- Existe um consenso quanto à plena participação
temática pela criação no sexo feminino baseava-se no dos pais nos processos de decisão e não existem mais
conceito de que, do ponto de vista cirúrgico, seria mais dúvidas quanto à necessidade de informá-los do diag-
fácil construir uma vagina do que um pênis com fun- nóstico, permitindo entenderem o princípio das avalia-
cionalidade sexual futura. Pensava-se na identidade ções médicas e as diferentes questões envolvidas
feminina como o resultado apenas de uma socialização (3,11,27). Não existem trabalhos demonstrando a
adequada, o que seria alcançado pela reconstrução vantagem de omitir as informações. A partir da idade
cirúrgica do genital externo. em que os próprios pacientes, preferencialmente na
Várias críticas foram feitas a esse modelo, em adolescência, comecem a se interessar pelas questões
especial às teorias desenvolvidas por Money, uma das do desenvolvimento, é importante que também pos-
quais refere-se ao uso do comportamento flexível sam entender o seu quadro clínico (3,4,27,28).
descrito nos indivíduos com intersexualidade (her- Um outro aspecto importante ao revelar os
mafroditas) como modelo para provar que todo ser fatos é no sentido de talvez influenciar a família nas
humano seria maleável para a definição do sexo de cria- escolhas profissionais futuras, na questão de ter ou não
ção. Esse talvez não seja o melhor modelo para discu- um outro filho, além de melhor orientar, quando
tir essas questões, visto que nesses indivíduos a identi- necessário, outros membros da família que possam vir
dade sexual devido à condição gerada pela anormali- a ter problemas semelhantes. Toda a informação deve
dade física e pela influência ambiental, parece ser ser pautada pelo bom senso, compreensão das limi-
muito mais variável do que naqueles fisicamente sem tações de cada família ou do próprio paciente e serem
alterações (4,8,10). Destaca-se também o fato de que fornecidas permanentemente, respeitando crenças e
a grande maioria da população da Terra é, em princí- costumes (27,28).

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Diante das inúmeras críticas e pelas evidências as designações de gênero em doenças em que existem
crescentes quanto à necessidade de tomar condutas controvérsias e uma grande variabilidade, e em parti-
menos intrusivas, foi sugerido por alguns pesquisadores cular os quadros com malformação genital, merecem
que o atendimento ao paciente com ambigüidade ge- especial atenção (8,28).
nital, à exceção dos casos de HAC, não fosse mais con- Deve-se ter claro que as incongruências quanto
siderado como uma emergência médica. Atualmente, à identidade de gênero ocorrem também em pessoas
esse atendimento pode não ser mais uma emergência normais, onde desde o início do desenvolvimento
médica, mas sempre continuará sendo uma emergência houve compatibilidade entre todos os determinantes
mental e social. A solução das emergências mentais sexuais orgânicos (8,28). É possível que existam casos
requer tempo, educação, consultas e contemplação e só de intersexualidade limitados ao sistema nervoso cen-
após esse processo a tomada das decisões (10). tral que inclusive poderiam justificar as variações de
identidade de gênero nos pacientes com insensi-
Designação do gênero bilidade androgênica parcial. Essas são especulações,
Os principais parâmetros avaliados para a designação que provavelmente estarão em discussão no futuro
de gênero de um paciente com intersexualidade (8,27,28).
orgânica eram o potencial de fertilidade, a capacidade Uma outra colocação muito importante é que
para uma função sexual satisfatória, a menor necessi- entre os critérios tradicionalmente usados na definição
dade de procedimentos médicos, a função endócrina, do sexo seja colocado como uma possibilidade de
uma aparência compatível com o gênero, a possibili- haver uma re-designação posterior de gênero, nos
dade de desenvolver um gênero estável e a adequação pacientes com diagnóstico incerto ou incorreto e
psicossocial (28). quando houver uma incompatibilidade entre o papel e
A fertilidade está geralmente comprometida e a a identidade de gênero que possa comprometer a sua
questão da atividade sexual nos pacientes é de grande condição psicossocial. (4,9,10,27).
complexidade, visto ser impossível prever na maioria
dos pacientes, em especial nos que apresentam insensi- Cirurgia
bilidade androgênica parcial, o crescimento peniano, A questão da cirurgia está entre aquelas que necessitam
que embora seja considerado o principal parâmetro de ser vistas de forma distinta e mais abrangente. Nas
nessa avaliação, não pode de forma alguma ser analisa- crianças com genitais ambíguos ou com malformações
do isoladamente. que envolvem a área genital, a maioria das cirurgias
A relação entre níveis elevados de andrógenos e sempre foi feita com o propósito de adequar a aparên-
masculinização do papel de gênero está razoavelmente cia genital ao gênero de criação e para permitir poste-
bem estabelecida e, embora exista uma tendência para riormente o relacionamento sexual e a reprodução
mudanças na identidade feminina à masculina nas (9,10,27,29).
pacientes expostas à testosterona, essa também não Embora seja bastante óbvio que um RN ou uma
pode ser vista como um indicativo absoluto de condu- criança não tem condições de contribuir com qualquer
ta médica a ser tomada nesses casos. decisão quanto ao seu próprio sexo de criação ou tão
Não é possível determinar no RN, em que pouco fornecer um consentimento, grupos organiza-
extensão o cérebro já foi ou estará masculinizado e não dos e eticistas reclamam que as responsabilidades sobre
existe uma forma de mapeamento cerebral disponível essas decisões devem pertencer aos indivíduos afeta-
para tal avaliação. dos, o que implicaria no estabelecimento da definição
O grau de masculinização do genital, principal- legal do sexo e dos possíveis procedimentos cirúrgicos
mente em casos de HAC, não é um parâmetro que apenas no momento em que os indivíduos afetados
permita inferências em relação ao desenvolvimento da pudessem participar do processo de decisão.
identidade (8). O principal alvo dos debates tem sido as cirur-
Em princípio, a designação de gênero deve ser gias de feminização, visto que essas implicam na
orientada pelo que se considera o melhor prognóstico remoção irreversível de tecido para reduzir o tamanho
do ponto de vista psicossocial e psicossexual, baseado do falo e para criar uma neovagina e intróito vaginal
nos resultados e experiência obtidos através dos estu- (9). Recentemente, algumas questões fundamentais
dos feitos nas diferentes patologias e também no con- têm sido levantadas em relação a essa conduta, entre as
tato mais próximo com os familiares, mas também quais: Qual a necessidade de modificar a aparência do
considerando os aspectos biológicos. Com exceção genital durante a infância? Qual a possibilidade de
dos quadros de insensibilidade androgênica completa, realizar a cirurgia posteriormente, quando o paciente

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pudesse estar de acordo e dar o seu consentimento? feitas por Warne (27), ao não se realizar a cirurgia se
Qual a necessidade real de remoção das gônadas, se estaria negando à criança ter a definição de sua identi-
para prevenir secreção de testosterona ou evitar o dade durante a infância, tendo-se o entendimento de
desenvolvimento de um tumor? que certos tipos de procedimentos não alterariam de
Nas sociedades desenvolvidas ainda não existem modo definitivo as opções disponíveis para essa pessoa.
evidências comprovadas de que postergar a cirurgia Uma outra abordagem dessa questão seria a indicação
possa trazer melhores resultados, pois o tratamento em de um procedimento cirúrgico menos radical, por
idade bem precoce é rotina, porém são exatamente exemplo, a cirurgia de redução do clitóris, para os casos
desses países que existem os relatos de pacientes na com virilização moderada ou intensa, adiando a recons-
idade adulta questionando condutas tomadas quando trução vaginal para o período pós-puberdade (11).
eram crianças e que provavelmente não dependem Cirurgias para mudança do sexo de criação na
apenas do aspecto cirúrgico (27). puberdade devem ser analisadas individualmente por
O objetivo inicial da cirurgia é permitir que a grupo multiprofissional com experiência na área e reali-
criança esteja de acordo com o sexo e gênero designa- zadas somente após o período mínimo de um ano de
dos e, também, permitir aos pais um beneficio psi- vivência social de acordo com o sexo pretendido (1).
cológico. Por questões óbvias, a maioria dos pais não É sempre importante que os pais sejam orienta-
conseguiria suportar essa situação proposta e a urgên- dos quanto aos benefícios e riscos da cirurgia sobre
cia para inserir a criança no contexto social é sempre todas as opções disponíveis e das possibilidades da
muito grande. É importante ressaltar, no entanto, que incompatibilidade do sexo de criação com a de identi-
algumas comunidades têm uma visão mais tolerante da dade de gênero e distúrbios psicológicos na vida adul-
questão e conseguem conviver com a ambigüidade ta. Os pais têm o direito de não aceitar o procedimen-
sem maiores problemas, até que chegue a puberdade e to cirúrgico, o que de acordo com pesquisas realizadas
os caracteres sexuais secundários se manifestem e os raramente acontece (27,29).
indivíduos possam exprimir a sua sexualidade (4,8). O futuro dessa questão ainda é incerto e, para
Em médio prazo, o objetivo da cirurgia é per- os que têm uma posição contrária ao adiamento da
mitir um crescimento ao menos sem os problemas psi- designação de gênero e aos procedimentos cirúrgicos
cológicos criados pelas diferenças físicas com outras necessários, o principal argumento é que dessa forma
crianças. A cirurgia pode auxiliar na prevenção das estaríamos decidindo que todos aqueles nascidos com
infecções urinárias, principalmente nos casos com mal- genitais ambíguos deveriam viver socialmente como
formações afetando a área genital (11). intersexos (11,27).
Em longo prazo, a cirurgia tem como objetivo
permitir uma atividade sexual satisfatória. Nesse senti- Uma visão pessoal
do, os grupos que representam inúmeros indivíduos Em nosso meio, é provável que as teorias de Money
tratados por ambigüidade genital que atingiram a não tenham sido seguidas de forma rigorosa, seja de-
maturidade consideram sua qualidade de vida pouco vido às nossas características culturais, refletidas na
satisfatória. Do ponto de vista dos cirurgiões, deve-se relação médico-paciente, seja pela heterogeneidade do
esse fato a procedimentos não adequados tecnica- atendimento médico, ou pelas diferenças no acesso à
mente e principalmente porque nos anos 60 a orien- informação. Não existem trabalhos avaliando esses
tação era a remoção completa do clitóris. Posterior- aspectos, mas os familiares de nossos pacientes, dentro
mente, passou a ser feita a preservação do clitóris ou a de suas limitações, sempre participaram dos processos
redução de suas dimensões, mas em alguns casos a de decisão quanto ao sexo de criação, o que hoje está
perda da sensibilidade neurovascular é inevitável. A sendo altamente valorizado. Embora a neutralidade ao
maioria das mulheres adultas com HAC não apresenta nascimento tenha sido um referencial em poucos
alterações na identidade de gênero, mas não têm uma serviços, a cirurgia dificilmente era feita antes de 1 ou
atividade sexual satisfatória. No entanto, ainda não foi 2 anos de idade, apesar de considerada a principal fer-
possível avaliar qual o fator mais importante relaciona- ramenta no sentido de compatibilizar o genital ao
do com essa baixa satisfação sexual; se o cirúrgico, o gênero designado. Não era raro que alguns pacientes,
psicológico ou a própria aderência ao tratamento (11). por razões de natureza diversa, fossem operados até
De acordo com os estudos de Meyer-Bahlburg e cols. mais tarde, ou fossem designados em sexo incompatí-
(22), a cirurgia tardia nesse grupo de pacientes pode vel com o diagnóstico. Em nosso meio, freqüente-
influenciar na identidade de gênero. mente atendemos pacientes com uma identidade de
De acordo com importantes considerações gênero já estabelecida, porém sem diagnóstico ou sem

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uma intervenção cirúrgica adequada, e que apresentam orgânicas, tais como os genes, hormônios e fatores
inúmeros conflitos e com dificuldades enfrentadas ambientais.
pelas famílias. Nesses casos, uma intervenção psicoló- A pergunta mais importante ainda permanece
gica adequada é necessária para permitir uma correção sem respostas definitivas ou conclusivas, ou seja, o
cirúrgica que esteja congruente às aspirações e aos que faz de nós homens ou mulheres, meninas ou
desejos dos pacientes. meninos? Se os cromossomos, hormônios, genitais, o
Dessa forma, se por um lado erramos menos cérebro ou a forma como se aprende a pensar a
pelo fato de nossas decisões nunca terem sido excessi- respeito de nós mesmos e dos outros. Aplicar este tipo
vamente rápidas, por outro vivenciamos muitas dificul- de pergunta a pacientes com ambigüidade genital re-
dades relacionadas à demora na tomada de uma presenta um grande desafio. Através da cirurgia,
decisão definitiva ou quando essa decisão foi feita de reposição hormonal, ou apoio psicológico, tenta-se
forma inadequada. Por conta dessas dificuldades, oferecer a esses pacientes uma possibilidade de ade-
aprendemos a dar um suporte maior às famílias do quação física e emocional.
ponto de vista médico e psicológico. Aumentou nossa Apesar das críticas, os trabalhos realizados no
vivência em relação às dificuldades que cada família passado por diversos pesquisadores, em especial pelo
enfrenta dentro de seu universo. Alguns grupos multi- grupo de John Money, contribuíram muito para
profissionais se organizaram e mostram resultados que as condutas em intersexualidade possam ser mais
importantes no acompanhamento desses pacientes (1). bem entendidas e repensadas. Casos como os de
No entanto, ainda enfrentamos sérios problemas no “John/Joan” não são únicos e provavelmente não
sentido das orientações, por vezes inadequadas, que as serão os últimos. Estamos agora em um outro contex-
famílias recebem na maternidade e que introduzem to sócio-cultural e com mais informações decorrentes
conceitos que dificultam o processo nas etapas poste- do avanço do conhecimento, o que amplia a possibili-
riores. Acrescente-se a isso a falta de uma legislação dade de entender melhor os mecanismos envolvidos e
adequada de forma a proteger esses pacientes enquan- estabelecer diagnósticos mais precisos e com certo
to aguardam a avaliação médica para uma decisão valor preditivo, mas a possibilidade de cometer erros
quanto ao sexo de criação e que permita um registro nas decisões de gênero ainda é grande, pois algumas
civil temporário, o que lhes garantiria o acesso a pos- questões fundamentais ainda não foram respondidas,
tos de saúde, atendimento hospitalar a convênios nem no que se refere aos processos que estabelecem
médicos. Da mesma forma, também falta uma revisão essas decisões em pessoas sem alterações genitais,
da legislação vigente, que ainda considera a presença quanto mais naquelas que apresentam ambigüidade.
do cromossomo Y como o principal critério para o re- Fica assim evidente que o médico, ao olhar um genital
gistro civil. Seria também de grande importância que de aspecto ambíguo e fazer a pergunta menino ou
os juízes de família participassem mais ativamente menina, está diante do início de uma cascata de even-
junto às equipes médicas que tratam desses problemas tos que afetará essa criança por toda sua vida e com
(29). Considera-se fundamental em todo esse proces- implicações às vezes muito maiores do que dizer sim-
so enfatizar a importância do treinamento de um plesmente “menino” ou “menina”, mas descobrir a
maior número de profissionais da área médica e psi- cada passo o que significa esse fato, processo esse que
cológica nessa área do conhecimento. a maioria das pessoas não precisa de ajuda para identi-
ficar e estabelecer condutas.
Conclusão Como em outras áreas da medicina, nesta é
A análise dos diferentes trabalhos que avaliam a absolutamente necessário e fundamental unir duas
evolução psicossocial de muitos pacientes com inter- condições essenciais, ou seja, a razão, aqui represen-
sexualidade orgânica mostra a existência de um amplo tada pelo conhecimento científico, a pesquisa, e a sen-
espectro entre a identidade de gênero masculina e sibilidade, para podermos perceber as sutilezas do
feminina, assim como em relação à forma como o comportamento humano, acima de tudo procurando
indivíduo conduz seu comportamento social, e que agir com tolerância para poder ajudá-lo a conseguir
essas condições não podem ser vistas como estanques uma identidade sexual satisfatória e uma inserção
ou tão pouco serem criados estereótipos por maneiras social adequada, mesmo com uma história de
preconceituosas de pensar ou agir. Deve-se estar cons- ambigüidade genital passada ou ainda presente e que
ciente e perceber que o estabelecimento da identidade está por se estabelecer.
de gênero é muitas vezes mais maleável do que se
pode imaginar e resultado de múltiplas influências

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Spinola-Castro

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Endereço para correspondência:

Angela Maria Spinola-Castro


Rua Pedro de Toledo 980, cj. 52
04039-002 São Paulo, SP
E-mail: aspinola.deped@unifesp.br

Arq Bras Endocrinol Metab vol 49 nº 1 Fevereiro 2005 59

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