● Quem é Paul Claval: Paul Claval nasceu em 23 de maio de 1932, na França. É um
geógrafo, considerado um dos maiores da atualidade, tendo recebido o prêmio Vautrin Lud, que é como se fosse equivalente ao prêmio Nobel para geógrafos. Lecionou na Universidade de Paris-Sorbonne, além de escrever cerca de 40 livros e 700 artigos e resenhas, se tornando referência mundial no estudo da geografia e assim contribuindo, principalmente no Brasil, para a discussão sobre cultura e a disseminação de suas diversas formas de manifestações, incluindo festejos. ● Objetivo do texto: refletir sobre os significados da festa religiosa desde a antiguidade grego-romana. ● Festa como responsável pela quebra do cotidiano. ● “A festa é acompanhada frequentemente por uma subversão — ou uma inversão — passageira da ordem social.” (p. 7) ● As características gerais da festa existem já na Antiguidade grego-romana, principalmente nas festas religiosas. ● Características gerais das festas: ○ Quebra do cotidiano; ○ Esquece-se temporariamente os problemas, colocando-os em pausa; ○ Enfeites e decorações efêmeras; ○ Reunião de pessoas com o objetivo de comemorar; ○ Música; ○ Desfiles e procissões; ○ Temporalidade diferente; ○ Dissolução dos limites e quebra de barreiras; ○ As pessoas agem de uma forma diferente do habitual a fim de saírem de si, seja se fantasiando, se pintando, colocando roupas diferentes ou usando drogas e álcool; ○ Desinibição: “as pessoas despem-se, exibem-se, beijam-se, e faz-se amor”. (p. 8); ○ “Explosão de espontaneidade” (p. 9); ○ “Parêntese de liberdade” (p. 9); ○ “Momento de realização dos sonhos e do impossível” (p. 9); ○ Catarse coletiva. ● Festivais: ○ Quebra da atmosfera habitual através do silêncio de quem assiste um espetáculo ou concerto, do recolhimento diante de uma pintura ou objeto; ○ Viés mais intelectualizado, ignorando as “alegrias populares” (p. 8). ● O que as pessoas buscam tanto nas festas quantos nos festivais não é só uma alegria passageira, mas “a suspensão das regras da vida normal, o esquecimento de suas hierarquias, a sua inversão mesmo: é por isso que estão disfarçadas, que zombam dos poderosos, parodiam-nos, queimando-os às vezes em efígie” (p. 8). → “O seu desrespeito de todo e todos não fazem esquecer os constrangimentos sociais?” (p. 8) ● As festas quebram com as regras do cotidiano muitas vezes para inserir-se em outras regras, tão convencionais quanto: “ela faz parte da vida social mais que a subverte” (p. 9). ● Mikhail Bakhtin → Rabelais → festa como expressão do gênio popular. ● Psicanálise → a transgressão das festas faz desaparecer a repressão, mostrando a verdadeira face de cada indivíduo. ● Analistas políticos → festas como jogos de poder → panem et circenses. ● Sagrado x Profano. ● A festa nasceu como festa religiosa → para entender a festa em geral, é necessário partir das formas que ela toma quando é religiosa. ● Na Grécia Antiga a festa era sempre religiosa. ● Vontade de ir além da realidade presente → primeira característica das religiões/quase-religiões e das festas religiosas. ● Características comuns das festas religiosas: ○ “A festa religiosa é construída sobre rituais que aproximam homens e deus” (p. 9) ■ Festa profana → rituais de aproximação entre os homens x Festa religiosa → rituais de aproximação entre os homens e deus(es) ou o divino. ■ Rituais como banquetes, libações, procissões, danças sequenciais até o transe, êxtase (p. 9). ■ Rituais de comensalidade → os homens se comunicam com o divino participando do mesmo banquete e das mesmas libações → são dados como os primeiros traços de culto na Grécia Antiga e também estão presentes na religião indo-védica, no Islã e no cristianismo, com a Eucaristia. ■ Pompé/procissão → os participantes acompanham a estátua da divindade, que não apenas a representa, mas é ela em si. ■ Comunicação com o divino a partir da possessão e da fundição com ele através de métodos que requerem isolamento e recolhimento (tais como jejum, meditação e prece) ou através de drogas psicotrópicas ou danças. ○ “A festa religiosa inscreve-se num outro tempo” (p. 11) ■ “A festa religiosa inscreve a existência social num outro tempo [...]. Ela quebra com a vida cotidiana” (p. 11). ■ O tempo das origens → judaísmo e cristianismo → os judeus são proibidos de trabalhar aos sábados e para os cristãos o descanso é obrigatório no domingo → eco das origens, da criação do mundo. ■ Tempo do mito → religiões anteriores à Revelação → “A festa marca um retorno ao tempo do mito, muitas vezes um tempo das origens, um tempo quando os seres e as coisas se comunicam e quando todos têm desta maneira acesso a verdade” (p. 11). → Há períodos de tempo sagrado, que são os tempos das festas, e períodos de tempo profano, no qual se encontra a duração de todos os atos sem significação religiosa. ■ O tempo sagrado é um tempo mítico primordial tornado presente (p. 12). ■ Embriaguez e uso de drogas psicotrópicas favorecem esse salto da realidade a um tempo além ou aquém desta. ■ O tempo da Revelação → histórico e divino simultaneamente → a festa é a comemoração de um evento em que Deus participou diretamente, intervindo no mundo → recorda o tempo no qual o Criador confiava a Moises e seu povo a tábua na qual foram gravadas as Leis, o tempo no qual falou aos profetas, o tempo no qual se fez homem. ■ O valor prescritivo dos rituais e o tempo da antecipação → tanto as religiões do mito quanto as religiões reveladas são caracterizadas por rituais cujo papel é normativo → procuram reviver as forças em ação no primeiro dia ou recriar a impulsão que o mundo recebe cada vez que O Senhor o visita de novo (p. 13). ■ “O tempo da festa permite que as pessoas se projetem no futuro” (p. 13). ○ “A festa religiosa inscreve-se num outro espaço” (p. 13) ■ A temporalidade e a espacialidade da festa são diferentes das do cotidiano. ■ Uma das funções essenciais da festa religiosa é restituir ao espaço das cidades, das aldeias e dos campos a sacralidade perdida (p. 14). ■ O espaço no qual a festa se inscreve é um espaço sagrado, que pode ser tanto um espaço no qual a sacralidade é permanente quanto um espaço onde a sacralidade é temporariamente recriada. ■ A festa religiosa ao mesmo tempo em que é litúrgica, ela também pode ser para-litúrgica → ela é primeiramente litúrgica pois são as autoridades religiosas que as criam, as inscrevem no calendário e definem sua inclusão no espaço e também são para-litúrgicas porque são organizadas com a ajuda de grupos leigos e de toda a população (p. 15) → mistura entre o sagrado e o profano. ● A diversidade das festas religiosas: ○ Grécia Antiga: as Antestérias (p. 16) ■ Festa religiosa dedicada a Dioniso que ocorria no início da primavera. ■ Era uma festa agrária e de renovação da vegetação e justamente por ser uma festa de renovação, também eram honrados os mortos e as divindades ctônicas. ■ Quebra do cotidiano num espaço de exceção e permissividade (p. 18). ■ As Antestérias eram um tempo, como diz Platão, para os homens relaxarem e recuperarem o fôlego e isso era alcançado através da boa comida, do vinho, da música, da dança, do prazer e da alegria (p. 17). ■ As Antestérias remontavam ao passado do mito, revivendo o passado heróico da cidade e assim aproxima o tempo mítico e o tempo dos homens, rejuvenescendo o mundo. A repetição e a efemeridade tornam esse momento eterno (p. 18). ■ A festa realizada em coletivo, portanto, reforça a solidariedade, a identidade do grupo e fortalece a coesão, algo que é indispensável para a manutenção da cidade (p. 18). ■ Os rituais antigos recordam que o tempo dos homens é simultaneamente o tempo dos vivos e dos mortos (p. 18). ○ Sincretismo na Coreia tradicional (p. 19) ■ Na Coreia tradicional, são duas as principais tradições religiosas: o xamanismo e o confucionismo. ■ Xamanismo: caracteriza-se como uma religião popular da natureza, na qual as mulheres desempenham um papel importante. ■ Confucionismo: filosofia de vida que sacraliza a vida familiar e as hierarquias sociais e políticas. ■ Ambas essas tradições são naturalmente opostas, mas durantes as festas elas se justapõem → alegria, transgressão, compensação, recolhimento e meditação se misturam no litúrgico e no para-litúrgico. ○ “Os antecedentes da festa Cristã” (p. 20) ■ A partir da Revelação, tudo o que veio antes desta deveria ser esquecido e para isso essa nova religião vai se apropriar de festas e rituais anteriores. ■ Carnaval → coincide com a data das Saturnais romanas e das Antestérias gregas. → Não pode ser considerada uma festa religiosa cristã em sua totalidade, é mais uma coincidência de calendário religioso tolerada pela Igreja. ○ “A festa cristã” (p. 21) ■ É fundamentalmente comemorativa: recorda os grandes eventos da vida de Cristo através de um calendário litúrgico que vai de seu nascimento, no Natal, até a sua crucificação, na Sexta-feira Santa, ressurreição, comemorada na Páscoa, e ascensão. Também lembra do nascimento da Igreja, comemorando a Ceia e o Pentecostes. ■ Inicialmente, a festa cristã tem uma característica de conquista por substituir as festas pagãs e incorporar alguns ritos destas. ■ A Reforma e, consequentemente, o Protestantismo dão menos valor às festas, mas as que permanecem sob esse modelo religioso são mais voltadas para a meditação e a reflexão. ■ A Contra Reforma mantém as festas cristãs, mas dá uma nova roupagem para as comemorações, buscando um potencial mais pedagógico. ○ Judaísmo e Islã (p. 22) ■ O judaísmo é uma religião muito ritualizada e dá um lugar essencial às suas festas, sendo as principais: Shabat, Yom Kipur, Rosh Hashaná, Pessach, Shavuot e Sucot. As três últimas festas citadas comemoram grandes eventos da história judaica e marcam momentos essenciais de um mundo agrário (p. 23). ■ O Islã é também uma religião muito ritualizada e como, em geral, não possui um clero e nem uma Igreja, a sua unidade é garantida a partir das cinco preces cotidianas, da grande prece pública da sexta-feira, do Ramadã, do fim do jejum ao término deste (Aïd al-fitr/Aïd es-seghir) e da festa do carneiro, o Aïd el-Kebir. Como o calendário islâmico é lunar, as festão não têm nenhuma relação com o ano agrícola ou pastoral. ● As festas quase religiosas das sociedades ideológicas (p. 23) ○ Século XVII → secularização do mundo → as sociedades ocidentais tornam-se sociedades ideológicas, ou seja, não vão mais pautar-se única e simplesmente na religião → como resultado, as festas não vão mais estar ligadas ao calendário agrário, uma vez que o mundo se urbanizou, e religioso → foco no calendário civil → comemoram-se aos mesmos moldes das festas religiosas as grandes datas das histórias dos países e os momentos de conquistas de direitos sociais. ○ “A festa profana, que nos parece ser a forma mais geral e a mais normal da festa, só é em efeito um avatar da festa religiosa num mundo em que a gente se crê mais num futuro apregoado que no Juízo Final e na vida eterna” (p. 23). ○ Assim como as religiões reveladas se apropriaram das festas pagãs, as sociedades ideológicas vão se apropriar das festas religiosas e assim irão criar seus próprios rituais. ○ Nas sociedades ideológicas, os festivais irão suceder às festas → preocupação com o progresso intelectual e moral → enaltecimento do teatro, da música, da ópera, da técnica e da ciência (p. 24). ○ As festas religiosas enquanto manifestações populares serão refinadas pelas classes sociais dominantes, restringindo cada vez mais o acesso. ● Novas ideologias e o retorno do religioso (p. 25) ○ A festa deixa de ser um parênteses, uma exceção → o que é festejado não são mais eventos excepcionais, mas sim componentes permanentes da vida → facilidade para os seres humanos se expressarem mais livremente → “A verdade não se esconde mais num além-celeste ou futuro, mas deste lado, no mais profundo dos seres e da natureza” (p. 26). ○ Século XIX e XX → disputa entre as ideologias e as religiões reveladas → as religiões eram responsáveis pela definição do que acontecia após a morte, enquanto as ideologias defendiam que a felicidade poderia ser alcançada no mundo terreno → necessidade das Religiões Reveladas de se adaptarem → vão passar a procurar responder os anseios dos fiéis em vez de ficarem alegando um monopólio da verdade. ○ Aproximação da festa religiosa com as festas para-religiosas das ideologias pós-modernistas. ● Conclusão (p. 27) ○ A festa profana, na verdade, “é a expressão das duas formas de ideologias que completam as religiões tradicionais e substituem-se parcialmente nelas: as ideologias do progresso, hoje em declínio, e as ideologias da autenticidade do corpo, do ser e da natureza, que caracterizam a pós-modernidade” (p. 27-28). ○ É impossível evocar todas as dimensões da festa religiosa, suas diversidades, origens e ainda traçar uma linha evolutiva e destrinchar todas as suas ramificações. No entanto, é possível uma visão panorâmica da festa, dos seus rituais, das quebras espaço-temporais e das justaposições de espaços.