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O Estrangeiro (Albert Camus)

“O Estrangeiro” (1942), que conta a história de Meursault, um funcionário de escritório,


que recebe com indiferença a notícia da morte de sua mãe. Após o velório e o enterro
dela, enamora-se de Marie, uma ex-colega de trabalho. E, por fim, acaba se envolvendo
numa trama de vingança, a qual é completamente alheio, mas que o leva a cometer um
assassinato.

O ponto-chave dessa obra é esse assassinato. Meursault mata um árabe na praia, sem
qualquer premeditação e totalmente movido por um impulso. Diante do tribunal, após
várias hipóteses e tramas construídas pela imprensa e pela promotoria, ele justifica que
matara aquele homem por causa do sol.

O romance é dividido em duas partes: a primeira apresenta a personalidade de


Meursault e revela essa condição existencialista dele. A segunda já trata basicamente do
seu julgamento, após o assassinato do árabe. Essa divisão pode ser lida como uma
relação de causa e consequência, ou seja, um impulso absurdo, desprovido de qualquer
consistência, desencadeia em um resultado bem mais sério. Ele explicita esse
pensamento no final da história:

“Afinal existia uma ridícula desproporção entre o julgamento que a fundamentara e o seu
imperturbável desenrolar a partir do instante em que este julgamento fora pronunciado.
O fato de a sentença ter sido lida não às cinco da tarde, mas às oito horas da noite, o
fato de que poderia ter sido outra, completamente diferente, de que fora determinada por
homens que trocam de roupa e que fora dada em nome de uma noção tão imprecisas
quanto o povo francês (ou alemão ou chinês), tudo isto me parecia tirar muito da
seriedade desta decisão. Era obrigado a reconhecer, no entanto, que a partir do instante
em que fora tomada os seus efeitos se tornavam tão certos, tão sérios...” (CAMUS,
2016, p.100)

Esse trecho se refere ao resultado do julgamento de Meursault e mostra a fragilidade da


consistência daquilo que define a condenação de alguém. O homem envolvido no
absurdo da ausência de sentido de sua vida julga outro homem tão imerso ao nada
quanto ele. Meursault define sua sentença a uma sucessão de acasos que desencadeia
em um resultado extremamente sério.

A primeira parte do livro se inicia com Meursault contando da morte de sua mãe: “Hoje,
mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe
faleceu. Enterro amanhã. Sentimos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha
sido ontem.” (CAMUS, 2016, P.13). Nessa informação já há um estranhamento quanto
ao comportamento dele, pois aparentemente dedica-se mais a inexatidão da data de
falecimento da mãe do que propriamente da morte dela.

Durante o velório no asilo, Meursault se apegava a pequenas coisas ao seu redor: aos
besouros, a luzes, a bengalas, a cordas nas barrigas das senhoras, a barrigas das
senhoras, a rugas e aos olhos pequenos dos velhos. Tudo o distraía e, de certa forma, o
irritava. Há uma sensação de distanciamento. A tristeza, o cansaço, o suor, tudo isso
parecia estar nos outros. A ação estava nos outros. E tudo era causado pelo hábito.
Pensava ele sobre a vida de sua mãe naquele lugar: “Nos primeiros dias de asilo ela
chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses teria
chorado se a tirassem de lá, tudo devido ao hábito” (CAMUS, 2016, p.14).

No dia seguinte ao enterro de sua mãe, Meursault vai à praia e reencontra uma antiga
colega de trabalho, a ex-datilógrafa do escritório, Marie Cardona. Passam o dia juntos,
vão ao cinema e depois dormem juntos. Ela ao perceber seu luto, perguntou o tempo em
que sua mãe havia falecido. Diante da resposta recente, surpreende-se:

“Hesitou um pouco, mas não fez comentário. Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não
era minha, mas detive-me porque me pareceu já ter dito a mesma coisa ao meu patrão.
Isto nada queria dizer. De qualquer modo, a gente sempre se sente um pouco culpado.”
(CAMUS, 2016, p.26)

Essa sensação de desconforto com o luto foi a tônica de todos as conversas que
convergiam para a morte de sua mãe. Uma tentativa de se desvincular disso, tentando
mostrar que a culpa da morte da mãe não tinha nada a ver com ele. Uma culpa que não
tinha dono, mas que recaia sobre ele.

Outro ponto existencialista é o momento em que Meursault trava amizade com seu
vizinho, Raymond, um cafetão, que rotineiramente espanca sua namorada. Esse homem
pede ajuda dele para escrever uma carta a sua mulher. Logo em seguida se declara seu
amigo. No entanto, o mais surpreendente foi a resposta de Meursault: 

“Declarou-me então que, justamente, queria pedir-me um conselho a propósito deste


assunto, que eu, sim, era um homem que conhecia a vida, que podia ajuda-lo e que em
seguida ficaria meu amigo. Não disse nada e ele me perguntou de novo se eu queria ser
amigo dele. Respondi que tanto fazia” (CAMUS, 2016, p.34)

“Tanto faz” acaba se tornando uma das expressões mais usadas por Meursault. Ele a
usa quando seu chefe lhe oferece um cargo em Paris: “Disse que sim, mas que no fundo
tanto fazia. Perguntou-me, depois, se eu não estava interessando em uma mudança de
vida. Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo caso, todas se equivaliam”
(CAMUS, 2016, p. 45 e 46). E usa também quando Marie pergunta se ele queria se
casar com ela: “À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com
ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria poderíamos nos casar.” (CAMUS,
2016, p.46)

No entanto, em meio a todo esse distanciamento de Meursault para os acontecimentos


de sua vida, há um que a transforma radicalmente. Ele e Marie são convidados a passar
um dia na casa de praia de um amigo de Raymond. Mas são perseguidos por alguns
árabes. Raymond e Masson (o dono da casa de praia) partem para a briga corporal,
enquanto Meursault fica na retaguarda com um revólver. Após toda essa confusão,
retornam para casa. Porém, Meursault, impulsivamente, resolve voltar ao local da luta e
comete, absurdamente, o crime.

Ao ficar frente a frente com o árabe, que se mostrava acuado, Meursault sente-se
desconfortável e irritado por causa do sol.

Por causa deste queimar, que já não conseguia suportar, fiz um movimento para a
frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do sol se desse um passo. Mas dei
um passo, um só passo à frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que
ele me exibiu ao sol” “Foi então que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e
ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo.
Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o
ventre polido da coronha e foi aí, no barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que
tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o
silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda
num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era
como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça” (CAMUS, 2016, p. 60)

Esse ato é um dos pontos importantes para a compreensão do comportamento de


Meursault: sua experiência sentimental é totalmente pautada pela sua experiência
superficial. Isto é, ele se comporta basicamente como um indivíduo vazio por dentro,
mas que sofre reações a partir de fatos externos: o sol, o mar, o velório, o casamento, o
emprego, tudo isso são construções externas. Em contrapartida parece ignorar os
sentimentos: o cansaço, a alegria, a tristeza, o amor, os desejos. Dessa forma, pode ser
que se entenda o motivo desse romance chamar-se “O Estrangeiro”. Exatamente,
porque Meursault porta-se como um estranho ao mundo sensível, não entendendo o
peso de suas ações. Meursault é um ser naturalmente existencialista, mas que não se
engaja. Pode-se ver então a marca do autor: Albert Camus planta em sua personagem a
teoria do absurdo.

A partir daí Meursault é preso e sua alma começa a ser desvendada em um dos
julgamentos literários mais famosos. Um caso aparentemente simples transforma-se
praticamente em um desvelamento de máscaras sociais. O promotor transforma a
acusação de assassinato em uma denúncia de insensibilidade de um filho diante do
velório da mãe.

Meursault é condenado à morte. Será guilhotinado. Enquanto isso, aguarda seu recurso
na prisão. Nesse tempo nega, por diversas vezes, a visita do capelão. Essa última parte
do livro desencadeia uma das questões mais importantes do existencialismo: diante do
extremo de sua vida e diante de uma vida pautada no absurdo, ou aceita-se um deus
como o fim último de sua existência ou aceita-se a condição absurda de existir.

O capelão, mesmo sem autorização de Meursault, entra na cela e tenta travar algum tipo
de diálogo: “- Por que recusa as minhas visitas? Respondi que não acreditava em Deus.
Quis saber se tinha certeza disso e eu respondi que não valia a pena fazer-me tal
pergunta: parecia-me sem importância.” (CAMUS, 2016, p.105). Após várias tentativas
de persuadi-lo a aceitar Deus, o religioso faz a seguinte pergunta: “Não tem nenhuma
esperança e consegue viver com o pensamento de que vai morrer todo por inteiro? - Sim
– respondi.” (CAMUS, 2016, p.106). 

Dessa forma, Meursault completamente consciente de si mesmo, de sua vida e do seu


iminente fim, despede-se do mundo, com extrema calma: “a paz maravilhosa deste
verão adormecido entrava em mim como uma maré. Neste momento, e no limite da
noite, soaram sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era para sempre
indiferente” (CAMUS, 2016, p.109 e p.110).

Encerra-se, dessa maneira, a existência de mais um ser humano essencialmente sem


solução. Em que sua vida de indiferenças mostrou-se agressiva para um mundo
insincero e repleto de máscaras sociais. Quase patologicamente vazio, Meursault revela
ao leitor a crise do homem do seu tempo: um homem sem projeto pré-dado, sem
destino, e, principalmente, sem sentido. Frente ao absurdo do mundo e a cólera que
recai sobre ele, Meursault sente-se purificado diante da morte e, finalmente, em casa, na
multidão de vazios de lugar nenhum, despede-se da humanidade que o odeia – e mais
nada.

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