Você está na página 1de 107

Programa Antropologia Política 2022.

1 ANTROPOLOGIA POLÍTICA

29/04 - Apresentações
Reparem que as nossas aulas têm um tema, e utilizaremos uma bibliografia para trabalhá-lo,
que será disponibilizado na semana anterior. NÃO É PERMITIDO utilizar nas avaliações 06/05 – A política na Antropologia (Texto: Karina Kuschnir - Antropologia da Política)
textos que não estejam previstos na disciplina. A única EXCEÇÃO é para o Desenho de
Pesquisa, que fará parte da avaliação. Falaremos mais sobre isso no momento oportuno. 13/05 – A política no cotidiano (Texto: Karina Kuschnir – O cotidiano da política -
Introdução, caps. 01 a 05 e Considerações finais)
Reparem também que temos atividades previstas para algumas aulas. Elas também serão
20/05 – A política na universidade (Ciméa Barbato Bevilaqua)
melhor explicadas no momento oportuno, pois compõem a nota de vocês.
27/05 – Filme: "Vocação do Poder"
Quanto às avaliações, serão compostas da seguinte forma:
P1: Prazo de entrega (pela Sala de Aula no Google): 10/06 03/06 – ATIVIDADE I
P2: Prazo de entrega (também por aqui): 29/07 10/06 – Entrega da P1

Ao final, somaremos essas duas notas e dividiremos por 2 para obtermos a média parcial. 24/06 – Vista de prova
Caso essa média seja igual ou superior a 7,0 (sete), você terá obtido a aprovação e seguirá
01/07 – A formação do Estado (Lawrence Krader – Prefácio, Introdução, cap. 01 e
para as férias!
Conclusões)
Caso sua média parcial fique entre 4,0 (quatro) e 6,9 (seis vírgula nove), deverá ser entregue 08/07 - A sociedade contra o Estado (Pierre Clastres – caps. 01, 02 e 11)
Prova Final no dia 19/08. Ela também será disponibilizada pelo Google Sala de Aula.
Reparem que todas as avaliações são assíncronas, ou seja, serão produzidas em casa e 15/07 - Atividade de campo - Visita à Aldeia Maraka'ná
entregues na data estipulada. Para calcular a média final somaremos a média parcial com a
22/07 - ATIVIDADE II
nota da Prova Final e dividiremos por dois; caso a média final seja igual ou superior a 5,0
(cinco), teremos a aprovação. Do contrário, reprovação. 29/07 – Entrega da P2

Caso a média parcial seja inferior a 4,0 (quatro), teremos reprovação sem chance de Prova 05/08 – Vista de prova
Final. 12/08 – Segunda chamada

Caso alguém não entregue a P1 e/ou a P2, poderá fazer a Segunda Chamada, que também será 19/08 - PF
uma avaliação assíncrona, disponibilizada anteriormente, que deve ser entregue até 12/08.
Caso alguém não entregue nenhuma das duas avaliações regulares (P1 e P2) poderá fazer a BIBLIOGRAFIA DA DISCIPLINA (os pdfs serão disponibilizados na semana anterior
Segunda Chamada, mas essa nota será dividida por 2 para compor a média parcial (ou seja, a às aulas):
média parcial máxima nesse caso é 5,0). BEVILAQUA, Ciméa Barbato. Entre o previsível e o contingente: etnografia do processo de
decisão sobre uma política de ação afirmativa. In: Revista de Antropologia, v. 48, no. 1, 2005.
Segue o programa.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Porto: Edições Afrontamento, 1979.

KRADER, Lawrence. A formação do Estado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1970.

KUSCHNIR, Karina. Antropologia da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2007.

__________________. O cotidiano da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000.


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Escola de Ciência Política Bibliografia auxiliar:
Pensamento Político Brasileiro I
Lynch, Christian Edward Cyril Lynch (2021). Absolutismo ilustrado e imaginário imperial brasileiro
Professor: Christian Lynch no Antigo Regime (1750-1820). Cadernos de Estudos Estratégicos, v. 1/2021, p. 6-18, 2021.
Horário: quartas-feiras de 14 às 18 horas
Lynch, Christian Edward Cyril (2017). Visconde do Uruguai: realismo periférico, construção do
Estado e geopolítica na América Ibérica oitocentista. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRAPHICO BRAZILEIRO, v. 475, p. 281-296.

Primeira parte:
Teoria do pensamento político brasileiro 5. Alberto Torres.

Torres, Alberto (1914). O problema nacional brasileiro. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional.

1. Por que pensamento e não teoria? A imaginação política brasileira e o fantasma da condição
6. Oliveira Vianna
periférica.

Vianna, Oliveira (1974). Problemas de organização e problemas de direção. Rio de Janeiro,


Lynch, Christian Edward Cyril (2013). Por que pensamento e não teoria? A imaginação político- Record.
social brasileira e o fantasma da condição periférica. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de
Janeiro, vol. 56, no 4, 2013, pp. 727 a 767. Bibliografia auxiliar:

Lynch, Christian Edward Cyril (2018). Um conservadorismo nacional-estatista: nacionalismo,


2. Cartografia do pensamento político brasileiro: conceito, história, abordagens. democracia cristã e crítica do neoliberalismo na obra de Oliveira Vianna. Política Hoje (UFPE.
. Impresso), v. 27, p. 9-25, 2018.

Lynch, Christian Edward Cyril (2016). Cartografia do pensamento político brasileiro: conceito,
história, abordagens. Revista Brasileira de Ciência Política, nº19. Brasília, janeiro - abril de 2016, b) O conservadorismo societário ou culturalista:
pp. 75-119.
7. José de Alencar

3. Idealismo e realismo no pensamento político brasileiro: três modelos de história intelectual.


Alencar, José de (2009). Cartas de Erasmo. Organização de José Murilo de Carvalho. Rio de
Janeiro, ABL.
Lynch, Christian Edward Cyril (2021). Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento
brasileiro: três modelos de história intelectual. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 34. Bibliografia auxiliar:
e237103, 2021, pp 1-57. Lynch, Christian Edward Cyril (2017). CONSERVADORISMO CALEIDOSCÓPICO: EDMUND
BURKE E O PENSAMENTO POLÍTICO DO BRASIL OITOCENTISTA. Lua Nova. Revista de
Cultura e Política, p. 313-362, 2017.

Segunda parte:
Interpretações da realidade brasileira (a “velha” ciência política) 8. Gilberto Freyre

Freyre, Gilberto (1966) [1933]. Casa Grande e Senzala. Rio, José Olímpio (Primeira parte)

Bibliografia auxiliar:
a) O conservadorismo estatista:
Lynch, Christian Edward Cyril e Paganelli, Pía (2017). O conservadorismo culturalista de Gilberto
4. Visconde de Uruguai. Freyre: sociedade, decadência e mudança social em Sobrados e Mocambos (1936). Sociologia &
Antropologia [online]. 2017, v. 7, n. 3 [Acessado 12 Novembro 2021] , pp. 879-903.
Uruguai, Paulino José Soares de (1960). Ensaio sobre o direito administrativo. Rio de
Janeiro, Ministério da Justiça. (Preâmbulo, capítulos 26 a 31).
c) O liberalismo democrático
e) O nacional-desenvolvimentismo:

9. Tavares Bastos 14. Hélio Jaguaribe

Bastos, Aureliano Cândido Tavares (1975) [1860]. Cartas do Solitário. São Paulo, Jaguaribe, Hélio (1957). Condições institucionais de desenvolvimento. Rio, ISEB.
Companhia Editora Nacional, 1975 (Cartas I, III, IV, XII, XV, XVI, XXI, XXII, XXVII,
XXX). Jaguaribe, Hélio (1954). O Moralismo e a Alienação das Classes Médias. In: Simon
Schwartzman, editor, O Pensamento Nacionalista e os "Cadernos de Nosso Tempo". Brasília,
Câmara dos Deputados e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, 1981, pp. 32-38.
10. Joaquim Nabuco
Bibliografia auxiliar:
Nabuco, Joaquim (1988) [1883]. O Abolicionismo. Rio de Janeiro, Editora Vozes (capítulos
I, XI, XIII, XIV, XV, XIX). HOLANDA, Cristina Buarque de (2012). Os Cadernos do Nosso Tempo e o interesse nacional.
Revista Dados, vol.55, no.3, Rio de Janeiro.
Bibliografia auxiliar:

Lynch, Christian Edward Cyril (2098). A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos 15. Guerreiro Ramos
de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Revista de Sociologia e Política [online]. 2008, v. 16, n. supl,
pp. 113-125.
Ramos, Alberto Guerreiro (1995). Introdução crítica à sociologia brasileira. 2ª. Edição. Rio
de Janeiro: Editora da UFRJ (Cartilha do aprendiz de sociólogo)
11. Rui Barbosa
Bibliografia auxiliar:

Barbosa, Rui (1956) [1919]. Campanha presidencial. Obras completas de Rui Barbosa, Lynch, Christian Edward Cyril Lynch (2015). Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de
volume XLVI, Tomo I. Rio de Janeiro, Ministerio da Educação e Cultura (Às classes Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH (Online), v. 28, p. 27-45,
conservadoras e A questão social e política no Brasil) 2015.

Bibliografia auxiliar:

Lynch, Christian Edward Cyril (2010). Entre o Liberalismo Monárquico e o Conservadorismo Conclusão: da “velha” à “nova” ciência política (1964-1974)
Republicano: a democracia impossível de Rui Barbosa. Revista da Escola de Magistratura Regional
Federal, v. Esp., p. 39-65
Lynch, Christian Edward Cyril (2017). Entre a “Velha” e a “Nova” Ciência Política: Continuidade
e Renovação Acadêmica na Primeira Década da Revista DADOS (1966-1976). DADOS - REVISTA
DE CIÊNCIAS SOCIAIS v. 60, p. 663-702, 2017.
12. Sérgio Buarque/ Raymundo Faoro

Holanda, Sérgio Buarque de (1956) [1947]. Raízes do Brasil. 3ª. Edição. Rio, José Olímpio
(Homem cordial, Novos tempos e Nossa Revolução).

Faoro, Raymundo (2001) [1958]. Os Donos do Poder: formação do patronato político


brasileiro. 3.a edição, revista, 2001. (A viagem redonda: do patrimonialismo ao estamento)

d) O neoliberalismo:

13. Alberto Sales/Joaquim Murtinho/Eugênio Gudin/Roberto Campos

Lynch, Christian Edward Cyril Lynch (2020). Nada de novo sobre o sol: teoria e prática do
neoliberalismo brasileiro. INSIGHT INTELIGÊNCIA (RIO DE JANEIRO), v. 91, p. 16-49,
2020.
Karina Kuschnir Sumário

Introdução
Histórico de um campo de estudos
Cultura política
Antropologia da política Sociedade de esquina: um estudo exemplar
A antropologia da política no Brasil
Rituais e política
Política, espaço urbano e mediação
Observação participante no campo da política
Interdisciplinaridade e diálogo acadêmico
Referências e fontes
Agradecimentos
Sobre a autora
Introdução Histórico de um campo de estudos
Às vésperas da eleição, uma candidata ao cargo de vereador sai para cumprir uma longa lista de reuniões e visitas às casas de O interesse da antropologia pela política existe desde os primórdios da disciplina. No contexto da tradição evolucionista, que
seus eleitores em um subúrbio do Rio de Janeiro. No trajeto, passa por ruas conhecidas desde a infância, agora coalhadas de marcou a fase inicial da antropologia, o foco recaía sobre as formas e sistemas de poder em sociedades “primitivas”, cujas
fotos suas. Cartazes e faixas se espalham nos muros das casas e nas janelas dos apartamentos dos condomínios populares. A características deveriam ser comparadas e classificadas em relação ao sistema político das sociedades modernas, vistas como
monotonia só é quebrada porque um assessor percebe um problema: vários carros ostentam adesivo com a propaganda de mais evoluídas. Em relação à suposta evolução das formas de organização política, traçava-se uma linha que ia desde a
outro candidato, que tem sua base eleitoral em um bairro nobre da cidade! O que aquele anúncio forasteiro estava fazendo ali, “horda primitiva” até o Estado moderno. Nessa época de hegemonia do evolucionismo, que poderíamos situar entre as últimas
na porta de uma casa onde mais de 30 pessoas esperavam a candidata com salgadinhos e refrigerantes? A explicação, dada décadas do século XIX e o início da década de 1920, a grande maioria dos estudos antropológicos não tomava a política
por um senhor sorridente, porém levemente constrangido, foi inesperada: jovens da região adotaram o adesivo desse como tema central de interesse, nem a antropologia política era pensada ou formalizada como uma subárea de estudos.
candidato para conquistar as garotas do local. Esperavam se passar por vizinhos do político, morador de um bairro de elite, Com o avanço da tradição estrutural-funcionalista britânica, no entanto, a política ganhou espaço, sobretudo nas
valorizado por ter um estilo de vida “moderno” e “muito melhor que o suburbano”. etnografias realizadas no contexto colonial anglo-africano. Muitos desses estudos buscavam entender a organização social de
Episódios aparentemente irrelevantes como esse podem ser uma extraordinária via de acesso para a compreensão de um grupos e etnias sem a presença de um sistema político formal, isto é, sem Estado. É nessa direção que surgem as reflexões
universo político. Por meio de sua interpretação, em conjunto com outros dados de campo, podemos compreender o sobre a importância dos sistemas de parentesco para a hierarquia e coesão sociais, tendo como referência inicial o
planejamento de uma campanha local, o contato com os moradores de uma região específica, características da candidatura, de antropólogo britânico Alfred R. Radcliffe-Brown (1881-1955). Alguns dos textos fundamentais da então recém-nomeada
seu partido político, bem como os padrões de votação esperados. Tudo indica que o controle exercido pelo político “antropologia política” são produzidos nesse contexto. Em 1940, são publicadas a coletânea African Political Systems
considerado “dono” daquela área remete a relações “clientelistas” com a população. Por qual outra razão o morador deveria (Sistemas políticos africanos), organizada pelos britânicos Meyer Fortes (1906-83) e Edward E. Evans-Pritchard (1902-73),
tentar explicar e justificar o adesivo no carro parado à porta de sua casa, senão pela existência de vínculos de lealdade e e a monografia Os Nuer, também de Evans-Pritchard.
dívida? Como os cartazes e faixas foram parar na porta das casas e nas janelas das pessoas senão por consentimento das A expressão “antropologia política” foi consagrada em uma revisão bibliográfica com esse título publicada em 1959 pelo
mesmas e, muito provavelmente, como uma retribuição de favores prestados ou pela expectativa de favores futuros? Quem cientista político canadense David Easton (n.1917), que cobrava da antropologia um enfoque que tomasse as práticas e
mandou fazer essas peças de propaganda, com qual dinheiro e quem as colocou ali? instituições políticas por si mesmas e não por suas relações com as demais esferas sociais, como o parentesco, por exemplo.
Candidatos, financiadores de campanha, assessores de vários tipos e moradores são participantes ativos desse episódio. Easton criticava também a definição de poder dos antropólogos, que teria tornado-se tão ampla que poderia ser encontrada em
São parte de um mesmo universo político e não elementos isolados um do outro, como a política também não está isolada da qualquer situação social, englobando todos os temas da disciplina. O artigo foi duramente criticado por antropólogos, pois
vida social. Ao contrário, vemos nesse episódio aflorarem diferenças geracionais, com estratégias sociais e visões de mundo essa visão relacional era exatamente o que eles buscavam alcançar, fugindo assim às visões etnocêntricas presentes nos
nem sempre comuns. Observamos as divisões da cidade e suas distinções econômicas, morais e simbólicas. Percebemos a estudos relacionados às práticas políticas das sociedades chamadas “primitivas”.
importância dos rituais de celebração e comensalidade no fortalecimento de vínculos entre as pessoas. Vemos, de relance, Para Radcliffe-Brown, em prefácio a African Political Systems, o estudo do sistema político de uma sociedade constituía-
como se atualizam relações profissionais, de amizade, aliança e parentesco. Notamos diferentes usos para bens de consumo e se em um dos meios privilegiados para se compreender a natureza de suas instituições sociais. Uma questão central para a
suas relações com a identidade. Podemos conhecer, ainda, a posição privilegiada da antropóloga que estava dentro do carro antropologia africanista era a necessidade de se encontrar instrumentos teóricos capazes de lidar com o sistema de
da candidata e foi testemunha ocular da cena. organização, manutenção e controle da força em sociedades tribais que não tinham a presença de um Estado centralizado nos
A antropologia da política tem por objetivo entender como os atores sociais compreendem e experimentam a política, isto moldes europeus. Os antropólogos recusavam-se a classificar as sociedades primitivas pela negatividade, como se fossem
é, como interagem e atribuem significado aos objetos e às práticas relacionadas ao universo da política. Embora simples, essa sociedades “sem política” por não terem um Estado centralizado nos moldes ocidentais, preferindo buscar em outras
é uma proposta complexa e que implica pelo menos dois pressupostos. O primeiro, de que a sociedade é heterogênea, formada dimensões da vida social os meios de conformação da sua organização política.
por redes sociais com múltiplas percepções da realidade. O segundo, de que a “política” ou o “mundo da política” não é um Ao dissociar o entendimento da política da presença de instituições baseadas nos modelos da sociedade ocidental, a
dado a priori, mas precisa ser investigado e definido a partir das formulações e comportamentos de pessoas e contextos antropologia reafirmava a importância da pesquisa etnográfica para um entendimento mais profundo da vida social. A
particulares. monografia de Evans-Pritchard sobre o sistema político Nuer é um dos marcos dessa perspectiva de análise, por mostrar que o
Tomo a política, e a sociedade em geral, como fruto da ação coletiva, isto é, de uma rede de pessoas que interagem e se sistema de parentesco era a chave da organização política daquela sociedade. A política não se revelava pelo surgimento de
influenciam reciprocamente por meio de relações complexas e dinâmicas. Como veremos adiante, existem múltiplos “mundos uma instituição central, e sim pela existência de um “relacionamento estrutural” de antagonismos persistentes e equilibrados.
da política”, dependendo do contexto etnográfico que se estuda. Para compreender esses mundos é importante estudar tanto as Estes eram expressos no relacionamento com povos vizinhos e entre diversos segmentos da sociedade Nuer, e organizados em
concepções dos políticos quanto de seus financiadores, assessores, eleitores e da sociedade mais abrangente na qual estão função de situações sociais específicas. O entendimento da estrutura política Nuer dependia da compreensão do princípio
inseridos. segmentário de organização dos diversos grupos, da “lógica da situação” que os constituía e do permanente conflito entre
A abordagem antropológica da política privilegia a dimensão simbólica, ou seja, a interpretação que os atores sociais valores rivais dentro de um mesmo território.
fazem das instituições, relações e objetos com os quais lidam no seu cotidiano. Essa interpretação se exprime e se constrói E m Political Systems of Highland Burma (Sistemas políticos da Alta Birmânia), de 1954, outro antropólogo inglês,
tanto nas conversas, falas e discursos quanto nas decisões e ações empreendidas. No episódio do adesivo, vimos um pequeno Edmund Leach (1910-89), criticava a noção de sociedades em “equilíbrio contínuo” que estava subjacente à maior parte dos
fragmento de um mundo da política onde candidatos e eleitores mantêm relações estreitas de trocas e vizinhança e tomam a trabalhos da coletânea organizada por Fortes e Evans-Pritchard sobre os sistemas políticos africanos. Baseado em sua
política essencialmente como um meio de acesso a recursos públicos. experiência de pesquisa no norte da então Birmânia (atual Myanmar), Leach afirmou ser necessário mostrar que a estrutura
social está em permanente mutação, parecendo estável e coerente apenas no relato etnográfico. A antropologia precisaria
Antropologia política ou antropologia da política? A diferença entre as duas alternativas é que, na primeira, a palavra rever uma concepção de sociedade em equilíbrio se quisesse dar conta dos processos de transformação e mudança. Em
“política” corre o risco de ser entendida de forma adjetivada, enquanto na segunda é claramente compreendida como objeto de contraposição aos africanistas, Leach defendia a tese de que certas sociedades, pautadas pela convivência de culturas e visões
pesquisa. A mudança na denominação do campo indica a preocupação dos antropólogos em não confundir os dados do de mundo heterogêneas, são estruturalmente instáveis, o que poderia ser mais bem observado em um processo histórico, e não
material etnográfico com a posição ideológica dos pesquisadores. No Brasil, a adoção da expressão “antropologia da apenas a partir de uma visão voltada para o presente. A partir dessa perspectiva, o autor procurava dar conta de dimensões
política” acompanha mudanças semelhantes ocorridas na Europa e nos Estados Unidos, onde encontramos cada vez mais aparentemente incoerentes da vida social, buscando compreender seus mecanismos de integração e conflito.
menções à anthropology of politics ou anthropologie du politique. Porém, muitos livros na área ainda são classificados A incorporação das noções de processo e ritual também é parte da abordagem de autores que contribuíram decisivamente
como “antropologia política”. para o campo da antropologia política, como Max Gluckman, Victor Turner, Marc Swartz, Arnold Epstein, Paul Friedrich,
Este livro divide-se em oito seções. Nas quatro primeiras, discuto a literatura sobre o tema da antropologia da política e John Middleton, Arthur Tuden e Frederick G. Bailey.
alguns de seus aspectos teóricos. A seguir, procuro apresentar alguns exemplos de pesquisas que realizei, bem como discutir A valorização da pesquisa de campo que marca a antropologia moderna também está presente, de um modo geral, nessa
problemas metodológicos relacionados a pesquisas etnográficas sobre esse objeto. Para finalizar, a última seção debate a antropologia política clássica. Esses autores procuravam, com isso, ampliar o universo de investigação do pesquisador para
contribuição de diferentes áreas das ciências sociais para a compreensão da política.
além da ação dos atores, englobando seu repertório de valores e significados. No entanto, embora freqüentemente dialoguem pulverização de problemas teóricos e temas de pesquisa. Muitos desses novos campos são fruto do enfrentamento dos desafios
entre si, esses antropólogos não produziram abordagens homogêneas. Se em uma primeira etapa foi dada maior ênfase aos impostos por uma conjuntura mundial na qual convivem forças políticas e culturais em múltiplos níveis como comunismo,
aspectos de coesão e equilíbrio social, à medida que avançamos no tempo observamos maior preocupação com as capitalismo, colonialismo e movimentos sociais de diversos tipos. Entre estes, a área dos estudos feministas e os movimentos
transformações sociais. Passando, assim, a situar as relações de poder não só no espaço como também no tempo, bem como anticolonialistas ganham destaque por sua importante contribuição para a reflexão sobre o poder.
entendendo-as a partir de temáticas como conflitos, rituais, mitos, identidades, status, representações e práticas.
Conforme observamos, uma das preocupações centrais desses antropólogos era ampliar o conceito de atividade política,
evitando uma visão etnocêntrica da política que tomasse o Estado moderno-contemporâneo como o produto final de uma
suposta evolução política. No caso das sociedades africanas, particularmente, tratava-se de rediscutir o papel do Estado
colonial e as repercussões desse modo de dominação na cultura e na organização social das populações nativas. As relações
de parentesco, étnicas e religiosas são repensadas, revelando-se que constituem dimensões fundamentais — por vezes
exclusivas — de atualização da vida política. Valoriza-se também o papel de indivíduos singulares que, dentro de contextos
complexos, atuariam como mediadores entre múltiplos níveis culturais. Devolveram-se, nesse sentido, importantes trabalhos
sobre mediação e política, com reflexões acerca de um amplo e heterogêneo conjunto de relações pessoais — favores,
compromissos, lealdades, clientela. A partir das décadas de 1950 e 1960, as análises se historicizam, chamando atenção para
os processos de transformação das estruturas sociais.
O antropólogo britânico Victor Turner (1920-83) foi um dos autores centrais nessa direção. Em O processo ritual, de
1969, e em Drama, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society (Dramas, campos e metáforas: Ação
simbólica na sociedade humana), de 1974, Turner desenvolveu um método de observação e análise de “dramas sociais”,
episódios em que conflitos e tensões inerentes a um grupo social irrompem publicamente. Sua perspectiva de análise focaliza
a permanente oscilação entre ordem e mudança, equilíbrio e desequilíbrio, estrutura e anti-estrutura.
A tentativa de definir aquilo que seria universal na política é uma preocupação fundamental na obra de Frederick G.
Bailey (n.1924). Para o antropólogo inglês, aluno de Leach e um dos expoentes, junto com Max Gluckman, da chamada Escola
de Manchester, existiriam certas regras universais relativas aos comportamentos políticos. Caberia aos antropólogos buscá-
las através do estudo das práticas políticas que não estão explícitas em regras normativas e públicas, mas sim em uma
sabedoria privada e pragmática, voltada para a obtenção de resultados eficazes. Independentemente das diferenças, todas as
culturas teriam suas táticas de manipulação política, com as quais o pesquisador poderia aceder através da abordagem
etnográfica minuciosa das negociações cotidianas. Parte da densa e influente obra de Bailey foi publicada em um período de
grande efervescência na área, entre as décadas de 1960 e 1970, quando se editaram monografias e coletâneas importantes
como Political Anthropology (Antropologia política, 1966, organizado por Swartz, Turner e Tuden) e Local-Level Politics:
Social and Cultural Perspectives (Política local: Perspectivas sociais e culturais, 1968, organizado por Swartz).
A idéia de que as relações de poder são intrínsecas às relações sociais, de um modo geral, é um dos temas fundamentais
da antropologia que tem se dedicado às análises sobre a política. Em Anthropological Approaches to Political Behavior
(Abordagens antropológicas do comportamento político ), de 1991, Frank McGlynn e Arthur Tuden resumem esse ponto de
vista. O poder (ou a política) estaria presente em todas as relações sociais em que existe algum tipo de assimetria. Seria
preciso estudá-lo dentro de um contexto sociocultural, identificando suas dimensões materiais, psicológicas e sociais, sem
deixar de lado os processos de mudança dessas configurações. É nessa mesma direção que a antropóloga norte-americana
Joan Vincent, em Anthropology and Politics (Antropologia e política), de 1990, faz uma extensa revisão das principais linhas
de pesquisa da área, mantendo um fio condutor na história de obras e autores, ao qual voltaremos ao final deste livro.
Cabe ressaltar também a importante obra do antropólogo francês Pierre Clastres (1934-77) para a constituição de uma
antropologia política, principalmente seus livros Arqueologia da violência e A sociedade contra o Estado. Clastres talvez
tenha sido o autor que propôs a relativização mais radical da noção de política. Na sua visão, o poder político é universal,
inerente ao social e, diferentemente do que ocorre nas sociedades com Estado, pode ser exercido de forma não-coercitiva.
Nas sociedades primitivas, principalmente nas sul-americanas (foco de seus estudos etnográficos), a finalidade do poder não é
impor a vontade do chefe sobre o grupo, mas sim expressar o “discurso da sociedade sobre ela mesma”, de modo a preservar
seu caráter solidário e indiviso.
A análise do poder nas sociedades primitivas também serve de pretexto para que Clastres faça uma crítica àqueles que
apontam a primazia da esfera econômica na determinação da vida social. Para o autor, são as relações de poder e, portanto a
esfera da política, que estruturam as relações sociais. Essa visão tem um caráter singular dentro da antropologia política
porque, como dissemos anteriormente, Clastres recusava as definições de poder coercitivo das sociedades “civilizadas”. Por
isso mesmo, suas pesquisas não encontraram apenas outras formas e princípios de expressão das relações de poder (como
fizeram muitos africanistas, segundo se criticou mais tarde), mas sim um poder fundamentado em princípios radicalmente
diferentes — um poder que se exercia em nome do grupo com a finalidade de perpetuar o caráter igualitário das relações
sociais. Em uma perspectiva que se aproxima da tradição da filosofia política anarquista, Clastres destacava a luta da
sociedade primitiva contra o surgimento do Estado.
Com o crescimento da produção acadêmica na antropologia política, ocorre um afastamento do cânone tradicional e uma
Cultura política uma cultura”.
Embora com abordagens e métodos de pesquisa diferentes, a reflexão de Almond e Verba sobre cultura política caminha
Já que “cultura” é um dos conceitos centrais da antropologia, podemos perguntar por que os estudos de antropologia da
na mesma direção dos estudos de caráter nacional. Inspirados por esses trabalhos, os autores importam o conceito de cultura
política não adotam mais freqüentemente o conceito de “cultura política”, criado na década de 1960 pelos cientistas políticos da antropologia, no sentido assumidamente simplificado de “orientação psicológica em relação aos fatos sociais”,
Gabriel Almond e Sidney Verba em The Civic Culture (A cultura cívica), a partir da combinação das perspectivas
considerando a existência de padrões de comportamento relativamente estáveis e consistentes em uma determinada sociedade.
sociológica, antropológica e psicológica no estudo dos fenômenos políticos. Este termo, que ficou muito associado aos
A “política”, por sua vez, é concebida como uma esfera autônoma que, por isso mesmo, poderia ser percebida, analisada e
estudos de ciência política e à realização de pesquisas de opinião, passou a ser também bastante utilizado por historiadores, avaliada pelos indivíduos desta sociedade.
embora hoje esteja praticamente abandonado na antropologia.
Cultura política, portanto, remete a uma orientação subjetiva em relação a um determinado sistema político. É preciso
A intenção de Almond e Verba era forjar um conceito que combinasse o campo da política com a variável cultural,
ressaltar, porém, que a utilização do conceito por Almond e Verba está vinculada a uma preocupação quanto às condições de
incorporando, nas análises da política da sociedade de massas contemporânea uma abordagem comportamental, que levasse
desenvolvimento dos sistemas políticos democráticos. Dessa forma, em sua própria gênese, o conceito de cultura política não
em conta os aspectos subjetivos das orientações políticas, tanto do ponto de vista das elites, quanto do público dessa pode ser dissociado do modelo de comportamento político presente nas democracias participativas. Diferentemente da noção
sociedade. O objetivo central de The Civic Culture era discutir o papel da cultura política no funcionamento dos regimes antropológica de cultura que traz implícita a idéia de relativização, Almond e Verba propuseram que a cultura política
democráticos. Para tanto, cultura política era definida como a expressão do sistema político de uma determinada sociedade democrática — ou cultura cívica, para usar a terminologia dos autores — é uma conquista da sociedade ocidental. Seu projeto
nas percepções, sentimentos e avaliações da sua população. O conceito atribui grande importância ao processo de era entender como essa cultura tem sido (ou não) absorvida nas sociedades contemporâneas. Nos países que passaram por
socialização (que tem lugar em espaços sociais distintos como a família, a escola e o trabalho) na definição do comportamento regimes autoritários, os estudos de cultura política voltaram-se para análises da presença e difusão de valores democráticos
político. A suposição de que há uma relação entre o processo de socialização e o comportamento político exige o
na sociedade. No caso específico da transição latino-americana, várias pesquisas tiveram como foco o processo de transição
reconhecimento de que as respostas dos atores a situações sociais objetivas não ocorrem em um plano único, no qual nenhum
político-institucional e as mudanças (ou não) de atitude frente à democracia.
componente subjetivo intervém. Ao contrário do que propõem os modelos básicos da teoria da escolha racional, hoje
dominantes na ciência política, as respostas se dão através de orientações mediadas pela avaliação subjetiva que o ator A maior parte dos antropólogos brasileiros tem evitado o uso do conceito de cultura política. Em alguns casos, usa-se o
realiza dessas situações sociais. termo frouxamente, sem remeter à sua origem e conceituações fundamentais formuladas por Almond e Verba. Assim,
privilegia-se a força do conceito antropológico, que entende cultura como rede de significados que dá sentido à percepção da
Para a elaboração do conceito de cultura política, Almond e Verba inspiraram-se em trabalhos das mais diversas áreas do realidade. A palavra “política” compõe o conceito apenas reforçando o fato de que trata-se de valores e práticas presentes na
conhecimento — a história, a filosofia, a antropologia, a sociologia e a psicologia — que haviam se dedicado ao estudo das esfera das atividades políticas, no sentido institucional do termo (eleições, representação parlamentar, organização partidária,
dimensões subjetivas da política. Nesse universo, a principal referência é a chamada Escola de Cultura e Personalidade que
funcionamento legislativo etc.).
se desenvolveu nos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1960. Naquele momento, antropólogos como Edward Sapir,
Margaret Mead e Ruth Benedict, vinculados à tradição culturalista fundada por Franz Boas, direcionaram suas pesquisas para No Brasil, os estudos de cultura política acabaram restringindo-se ao campo da ciência política, praticamente deixando de
a compreensão da cultura, de um modo geral, e das questões relacionadas ao caráter nacional. lado o debate com a tradição antropológica que, como vimos, teve um papel fundamental para a conformação do seu conceito-
chave. A discussão em torno da rentabilidade da noção de cultura política permite retomar de forma produtiva esse diálogo,
A noção de cultura utilizada por Almond e Verba tem inspiração direta na formulação do conceito de cultura por parte que valorizaria as análises que pressupõem maior complexidade da vida social, não deixando de lado a dimensão da
desse grupo de antropólogos. Uma das referências-chave é Patterns of Culture (Padrões de cultura), de Ruth Benedict, de subjetividade, tanto na antropologia quanto na ciência política.
1934. Cultura era ali entendida como uma articulação de padrões de comportamento apreendidos socialmente por meio de
processos de transmissão de tradições e idéias, sem qualquer determinação biológica. O pesquisador não deveria isolar
objetos de pesquisa sem perder de vista o caráter holístico do conceito de cultura, isto é, a integração e a articulação da
totalidade social.
Nessa perspectiva, a observação etnográfica foi apontada como o método, por excelência, capaz de elucidar as
motivações, emoções e valores que dão significado aos comportamentos individuais de uma determinada cultura. Para o
estudo da sociedade ocidental, era preciso estar atento à convivência de múltiplos códigos culturais que não estão,
necessariamente, circunscritos a regiões geograficamente delimitadas nem a instituições sociais específicas. A compreensão
do comportamento individual partia do princípio de que indivíduo e sociedade constituem-se mutuamente, não sendo entidades
distintas. Na perspectiva relativizadora desses autores, a cultura ocidental não deveria ser tomada como o padrão universal
para aferição das demais formas de organização social. Era preciso, como escreve Benedict, apostar na tolerância entre
modos de vida e na coexistência dos distintos, porém igualmente válidos, padrões culturais da humanidade.
Alguns anos mais tarde, já no âmbito da Segunda Guerra Mundial, as concepções e métodos de pesquisa da Escola de
Cultura e Personalidade passaram a ser direcionados para os estudos de “caráter nacional”. É, sobretudo, esse desdobramento
que exerce influência decisiva sobre o trabalho de Almond e Verba e, conseqüentemente, sobre sua definição de cultura
política. A noção de caráter nacional vinha tentar suprir uma lacuna dos estudos de cultura e personalidade, que pareciam não
dar conta, por trabalharem por meio de métodos de observação direta, de definir aquilo que haveria de comum na cultura
compartilhada por cidadãos de uma sociedade/nação contemporânea. A maior ou menor homogeneidade de um caráter
nacional dependeria do grau de uniformidade e controle dos governos sobre os indivíduos e a sociedade. Havia, nessa
abordagem, o pressuposto de que cada membro da sociedade é representativo de um padrão cultural mais amplo, apreendido
por meio de processos de socialização e comunicação. Por isso mesmo, a definição dos padrões culturais que compõem um
caráter nacional dependeria menos de pesquisas quantitativas, de grande amplitude, do que de investigações de experiências
subjetivas, feitas em profundidade e de forma multidisciplinar.
Naquele momento de perplexidade, marcado pela experiência traumática de uma guerra mundial, tornava-se necessário
pensar o papel político dos Estados-nação. Cada vez mais, constatava-se que indivíduos e grupos orientavam suas ações em
função dos chamados “valores nacionais”. Para Margaret Mead, o valor dos estudos de caráter nacional estava justamente na
sua busca por compreender “como os comportamentos culturais são representados na estrutura intrapsíquica dos indivíduos de
Sociedade de esquina: um estudo exemplar Whyte estuda não apenas as relações dos candidatos com suas bases, como também os processos de competição entre os
próprios políticos. Chama atenção a existência de candidatos fantoches, cuja presença na lista eleitoral serve de moeda de
Um exemplo magistral de análise no campo da antropologia política é o livro Sociedade de esquina (Street Corner Society), troca estratégica entre os adversários. Pagamentos, favores ou acordos podem colocar ou retirar esses candidatos da disputa,
de William Foote Whyte (1914-2000), publicado em 1943. Embora geralmente rotulado como um estudo de sociologia urbana, causando transferência de votos e afetando o resultado eleitoral. O dinheiro tem um papel central nesse mundo da política,
o autor foi diretamente inspirado pela antropologia. Whyte fez uma extensa pesquisa de campo com observação participante envolvendo financiamentos de campanha, compra de votos e de favores. No entanto, sua troca está profundamente interligada
em um pequeno distrito na área de Boston, Estados Unidos, marcado pela imigração italiana e pelas condições de vida às relações pessoais e, muitas vezes, aparece na forma de bens e vínculos baseados na noção de honra. Um exemplo disso é
deterioradas em relação à sociedade mais abrangente. Em meio a um grupo de jovens rapazes do local, Whyte analisou a vida que a “compra” de uma candidatura, isto é, o custo de tirar um candidato inconveniente da disputa eleitoral, era
nas esquinas de “Cornerville”, nome fictício que deu ao local, bem como a sua relação com os mundos do crime e da política. freqüentemente paga não com dinheiro vivo, mas com atos de cortesia e amabilidade, como presentes em forma de roupas
Para observar este último mais de perto, voluntariou-se como secretário no comitê de um candidato ao senado. Engajando-se masculinas (terno, chapéu e sobretudo).
na campanha, acompanhou o candidato em eventos, redigiu atas de reuniões, fez entrevistas com cabos eleitorais, familiares,
Um ponto alto do estudo de Whyte é a análise dos comícios políticos em Cornerville e arredores. Várias regras e rituais
assessores, ex-parlamentares e outros candidatos ligados ao distrito. O material etnográfico tinha como foco as redes sociais e descritos permanecem atuais para o estudo da política contemporânea, inclusive a brasileira, como veremos adiante. A
suas divisões, com fortes vínculos com o mundo dos gângsgteres, mafiosos e outros criminosos ligados ao tráfico de organização do ambiente, a presença de artistas e shows populares, a hierarquia do palanque, o ritual das falas e discursos, o
mercadorias e jogos ilegais. comprometimento da platéia com os candidatos, o apelo aos sentimentos e à emoção, a ênfase nos vínculos dos políticos com
As relações dessas redes eram constituídas com base em trocas de favores, sendo o alistamento e a participação eleitoral as comunidades presentes, o reforço das obrigações de dívida, honra pessoal e valores morais — todos esses aspectos são
uma condição essencial em um contexto de voto não obrigatório. Segundo os informantes de Whyte, no início do século XX, as abordados pelo autor através de dados obtidos em observação participante aliados a análises detalhadas dos discursos
organizações mafiosas tinham tal controle sobre os eleitores que eram capazes de transferir os votos dos democratas para os proferidos, das disputas envolvidas e das mudanças de conteúdo à medida que a campanha se aproxima do final.
republicanos “da noite para o dia”. Mesmo depois da mudança nas políticas governamentais que geraram novas agências de
O dia da eleição serve de pretexto para Whyte discutir as formas de controle sobre os eleitores, os esquemas de fraude e
assistência à população, os políticos continuavam exercendo influência nos escalões públicos, sendo capazes de apressar ou corrupção. Registros falsos, organizações judiciais vinculadas ao crime, compra e repetição fraudulenta do voto são algumas
intermediar a conquista de empregos, soltura de presos ou promoções de funcionários públicos. das práticas descritas com detalhes. O autor não está preocupado em condená-las, mas em entender como a população lida
No período em que a pesquisa foi feita, entre 1939 e 1940, parecia existir apenas dois caminhos possíveis para futuros com elas: “De um modo geral, as pessoas em Cornerville concordam que a ‘repetição’ [do ato de votar] é ‘errada’. Mas a
empreendedores na política em Cornerville: o Partido Republicano e o mundo dos negócios, de um lado, e o Partido justificativa dada a ela é: se você não roubar a eleição, alguém vai fazer isso.” Nesse contexto, escreve o autor, “a eleição não
Democrata e o mundo dos gângsteres, do outro. Somente no segundo caso, em que também eram acionados clubes políticos e é vista como uma oportunidade que as pessoas têm de exercer a livre escolha, mas como uma luta pelo poder e o prestígio na
gangues de jovens, era possível obter a maioria dos votos dos moradores do distrito, onde, como afirma a mulher de um qual a vitória deve ser conquistada a qualquer preço”.
senador ouvida na pesquisa: “O que conta não é o que você sabe, mas quem você conhece.”
As redes de obrigações mútuas vão se conformando nesse processo de luta pelo poder. A população reconhece sua
Whyte nos ajuda a compreender essa afirmação, explicando as práticas e representações sobre a política em Corneville obrigação de votar e, em certos casos, até de prestar serviços gratuitos ao político que lhe faz favores. Os políticos, por sua
através das redes de obrigações mútuas. Ele faz isso examinando a política dentro da lógica da sociedade local, isto é, vez, têm dificuldade em arcar com suas obrigações. Quanto maiores as suas redes de relações pessoais, menores os custos
observando como valores morais relacionados à família, às relações de trabalho e de amizade são também fundamentais na financeiros. O pagamento em dinheiro ocorre principalmente onde os vínculos são mais tênues do ponto de vista moral. Whyte
esfera das atividades políticas. documenta casos de eleitores comprando favores de políticos, mas também de políticos comprando favores de outros
Em Cornerville, por exemplo, as funerárias estavam nas mãos de políticos ou de seus aliados. Era tão importante financiar políticos, funcionários e eleitores. O favor pago, no entanto, obriga menos que aquele que se faz de graça. Quando se recebe
enterros quanto freqüentá-los, demonstrando pesar e apreço pelo falecido, por seus amigos e familiares. Esses são também dinheiro do político, fica mais difícil cobrar o favor desejado depois, como um emprego, por exemplo. Afinal, a remuneração
rituais em que se atualizam laços e se demonstram publicamente alianças. Whyte cita uma ocasião em que a maioria dos financeira pode encerrar o ciclo de obrigações mútuas. Já o favor gratuito, não. Como afirma um rapaz de uma das gangues
políticos locais evitou comparecer ao enterro de um gângster aliado com medo de sair nos jornais e ser associada ao crime estudadas: “Às vezes, os políticos querem te dar dinheiro se você trabalha para eles, … mas se você é esperto, não pega o
organizado. O único senador que compareceu ao funeral teve seu comportamento elogiado pelos membros da comunidade por dinheiro, e então pode ser que tenha chance de conseguir alguma coisa.”
demonstrar que a lealdade aos amigos deveria estar acima de vaidades e cálculos racionais quanto a ganhos pessoais. Dentro O objetivo de Whyte é justamente mostrar que não devemos superestimar a eficácia das relações econômicas no jogo
dessa mesma lógica, o senador justificou sua presença em nome de uma “dívida de gratidão”. político, pois o dinheiro por si só não é capaz de criar laços e obrigações sociais. Segundo essa lógica, as pessoas que fazem
As relações de lealdade estão justamente entre as preocupações centrais de Sociedade de esquina. Como se dão as favores não remunerados são superiores do ponto de vista moral frente àquelas que o fazem por dinheiro, e isso as hierarquiza
disputas e trocas baseadas em laços de lealdade? Como operam? Quais relações têm primazia sobre as outras, em quais nas redes de relações e obrigações. Uma conclusão importante do autor é que a política e os políticos criam e fortalecem
momentos e contextos? Diversas variáveis fazem parte desse jogo, como os vínculos familiares, a identidade étnica, os grupos grupos e relações, mas não operam em uma esfera autônoma. Ao contrário, precisam sempre levar em conta a organização
geracionais, ou aqueles ligados aos projetos educacionais, no trabalho ou na política. social da comunidade onde atuam. Portanto, o antropólogo que observa o mundo da política está necessariamente lidando com
Whyte põe em evidência as tensões e conflitos decorrentes desses múltiplos vínculos. No caso da política, em especial, regras e representações sociais mais amplas da sociedade estudada.
ele retoma o problema central do dilema da representação: manter-se fiel ao grupo de origem e fracassar nos demais níveis de
negociação política; ou ampliar suas redes fora da comunidade local, mas correr o risco de enfraquecer seus laços com a
mesma? No caso de Cornerville e de tantas outras localidades nas quais os políticos têm obrigação de distribuir favores,
empregos e bens, inclusive dinheiro, esse dilema é vivido de forma particularmente aguda. Os recursos são escassos e as
demandas chegam de todos os níveis das redes às quais o político está vinculado.
Para ampliar seu apoio, o político deve favorecer pessoas em posição de liderança, isto é, estrategicamente situadas na
organização social, em outros grupos que não apenas o seu. Quanto mais conexões e interações com diferentes grupos, maior a
progressão na carreira. No entanto, uma conseqüência disso é que a relação com seu grupo original se enfraquece e precisa de
um novo líder e mediador. Alguns políticos podem tentar manter o contato pessoal e direto com a população, evitando
lideranças intermediárias, mas são raros os que conseguem conciliar essa atividade com as outras demandas do mandato. Um
exemplo interessante dessa dificuldade aparece em uma campanha descrita por Whyte em que o político evitava criar uma
hierarquia de comando em sua equipe. Como resultado, cabos-eleitorais, assessores e voluntários passavam mais tempo
disputando a proximidade com o chefe-candidato do que exercendo suas atividades. Por contraste, em um outro grupo político,
ao traçar o organograma da equipe de campanha observamos sua extrema semelhança com a hierarquia da sociedade mais
ampla a que estava relacionado.
A antropologia da política no Brasil período), mas é responsabilidade … de poucos”. Os conflitos precisam ser gerenciados não por “representantes”, como diz a
teoria, mas sim por “mediadores”, “pessoas ‘poderosas’, de muito ‘conhecimento’”, que são percebidos como indispensáveis
Na década de 1990, encerrado o regime militar e restaurada a democracia, os antropólogos brasileiros parecem ter renovado na gestão das relações sociais e no atendimento às demandas da população.
seu interesse pela política. Diversos trabalhos importantes foram produzidos no período, tendo como foco principal análises Diversos antropólogos, como Marcos Otávio Bezerra (em Corrupção e Em nome das bases), Carla Teixeira (A honra da
etnográficas a respeito das práticas políticas, seja em pequenas localidades rurais, seja nas grandes metrópoles e centros
política) e Christine Chaves (Festas na política) têm colocado em prática as premissas do NuAP, investigando a política
urbanos. Esse conjunto de trabalhos autodenominados de “antropologia da política” tiveram sua institucionalização mais
dentro e fora do período eleitoral. Em seus trabalhos, ajudam a compreender os nexos entre a lógica das redes políticas e
importante no Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), sediado no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de processos e mecanismos sociais mais amplos da sociedade brasileira. Com os estudos do meio político, os autores mostram a
Janeiro (UFRJ), mas envolvendo grupos em outras universidades federais, como as de Brasília, Ceará e Rio Grande do Sul.
vitalidade da noção de honra e a importância atribuída às relações de caráter pessoal, mais do que opções ideológicas
O objetivo do NuAP, como definiu uma de suas fundadoras, Mariza Peirano (UnB), era partir da “suposição básica de que abstratas ou cálculos racionais individuais. Os conceitos são desenvolvidos em sua positividade, isto é, através de seu
a categoria política é sempre etnográfica”. Ao investigar a política sancionada pelos padrões ocidentais modernos, significado concreto para os atores sociais e não em relação a modelos teóricos sobre o funcionamento do sistema político.
“deslegitimando pretensões essencialistas, sociocêntricas e conformistas”, revela-se que a própria percepção da política Diferentemente das análises que costumam classificar as práticas políticas clientelísticas e personalistas como deturpações de
como uma esfera social à parte de outras esferas é produto dessa ideologia moderna. No caso brasileiro, alerta Peirano, o um modelo ideal, os autores revelam que as trocas fundadas a partir das relações pessoais (que, por vezes, mas não
antropólogo enfrentaria uma “combinação complexa” de universalismo científico e ideologia nacional de moldes holistas que necessariamente, se transformam em corrupção) constituem e regulam, em diferentes combinações, o funcionamento das
informam e se combinam em seu objeto de estudo de múltiplas formas. instituições políticas.
Essa combinação tem sido observada em muitos estudos empíricos, desde o clássico Coronelismo, enxada e voto, de Em meu livro, O cotidiano da política, pesquisei uma região suburbana do Rio de Janeiro onde a política é entendida
Victor Nunes Leal, de 1949, até as recentes monografias e coletâneas publicadas no âmbito do NuAP, como Antropologia, principalmente como um meio de acesso aos recursos públicos, no qual o político atua como mediador entre comunidades
voto e representação política ; Candidatos e candidaturas; Como se fazem eleições no Brasil; e Política no Brasil. Nesta locais e diversos níveis de poder. Esse fluxo de trocas é regulado pelas obrigações de dar, receber e retribuir, a que o
agenda de pesquisa, privilegiam-se os métodos de observação participante e as análises comparativas, buscando elaborar antropólogo Marcel Mauss chamou de “lógica da dádiva”, e cujo princípio fundamental está no comprometimento social, para
“visões sociologicamente positivas do lugar da política na sociedade e cultura brasileiras”, como escreveu Moacir Palmeira além das coisas trocadas, daqueles que trocam.
em “Voto: racionalidade ou significado”, de 1992, um texto seminal para a área.
As pessoas que participam dessas redes, seja como eleitores, seja como políticos, nunca concordariam com os
A partir de pesquisas etnográficas, Palmeira sugere que, para refletirmos sobre as práticas políticas na sociedade acadêmicos que classificam suas ações como mero “clientelismo”. Do ponto de vista “nativo”, os políticos não estão
brasileira, especialmente aquelas identificadas como “tradicionais” e “clientelistas”, deve-se chamar atenção não tanto para a “privatizando bens públicos” (para usar uma definição clássica de clientelismo). Ao contrário, os políticos estão dando
dimensão individual, racional, do voto, mas para seu valor como um ato de adesão às facções sociais. A adesão seria um acesso a bens e serviços públicos a pessoas que não os teriam de outra forma. Nesse contexto, a palavra “público” não
processo de comprometimento mais amplo, envolvendo não apenas o indivíduo, mas quase sempre também sua família, suas significa “recursos que pertencem a todos”, mas “recursos monopolizados pelas elites políticas e econômicas”. Ou seja,
redes de relações e outras unidades sociais significativas, sem que se exclua a possibilidade de os conflitos interferirem pessoas “ordinárias” — dos estratos inferiores da sociedade — não participariam dessa definição de “público”. Por isso
decisivamente nesse contexto. Para o autor, a compreensão do comportamento eleitoral dependeria da adoção de uma mesmo, o acesso às fontes públicas de bens e serviços precisa ser intermediado pelo político e é visto como um bem
perspectiva mais “socio-lógica”, em que as ações dos eleitores fossem percebidas segundo as estruturas “sociais e extraordinário, “que não tem preço”.
simbólicas” que as circunscrevem, atravessando “diferentes unidades sociais, individuais ou não, incutindo-lhes significado”. No entanto, essa rede não se constitui apenas pelo acesso e intermediação de recursos públicos. A distribuição de bens e
Em análises centradas nos momentos eleitorais em pequenas cidades no interior do Brasil, Moacir Palmeira e Beatriz serviços em locais de “atendimento” como centros de assistência social ou escritórios políticos é prática corrente. Para
Heredia têm desenvolvido o conceito de tempo da política para designar os períodos em que a população percebe a política e manter esse tipo de serviço, o político precisa de fortes laços com empresários ou grupos economicamente favorecidos que
os políticos como parte da sua vida social. Nessas sociedades, que teriam como valor a união e a estabilidade (representadas lhe dê dinheiro ou mercadorias demandadas pela comunidade. Essa ajuda externa é retribuída, por sua vez, também com
muitas vezes sob a forma do modelo familiar), a política é vivida como um fenômeno sazonal por estar identificada com a acessos, em outro nível, ao poder público, na forma de alvarás, licenças, anistia de multas e outros benefícios diversos. Pode
divisão e o conflito. Dessa forma, os autores chamam atenção para a política tal como ela é experimentada dentro de um também, sem dúvida, em certos casos, caracterizar-se como corrupção.
universo cultural e histórico específico. Os eleitores deixam, assim, de ser os seres abstratos que aparecem com freqüência Venho estudando esse tipo de universo político em diversos trabalhos. O exame de trajetórias individuais de
em análises formalistas da democracia. A investigação antropológica da política passa a concentrar-se não no isolamento de parlamentares, associado ao mapeamento das redes sociais que os rodeiam e sustentam, tem permitido discutir a
temas e fenômenos, mas justamente no seu entrelaçamento. Podemos escapar de julgamentos etnocêntricos sobre como votar
multiplicidade de percepções e valores associados à prática política. As pesquisas etnográficas realizadas têm como locus
certo ou errado, sobre se uma campanha é eticamente correta ou não, percebendo, em seu lugar, que existem diferentes
privilegiado a cidade do Rio de Janeiro que, por seu caráter metropolitano, está marcada por heterogeneidade, fragmentação e
percepções e práticas da política, cabendo ao pesquisador encará-los como concepções que nos ajudam a entender os agentes
diversidade das experiências sociais. Como veremos adiante, dentro dessa convivência de diferentes mapas e códigos de
em jogo e suas ações.
significação da realidade, os parlamentares atuam também como mediadores fundamentais entre diferentes níveis de cultura,
Em análise sobre “Os comícios e a política de facções”, Palmeira e Heredia observam a relação da população de servindo como tradutores e agentes entre os valores, projetos e dramas da população, de um modo geral, e as esferas
comunidades rurais com o período eleitoral, revelam a percepção da política e de seus profissionais como elementos constituídas do poder público. Por meio da análise dessas interações, podemos entender as motivações e disposições de
externos, que reorganizam o espaço social e invadem o cotidiano, subvertendo atividades como festas, cultos, enterros e atores sociais cuja atividade está diretamente vinculada ao exercício e controle da autoridade e do poder em nossa sociedade.
reuniões de família. O fundamental é perceber que “na disputa faccional … está em jogo menos uma disputa eleitoral stricto
sensu do que a afirmação do peso relativo de diferentes partes da sociedade uma diante das outras, o que é decisivo para a
ordenação das relações sociais”. A etnografia revela que a política está imbricada de relações sociais e é por estas ao mesmo
tempo produzida, atualizada e transformada. Por meio da análise dos comícios como rituais, Palmeira e Heredia discutem
como esse universo de vocabulário específico (facções, comícios, carreatas, palanques etc.) se relaciona com as sociedades
locais produzindo percepções de tempo e espaço, mas principalmente identidades, redes e hierarquias nas relações sociais. A
partir da interpretação dos discursos de palanque e suas formas de elocução, revelam-se as práticas da política brasileira
comprometidas com acusações de cunho moral e promessas que se constroem em função de adversários. Sobretudo, os
comícios dramatizam as relações entre os “de cima” (do palanque) e os “de baixo” (do público) como relações de hierarquia
na sociedade brasileira, onde se reafirmam posições, composições (tipos de pessoas) e linguagens que distanciam o universo
dos “patrões” dos demais “excluídos”.
Em “Política ambígua”, Palmeira e Heredia retomam essa temática, desvendando concepções de política que revelam o
caráter fortemente hierarquizado da sociedade brasileira, para a qual “política é assunto de muitos (ainda que por determinado
Rituais e política segunda exprime um desejo de nivelamento com o universo dos eleitores. A disposição para dançar e beber junto, como um
convidado qualquer, diferencia a postura desses políticos daqueles que participam dos leilões acima narrados. Nos primeiros
Há uma importante tradição antropológica de se estudar a política e sua dimensão ritual, que inclui trabalhos como os de temos um prestígio por “humilhação” (falta de orgulho), enquanto nos últimos valoriza-se a hierarquia através do poder
Victor Turner ( O processo ritual), Edmund Leach (Sistemas políticos da Alta Birmânia) e Clifford Geertz (Negara). No econômico (compra de frangos).
Brasil, essa abordagem também vem sendo valorizada, como demonstra a O dito e o feito: ensaios de antropologia dos
Nas festas de campanha urbana, temos sempre muitas ocasiões em que os moradores-eleitores oferecem comida aos
rituais, de Mariza Peirano.
políticos-candidatos. A sociabilidade está presente na sua dimensão igualitária, assim como a não-sociabilidade e as
Em minhas próprias pesquisas de campo, empreendi um estudo sobre rituais de comensalidade em campanhas políticas, diferenças hierárquicas. Minha interpretação é que essas festas encenam, de forma minúscula e estilizada, o próprio ritual da
definidos como celebrações que encenam simbolicamente a eleição do político. São eventos marcados pelo consumo de eleição, sendo o momento da votação propriamente dito (isto é, os votos sendo colocados na urna), o símbolo da igualdade
comidas e bebidas por parte de eleitores e candidatos. Os papéis desses personagens são bem definidos, com falas e entre os participantes; e o momento da ocupação do mandato, o símbolo da sua diferença. Podemos ler a festa como um ritual
comportamentos previsíveis. Os cenários são recorrentes, assim como os elementos e participantes acessórios. (em etapas mais ou menos ideais): a) O político faz promessas de bens (ou acessos a bens públicos); b) Os moradores
Rituais são cerimônias que reforçam e atualizam papéis sociais. Concepções a respeito da política e do mundo social são oferecem comida ao candidato; c) Todos comem juntos; d) Os moradores fazem promessas de votos.
na maioria das vezes confirmadas, forjando, ainda que temporariamente, a identidade dos participantes como grupo. Há Odaci Coradini observou que a visita do político à casa do eleitor muitas vezes é vista como homenagem e
situações, no entanto, em que isso não ocorre, principalmente quando se estabelece um conflito (ou, dependendo da reconhecimento prestado pelo candidato ao dono da residência, visto como fonte de votos em potencial. Ser convidado ou
intensidade, um “drama social”, nos termos de Turner) a respeito daquilo que está em jogo. No caso das campanhas políticas, “recebido” pelo eleitor é muito diferente de entrar na sua casa “atrás de voto”, como critica uma moradora de Fortaleza,
“conquistar” eleitores não é a motivação principal desses rituais, uma vez que a maioria dos participantes já está predisposta entrevistada por Irlys Barreira. Palmeira e Heredia falam desses sentimentos quando contam que a visita de um “doutor”
a votar no candidato celebrado. Sua motivação central é certificar a identidade do candidato como político digno do exercício (candidato) que chega “abrindo as panelas” pode tanto provocar um “sorriso de satisfação” (na maioria dos casos) quanto,
de um mandato, justamente em um momento em que esta identidade está ameaçada pela aproximação das eleições e pelo mais raramente, protestos e indignação (“isso aqui é casa de pobre, mas não é casa da mãe Joana”). Em outro texto, Heredia
caráter secreto do voto. No caso de candidatos à reeleição, trata-se de compensar o enfraquecimento progressivo, a perda discorre sobre famílias que “contabilizam o número de visitas recebidas”, como sinal do seu próprio prestígio, enquanto
crescente dessa identidade, ocorrida ao longo dos anos não-eleitorais e posta em risco pelo novo pleito. outras lamentam o fato de “ninguém ter vindo a sua casa”.
Rituais de comensalidade, assim como outros eventos da campanha eleitoral, procuram compensar o caráter cíclico dos Como convidado dos moradores, o político-candidato perde temporariamente a força de sua reputação, sendo colocado
papéis sociais na política. Enquanto na maioria das profissões liberais a formação escolar define a identidade profissional, na em uma posição de fragilidade/dependência em relação aos moradores-eleitores. Assumir essa identidade, própria da
política essa identidade é muito mais incerta, dependente de forças externas. O clímax desse problema é vivido durante as campanha eleitoral, significa aceitar os votos dos moradores e, conseqüentemente, aceitar a posição de devedor após a
eleições, quando festas, celebrações e trocas expressam esse estado liminar da identidade dos candidatos com seus eleitores. obtenção dos votos. Por isso, participar da festa é uma forma de contrair dívidas para o período do mandato, quando sua
Como observaram Palmeira e Heredia, em “Política ambígua”, entrar na política é correr o risco de ser derrotado. A identidade é fonte de recursos e acessos ao poder público.
própria externalidade da política, como algo para o qual se “entra”, dizem os autores, “confirma a idéia de que a política, por Participar de uma festa em que eleitores oferecem comida e bebida é uma forma de o candidato se “prender” a esses
ser uma atividade de risco, requer habilidades especiais, só encontráveis nos ‘políticos’, vale dizer, aqueles que, em uma eleitores, assumindo publicamente uma dívida para com eles. A presença demorada do candidato na casa do eleitor reforça o
tradução livre da fórmula de Pierre Bourdieu (1930-2002), ‘vivem para a política porque vivem da política’”. Ao tomar as prestígio deste dentro do seu próprio universo de vizinhança. O tempo do político em campanha — um bem escasso por
dimensões de comensalidade nas campanhas políticas como objeto de análise, temos a chance de observar como esse risco da excelência — é despendido naquele espaço, “prendendo” o compromisso entre candidato e eleitores. De forma complementar,
política é vivenciado pelos atores envolvidos. o político espera que sua presença naquele local seja prolongada por meio da colocação de faixas e cartazes da campanha nas
Lugares de sociabilidade por excelência — restaurantes, bares, barracas de feiras, salões de festas, quintais e playgrounds casas e ruas próximas. Nesse tipo de encontro, portanto, existe uma tensão entre os papéis de doador e receptor dos bens
— tornam-se locais privilegiados para se fazer política durante a época das eleições. Nesse período, que pode ser mais ou trocados, onde cada personagem procura valorizar seus bens em relação aos demais.
menos marcado como um “tempo da política”, segundo cada localidade, a política interfere na leitura dos significados do As festas e encontros de campanha permitem retomar a discussão entre sociabilidade e ritual. Freqüentemente, dentro do
cotidiano, colorindo a vida social com seus rituais. processo ritual, existe um espaço de sociabilidade, onde os participantes encenam, através de regras e coreografias precisas,
Os atos de comer e beber podem significar muitas coisas, inclusive uma declaração de voto. Isso difere, por exemplo, das algum valor ou papel social. Em O processo ritual, Turner define essa celebração do coletivo como communitas — um
eventuais doações de alimentos por parte de políticos, pois não há nestas o sentido de “comer junto”, compartilhando um espaço/estado símbolo da igualdade entre os homens, em que se experimenta a suspensão da estrutura social. Ao falar da
mesmo espaço e tempo de convívio. Em momentos nos quais o político paga “rodadas de cerveja”, de “chimarrão” ou sociabilidade, Georg Simmel (1858-1918) não se referiu a um conjunto de relações determinado, mas a situações sociais
churrascos, estamos diante de situações híbridas, pois o candidato aparece ao mesmo tempo como doador e comensal do bem temporárias, interações onde se encontram condições “artificiais” de sociação. Estaríamos, como tantas vezes nos remete o
distribuído. ritual, em um “mundo sociológico ideal”, expressando a mais pura relação entre iguais. O próprio Simmel, portanto, define
Comícios, shows, festas e leilões são outras formas lúdicas de fazer ofertas aos eleitores. A competição pela compra de indiretamente a “sociabilidade” como um evento-ritual, onde estão suspensas identidades e interesses da lógica do cotidiano.
frangos em leilões no Nordeste brasileiro, narrada por Marcos Lanna em A dívida divina, mostra a disputa por prestígio entre Dentro do processo eleitoral, esse pequeno evento tem lugar no período que antecede as eleições — momento em que
os políticos e chefes locais. Ganha quem compra a maior quantidade de frangos, humilhando os adversários. O dinheiro todos comerão/votarão juntos ou não. O compartilhar da comida na festa/reunião simbolizaria a igualdade dos votantes no
arrecadado reverte para a paróquia e simboliza a “generosidade” do político. Os moradores assistem, dançando forró e momento da eleição. Não se trata simplificadamente de um ritual de celebração dos valores democráticos. Existe uma
acompanhando a disputa, em uma divisão de papéis que reforça o distanciamento dos envolvidos. A música, o “espetáculo” da encenação da igualdade, mas essa igualdade é temporária e liminar, reforçando diferenças duradouras impregnadas nos
competição e o dinheiro da paróquia são os bens doados. papéis sociais em jogo.
As festas dos ranchões em Buritis (MG), investigadas por Christine Chaves, são eventos promovidos pelos partidos para As diferenças se alternam no jogo de identidades e reputações positivas e negativas e seriam análogas àquelas vividas
festejar e promover seus candidatos. Diz o saber local que “ganha o partido que tiver a festa mais animada e o candidato que pelos candidatos no processo eleitoral como um todo. Durante a campanha, desenrola-se um ritual de perda e reforço da
mais dançar”. Nessas ocasiões, lembra-se um tempo em que o “bom político” era aquele que oferecia “banquete” e “comida identidade do candidato como político. Quando o político é bem-sucedido na eleição, seguem-se novas etapas.
farta para todo mundo”, causando até estranheza aos mais antigos “políticos não fornecerem alimento para os eleitores”. Nos No primeiro momento, temos a campanha eleitoral. Ocorre a perda progressiva da identidade como político, entendendo
ranchões, elogia-se o político que “é capaz de comer do mesmo prato, beber do mesmo copo”; que “entra na casa, vai até a que essa identidade é dada pela noção de “acesso” a bens de diversos tipos, sendo os recursos do poder público o que há de
cozinha beber o café”; que “bate nas costas e paga bebida”. Chaves observa as atitudes do político na festa: “A mesma maior valor. Se o candidato depende dos votos para manter o acesso, isso é sinal de que sua identidade se enfraquece à
intimidade, falta de orgulho, o político exibe na festa, em que chama pelo nome, ri, dança e comunga da alegria com os medida que se aproximam as eleições e o momento da votação. É nessa primeira fase (da campanha eleitoral) que ocorrem as
demais, no rés do chão, de igual para igual. Ele o faz não por palavras, mas em ato, com a corporalidade de sua presença.” festas e reuniões de comensalidade.
Combinam-se aqui doação/hierarquia e congregação/igualdade. Embora dispostos a participar de “igual para igual”, os Para a aproximação com os eleitores, muitas vezes a participação da família do candidato é fundamental. Ela parece
políticos são os promotores do evento que pode ser visto como uma “rodada de cerveja” mais elaborada. Devemos notar que reforçar a necessidade do candidato de se fazer “representante” de uma coletividade e, em certos casos, de valores dessa
“pagar uma bebida” não é a mesma coisa que “beber do mesmo copo”. Ambas são atitudes vistas com simpatia, mas só a coletividade. A presença de familiares nos eventos e até na assessoria de campanha evita que o político circule
desacompanhado — situação que poderia abalar seu prestígio. Política, espaço urbano e mediação
A votação propriamente dita é o momento preciso em que se materializa a perda da identidade do candidato — os votos
Quais as características específicas da agenda da antropologia da política em meio urbano? A observação participante em
simbolizam o término dos mandatos vigentes. Da votação à apuração e divulgação completa dos resultados — tempo que a
urna eletrônica tornou cada vez menor — existe uma suspensão das identidades e o político/ocupante de mandato encontra-se grandes cidades requer a compreensão das diferenças culturais entre os vários segmentos da população, bem como as
representações e práticas políticas a estes associadas. Ao acompanhar candidatos e ocupantes de mandato em uma metrópole,
temporariamente em estado liminar. Insegurança, mudez, isolamento, ansiedade, ausência de apetite são algumas das
o antropólogo encontra diferentes universos de eleitores, bem como importantes distinções espaciais impregnadas de
expressões dessa liminaridade. Em geral, é possível compensar essas sensações desagradáveis participando do processo de
apuração, indo às zonas eleitorais acompanhar a fiscalização, como se fosse possível reverter ou apressar os resultados. Em significados.
outros casos, simplesmente não se faz coisa alguma, aguardando-se solitariamente o momento da divulgação da contagem final Análises sobre o modo de vida metropolitano têm enfatizado justamente a dimensão do anonimato e do individualismo. No
para a “volta ao mundo” — seja ele o da política ou o mundo da vida privada. entanto, mesmo dentro de uma cidade há ambientes com características de sociabilidade personalizadas e holistas. Esses
espaços, simbolicamente distantes, assemelham-se mais aos modos de vida “interioranos”, com um repertório de valores
Finalmente, apurado um resultado positivo, o político recupera o mandato eletivo, saindo de todo o processo com sua
identidade e prestígio reforçados. O maior ou o menor prestígio também podem ser avaliados pela interpretação dos tradicionais, laços de vizinhança e solidariedade. O cotidiano de certos bairros é valorizado por seus valores “familiares”,
resultados: a comparação com os números da eleição anterior, a distribuição dos votos, a colocação dentro do partido e na sua tranqüilidade, pela religiosidade de seus moradores, pela existência de espaços de convivência coletivos, como as praças
classificação geral, entre outras. e campos de esporte, e privados, como os quintais e jardins de casas particulares.
Na etapa posterior, de exercício do mandato, são freqüentes os almoços e jantares com companheiros de partido, membros Mapas subjetivos da metrópole seguem uma certa “organização moral”, baseada nos hábitos, costumes e estilo de vida de
do poder executivo e políticos em geral. Diferentemente das festas e encontros de campanha, essas refeições são realizadas seus habitantes. Diferentes regiões e bairros da cidade se distribuem segundo um “mapa de prestígio”. Na maior parte das
vezes, os locais onde vivem a elite são um símbolo da vida “sofisticada” e “cosmopolita”.
em restaurantes ou ambientes privados, em pequenos grupos. As diferenças de forma (grupo amplo versus restrito), de
designação (festa/reunião versus almoço/jantar) e de convidados (eleitores versus políticos) distinguem os dois tipos de Na prática política, podemos observar como se atualizam as diferenças culturais entre os espaços sociais da cidade. As
comensalidade e apontam também para o papel de cada uma: enquanto a primeira gira em torno de votos, a segunda tem por motivações políticas dos atores sociais estão intimamente relacionadas à sua sociabilidade, crença religiosa e visão de
motivação principal reforçar o sistema de acessos. Mesmo durante as campanhas, essa distinção pode ocorrer, com agendas mundo. Assim, a organização do espaço urbano reflete essa cosmologia e acaba por moldar também o exercício da política.
de candidatos que classificam eventos como visitas, carreatas, debates e almoços ou jantares. Estes últimos referem-se Um elemento fundamental nesse espaço é a circulação de informações através dos meios de comunicação de massa. Para
majoritariamente a encontros com potenciais financiadores de campanha, sendo vedada a presença de eleitores. certos atores, o contato com a população é mediado principalmente pelo acesso a esses meios (redes de TV, rádio e jornais,
Não por acaso, a abertura de um ano legislativo costuma ser celebrada com um “coquetel” para políticos, autoridades, principalmente), embora a popularização da internet já tenha provocado alterações nesse aspecto.
familiares e assessores. Embora não configure uma refeição, o coquetel também é um ritual próprio do período pós-eleitoral. Há uma certa ordem na relação entre prática política, universos culturais e espaço urbano. Embora estejamos sempre
Vedado à participação geral de eleitores, seu principal objetivo é promover uma confraternização entre os próprios políticos. atentos para a complexidade da vida metropolitana, muitas vezes deixamos de perceber quais são as alternativas concretas de
Nesses eventos, políticos e “autoridades” são o centro das atenções, tendo seu prestígio reforçado por situações de respeito e seus habitantes. No que diz respeito às opções políticas, o comportamento eleitoral — entendido aqui de uma forma ampla, e
deferência por parte dos demais participantes. Participar do evento e, dentro dele, do espaço simbólico reservado às não apenas como um conjunto de números — está diretamente associado à experiência urbana e aos universos culturais e
“autoridades”, reitera a identidade do político como alguém que tem acesso ao poder. sociais a ela associados. Embora vivendo na mesma metrópole e compartilhando o pertencimento à sociedade e cultura
brasileiras, os habitantes da cidade têm diferenças significativas em termos de ethos e estilo de vida que repercutem e se
Assim, rituais de comensalidade entre os próprios políticos e demais personalidades do poder público reforçam a
expressam nas suas concepções de participação política.
identidade do político como detentor de acessos. Esse estágio, que parece encerrar o ritual, é a preparação necessária para
que o ciclo de interações recomece, com novas campanhas, candidatos, eleitores, eleições e resultados das urnas. É dentro desse contexto que freqüentemente atua a figura do político-mediador. É comum que a população procure o
político — em especial o parlamentar local — para intermediar seu contato com as diversas esferas do poder público. Na
Ao examinar um evento político específico e circunscrito, tomando como chave a noção de que a vida política é feita de
maior parte das vezes, trata-se de um segmento da população que vive em áreas da cidade com menor valor na escala de
encenações rituais, observamos as relações entre os indivíduos como pessoas sociais. Levando em conta que “o dito é também
o feito”, como afirmou Peirano, atitudes, gestos e falas de eleitores e candidatos podem ser tomadas como símbolos que nos prestígio social do mapa urbano. Muitos assessores de políticos percorrem essas áreas em busca de contatos e problemas que
ajudam a entender o significado etnográfico da política. requeiram a ação de um político-mediador.
Nesse caso, é fundamental que o político seja capaz de transitar pela cidade, física e simbolicamente. É preciso que ele
encontre pontos de contato e comunicação entre diferentes mundos, produzindo novos resultados a partir desse processo. Essa
é a tarefa básica do mediador. Sua atuação é mais ampla que a de um intermediário, que apenas transporta informações de um
lado para o outro. A interferência do mediador é criativa, gerando novos valores e condutas.
No campo da arte e da cultura, essa característica tem sido ressaltada com bastante ênfase, seja em trabalhos clássicos,
como o de Mikhail Bakhtin sobre Rabelais, seja em investigações do cenário brasileiro, como as de Hermano Vianna sobre o
mundo musical. Nas relações de trabalho, o mediador também aparece como um personagem importante em negociações entre
patrões e empregados, articulando categorias e códigos que afetam o destino e a percepção da realidade dos envolvidos.
Na antropologia da política, muitos tipos de mediadores têm sido identificados. Há, por exemplo, os political middlemen
ou os ocupantes dos inter-hierarchical roles do sistema colonial britânico na África, identificados por Max Gluckman e Paul
Friedrich, respectivamente. No contexto latino-americano, a ação de brokers e outros tipos de agentes “especiais” é chave
para entendermos as relações hierárquicas entre membros das mesmas redes sociais, como têm demonstrado diversos autores.
Qual a motivação desses mediadores em promover entendimento e comunicação entre diferentes grupos e reduzir
distâncias culturais? Em todos os casos investigados, fica claro que o mediador usufrui uma inserção social privilegiada. Seu
papel é estratégico, uma vez que suas decisões podem interferir e influenciar a vida e o prestígio daqueles que estão em seu
campo de ação, seus contemporâneos.
Circular entre múltiplos mundos e níveis de cultura é uma possibilidade mais ou menos aberta a todos os habitantes da
metrópole. O mediador, porém, não apenas se move, mas estabelece pontes de comunicação entre os universos pelos quais
transita. Em sociedades com predomínio de ideologias individualistas, nas quais os atores têm maiores possibilidades de
exercer escolhas, a ação do mediador deve ser entendida como um projeto, mais ou menos consciente. Embora restrito às
possibilidades do quadro social e histórico em que está situado — um “campo de possibilidades”, na expressão de Gilberto
Velho —, o projeto põe em evidência a capacidade dos indivíduos planejarem seu futuro e, com isso, contribuírem para dar Observação participante no campo da política
sentido a suas experiências fragmentadas. É a partir desse projeto, ou “plano de vida”, que o mediador organiza seus
interesses e estrutura seu estoque de conhecimento social para interagir com os outros. O problema de como lidar com o etnocentrismo do pesquisador está no centro das preocupações da antropologia da política.
Certamente, nem todos os políticos são mediadores. A trajetória como mediador está relacionada a um projeto específico. Como fazer para que o antropólogo não leve irrefletidamente para o trabalho de campo as concepções de poder e política em
que foi socializado como cidadão? Esbarramos aqui na dificuldade de “afastar sistematicamente todas as pré-noções”, como
À medida que ganham experiência no mundo da política, muitos percebem que uma das estratégias para se tornar um político
nos recomendava Émile Durkheim (1858-1917), tarefa talvez ainda mais difícil quando se trata de estudar um tema como a
bem-sucedido é ampliar ao máximo sua esfera de relações. Assim, procuram sempre acrescentar novas redes sociais ao seu
círculo de contatos, sem anular aquelas já consolidadas por experiências anteriores. Investindo em seu papel como mediador, política em nossa própria sociedade.
o político torna seu mandato um espaço de convergência, estabelecendo pontes e conexões entre pessoas, instituições e O pesquisador leva para o campo um conjunto de informações sobre política acumuladas ao longo de sua vida,
saberes oriundos de diversos universos culturais. Com esse projeto, muitos conquistam e consolidam alianças em setores do apreendidas do senso comum, em conversas, nos jornais, na literatura política e em outros meios de informação. No caso de
poder público essenciais para o atendimento das demandas de seus eleitores. pesquisas junto a universos de prática política de bases clientelistas, é muito provável que o pesquisador seja identificado
pelas pessoas estudadas como parte de um grande grupo acusatório, identificado com um universo mais intelectualizado,
urbano e elitista. Isso pode ser observado pelo tom defensivo que muitas vezes se explicita em falas e comportamentos
“nativos”.
Mais uma vez, chamamos atenção para o fato de que a metrópole permite, em um grau elevado, que o pesquisador circule
por diferentes universos, com tradições culturais e visões de mundo distintas. Muitas vezes, porém, ele encontra diferentes
níveis de compreensão sobre o que acredita ser o “familiar” e o “exótico” dentro da cidade. Conforme aumenta a sua
experiência no campo, o pesquisador aprofunda sua compreensão, percebendo que naturalizou certos significados e ignorou
outros.
Essas mudanças também ocorrem no sentido inverso: os “nativos” também transformam sua percepção e modo de lidar
com o antropólogo e seu trabalho. Em muitos casos, a identidade inicial atribuída ao pesquisador vai sendo modificada não
apenas em função do tempo despendido na pesquisa, mas também de situações vividas em campo. No universo da política,
existe uma clara distinção entre o mundo “de dentro”, ou os “bastidores”, e o mundo “de fora”, onde se atua para a “platéia”,
para usar termos consagrados por Erving Goffman (1922-82). Não raro, os papéis são invertidos segundo esses planos.
Essa situação também coloca em xeque a idéia de que o pesquisador possa ser um elemento neutro. Mesmo trabalhando em
sua própria cidade, a “invisibilidade antropológica” é uma meta utópica. Em vez de perseguir uma neutralidade impossível, é
tarefa do pesquisador refletir sobre as posições e identidades que lhe são conferidas ao longo do trabalho de campo, levando
em conta as mudanças de tempo e espaço envolvidas. Esta é justamente uma das chaves centrais para compreender a relação
entre os envolvidos.
Durante o trabalho de campo, pesquisador e pesquisados passam por um processo mútuo de conhecimento, que vai
redefinindo as identidades de um em relação ao outro. O aprendizado de códigos e valores do outro faz-se lentamente, por
meio da interação e da convivência. Por mais que existam certas condições sociais previamente dadas, é no imponderável da
própria interação que se constroem, se testam, se confirmam e se alteram identidades.
No trabalho de campo o antropólogo está permanentemente envolvido com relações de poder entre os participantes da
rede social estudada. Caso esteja em posição de proximidade com o político (que muitas vezes é o chefe de uma grande
equipe), o pesquisador passa a ocupar uma posição também de prestígio dentro do grupo. Nem sempre isso é socialmente
positivo, diga-se de passagem. Como tudo no campo, essa também é uma posição relativa, que pode atrair ou afastar certos
informantes e facilitar ou dificultar o acesso a determinados dados.
A competição entre os membros do próprio grupo estudado pode levar à tentativa de manipulação do pesquisador para
fins alheios ao seu trabalho. Observações ou críticas a respeito da vida pessoal e intrigas são comuns a qualquer grupo social.
Por isso, é preciso estar atento para essa manipulação de informações — não para simplesmente rejeitá-la, mas
principalmente para utilizá-la como material etnográfico, que nos ajuda a entender os significados e motivações do universo
estudado. Visões “idealistas” ou “cínicas” ou a falta de consenso existem em todos os grupos sociais, às vezes
simultaneamente na mesma pessoa. Portanto, é importante que o pesquisador explore as duas atitudes, sem buscar uma crença
mais “autêntica” ou “verdadeira”.
Entrevistas em profundidade são um momento privilegiado para compreender esse processo. É preciso, no entanto, ter
cuidado para não supervalorizar as entrevistas individuais, imaginando, por exemplo, que são mais confiáveis por serem
confidenciais. Deve-se cotejar o material obtido com o comportamento observado em campo e com outras entrevistas, bem
como relacionar as diferenças entre as opiniões individuais com a posição ocupada pelos indivíduos dentro do grupo, como já
recomendava B. Malinowski (1884-1942). Citando Howard Becker (n.1928), a observação participante tem o mérito de
abordar as pessoas “enredadas em relações sociais que são importantes para elas”. São justamente essas “restrições sociais”
que o antropólogo está interessado em conhecer, pois são elas que tornam “difícil para as pessoas que ele observa fabricarem
seu comportamento segundo o que acham que o pesquisador poderia querer ou esperar”.
A campanha eleitoral apresenta uma série de obstáculos específicos para a realização do trabalho de campo. Nessa fase, é
ainda mais difícil ocupar uma posição “neutra” como pesquisador. Na maioria dos casos, para poder acompanhar as
atividades do grupo, é preciso vestir camisetas, usar bonés e buttons dos candidatos. A própria identidade do antropólogo
como eleitor é questionada pelos assessores e participantes dos universos pesquisados: “Afinal, em quem você vai votar?” levantados, porém, acredito que os dados obtidos através do trabalho de campo têm ainda uma capacidade ímpar de permitir a
Mas o planejamento do trabalho de campo durante campanhas eleitorais envolve outros problemas, de ordem igualmente observação de pessoas sob a pressão de coerções sociais de seu próprio meio, sujeitas a múltiplas e repetidas situações cuja
importante. A partir de uma reflexão sobre minha própria experiência e de outros antropólogos na observação participante observação é acessível apenas ao pesquisador participante. Esse processo de construção do conhecimento permite
durante campanhas eleitorais, classifico as dificuldades encontradas em sete categorias principais: compreender alguns dos componentes centrais que estruturam as redes sociais em bastidores de campanhas, bem como as
representações e práticas de seus principais personagens a respeito da política.
1. A dificuldade de acesso aos candidatos. A obtenção dos números de telefone e dos e-mails, a não-divulgação da agenda, a
ação de intermediários, a desconfiança destes e dos próprios políticos em relação à pesquisa, além da falta de controle por
parte do pesquisador do seu cronograma de trabalho estão, muitas vezes, entre os obstáculos mais difíceis de serem
superados. A viabilidade do trabalho de pesquisa depende fortemente da existência de redes em comum — locais, de amizade,
parentesco, ideológicas ou sociais.

2. Como garantir a participação nos eventos da campanha? Uma campanha envolve várias atividades, como panfletagens,
reuniões em locais públicos e privados, jantares, carreatas, passeatas, comícios etc. Muitos desses lugares são de difícil
acesso devido à distância, falta de transporte, horários tardios ou restrição à presença de estranhos. Problemas de ordem
prática também afetam a pesquisa, como a falta de banheiros e locais apropriados para refeições e descanso.

3. O calendário e o cronograma de eventos. Às dificuldades de informação e locomoção soma-se a pressão da passagem do


tempo. Uma pesquisa de campo com campanhas políticas é marcada pela temporalidade dos eventos, que têm dia e hora para
terminar. A sensação de impotência e de dependência em relação à boa vontade dos candidatos, aos recursos disponíveis para
acompanhar as atividades e à rigidez do calendário eleitoral acompanha e pressiona os pesquisadores durante todo o campo.

4. Questões pessoais e de gênero. Medo, insegurança, timidez, constrangimento, indignação e inadequação foram alguns dos
sentimentos experimentados por uma equipe de antropólogas durante o campo. Além do incômodo de se sentir inconveniente
em meio a pessoas preocupadas com seus próprios afazeres (problema clássico em qualquer trabalho de campo), houve o
constrangimento de ser mulher em um universo ainda predominantemente masculino, bem como o constrangimento de se
presenciar práticas contrárias às suas crenças éticas pessoais.

5. O possível uso político da pesquisa pelos políticos. A realização da pesquisa por alguém associado a uma elite intelectual
e acadêmica costuma ser utilizada pelos candidatos para autopromoção junto a determinados tipos de público. O pesquisador
é freqüentemente pressionado a opinar sobre o candidato, emitir publicamente sua intenção de voto e, por vezes, utilizar
adereços e ajudar na distribuição de propaganda do mesmo. Essa identificação — ainda que temporária e de intensidade
variável — é essencial para a manutenção dos laços pesquisador-pesquisado, embora possa ter conseqüências reais (do ponto
de vista político-eleitoral) alheias aos objetivos científicos.

6 . A necessidade de se empreender um tratamento cuidadoso das fontes obtidas. Textos biográficos, jornais, panfletos,
documentos oficiais, discursos, fotografias, material de observação: cada uma dessas fontes encerra narrativas comprometidas
com certos sujeitos sociais, em contextos históricos e culturais específicos. O pesquisador precisa perceber essas diferenças,
evitando nivelar seus dados.

7 . Questões relacionadas à divulgação dos resultados da pesquisa . Como lidar com o anonimato de “nativos”, quando a
divulgação ou identificação de seus nomes pode ter conseqüências negativas (para eles ou mesmo para o próprio
pesquisador)? Por mais que exista um acordo tácito de anonimato em relação a segredos, comentários pessoais ou práticas
mais ou menos ilícitas, lida-se com pessoas e eventos públicos facilmente identificáveis. Nesses casos, para obter
informações sobre os bastidores da política, é preciso muitas vezes abrir mão de divulgar certos dados que poderiam
enriquecer a pesquisa. É fundamental, portanto, que a divulgação dos resultados inclua uma reflexão sobre o processo de
obtenção dos mesmos. Assim, devem estar explicitadas nos relatos da pesquisa questões como a forma de entrada do
pesquisador no campo, os acordos realizados e os laços sociais acionados e evitados. Não se trata apenas de satisfazer a
curiosidade dos leitores, mas de usar esses dados como objeto de análise das categorias de entendimento do próprio universo
estudado.
Enfrentar esses problemas é refletir sobre as condições de obtenção dos dados de pesquisa e qualificar esses próprios
dados, identificando as circunstâncias de sua construção e, conseqüentemente, o viés das informações analisadas. Todos os
tipos de problemas levantados estão mais ou menos presentes em qualquer trabalho de campo. Busquei, aqui, especificar
como eles se configuram dentro dos limites e condições da pesquisa junto a candidatos a cargos eletivos. Até que ponto é
possível trabalhar nessas circunstâncias e obter material relevante? Quais as estratégias de investigação mais eficazes? Quais
acordos de pesquisa são possíveis nesse contexto? Qual a contribuição específica desse tipo de fonte para uma pesquisa mais
ampla a respeito do processo eleitoral?
Não existem fórmulas simples nem soluções gerais para resolver essas questões. A despeito de todos os problemas
Interdisciplinaridade e diálogo acadêmico porém, de um incômodo necessário, pois, como disse Clifford Geertz: “Se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter
ficado em casa.”
O campo da política é potencialmente interdisciplinar. Além da “antropologia política” ou “antropologia da política”, ele tem
sido intensamente estudado por tradições caracterizadas como “sociologia política”, “ciência política” ou “história política”.
É comum, no entanto, haver incompreensões e resistências ao diálogo entre pesquisadores dessas áreas. Muitas vezes, isso se
deve ao desconhecimento de tradições intelectuais diferentes daquela na qual nos especializamos, o que tende a fortalecer
estereótipos e visões equivocadas sobre nossos “outros” acadêmicos.
Não é tarefa simples compreender visões diferentes sobre política. O vocabulário político é de tal ordem naturalizado no
cotidiano dos pesquisadores que freqüentemente surgem nos seus textos termos do senso comum que não fazem parte do
universo pesquisado — ou ainda, termos que são empregados pela população estudada, mas cujo sentido difere daquele da
cultura do pesquisador. É preciso uma atenção permanente e um bom senso de discriminação para não cair nessas armadilhas.
Outro aspecto que acarreta grandes dificuldades para uma pesquisa de antropologia da política é o problema da
corrupção, da ilegalidade e da circulação de cargos e dinheiro. Raros são os pesquisadores que conseguiram dados precisos e
em grande escala a esse respeito. Embora desejável, uma pesquisa com esse fim dificilmente pode ser realizada com base em
observação participante sem trazer um risco considerável também para quem a conduz. A sociedade de esquina, de Foote
Whyte, é mais uma vez um exemplo excepcional nesse campo.
A despeito das dificuldades apontadas, a antropologia da política tem muito a contribuir para uma compreensão da
complexidade da política brasileira. Em sua agenda de pesquisa está a preocupação permanente em recusar um caminho
analítico baseado no julgamento das crenças e práticas dos grupos estudados a partir de valores apriorísticos e externos ao
próprio grupo. Embora certas práticas sejam formalmente “erradas” do ponto de vista dos princípios democráticos, a
antropologia acredita que é necessário estudá-las em sua própria lógica, sem encampar rótulos e preconceitos. Em muitos
casos, essa compreensão é fundamental para percebermos que a política opera com valores da sociedade mais abrangente,
tradicionalmente associados a outras esferas da vida social, como família e religião, mas vistos como ilegítimos quando
operados na esfera política. Por outro lado, a incorporação de uma perspectiva histórica ajuda a perceber que o mundo da
política não é imutável, e sim uma realidade em permanente processo de transformação.
É claro que as populações urbanas, rurais ou indígenas são universos etnográficos e históricos que não existem em um
vácuo, mas sim dentro de uma sociedade maior cujas instituições políticas têm, no caso brasileiro, por base os princípios da
democracia representativa. Como lidar com esse fato? É preciso tratar a própria sociedade nacional e a democracia como
sujeitas ao exame etnográfico. Desse modo, escapamos da armadilha de considerar os dados em comparação com um modelo
político ideal. Passamos a lidar com múltiplas configurações historica e espacialmente constituídas. É fundamental marcar que
essa abordagem é prerrogativa de toda a antropologia e não de uma certa área da disciplina classificada como “política”.
O antropólogo francês Marc Abélès afirma que a antropologia não tem como objetivo criticar as práticas políticas, mas
entender como as relações de poder emergem em uma determinada situação, adquirindo significado para os atores sociais. Sua
maior contribuição é partir sempre do pressuposto de que “democracia” é um modelo teórico, não existente em forma pura em
lugar algum. Em muitos casos, os estudos etnográficos permitem enxergar uma zona obscura de relação entre o Estado e a
população, seja através do ponto de vista dos “de cima” (estudo de rituais e cerimônias oficiais) quanto dos “de baixo”
(estudos de comunidades).
A abordagem antropológica privilegia a adoção do método comparativo e de técnicas de pesquisa qualitativas, voltadas
para a realização do trabalho de campo com observação participante e entrevistas em profundidade, freqüentemente
produzindo “estudos de casos”. No entanto, o antropólogo não ignora que as práticas e representações observadas estão
inseridas em um sistema político formal, com instituições de larga escala. Nesse esforço, a antropologia da política, assim
como a antropologia de um modo geral, oscila entre sua fidelidade ao particular e a necessidade de produzir generalizações.
Por isso mesmo, é fundamental que ela estabeleça um diálogo com outras disciplinas, como história, ciência política,
sociologia, lingüística e comunicação. É a partir de abordagens multi e interdisciplinares e da adoção de uma perspectiva
comparativa que se pode chegar a compreender não só as representações e práticas da política em um grupo específico, mas
também as relações desse material etnográfico com a sociedade mais ampla.
Esse desafio se impõe principalmente em um momento histórico em que múltiplas definições de grupo, sociedade e cultura
são colocados em xeque, deixando mais evidentes os problemas de tomarmos classificações e categorias como locais,
nacionais ou transnacionais. Já em 1943, esse era um dos temas do desafio proposto por William Foote Whyte à comunidade
acadêmica. Como incorporar as questões trazidas pelas novas mídias e movimentos migratórios aos debates acerca do poder,
das instituições e das identidades sociais?
Vários autores concordam que é necessário fazer um esforço para integrar os estudos isolados em quadros de compreensão
mais amplos, de preferência por meio do diálogo com outras áreas das ciências sociais. Mas é possível fazer isso sem perder
de vista a etnografia como contribuição maior da disciplina. Afinal, compreender, “do ponto de vista do nativo”, práticas
muitas vezes diferentes daquelas que idealizamos pode ser fonte de incômodo — tanto intelectual quanto cívico. Trata-se,
76 Christian Edward Cyril Lynch

Christian Edward Cyril Lynch* Do ponto vista estrito, a expressão PPB se refere a um reduzido número de
escritos que comporiam o cânone de “clássicos” expressivos de uma teoria
e/ou da “velha” ciência política brasileira, praticada por juristas, sociólogos
e economistas antes da especialização universitária. Definida a natureza do
Cartografia do pensamento político brasileiro: objeto e delineados os seus contornos, apresenta-se na terceira seção deste
conceito, história, abordagens trabalho o balanço do PPB como disciplina universitária surgida na década
de 1970. Historia-se o seu desenvolvimento, descrevem-se suas sucessivas
A cartography of Brazilian political thought: e diferentes interpretações, seus pesquisadores mais notáveis e seus princi-
concept, history and approaches pais três grupos de pesquisa, aqui chamados mannheimiano, lukacsiano e
gramsciano, em função de seus principais referenciais teóricos. O esforço
inclui tabelas contendo as teses defendidas sob a rubrica de PPB na ciência
política, relacionadas por título, nome, ano, orientador e instituição, assim
como um gráfico descrevendo a variação do número de teses defendidas ao
Há vinte anos o campo de estudos do pensamento político brasileiro longo dos quinquênios. O artigo conclui com considerações críticas e su-
(PPB) vem crescendo exponencialmente na área de ciência política. Duas gestões de medidas para o fortalecimento do campo de estudos, estreitando
foram as teses de doutorado defendidas ao longo da década de 1980, nú- suas relações com a teoria política.
mero que subiu a doze na de 1990 e chegou a dezoito na de 2000. Prevê-se Antes de passar ao artigo propriamente dito, dois esclarecimentos se
que se aproxime de trinta em 2020. Não é de hoje que se reclama um ba- impõem. Em primeiro lugar, a decisão de examinar o PPB “verticalmente”
lanço do campo, capaz de fornecer uma ideia preliminar do que nele está no âmbito de suas relações com a teoria política e da história do pensamen-
acontecendo e permitir-lhe uma expansão mais rigorosa e autoconsciente. to político, tal como compreendidas pela ciência política norte-americana
Desde que Maria Tereza Sadek publicou Análises do pensamento social e e europeia, permitiu o oferecimento de um panorama “puro-sangue” do
político brasileiro, em 1982, não se fez nada além de referências genéricas à campo, que assegurou o rigor do empreendimento e manteve sua identidade
natureza do campo e ao seu crescimento. É esta lacuna que ora se pretende disciplinar. Era o que convinha, aliás, a um balanço do campo realizado sob os
preencher, oferecendo ao leitor um mapa conceitual, histórico e analítico da auspícios da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), como este de
área temática do PPB, tal como ela hoje se encontra organizada. Na primeira fato foi. Mas essa opção não foi feita sem sacrifícios. O maior deles foi ter de
seção do artigo, explicam-se as razões da indeterminação terminológica na excluir da análise aqui empreendida os estudos análogos sobre o pensamento
designação do campo de estudos e indagam-se os significados possíveis do brasileiro realizados “horizontalmente” em outras áreas das ciências huma-
conceito de PPB, seja como objeto, seja como disciplina. Na segunda se- nas. Mas achei que valia a pena correr o risco, a despeito das circunstâncias
ção, considerado o PPB como objeto, sustenta-se que aquela expressão, no mais pragmáticas que suscitaram a elaboração deste trabalho. Primeiro,
sentido lato, designa o conjunto de ideologias de que nossa cultura política é por já existirem alguns balanços do chamado “pensamento social brasilei-
composta, vazadas em um estilo “periférico” dotado de certas características. ro” no âmbito das ciências sociais. Em segundo lugar, as ciências humanas
desenvolveram histórias disciplinares autônomas, marcadas por distintos
*
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Polí-
ticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e do Programa de Pós-Graduação em
pressupostos, interesses e métodos de trabalho. Não se faz aqui a apologia
Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA); é também pesquisador da Fundação Casa de Rui do insulamento, evidentemente: na casa do Senhor há muitas moradas. Para
Barbosa (FCRB) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: evitar os riscos do estreitamento de vistas e a esclerose intelectual, o estudioso
clynch@iesp.uerj.br.
do PPB deverá beber sempre que possível nas águas do pensamento social
Revista Brasileira de Ciência Política, nº19. Brasília, janeiro - abril de 2016, pp. 75-119.
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-335220161904
Cartografia do pensamento político brasileiro 77 78 Christian Edward Cyril Lynch

brasileiro, conhecendo as contribuições aportadas por antropólogos, como Razões de uma indeterminação terminológica
Lilia Schwarcz; economistas, como Ricardo Bielschowsky; filósofos, como O campo de estudos do PPB na ciência política ainda convive com diversas
Antônio Paim, Vicente Barreto e Eduardo Jardim; historiadores, como Arno denominações: pensamento social brasileiro, pensamento político-social brasi-
Wehling, Lúcia Bastos, Marcello Basile e António Herculano; juristas, como leiro, pensamento social e político brasileiro, etc. Variam também os nomes das
Ricardo Fonseca, Samuel Barbosa e Aírton Seelaender; críticos literários, linhas de pesquisa. Se, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj),
como Antonio Candido, Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima; sociólogos, ela se chama “pensamento político brasileiro”, na Universidade de São Paulo
como Ângela Alonso, André Botelho, Edison Bariani, Élide Rugai, José Al- (USP) ela se chama “história das ideias políticas no Brasil”; na Universidade
mino, Nísia Trindade, Ricardo Benzaquen, Robert Wegner e Sergio Miceli. Federal de Minas Gerais (UFMG), “pensamento político e social brasileiro”;
Ainda assim, a produtividade do diálogo interdisciplinar do cientista político na Universidade Federal Fluminense (UFF), “interpretações do Brasil”; etc.
no campo do PPB dependerá de sua familiarização com os problemas e os Quais as razões dessa aparente anomalia, quando as demais áreas temáticas
métodos da teoria política e da história do pensamento político. As viagens da ciência política apresentam uma denominação uniforme?
são mais proveitosas quando se conhece bem o rincão natal. Essa profusão terminológica parece relacionada, em primeiro lugar, ao
O segundo esclarecimento diz respeito à eventual estranheza de não modo de emergência do campo de estudos. A “velha” ciência política bra-
se encontrar aqui uma releitura aprofundada da famosa questão atinente sileira naturalmente desconhecia as fronteiras que depois, quando de sua
às tradições ou linhagens do PPB. De fato, o artigo não se faz mais do que institucionalização universitária, lhe seriam traçadas pela “nova”. Além disso,
descrever em linhas gerais, na seção dedicada a historiar a disciplina, as clas-
ao contrário do que ocorreu na sociologia, o advento da “nova” não rompeu
sificações contidas nas interpretações de Wanderley Guilherme dos Santos,
com a agenda de pesquisas da “velha” (Lamounier, 1982). Dois dos principais
Bolívar Lamounier e Gildo Marçal Brandão. Para ser examinado a fundo,
responsáveis pela fundação da área de ciência política, Wanderley Guilher-
o assunto demandaria uma prévia análise da lógica e dos diferentes filtros
me dos Santos e Bolívar Lamounier, também se encarregaram da criação
de que aqueles intérpretes se serviram na formulação de suas classificações.
do campo de estudos do PPB1. Na verdade, eles já se dedicavam ao assunto
Semelhante esforço exigiria, por sua vez, investigar a função exercida pelo
antes de se irem para os Estados Unidos e se tornarem “cientistas políticos”.
conceito de cânone na história do pensamento político e o modo pelo qual
Debruçaram-se sobre um acervo de obras que, recorrendo à sociologia, à
os estudiosos dos países centrais elegeram categorias como idealismo e rea-
economia, à história, não se encaixavam retrospectivamente na definição
lismo para classificar, em tradições intelectuais, inventadas ou orgânicas, os
chamados “clássicos da política”. Compreender-se-iam então a lógica e as de ciência política que traziam de Stanford e da Universidade da Califór-
razões que motivaram aqueles intérpretes do PPB a adotarem os critérios nia, restrita ao “sistema político” de David Easton – o que podia levá-los a
que vieram de fato a empregar nas ditas classificações, compatíveis com suas eventualmente hesitarem sobre a designação do campo. Embora este nunca
particulares visões de mundo informadas, respectivamente, pelas tradições tenha sido o caso de Bolívar, Wanderley só delineou o político ao longo dos
do nacionalismo, do liberalismo e do marxismo. Só então poderia, quem sucessivos artigos de sua pesquisa: o primeiro (1965) falava em “pensamento
sabe, arriscar-me a uma classificação alternativa que, sem ilusões de neutra- social”; o segundo (1967), em “imaginação político-social”; o terceiro (1970),
lidade, mas adotando uma posição compreensiva, aproveitasse os elementos 1 É verdade que essa história não combina com aquela outra, mais conhecida, segundo a qual os
das demais para oferecer um panorama mais completo das nossas famílias métodos empíricos e quantitativos emulados dos Estados Unidos seriam a marca distintiva da cien-
tificidade na área e “que a política consistiria numa dimensão própria da realidade social, que não se
intelectuais. Por fim, agradeço às sugestões e comentários formulados em subsume à estrutura socioeconômica” (Moreira, 2012, p. 85). Desenvolvida nos Estados Unidos para
diferentes momentos desta pesquisa por Wanderley Guilherme, Marcelo promover a democracia lá existente, a recepção da ciência política empírica no Brasil se deu sob o
regime militar. Para criticar a tradição autoritária brasileira, era indispensável o recurso à teoria e ao
Jasmin, Bernardo Ricupero e Marcelo Sevaybricker, que foram fundamentais pensamento brasileiro. O cientista político brasileiro das primeiras gerações incorporava certo etos
para o trabalho ora apresentado. cientificista, mas, ao mesmo tempo, fazia a crítica de uma “política apolítica” (Lessa, 2011).
Cartografia do pensamento político brasileiro 79 80 Christian Edward Cyril Lynch

por fim, fixou-se em “imaginação política” (Lynch, 2013b). Além disso, com o arrefecimento dos ânimos entre “teóricos” e “empíricos”2 no âmbito
tendo em vista o diminuto número de cientistas sociais em torno de 1980, da ABCP e a consolidação da expressão pensamento político brasileiro para
em vez de criarem um grupo de trabalho à parte, os politólogos se juntaram designar a área temática a ela correspondente (2013).
aos sociólogos e aos antropólogos para criar junto à Associação Nacional de Do ponto de vista do seu significado, o conceito de PPB designa um
Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) um único grupo de trabalho objeto e uma disciplina. Como objeto, ele pode ser entendido em um sen-
(GT) sob a denominação “Pensamento Social no Brasil” (Oliveira, 1995). Em tido amplo ou estrito. Em sentido amplo, o PPB se refere ao conjunto de
suma: o fantasma do “social” rondava o nome do campo de estudos do PPB escritos de natureza ideológica representativos da cultura política brasileira,
à época do seu surgimento, há quarenta anos, fosse pela estreiteza do “novo” marcados por um estilo periférico de reflexão. Emprego aqui o conceito de
conceito de ciência política no enquadramento das obras produzidas antes ideologia no sentido fraco de “conjunto de ideias e de valores respeitantes
da institucionalização, fosse pela consagração, nos primórdios das ciências à ordem pública e tendo por função orientar os comportamentos políticos
sociais, da designação geral datada da década de 1950. coletivos” (Stoppino, 1998, p. 585). No sentido estrito, a expressão PPB se
A escalada de conflitos que estremeceram as relações entre cientistas refere a um círculo mais reduzido de obras que, dotadas de maior fôlego e
políticos “teóricos” e “empíricos” na virada do século foi outro fator que sistematicidade, pretenderam descrever nossa realidade política com maior
prolongou em certos lugares a partícula “social” na designação do campo do fidedignidade e como tal passaram a integrar uma espécie de cânone dos
PPB. Se, no curso do processo, alguns dos “empíricos” mais famosos, como “clássicos” do PPB. Encara-se o PPB então como uma teoria política e/ou a
Gláucio Soares, acusavam “teóricos” de consumirem recursos públicos em “velha” ciência política, elaborada antes da institucionalização universitária.
discussões pedantes que pouco ou nada contribuíam para a resolução das Por essa última expressão, deve-se entender “qualquer estudo dos fenômenos
mazelas nacionais (Soares, 2005, p. 52), “teóricos” como Renato Lessa e Gildo e das estruturas políticas, conduzido sistematicamente e com rigor, apoiado
Marçal Brandão questionaram a possibilidade de uma ciência purificada num amplo e cuidadoso exame dos fatos expostos com argumentos racionais”
de normatividade e acusaram o caráter ideológico dos métodos veiculados (Bobbio, 1997, p. 164).
pelos “empíricos” como neutros (Lessa, 1998; Brandão, 1998; Moreira, 2012).
Potencializados pela luta por hegemonia dentro da Associação Brasileira O pensamento político brasileiro como objeto: sentido amplo
de Ciência Política (ABCP), os conflitos chegaram ao ponto de reconhecer, A política repousa sobre o dado da pluralidade humana no contexto de
em balanço da área realizado há dez anos, que “as duas principais formas uma comunidade composta de seres de múltiplas crenças e interesses. É por
de abordagem simplesmente não se comunicam entre si” (Amorim Neto e seu intermédio que indivíduos e grupos negociam, implantam e asseguram
Santos, 2005, p. 102 e 107). No que nos interessa mais de perto, importa sa- o cumprimento das diferentes demandas que formulam entre si ou face da
lientar que o exagero dos “empíricos” em restringirem o domínio da política coletividade. Por cultura política, entende-se aqui o conjunto de discursos
àquele das instituições levou os “teóricos” mais combativos a reafirmarem ou práticas simbólicas por que tais demandas são efetuadas, conferindo
seguidamente a dependência do político face ao social e do econômico. A identidades aos indivíduos e grupos, indicando-lhes os limites de suas co-
atitude se refletiu pelo emprego, como sinônimas de PPB, de expressões como munidades e definindo as posições a partir das quais podem demandar. Uma
“pensamento social brasileiro”, “pensamento social no Brasil”, “pensamento cultura política é atravessada por discursos, práticas simbólicas ou ideologias
político-social” e “pensamento político e social” (Brandão, 2007, p. 22-23).
2 Se, por um lado, os “empíricos” asseguraram suas posições, o institucionalismo da escolha racional
Os “teóricos” empenhados na luta não percebiam que, ao alardearem a ne- perdeu força à medida que “a agenda do seu programa de pesquisa amadureceu” e seus adeptos
cessidade de se acrescentar a partícula “social” à denominação do campo, reabriram “a interlocução sistemática com a história e a cultura” (Araújo e Reis, 2005, p. 61). O conflito
se ancorava em “divisões artificiais, baseadas mais em diferenças de estilos intelectuais e objetos de
involuntariamente chancelavam a definição restritiva de ciência política investigação, próprias de uma disciplina marcada pela pluralidade, que em divergências reais” (Amorim
veiculada por seus adversários. Essa situação só começou a ser revertida e Santos, 2015).
Cartografia do pensamento político brasileiro 81 82 Christian Edward Cyril Lynch

orientadas por diferentes valores e/ou interpretações da realidade. Os fatos Do ponto de vista formal, o campo do PPB é composto por opúsculos,
políticos precisam ser interpretados à luz dos valores, crenças, interesses e ob- panfletos, cartas, artigos de jornal ou revistas, tratados, manuais, ensaios, di-
jetivos dos diversos segmentos de que a sociedade é composta. As ideologias cionários, dissertações, sermões, poemas, músicas, discursos, livros e artigos
ou discursos políticos são, portanto, conjuntos de “ideias, crenças, opiniões e “que têm por objeto de estudo os aspectos sociais ou políticos substantivos da
valores que exibem um padrão recorrente; que possuem grupos significativos sociedade brasileira” (Santos, 1970, p.147). Neles, encontram-se “avaliações
como seus portadores; competem pelo fornecimento e controle das políticas políticas que alguns homens de percepção educada, comprometidos com
públicas, com o objetivo de justificar, contestar ou alterar os processos e o público de uma forma ou de outra, são compelidos a fazer [...] a fim de
arranjos políticos e sociais de uma comunidade política” (Freeden, 2003, p. oferecer uma explicação racional para suas audiências” (Santos, 1970, p.137).
32). São metáforas, símbolos e temas prenhes de significados, que pretendem Seria fácil aqui declinar pelo menos cem nomes de autores relevantes, que
ordenar a realidade política por meio de determinadas narrativas sobre o incluiriam escritos de liberais como Evaristo da Veiga e Tavares Bastos; con-
passado, o presente e o futuro da comunidade. As ideologias apresentam três servadores como Alcindo Guanabara e Campos Sales; monarquistas como
funções: servem de mapas para que indivíduos e grupos sociais se orientem Eduardo Prado e o Barão do Rio Branco; positivistas como Miguel Lemos
meio à complexidade e à opacidade do mundo; são defendidas por grupos e Teixeira Mendes; nacional-reformistas como Virgínio Santa Rosa e Juarez
identificáveis que disputam a preferência daqueles que detém o poder; e Távora; integralistas como Plínio Salgado e Miguel Reale; comunistas como
almejam justificar, contestar e transformar os arranjos e processos sociais e Astrogildo Pereira e Otávio Brandão; desenvolvimentistas como Álvaro
políticos. Elas se adaptam às mudanças sociais, ao mesmo tempo que reivin- Vieira Pinto e Roland Corbisier; etc. A produção do PPB como ideologia
dicam uma tradição, composta de antecessores, verdadeiros ou inventados,
jorra diariamente nos editoriais de jornais, blogs políticos, comícios, pro-
na forma de mártires, doutrinários ou heróis. A expressão “pensamento
nunciamentos televisivos e discursos parlamentares. Sua modalidade mais
político”, por sua vez, é empregada aqui no sentido admitido na literatura
prestigiosa parece a análise de conjuntura feita para intervenção no debate
internacional para designar um conjunto de autores ou obras pertencentes
público. Tornou-se função, tanto de jornalistas como Merval Pereira, Mino
a uma determinada nacionalidade (Lynch, 2013a, p. 733). Entende-se neste
Carta, Paulo Henrique Amorim e Reinaldo Azevedo, quanto de acadêmicos
caso que, sem pensamento político, a comunidade política não poderia ser
como Marcos Nobre, Marco Aurélio Nogueira e André Singer.
organizada e tampouco existir. Por isso, toda comunidade organizada possui
Do ponto de vista material ou substantivo das ideologias, a percepção
necessariamente alguma modalidade de pensamento político. O Brasil não
de seus autores de se encontrarem na atrasada periferia ibero-americana
pode ser uma exceção: existe um PPB tanto quanto um pensamento político
conferiu ao PPB uma conformação temática e estilística específica. Depen-
argentino, paraguaio, estadunidense, francês, inglês, russo ou chinês. Cada
um deles remete ao conjunto de ideologias e discursos que confirmam suas realidade política de qualquer parte do mundo. Do ponto de vista ideológico, sua interpretação do
respectivas culturas políticas, apresentando entre si tanto semelhanças quanto Brasil pertence à tradição liberal doutrinária, ou “idealista constitucional” (Santos, 1978; Brandão, 2007),
bacharelesca, e apresenta suas típicas dicotomias: sociedade versus Estado; modernidade versus pré-
especificidades3. -modernidade; liberalismo versus absolutismo; cultura ocidental ou europeia versus cultura oriental ou
ibérica. Por fim, o conceito de pensamento político é reduzido a sinônimo de liberalismo, dependendo
3 Curiosamente, houve um “intérprete” do PPB que negasse a existência do PPB: trata-se de Raimundo a sua “autenticidade” da existência, onde ele estivesse, de uma sociedade civil madura e organizada à
Faoro, na obra Existe um pensamento político brasileiro? Segundo o jurista gaúcho, a sociedade brasileira moda anglo-saxã. No fim das contas, as exigências impostas por Faoro para um “pensamento político”
seguiria aprisionada em uma espécie de Antigo Regime disfarçado, em que prevaleceria uma cultura nacional o inviabilizam para países situados fora do Atlântico Norte. Sem sociedade ocidental madura,
política ibérica, de traços pré-modernos. O propalado liberalismo brasileiro não seria “autêntico”, não haveria modernidade, nem liberalismo autêntico, nem pensamento político. Em sociedades não
porque inorgânico, estatista e conservador; ele seria manipulado pela classe dominante para fins de democráticas, ou julgadas insuficientemente maduras, o liberalismo – e, por extensão, todo o pensa-
ornamentação e manutenção do status quo (Faoro, 1996, p. 67). Embora tenha sido útil no combate mento político – não passaria de enganação ou simulacro. Uma abordagem abrangente e compreen-
à herança autoritária do regime militar, esta é uma concepção de PPB academicamente inaceitável. siva do PPB não pode adotar semelhante perspectiva eurocêntrica e essencialista das ideias políticas.
Vários motivos levam à essa recusa. Do ângulo metodológico, Faoro descreve as ideias políticas à Deve concebê-las, ao contrário, no contexto dos diferentes momentos da construção nacional de sua
maneira hegeliana, como entes desencarnados universais que teriam potência para organizar a sociedade periférica, tendo em vista os desafios e as possibilidades de ação inscritas em cada um deles.
Cartografia do pensamento político brasileiro 83 84 Christian Edward Cyril Lynch

dentes dos modelos culturais europeus, que hierarquizavam e definiam os pragmáticos. A esse respeito, Cruz Costa já afirmava em 1956 que “a nossa
lugares e os papéis das nações a partir de uma concepção evolucionista e origem, as condições de nossa formação, a nossa experiência histórica, nos
teleológica do processo histórico, nossas elites internalizaram o pressupos- afastam do alcantilado das metafísicas e nos impelem para a meditação
to de sua subalternidade e de seu atraso de modo a estruturar toda a sua das realidades concretas e vivas” (Costa, 1956). Isso não quer dizer, repita-
cultura política. Toda ou quase toda a sua produção intelectual está assim -se, que não haja uma teoria geral implícita naqueles escritos. Ela muitas
relacionada de alguma forma com a constatação do atraso existencial do vezes existe, com efeito, mas precisa ser deduzida ou reconstruída para ser
país diante de outra realidade, aquela do “Primeiro Mundo”, identificado compreendida à maneira “cosmopolita”. A segunda característica é a maior
como o polo positivo dessa relação especular, porque associado ao mo- centralidade da retórica, da oratória e do argumento de autoridade (Carvalho,
derno (Lynch, 2013a). Em decorrência disso, o eixo temático do PPB gira 2000). Os autores periféricos leem os cêntricos como autoridades que lhes
basicamente em torno do diagnóstico do atraso, da barbárie, do retardo ou poupariam o trabalho de descobrir por si mesmos a verdade da arte e da
do subdesenvolvimento nacional e do imperativo do progresso, da civilização, ciência; da mesma forma, a referência às obras europeias conferia prestígio
da evolução ou do desenvolvimento, meios conducentes à transformação das a quem a fazia, sendo demonstração de cultura e capacidade intelectual.
estruturas herdadas da colonização para alcançar a modernidade cêntrica. A Em 1843, o senador Paula Sousa caracteristicamente explicava: “Eu, que
esse imperativo modernizador subordinaram-se quase sempre três tópicos não tenho gênio nem capacidade, gosto muito de apoiar-me nas opiniões
maiores da teoria política, relativos ao problema da organização da ordem dos grandes homens, gosto de seguir o exemplo das grandes nações e dos
pública, da liberdade individual e da igualdade social. Estes acabaram menos grandes homens” (ASI, 6/5/1843). Exatamente um século depois, Oliveira
valorizados em si mesmos do que em virtude de sua associação com o ideal Viana lamentava aquela atitude, marca de todo o nosso pensamento social:
de modernidade erigido na periferia à condição de razão de Estado. Mas não “Ninguém é, aqui, pontífice por si mesmo. Para influir, para ‘pesar’, para ter
foi apenas o eixo temático do nosso pensamento que adquiriu conformação autoridade, é-lhe preciso um reforço estranho, um apoio alheio, que não é
especial: o estilo de redação também. Já que raramente se viram pertencendo outro senão o da autoridade do autor estrangeiro” (Vianna, 1991, p. 360).
à civilização em que se produzia a “verdadeira” teoria, ciência ou filosofia, Esse prestígio do autor estrangeiro é responsável pela terceira caracterís-
nossos escritores preferiram voar mais baixo do ponto de vista da abstração tica do estilo periférico: a tendência de os autores nacionais se apresentarem
ou da pretensão teórica. O resultado foi um “estilo periférico” de redação e como pioneiros da modernidade cêntrica, obscurecendo as relações de conti-
argumentação que contrasta singularmente com aquele, “cosmopolita” ou nuidade intelectual com seus predecessores nacionais. Esse traço foi referido
“universal”, que caracteriza as obras canônicas da teoria política europeia4. já no século XIX por Sílvio Romero, aliás com conhecimento de causa: “A
A primeira característica desse estilo periférico do PPB é o menor grau leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem
de generalização e maior sentido prático das reflexões políticas. Na periferia, decidir da natureza das opiniões de um autor entre nós” (Romero, 1969,
p. 32). O fato levava Tobias Barreto a reclamar pouco depois que “a ciência
não se cogita que a elaboração intelectual local tenha alcance universal.
não pode ser semelhante à teia de Penélope, que desmanchava durante a
Pensada para impactar de modo mais restrito no tempo e no espaço, num
noite o que fizera durante o dia” (Barreto, 1977b). Em 1953, Hélio Jaguaribe
ambiente carente de mudanças, ela costuma ter objetivos mais pontuais e
ainda notava que “cada geração repetia, a partir do marco zero, o esforço da
4 Não se pretende aqui caricaturar o pensamento político europeu como sempre vazado em linguagem geração anterior, e ia buscar as ideias na Europa” (Jaguaribe, 1957, p. 18).
universalista ou abstrata. A ênfase da referida comparação do PPB com as obras canônicas da teoria
política não é ociosa. Penso aqui nos grandes tratados, como o Leviatã de Hobbes, o Segundo tratado A verdade é que a continuidade entre os autores nacionais existe, devendo
de Locke, Do contrato social de Rousseau, os Princípios de política de Constant, Da liberdade de Stuart ser procurada, não tanto nas suas expressas filiações autorais exógenas, mas
Mill, O indivíduo contra o Estado de Spencer etc. Importa notar, todavia, que se há obras fundamentais
do pensamento europeu redigidas em estilo “contingente”, como as Reflexões de Burke ou O que é o
naquelas ocultas, endógenas, perceptíveis pela constância temática. A quarta
terceiro Estado de Sieyès, pouquíssimas foram escritas na periferia em estilo “cosmopolita”. característica digna de nota é a maior diluição das posições extremadas – isto
Cartografia do pensamento político brasileiro 85 86 Christian Edward Cyril Lynch

é, demasiado conservadoras ou radicais – comparativamente àquelas dos países mo, o judiciarismo, a representação classista, as comissões parlamentares, o
europeus (Ricupero, 2010). O fenômeno se deve a quatro fatores: a ausência mandado de injunção, o júri etc. Não se trata de patologia, mas de estratégia
de tradições fortes de um passado feudal e católico; a crença na previsibi- de construção nacional, conforme notado por Guerreiro Ramos: “Não ca-
lidade do futuro (que era aquele dos países cêntricos, tal como enxergado minhamos do costume para a teoria; do vivido, concreta e materialmente,
da periferia); a menor complexidade aparente da sociedade local, avessa às para o esquema formal. É o inverso que se dá; caminhamos, até agora, no
hierarquias formais; e, por fim, o quase consenso em torno da necessidade tocante à construção nacional, do teórico para o consuetudinário, do formal
de superação do presente indesejável para alcançar aquele futuro “civiliza- para o concretamente vivido. O formalismo é, nas circunstancias típicas e
do” identificado com o presente dos países cêntricos. “Na América, e mais regulares que caracterizam a história do Brasil, uma estratégia de construção
particularmente no Brasil, todos são democratas; todos são liberais [...]. nacional” (Ramos, 1966, p. 389-90).
Mesmo os representantes do espírito conservador, real ou fictício, puseram Consequência direta do formalismo institucional, a sétima característica
sempre grande empenho em fazer crer que eram eles os verdadeiros liberais”, do estilo periférico do PPB reside no pedagogismo, decorrente da necessi-
escrevia Assis Brasil (1895, p.160). dade de se educar a população nas culturas necessárias à boa prática das
O quinto traço do estilo periférico do PPB vincula-se ao anterior e resi- instituições transplantadas ou por transplantar: o constitucionalismo, o
de na orientação acentuadamente prospectiva da política. O passado é visto republicanismo, a democracia, o socialismo etc. O mais célebre pedagogo
negativamente como a época de gestação das mazelas a serem superadas. Já brasileiro foi Rui Barbosa, que em 1893 declarou, a respeito do constitucio-
o futuro é o lugar da redenção nacional, a se alcançar pelo progresso, pela nalismo republicano, recém-implantado, mas ineficaz: “É nas classes mais
civilização, pela evolução, pela modernização, pelo desenvolvimento. Durante cultas e abastadas que devem ter o seu ponto de partida as agitações rege-
a Regência, Gonçalves de Magalhães escreveu: “O tempo, prosseguindo em neradoras. Demos ao povo o exemplo, e ele nos seguirá” (Barbosa, 1931, p.
sua marcha, irá mostrando qual é o destino que a Providência tem marcado a 140). Mas o pedagogismo não foi apanágio dos liberais. Em pleno Estado
este Império da América” (Magalhães, 1865, p. 144). No começo da República, Novo, Oliveira Viana chamava a atenção para a necessária educação das
Euclides da Cunha exprimiu o dilema em que a referida orientação punha elites brasileiras para o sentido coletivo da existência, a fim de retirá-las do
urgentemente o país: “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, seu egoísmo e habituá-las a servir à nação (Viana, 1974b, p. 64). À esquerda
ou desaparecemos” (Cunha, 1975). A hipertrofia do horizonte de expecta- também se praticou o pedagogismo. Em 1967, Roland Corbisier atribuía o
tivas políticos resultou simetricamente numa atrofia do peso conferido ao fracasso das reformas de base por terem faltado, “aos próprios reformistas,
espaço de experiências, ou seja, realizou-se à custa do prestígio das tradições formação ideológica e clara consciência do problema” (Corbisier, 1968, p.
políticas, associadas geralmente ao atraso – daí a profusão dos modismos 2). As características desse estilo periférico não são nem boas ou más em
e novidades estrangeiras. Em 1955, Guerreiro Ramos aludia ao fenômeno: si, nem imutáveis. O que se tem verificado é, ao contrário, a tendência de
“A tradição, a famosa tradição, que impõe tantos limites à vida europeia, se esmaecerem progressivamente, conforme a sociedade brasileira se torna
evapora no trópico e mesmo os simples costumes cotidianos sofrem forço- mais moderna e adquire maior autonomia intelectual.
sas aberrações e adaptações” (Ramos, 1960, p. 94). A sexta característica do
estilo periférico reside na abundância de “projetos nacionais” dependentes O pensamento político brasileiro como objeto: sentido estrito
da aclimatação de modelos cêntricos. Parte nada desprezível dos escritos do Em sentido estrito, a expressão PPB designa um conjunto mais redu-
PPB deposita uma grande confiança na importação de instituições políticas zido de obras mais abrangentes, sistemáticas ou abstratas, que comporia o
de países como a Inglaterra, a França e os Estados Unidos como método de cânone dos “clássicos” do nosso pensamento político, deixadas por nossos
aceleração da modernização social, como a monarquia constitucional, o principais pensadores políticos. Uma lista abrangente mas não exaustiva de
unitarismo, o parlamentarismo, a república, o federalismo, o presidencialis- nomes componentes desse cânone incluiria Hipólito da Costa, o Visconde
Cartografia do pensamento político brasileiro 87 88 Christian Edward Cyril Lynch

de Cairu, Evaristo da Veiga, Justiniano da Rocha, João Francisco Lisboa, rada uma ciência prática: tratava-se da clássica “arte de governar os povos”
o Visconde de Uruguai, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, que deveria orientar o agir político dos estadistas e envolvia a articulação
Assis Brasil, Manuel Bonfim, Rui Barbosa, Alberto Torres, Oliveira Vianna, de saberes antigos, como a filosofia moral, e outros novos, como o direito
Gilberto Amado, Azevedo Amaral, Francisco Campos, Caio Prado Junior, constitucional comparado e a economia política. Mirando-se no exemplo
Hélio Jaguaribe, Sérgio Buarque de Holanda, Guerreiro Ramos, Victor Nunes de estadistas como Robert Peel, Palmerston, Thiers e Guizot – os políticos
Leal, Afonso Arinos de Melo Franco, Celso Furtado, Golbery do Couto e do Império estudavam as instituições e práticas dos países cêntricos (Grã-
Silva, Raimundo Faoro, Florestan Fernandes etc. As obras de tais autores, -Bretanha, França e Estados Unidos) para fomentar o progresso e elevar ou
geralmente materializadas em algum livro reputado clássico, seriam as ex- manter o Brasil na órbita da civilização. Na qualidade de centro e motor
pressões mais elevadas daquilo que se pode entender como a teoria política da civilização, a Europa era vista pela periferia ibero-americana como uma
e/ou uma ciência política brasileira, no significado que essa última expressão espécie de câmara de antevisão do futuro, a partir da qual ela extraía lições
possuía antes da institucionalização universitária5. A referência algo fluida a serem aproveitadas, promovendo inovações desejadas e postergando ou
entre a teoria e a ciência é propositada, porque as diferenças entre uma e antecipando as indesejáveis. Em 1843, o senador Paula Sousa explicou: “Nós
outra só foram estabelecidas a posteriori. Uma vez que o desenvolvimento nascemos ontem; passamos do estado de colônia para governo representa-
da ciência política está ligado àquele da história das ideias e das doutrinas, tivo; a nação de que fazíamos parte e de quem éramos colônia [Portugal]
só muito lentamente a noção de ciência objetiva se desligou dos conceitos não tinha governo representativo; era escrava [i.e. absolutista] e até muito
éticos e das crenças, ou seja, da ideologia (Duverger, 1976, p. 39). No fundo, atrasada na escala da civilização. Logo, para marcharmos, havemos de tomar
todas ou quase todas as obras canônicas do PPB pretenderam influenciar por modelo e por norte essa grande nação [a Inglaterra], que lutou séculos
o processo político. Refletiram o dilema insolúvel da ciência política: ser para conseguir o governo representativo, e que desde 1688 o tem estável e
entendida como uma disciplina aplicada, voltada para a resolução de deter- glorioso” (ASI, 5/7/1843). Para bem cumprir aquela função, liam as obras
minados fins práticos, ou uma disciplina pura, que descrevesse o fenômeno de doutrinadores, historiadores e constitucionalistas estrangeiros e acom-
político independentemente de comprometimento com valores (Gunnell, panhavam pelos jornais e revistas que chegavam da Europa tudo o que se
1993, p. 5). O que as distingue a esse respeito, portanto, é uma questão de relacionava com “a marcha da civilização”.
grau: algumas se acharam mais voltadas para a intervenção do que outras, Nem tudo, porém, era consenso. Entre os estadistas do Império, grassavam
que se detiveram mais na descrição da realidade. Por esse motivo, apenas em diferenças acerca do tipo de ciência política que convinha para incorporar
sentido aproximado será possível aqui classificar as principais obras do PPB ao Brasil as conquistas da civilização refletidas nas instituições europeias ou
como mais normativas ou pragmáticas do que desinteressadas ou científicas. norte-americanas. Os liberais adotavam uma orientação idealista, cosmo-
polita e moralista, considerando a ciência política um conjunto de regras
O seu valor deve ser medido à luz dos sucessivos paradigmas do que fosse
imutáveis, universais e eternas: “Há princípios a priori, anteriores aos fatos
a ciência política, ao longo das três principais etapas nas quais a história do
que os regem, e são estes o que constituem a ciência”, declarou o senador
PPB pode ser dividida.
Feijó (ASI, 27/5/1839). Já os conservadores preferiam uma abordagem rea-
O primeiro período da história do PPB coincidiu com o primeiro meio
lista ou cética, que separava a moral da política e os levava a se orientarem
século de vida independente do país. Desenvolvida por Montesquieu,
pela prudência, ou seja, pelas circunstâncias e pela experiência. Era o caso
Burke, Constant e Tocqueville, a ciência política oitocentista era conside-
de Bernardo Pereira de Vasconcelos: “Se a política tivesse regras certas e
5 Da inexistência do campo universitário da ciência política antes de 1969 não se infere sua falta no de uma aplicação invariável, seria, sem dúvida, uma ciência ao alcance de
período anterior. A definição do que seja ciência ou objetividade, como qualquer outra, varia inexora-
velmente conforme contingências de tempo e o lugar (Camic, 1995). A própria ideia de uma ciência
todos; mas a dificuldade de aplicar as regras, de modificá-las, de acomodá-
política anterior à institucionalização confirma a tese. -las ao estado social, é o que torna a ciência política a mais difícil de todas
Cartografia do pensamento político brasileiro 89 90 Christian Edward Cyril Lynch

as ciências e que faz com que todos os publicistas de boa-fé reconheçam mo dos científicos: “Certas leis existem em política que se podem chamar
que é a que está mais na sua infância” (ASI, 28/5/1839). Era preciso olhar científicas, no sentido em que a economia política, a moral, a estatística, são
para as circunstâncias particulares do Brasil, adotando, por conseguinte, um ciências, mas a política em si mesma é uma arte tão prática como a conduta
ponto de vista político nacional: “As instituições são próprias do lugar e do do homem na vida [...]. Conhecer o seu país, conhecer os homens, conhecer-
tempo; devem ser acomodadas não só aos povos, como também às épocas. -se a si mesmo, há de ser sempre a parte principal da ciência do homem de
Cada época tem a sua necessidade apropriada”, pontificou Vasconcelos (ASI, Estado” (Nabuco, 1949, p. 39). Como se percebe, se as duas tendências – a
19/6/1840). Os livros mais representativos do período foram, provavelmente: cientificista e a clássica – compartilhavam a tese de que a ciência política
Partidos e eleições no Maranhão, de João Francisco Lisboa (1852); Ação, reação estava ancorada no conhecimento da história, elas divergiam no modo pelo
e transação, de Justiniano José da Rocha (1855); Ensaio sobre o direito admi- qual compreendiam o processo histórico como teleológico ou contingente.
nistrativo, do Visconde de Uruguai (1862); e O abolicionismo, de Joaquim Este segundo período foi também marcado pela recepção da noção
Nabuco (1884). Já a obra que mais se aproximou do ideal teórico puro foi disciplinar da ciência política, entendida como um objeto de especulação
o sistema representativo, de José de Alencar, dedicada que foi em expender, metafísica ou filosófica a ser estudada para fins práticos por especialistas
de forma sistemática e com todos os seus desdobramentos, o “princípio da situações fora da política militante. Para a “ciência política” estadunidense
representação, base de que decorre toda a constituição do Estado, raiz e de Willoughby, a “teoria do Estado” germânica de Bluntschili e as “ciências
tronco da organização política” (Alencar, 1868, p. 11). políticas” francesas de Boutmy, a ciência política resultava do estudo de um
O segundo período do PPB correspondeu àquele do cosmopolitismo variado conjunto de disciplinas que conferiam ao estudioso um painel do
periférico da nossa belle époque. Sua novidade teórica residiu na introdução desenvolvimento histórico, filosófico e jurídico das instituições (Gunnell,
das concepções “científicas” da política, extraídas da filosofia da história 1993, p. 71). Em livros como Cartas de Inglaterra (1896), o mais importante
positivista de Comte ou evolucionista de Spencer, quando do alargamento publicista da época, Rui Barbosa, citava profusamente professores ingleses
da esfera pública para o padrão oligárquico da Primeira República (Santos, e norte-americanos como Francis Lieber, William Graham Sumner, James
2013). Embora os “científicos” fossem bastante moralistas, foram eles que Bryce e Charles Beard. A ciência política precisava ser pensada à maneira de
assentaram a tese de que a ciência política se diferenciava pela objetividade Léon Donnat, como uma ciência experimental: “A política não é a ideologia,
com que conduzia a análise dos fenômenos sociais. Alberto Sales, autor de nem a estética. Não pode ter nem as abstrações ideais da metafísica, nem a
Ciência política (1890), ambicionava caracteristicamente criar uma “política inflexibilidade retilínea e absoluta da dialética dedutiva, nem as combinações
científica” voltada para o combate da “anarquia mental” no Brasil; só ela simétricas da arte. É, por excelência, entre todas, a ciência experimental”
poderia “banir a revolução, sem excluir o progresso, e estabelecer o reinado (Barbosa, 1964, p. 3). Embora ainda não houvesse cursos de política no
da ordem e da paz, sem voltar ao passado” (Sales, 1882, p. 17). Também Ma- Brasil, aquela noção decantou na orientação de alguns escritores políticos,
nuel Bonfim apelaria à ciência política emulada da biologia para lhe conferir que buscaram pensar as instituições de modo mais teórico que os juristas
um instrumental capaz de revelar as razões do atraso ibero-americano em em geral. Entre estes se destacaram Assis Brasil, autor de República federal
América Latina: males de origem (1900). Mas havia outro tipo de ciência (1883), Democracia representativa: do voto e da maneira de votar (1893) e
política que, embora desdenhada pelos “científicos”, atualizava a antiga Do governo presidencial na república brasileira (1896); Sílvio Romero, au-
concepção prudencial baseada na observação e na experiência histórica. tor de Parlamentarismo e presidencialismo na República do Brasil (1893) e
Era aquela praticada na Itália por Gaetano Mosca, liberal realista para quem Os partidos políticos e o grupo positivista (1894); Medeiros e Albuquerque,
“fazer ciência política quer dizer principalmente se opor a toda a forma de responsável por O regime presidencial no Brasil (1914); e Aurelino Leal, que
utopismo” (Bobbio, 1996, p. XV). Emblemática dessa orientação no Brasil publicou Parlamentarismo e presidencialismo no Brasil (1914). Era a mani-
foi Balmaceda (1896), obra na qual Joaquim Nabuco atacava o autoritaris- festação entre nós do “velho institucionalismo”, entendido como “a análise
Cartografia do pensamento político brasileiro 91 92 Christian Edward Cyril Lynch

da evolução histórica das instituições formais-legais e das ideias a elas asso- Depois da Segunda Guerra, o futuro autor de Formação econômica do Bra-
ciadas” (Rhodes, 2006, p. 91). O mais comum, porém, eram obras elaboradas sil (1958), Celso Furtado, introduziria o pensamento econômico da Comissão
na linha tênue do direito constitucional, como foi o Regime federativo e a Econômica para a América Latina (Cepal), que dali por diante concorreria
república brasileira (1900), de Amaro Cavalcanti. com a sociologia na qualidade de saber auxiliar da nossa “velha” ciência
Durante o terceiro momento do PPB, que começa em torno de 1920 e política. Em nenhum grupo de intelectuais aquela concepção se expressou
corresponde à parte mais característica do século XX, percebe-se, no bojo de forma tão característica quanto naquele que se reuniu inicialmente em
do nosso nacionalismo periférico, uma reação definitiva à ciência política torno do ideal nacional-desenvolvimentista do Instituto Superior de Estudos
entendida como técnica de direito constitucional manejada dedutivamente Brasileiros (Iseb). Os mais notáveis foram Hélio Jaguaribe, responsável por
pelo estadista culto, à maneira dos juristas. Assimilou-se a noção, difundida Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político (1962), e Guerreiro
pela ciência política norte-americana e pela sociologia política francesa, de Ramos, autor de A crise do poder no Brasil (1961) e Mito e verdade da revolu-
que o estudo das instituições não poderia ser desvinculado do comporta- ção brasileira (1963). Ambos deram seguimento à ciência política pragmática
mento dos atores políticos. Ao mesmo tempo, a chamada “questão nacional” perseguida na primeira metade do século por Alberto Torres e Oliveira
(Oliveira, 1990) voltaria o nosso pensamento para a promoção da eficácia Vianna. Outro não era o propósito do conceito de ideologia por eles mobi-
política e administrativa indispensável ao fortalecimento da nacionalidade lizado, destinado a fornecer às classes progressistas uma “fundamentação
contra a ameaça representada pelo imperialismo de todos os tipos. Nesse teórica” do processo de industrialização em curso que também lhe servisse
campo, destacaram-se na primeira metade do século os dois grandes nomes de justificativa pública (Jaguaribe, 1955, p. 22). Ela funcionaria como uma
do pensamento nacionalista, ou nacional-reformista: Alberto Torres, autor “teoria da sociedade brasileira que sirva de suporte à estruturação efetiva
de A organização nacional (1914) e O problema nacional brasileiro (1914); das tendências de autodeterminação vigentes hoje em nosso país” (Ramos,
e seu principal discípulo, Oliveira Vianna, autor de O idealismo da Cons- 1995, p. 60). A onda marxista do começo da década de 1960 atingiria jovens
tituição (1927), Problemas de política objetiva (1930) e Instituições políticas militantes nacionalistas do Iseb como Wanderley Guilherme dos Santos, autor
brasileiras (1949). Ambos mobilizavam a sociologia como ciência auxiliar de Quem dará o golpe no Brasil (1962) e Introdução ao estudo das contradições
para superar o formalismo do período anterior e elaborar uma ciência sociais no Brasil (1963). Na USP, porém, a ciência política marxista oriunda
política pragmática, voltada para a apreensão e transformação da realidade do Grupo do Capital era de outro corte, acadêmica e antinacionalista. Seus
nacional. Torres definia a ciência política como a “arte nuclear de todas as representantes mais destacados eram Fernando Henrique Cardoso, autor de
outras, arte de coordenação e de harmonia, arte central, destinada a envolver, Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (1964) e Paula
a ligar, a impulsionar, a superintender o funcionamento das demais” (Torres, Beiguelman, responsável pelos Pequenos estudos de ciência política (1967).
1914, p. 130). Ela deveria resultar “do estudo racional dos dados concretos A especialização acadêmica da década seguinte levou os ensaios de interpre-
da terra e da sociedade, observados e verificados pela experiência” (Torres, tação política do Brasil ao ocaso: seus últimos grandes exemplares, feitos já
1914, p. 130). Em Instituições políticas brasileiras (1949), Oliveira Viana não no contexto da universidade, foram A revolução burguesa no Brasil (1974),
destoaria de Torres ao declarar com todas as letras que a ambição de sua de Florestan Fernandes; a segunda edição de Os donos do poder (1975), de
vida havia sido a de colocar “a ciência social a serviço da ciência política” Raimundo Faoro; São Paulo e o Estado nacional, de Simon Schwartzman
(Vianna, 1999, p. 405)6. (1975) e Liberalismo e sindicato no Brasil, de Luiz Werneck Vianna (1976)7.
6 De acordo com Gilberto Amado (1999, p. 156), Alberto Torres e Oliveira Viana pertenceriam a “um Entre aqueles que no século XX arriscaram obras de ciência mais de-
partido antissentimental, que chamaríamos científico, pequeno partido que desejaria aplicar ao
governo do Brasil as regras da ciência política, segundo as quais um país tropical, situado na latitude 7 Ultimamente, o interesse suscitado pelos “intérpretes do Brasil” levou alguns colegas a redescobrirem
do nosso, deve ser governado como os países coloniais, que ficam em latitude semelhante, ainda que o gênero. Foi o caso de Francisco Weffort em A espada, a cobiça e a fé: origens do Brasil (2012) e do
ressalvando a dignidade nacional e o patrimônio espiritual de um povo independente”. economista Luís Carlos Bresser-Pereira em A construção política do Brasil (2014).
Cartografia do pensamento político brasileiro 93 94 Christian Edward Cyril Lynch

sinteressada ou “pura”, destacou-se Gilberto Amado, autor de Eleição e dos inquéritos, das estatísticas”, a ciência política transcendera o plano
representação (1932). Neste livro, o escritor sergipano estudava o sistema das discussões doutrinárias e histórico-jurídicas para abranger “todos os
representativo, a representação proporcional e os sistemas partidários, fenômenos que interessam ao comportamento, às instituições, à prática
apresentando ao final um capítulo de sociologia política aplicada ao Brasil, dos regimes, enfim, aos fenômenos que se enquadram na organização, na
à maneira de Gaston Jèze. Não à toa, o subtítulo do livro era Curso de direito estrutura, no funcionamento do Estado e no exercício do poder” (Caval-
político. Amado se apresenta como um perfeito realista: “É um axioma de canti, 1958, p. 45). Enquanto isso, na Universidade de Minas Gerais (UMG,
ciência política verdadeiro em todos os regimes – no regime democrático futura UFMG), o também jurista Orlando de Carvalho promovia estudos
como nos demais – que a sociedade deve ser dirigida pelos mais avisados eleitorais e partidários em Ensaios de sociologia eleitoral (1958) e Os parti-
(sages); pelos mais inteligentes; pelos mais capazes; pelos melhores; em uma dos políticos de Minas Gerais e as eleições de 1958 (1959); além disso, fazia
palavra pela elite” (Amado, 1999, p. 11). O pensamento utópico era “uma ideia da Revista Brasileira de Estudos Políticos um centro de animação para os
criminosa que deve ser combatida como um dos maiores males que podem interessados no campo (Veiga, 1992, p. 59).
afligir os povos. O que se deve procurar é um justo equilíbrio, o menor mal Era mais ou menos esse o estado da ciência política brasileira – a “velha”
entre os males, pois os homens não encontraram ainda o meio de realizar, – às vésperas da institucionalização universitária. Considerada a produção
na coexistência social, o paraíso terrestre” (Amado, 1999, p. 29). Dez anos da ciência social como um todo, mais da metade dos livros publicados en-
depois, orientado por Paul Arbousse-Bastide, Lourival Gomes Machado tre 1945 e 1965 versava sobre “pesquisas e reflexões sobre fatos e questões
defenderia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH- políticas”. A nossa ciência política se debruçara sobre
-USP) sua tese de doutorado intitulada Alguns aspectos atuais do problema
do método, objeto e divisões da ciência política (1942). Esta, porém, parece [...] o processo de escolha dos governantes, focalizando as eleições, o sistema elei-
não ter produzido qualquer impacto político ou acadêmico8. toral e os partidos políticos; seus especialistas analisaram também as ações do setor
Depois da Segunda Guerra, o prestígio da ciência política francesa de diplomático e a qualidade da política externa do país; as vantagens e as desvantagens
publicistas como Georges Burdeau e Maurice Duverger encontrou entre das formas parlamentarista e presidencialista de governo, as forças armadas e a ad-
nós o seu zênite, refletido na produção de Victor Nunes Leal e Temísto- ministração político-burocrática do Estado; refletiram sobre as ideologias políticas,
cles Cavalcanti. Em Coronelismo, enxada e voto (1948), Leal explicava a privilegiando em suas análises o nacionalismo fundamentado no desenvolvimento
realidade política pela articulação equilibrada de explicações sociológicas, econômico; a par disso, investigaram a formação social e histórica do poder político
políticas e econômicas, além de recorrer a dados empíricos (Carvalho, 1980, no Brasil (Villas-Boas, 1991, p. 27).
p. 7-8; Lamounier, 1980, p. 51). Cavalcanti, por sua vez autor de Introdu-
ção à ciência política (1955), estudava grupos de pressão, metodologia, Poucas, entretanto, correspondiam àquilo que nos Estados Unidos se
desenvolvimento, formas de governo e partidos políticos; também presi- considerava ciência no sentido estrito ou técnico. Era o que lamentava o cien-
dia o Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getúlio tista político estadunidense Robert Packenham (1965): nossa ciência política
Vargas (IDPCP/FGV-RJ), que editava a revista homônima. Ele reconhecia era ainda basicamente jurídico-constitucional, faltando-lhe até pesquisa de
que, depois da aplicação de “métodos positivos de pesquisa, com o auxílio campo. Diagnósticos como esse prepararam o ambiente intelectual para a
“nova ciência política” que surgiu quatro anos depois, quando da fundação
8 “Naqueles tempos, a Faculdade costumava publicar boletins, em que se imprimiam as teses ou escritos
dos professores ou assistentes. Eram, como não poderia deixar de ser, de tiragem média e circulação
dos programas de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais
limitada, mas marcavam presença no mundo acadêmico. A tese de doutoramento de Lourival ver- (UFMG) e do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
sava exatamente sobre objeto e método da ciência política. Nunca quis que circulasse, fosse lida ou
comentada. Dela esqueceu porque não representava mais o que pensava, ou porque fosse esforço
(Iuperj) – atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do
de aprendiz” (Ferreira, 1994, p. 283). Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).
Cartografia do pensamento político brasileiro 95 96 Christian Edward Cyril Lynch

Pensamento político brasileiro como disciplina acadêmica titucional do Brasil (1914) e A Constituinte republicana (1920), de Agenor
Quando a Unesco apresentou, em 1948, o quadro das quatro rubricas de Roure. Acompanhando o clima nacionalista, apareceram nas décadas de
fundamentais da ciência política, incluiu em primeiro lugar a da teoria 1930 e 1940 os primeiros livros destinados a apresentar os grandes nomes
política, subdividindo-a em teoria propriamente dita e história das ideias. da intelectualidade brasileira. Entre aquelas que deram destaque ao PPB,
À última cumpre “registrar, analisar e historiar resultados da atividade estavam Inteligência do Brasil, de José Maria Belo (1935), e Orientações do
intelectual, realizada de forma sistemática por camadas ou grupos sociais pensamento brasileiro, de Nélson Werneck Sodré (1942). Entretanto, uma
que se habilitam especificamente para o seu exercício; são utilizados tam- disciplina destinada ao estudo do pensamento brasileiro para além da lite-
bém os termos história do pensamento e história intelectual” (Villas-Boas, ratura levou tempo a se materializar, devido à convicção típica da América
2007, p. 86). Tais textos cuidariam “da análise da constituição das ideias, ibérica de que países periféricos não produziam nem ciência nem teoria de
do surgimento e recepção das mesmas em determinado contexto histórico valor, mas apenas um “pensamento social”, de natureza episódica e conjun-
e da relação entre intelectuais, suas ideias e sua trajetória política e social” tural (Zea, 1956, p. 106).
(Villas-Boas, 2007, p. 86). Essa crença só começou a ser questionada de modo mais enérgico na
No contexto da ciência política brasileira atual, o campo do PPB corres- década de 1950, quando, na esteira da especialização universitária dos es-
ponde àquele relativo à disciplina de história das ideias no Brasil, dedicada tudos brasileiros promovida por filósofos e sociólogos, começou a se falar
a estudar o objeto descrito na seção anterior como ideologia no sentido lato na existência de um “pensamento social brasileiro” de marcada expressão
e teoria e/ou a “velha” ciência política brasileira, no estrito. Foi na década política. Foram então publicadas as primeiras histórias destinadas a sugerir
de 1860, quando se começou a questionar o modelo político “regressista”, apresentá-lo, explicá-lo e inventariá-lo: Esforços de teorização da realidade
implantado vinte anos antes (Lynch, 2015), que a sociedade brasileira passou brasileira politicamente orientados de 1870 aos nossos dias, de Guerreiro
a se considerar dotada de um passado autônomo a cuja experiência poderia Ramos (1955); Contribuição à história das ideias no Brasil, de Cruz Costa
recorrer para interpelar politicamente o presente. O hábito de historiar as (1956); e O Brasil no pensamento brasileiro, de Djacir Menezes (1957). Da
ideias políticas surgira como atividade auxiliar do legislador imperial, des- autoria de Guerreiro foram os três primeiros estudos sobre o PPB orientados
tinada a esclarecer-lhe a posição tomada por seus antecessores a respeito por critérios específicos das ciências sociais: A ideologia da jeunesse dorée
de assuntos sobre os quais ele deveria voltar a se pronunciar. Os primeiros (1955), O inconsciente sociológico (1956) e A ideologia da ordem (1961).
e fragmentários ensaios de histórias do PPB apareceram na forma de in- Para os marxistas, todavia, o propósito de se historiar o passado intelectual
ventários das opiniões de parlamentares das gerações anteriores a respeito passava por denunciar o caráter alegadamente retrógrado e autoritário
de temas como centralização, poder moderador, federalismo e escravidão. da nossa sociedade, escamoteado pelo véu de ideologias de classe. Foram
Elas eram extraídas da principal fonte de publicidade dos debates políticos exemplares dessa perspectiva: O caráter nacional brasileiro: história de uma
daquela época, os anais parlamentares, e foram compiladas em obras como ideologia, de Dante Moreira Leite (1954); Ideologia do colonialismo: seus re-
o Ensaio sobre o direito administrativo (1862), do Visconde de Uruguai, e flexos no pensamento brasileiro, de Nélson Werneck Sodré (1961); e Ideologia
O abolicionismo (1883), de Joaquim Nabuco. Este seria ainda responsável da cultura brasileira, de Carlos Guilherme Mota (1977). Foi também nessa
pela história constitucional do Segundo Reinado, no sentido oitocentista mesma época que juristas e filósofos entregaram as primeiras obras gerais
da expressão, nos três volumes de sua obra-prima: Um estadista do Império sobre o PPB: História das ideias socialistas no Brasil, de Vamireh Chacon
(1897). Previsivelmente, as primeiras tentativas mais sistemáticas de historiar (1965); História das ideias políticas no Brasil, de Nélson Saldanha (1967);
o PPB vieram a lume na forma de histórias constitucionais propriamente Interpretação da realidade brasileira, de João Camilo de Oliveira Torres
ditas: A Constituinte perante a história (1863), do barão Homem de Melo; a (1968). A elas seguir-se-iam: As ideias políticas no Brasil, de Afonso Arinos
História constitucional do Brasil (1915), de Aurelino Leal; e Formação cons- de Melo Franco (1978); Ideologia autoritária no Brasil (1930-1945), de Jarbas
Cartografia do pensamento político brasileiro 97 98 Christian Edward Cyril Lynch

Medeiros (1978); e Evolução do pensamento político brasileiro, de Vicente PPB consistia no desejo de reformar uma realidade percebida como atrasada
Barreto e Antônio Paim (1985). a fim de torná-la compatível com as exigências de uma democracia capi-
Quando a área da ciência política se institucionalizou, na década de 1970, talista moderna. Seu autor mais clarividente teria sido Oliveira Viana, que
foi natural a emergência imediata de um campo disciplinar do PPB. Devido percebera que a falta de uma sociedade liberal moderna impunha no Brasil
à influência do Iseb sobre a primeira geração de cientistas políticos, formada um Estado atuante para criá-la pelo alto. Adotando a sensibilidade ao con-
nos Estados Unidos (Forjaz, 1997), a ruptura com a “velha ciência política” texto nacional como critério de classificação (a nacionalidade), Wanderley
se limitou ao plano metodológico. No plano temático, a “nova ciência polí- afirmava a existência de duas principais tradições do PPB: a dos autoritários
tica” incorporou a agenda da “velha” e a converteu em uma área de estudos instrumentais e a dos liberais doutrinários. Os primeiros teriam percebido
dedicada a historia das ideias políticas no Brasil9. Antes de se formarem que, no quadro de uma sociedade fragmentada e autoritária, o Estado re-
cientistas políticos nos Estados Unidos, dois dos principais responsáveis pela presentava uma agência para a promoção da mudança social, devendo-se,
institucionalização – Wanderley Guilherme dos Santos e Bolívar Lamounier pois, fortalecê-lo para modernizar o país para atingir o ideal liberal. Já os
– já estavam empenhados em estudar nossa história intelectual no intuito de liberais doutrinários eram cosmopolitas comprometidos com os interesses
compreender as relações entre liberalismo e autoritarismo, cientes de que “os oligárquicos, que reproduziam a cartilha europeia e norte-americana na
elementos-chave do que chamamos ciência política são, de uma forma ou de crença de que “a rotina institucional criaria os automatismos políticos e so-
outra, derivados das grandes ideologias históricas” (Lamounier, 1980, p. 35). ciais ajustados ao funcionamento normal da ordem liberal” (Santos, 1978, p.
51). Wanderley retornaria ao PPB mais tarde em Dois escritos democráticos
Para aqueles dois scholars, a finalidade da nova disciplina era dupla: permitir
de José de Alencar (1991), cuja teoria política elevaria à condição das mais
ao cientista conhecer a cultura política do país, eventualmente com finalidade
importantes escritas durante o século XIX.
crítica, e fornecer hipóteses de pesquisa a serem empiricamente testadas.
Em sua interpretação do PPB para o período entre 1920 e 1945, elaborada
A pesquisa de Wanderley Guilherme dos Santos sobre o PPB se encontra
em Formação de um pensamento autoritário na Primeira República (1977),
em artigos como: “Preliminares a uma controvérsia metodológica” (1965); “A
Bolívar Lamounier criticava a classificação “nacionalista” de Wanderley Gui-
imaginação político-social brasileira’ (1967), “Raízes da imaginação política
lherme dos Santos, a quem acusou de incorporar “a autoimagem do próprio
brasileira” (1970), “Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação
pensamento autoritário”, que identificava “o fortalecimento do poder público
social brasileira” (1978); e “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão
com o desenvolvimento e o progresso social”. Substituindo o critério da na-
e pesquisa” (1978). Tratou-se da pesquisa que fundou o campo de estudos e cionalidade por aquele da liberdade, Bolívar rebatizava em sua classificação
foi de longe a mais abrangente efetuada na área até hoje, listando milhares das duas famílias intelectuais do PPB: uma era simplesmente autoritária e
de obras publicadas entre 1865 e 1965. Partindo dos trabalhos pioneiros de a outra, liberal. Os mais ilustres representantes da linha autoritária teriam
Guerreiro Ramos, Wanderley sustentava que o principal eixo temático do sido Alberto Torres, Oliveira Viana, Francisco Campos e Azevedo Amaral.
9 Para o avanço da ciência política brasileira, concorrera “a existência de uma importante tradição de A ideologia de Estado postulava um modelo “eminentemente realista” que
pensamento político, anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização deste século “favoreceria um autoritarismo pragmático, esclarecido, temporário, cujo
[XX], e mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades” (Lamounier, 1982, p. 407). Bolívar e
Wanderley entendiam que “o papel claramente assumido pelo Estado autoritário enquanto condutor verdadeiro e recôndito objetivo muitas vezes escapa até mesmo aos seus
do processo de desenvolvimento da sociedade desnudara a insuficiência das explicações sociológicas beneficiários” (Lamounier, 1977, p. 383). Seus adeptos não eram autoritários
ou marxistas que reduziam o ideológico e o político ao plano de epifenômenos. A importância dada
aos elementos mais conjunturais e ligados ao funcionamento do regime fez com que se reconhecesse instrumentais, como na classificação de Wanderley, mas autoritários tout
no pensamento social e político um problema perfeitamente legítimo e indispensável para a com- court orientados por uma “ideologia de Estado” que se contrapunha àquela
preensão da vida social. A análise interna dos discursos tornou-se tarefa obrigatória” (Sadek, 1982, p.
7). Redimensionava-se assim o papel da “produção ideológica no conjunto de variáveis responsáveis
autenticamente liberal e própria da democracia, cuja matriz era o mercado
pela explicação do desenrolar da vida econômica, social e política” (Sadek, 1982, p. 12). (Lamounier, 1977, p. 382). Liberais, portanto, teriam sido intelectuais como
Cartografia do pensamento político brasileiro 99 100 Christian Edward Cyril Lynch

Tavares Bastos, Rui Barbosa e Sérgio Buarque de Holanda, comprometidos Benzaquen de Araújo, que escreveu Totalitarismo e revolução: o integralismo
com a crítica do autoritarismo. Ao longo das três décadas seguintes, Bolívar de Plínio Salgado (1988). Entre 1961 e 1996, a produção acadêmica sobre
desenvolveria e complementaria sua interpretação liberal do PPB contida em o PPB nos programas de pós-graduação em ciência política se fazia então
outros escritos, como Rui Barbosa e a construção institucional da democra- principalmente por dissertações de mestrado, já que havia doutorado apenas
cia brasileira (1999), no qual destacava o papel de construtor institucional na USP10. Desta vieram as poucas teses defendidas até então.
exercido por aquele jurista, e livros como Tribunos, profetas e sacerdotes:
intelectuais e ideologias no século XX (2014), no qual comparava a atuação dos Tabela 1 – Teses de doutorado sobre PPB defendidas na ciência política entre 1945-1995
intelectuais brasileiros com os norte-americanos e europeus, cada qual em seu
Ano Nome Título Orientador IES
contexto nacional ameaçado pelo autoritarismo. A polêmica envolvendo os
Lourival Gomes
dois scholars concorreu para consolidar a subárea do PPB. Em 1978, Bolívar 1961 Paula Beiguelman Teoria e ação do pensamento abolicionista
Machado
USP
reconhecia prazenteiro: “Hoje, o pensamento político brasileiro é um campo O passado no presente: Oliveira Viana e o
de estudos perfeitamente legítimo e perfeitamente vacinado contra o vírus 1974 Evaldo Amaral Vieira Oliveiros Ferreira USP
Estado corporativo
do esquematismo ideológico” (Lamounier, 1978, p. 11). Monarquia, Abolição e República: Joaquim
Marco Aurélio
No antigo Iuperj, o ensino da disciplina na pós-graduação começou em 1983 Nabuco e as desventuras do liberalismo Oliveiros Ferreira USP
Nogueira
no Brasil
1979, cabendo a José Murilo de Carvalho a responsabilidade pela cadeira
Walquíria Domingues
de Pensamento Político no Brasil. Sugestionado por Wanderley, seu colega 1989
Leão Rego
Tavares Bastos, um liberalismo tardio Célia Quirino USP
de doutorado em Stanford (Carvalho, 2015), José Murilo enveredaria pelo Obsessões patrióticas: origens e projetos
estudo das elites políticas em perspectiva também intelectual, publicando ao 1993 Leonardo Trevisan de duas escolas do pensamento político do Oliveiros Ferreira USP
longo da década de 1980 alguns dos livros mais importantes de sua carreira: Exército brasileiro
A construção da ordem (1980); Os bestializados (1987); Teatro de sombras
(1988); e A formação das almas (1990). O cientista político mineiro também A década de 1990 se iniciou com novas orientações intelectuais no campo.
seria responsável por um sem-número de artigos de grande valor, de perfis Dentre os diversos frutos da polêmica em torno do livro Espelho de Próspero,
intelectuais de autores tão diversos quanto Bernardo de Vasconcelos, João de Richard Morse, um teria longeva repercussão no campo do PPB dentro
Francisco Lisboa, o Visconde de Uruguai, José de Alencar, Rui Barbosa, Mi- da ciência política: Americanistas e iberistas: a polêmica de Tavares Bastos
guel Lemos e Teixeira Mendes, Oliveira Viana e Juarez Távora. De relevância com Oliveira Viana, do sociólogo político Luiz Werneck Vianna (1991).
é ainda o artigo de alcance mais teórico denominado “História intelectual Argumentando com base em Lenin e Gramsci, Werneck Vianna argumen-
no Brasil: a retórica como chave de leitura” (2000). A pesquisa de Wanderley tava que a modernização brasileira se daria sob a forma de uma revolução
Guilherme também repercutiu nas pesquisas que tiveram lugar no Centro passiva marcada pela dialética de duas orientações distintas: uma liberal,
de Pesquisa e de Documentação de História Contemporânea do Brasil da americanista, representada por Tavares Bastos; outra comunitária, iberista,
Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) durante as décadas de 1970 a 1990 representada por Oliveira Viana. Oito anos depois, Werneck publicaria um
(Oliveira, 1999, p. 154-5). Entre os investigadores que produziram obras e segundo texto de repercussão na área do PPB: Weber e a interpretação do
estudos preciosos sobre o PPB no período, destacaram-se: Ângela de Castro Brasil (1999). Nele, o autor de Liberalismo e sindicato no Brasil revelava o
Gomes, autora de obra imensa e seminal de historiografia política, da qual se 10 Não foi possível fazer o levantamento das dissertações de mestrado defendidas na área de PPB no
destaca A invenção do trabalhismo (1988); Lucia Lippi Oliveira, responsável período anterior a 1990, quando as teses de doutorado eram raras e o papel que desempenham hoje
era cumprido pelas dissertações. Elas permitiriam oferecer ao leitor um panorama mais completo da
por Elite intelectual e debate político nos anos 30 (1980), A questão nacional produção do PPB sob o regime militar e dos desdobramentos das pesquisas em torno do “pensamento
na Primeira República (1990) e A sociologia do Guerreiro (1995); e Ricardo autoritário”. A tarefa ficará para uma futura atualização do presente balanço.
Cartografia do pensamento político brasileiro 101 102 Christian Edward Cyril Lynch

quanto as interpretações do Brasil vinham bebendo da sociologia weberiana Tabela 2 – Teses de doutorado sobre PPB defendidas na ciência política entre 1996 e 2005 (conti-
para explicar a persistência do autoritarismo estatal ou burocrático na vida nuação)
política brasileira. Foi durante aquele decênio que o número de teses de Ano Nome Título Orientador IES
doutorado, até então episódicas e concentradas na USP, recebeu impulso Maria Alice
Esperança e democracia: as ideias de Álvaro
com a entrada em cena da produção do antigo Iuperj. Se apenas três teses 2001 Norma Cortes Rezende de Iuperj
Vieira Pinto
Carvalho
haviam sido defendidas entre 1986 e 1995, o número saltou para dezoito no Gildo Marçal
decênio seguinte, dando início ao crescimento exponencial do campo de 2002 Bernardo Ricupero O romantismo e a ideia de nação no Brasil USP
Brandão
estudos na ciência política: 2003
Marcelo José A doutrina Góes Monteiro e o pensamento
Oliveiros Ferreira USP
Ferraz Suano político brasileiro nos anos 30

Tabela 2 – Teses de doutorado sobre PPB defendidas na ciência política entre 1996 e 2005 Gabriela Nunes O Rio da Prata e a consolidação do Estado Gildo Marçal
2003 USP
Ferreira imperial Brandão
Ano Nome Título Orientador IES O Iseb na perspectiva de seu tempo:
Aleksandro
A era do saneamento: as bases da política
2003 intelectuais, política e cultura no Brasil Gabriel Cohn USP
1996 Gilberto Hochman Elisa Reis Iuperj Eugenio Pereira (1952-1964)
de saúde pública no Brasil
Roberto Simonsen e a formação da
Lembranças do Brasil: teoria política, Gildo Marçal
José Murilo de 2004 Vera Alves Cepeda ideologia industrial no Brasil: limites e USP
1997 Heloisa Starling história e ficção em Grande Sertão: Iuperj impasses Brandão
Carvalho
Veredas
Maria Fernanda A esperança e o desencanto: Silva Jardim e
Insultos impressos: a guerra dos jornalistas José Murilo de 2004 Eduardo Kugelmas USP
1997 Isabel Lustosa Iuperj Lombardi a República
na independência Carvalho
Antônio Marcelo Tavares Bastos: biografia do liberalismo
A história do projeto Unesco: estudos raciais José Murilo de 2005 Marcelo Jasmin Iuperj
1997 Marcos Chor Maio Iuperj Jackson brasileiro
e ciências sociais no Brasil Carvalho
Ladrilhadores e semeadores: a
modernização brasileira no pensamento O decênio seguinte também testemunhou novas orientações no campo
Luiz Guilherme
1998
Piva
político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque Boris Fausto USP de estudos do PPB, tanto em matéria de interpretação substantiva quanto de
de Holanda, Azevedo Amaral e metodologia. A primeira renovação foi promovida na USP por Gildo Marçal
Nestor Duarte
O pensamento político de Roberto Campos:
Brandão, que, ministrando com Eduardo Kugelmas o curso Temas do Pensa-
Roberto Teixeira César Guimarães e mento Político Brasileiro, refundaria o campo de estudos do PPB na instituição
1998 da razão de Estado à razão de mercado Iuperj
Perez Marcelo Jasmin
(1950-1995) ao publicar Linhagens do pensamento político brasileiro (2007). Tratava-se de
Intelectuais e transição: entre a política e uma crítica marxista tanto à perspectiva nacionalista, de Wanderley Guilher-
1999 Milton Lahuerta Gabriel Cohn USP
a profissão
me dos Santos, quanto à liberal, de Bolívar Lamounier. O projeto retomava a
Rubem Barboza Tradição e artifício: iberismo e barroco na Luiz Werneck
1999
formação americana
Iuperj proposta de classificação dos pensadores brasileiros por linhagens, adaptando
Filho Vianna
as denominações elaboradas originalmente por Oliveira Viana: idealismo orgâ-
César Guimarães e
Fernando Jequitibá em mato miúdo: vocação nico e idealismo constitucional. Mas o critério classificatório seguido por Gildo
Ricardo
2000 Lattman- intelectual e retórica política em Afonso IUPERJ não era o do intelectual fluminense, mas aquele de fundo marxista que pres-
Arinos Benzaquen
Weltmann
de Araújo supunha as ideologias distribuídas por classes sociais, umas mais verdadeiras e
2000
Christiane Vieira As razões da liberdade, ideias liberais,
Carlos Hasenbalg Iuperj
progressistas que as outras. Então, o idealismo orgânico acabava equiparado ao
Laidler escravidão e hierarquias. conservadorismo período, personificado na obra do próprio Viana; o mesmo
Cartografia do pensamento político brasileiro 103 104 Christian Edward Cyril Lynch

efeito se passava com o idealismo constitucional, visto como a transposição do inovações semânticas. O estabelecimento do significado dos textos não poderia
liberalismo europeu para o Brasil, cuja expressão arquetípica era a obra de Tavares ignorar as condições de sua produção intelectual, devendo chamar a atenção para
Bastos. Uma vez que os dois idealismos eram considerados por Gildo ideologias o significado cambiante dos vocábulos ao longo do tempo. A essa empreitada se
aristocráticas e elitistas, cumpria contrapô-las àquelas de cunho antiaristocrático juntariam Ricardo Silva (UFSC), em artigos como “História intelectual e teoria
que teriam sido forjadas pela classe média e pela classe operária brasileira no política” (2009) e “O contextualismo linguístico na história do pensamento
curso da modernização brasileira. Sugestionado por Antonio Candido, Gildo político: Quentin Skinner e o debate metodológico contemporâneo” (2010); e
batizaria a primeira de radicalismo de classe média e a segunda de materialismo Christian Lynch, pela tradução e publicação dos artigos metodológicos de Pierre
de matriz comunista. Outro ponto relevante de sua interpretação dizia respeito à Rosanvallon em Por uma história do político (2010). O programa de renovação
atualidade e utilidade das categorias descritivas de cada linhagem para proceder metodológica suscitou a reação dos partidários do método filosófico tradicional.
ao exame da cena contemporânea. Tanto os políticos profissionais quanto os in- Para Gildo Marçal Brandão, a análise dos clássicos não deveria “ser dissociada
telectuais públicos se inclinariam para uma ou para a outra. Em outras palavras, do debate contemporâneo que lhe é momento e parte constitutiva” (Brandão,
as categorias idealismo orgânico, idealismo constitucional, radicalismo de classe 1997, p. 32). Já Renato Lessa (1991) defenderia que a teoria fosse pensada no
média e marxismo de matriz comunista teriam transcendência o bastante para cruzamento entre “a teoria política, a reflexão filosófica e a teoria literária”, e o
não se limitarem a fins puramente acadêmicos, devendo servir para a crítica da pensamento de cada autor, considerado “uma modalidade particular de exercício
atualidade política por parte dos intelectuais públicos (Brandão, 2007, p. 2010). ficcional”. Nesse sentido, Lessa propugnaria em Da interpretação à ciência: por
Com Linhagens do pensamento político brasileiro, a tradição marxista uspiana uma história filosófica do conhecimento político no Brasil (2011) um reordenamen-
passava a dispor de sua própria interpretação do PPB11. to da ciência política brasileira, a partir do resgate da tradição ensaística do PPB
À mesma época, a renovação metodológica no campo de estudos da história como teoria e/ou “velha ciência política” anterior ao paradigma institucionalista.
das ideias políticas era promovida no Iuperj/Iesp-Uerj por Marcelo Jasmin e João
Feres Júnior, pela difusão do contextualismo linguístico de Quentin Skinner Tabela 3 – Teses de doutorado sobre o PPB na área de ciência política (2006-2015)
e John Pocock e da história dos conceitos de Reinhart Koselleck. O artigo de
Ano Nome Título Orientador IES
Jasmin, História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares Maria Aparecida Nacionalismo e democracia no
(2005), e os dois livros organizados com Feres Júnior, História dos Conceitos: 2006 Marcelo Jasmin Iuperj
Abranches pensamento de Guerreiro Ramos
diálogos e perspectiva (2006) e Léxico da história dos conceitos políticos no Brasil Visconde do Uruguai: centralização e
2006 Ivo Coser Marcelo Jasmin Iuperj
(Feres Júnior, 2014), veicularam uma perspectiva do PPB encarado, não como federalismo no Brasil
arremedo de filosofia europeia, mas como história do pensamento político inte- O constitucionalismo antiliberal de
Rogério Dultra dos
2006 Francisco Campos: cesarismo, positivismo José Eisenberg Iuperj
grada à experiência política e social dos países ibero-americanos. O adversário a Santos
e corporativismo no Estado Novo
combater era o hegelianismo da velha “história da filosofia política”, para o qual O momento monarquiano: o poder
Christian Edward
as ideias eram seres desencarnados de pessoas históricas de carne e osso, que 2007
Cyril Lynch
moderador e o pensamento político Marcelo Jasmin Iuperj
imperial
apenas lhes serviriam de veículo. Para os contextualistas, as ideias são produzi- Modos de representação política: o
das por agentes historicamente situados orientados pelo propósito polêmico de Cristina Buarque de
2007 experimento da Primeira República Renato Lessa Iuperj
Holanda
intervenção no debate público. Para tanto, mobilizavam a retórica e promoviam brasileira
Neide Morais de Intelectuais na vida pública: Mário de
2007 Gabriel Cohn USP
11 Pouco antes, um politólogo da velha cepa uspiana, Francisco Weffort, havia publicado uma introdu- Mello Andrade e Monteiro Lobato
ção ao PPB chamada Formação do pensamento político brasileiro: ideias personagens. Pouco ou nada Combatendo o bom combate: política
nele, todavia, havia de representativo de sua antiga formação marxista de fundador do Cedec, o que Christiane Jalles de
2007 e religião nas crônicas jornalísticas de César Guimarães Iuperj
surpreendeu alguns colegas do grupo (Ricupero, 2007). Talvez por esse motivo a obra parece não ter Paula
tido a repercussão acadêmica que dela era legítimo esperar. Gustavo Corção
Cartografia do pensamento político brasileiro 105 106 Christian Edward Cyril Lynch

Tabela 3 – Teses de doutorado sobre o PPB na área de ciência política (2006-2015) (continuação) Retrato atual do campo: mannheimianos, lukacsianos e
gramscianos
Ano Nome Título Orientador IES
Nos últimos dez anos, o número de teses defendidas na subárea de
Carlos Sávio Gomes A esquerda experimentalista: análise da
2009
Teixeira teoria política de Unger
Fernando Haddad USP PPB continuou subindo, chegando a 23. Os espaços de debate no âm-
Patrimonialismo no Brasil: leituras críticas bito das associações de ciências sociais se ampliaram para dar conta
Rubens Goyatá
2009
Campante
de interpretações weberianas e suas Juarez Guimarães
UFMG do crescimento. Desde o primeiro Encontro da ABCP, em 1998, o PPB
articulações socioculturais
passou a contar com espaço cativo dentro da área temática (AT) de Te-
História do conceito de povo no Brasil:
2011 Luísa Rauter Pereira revolução e historicização da linguagem João Feres Júnior
Iesp- oria Política, coordenada por Marcelo Jasmin. A AT autônoma do PPB
Uerj
política emergiria quinze anos depois, quando do IX Encontro da ABCP, em
2011
Diego Rafael Contextos de Nestor Duarte: direito,
Bernardo Ricupero USP
Brasília, sob a coordenação de Christian Lynch e Bernardo Ricupero:
Ambrosini sociologia e política na ocasião, foram apresentadas 33 comunicações de pesquisadores de
Wendel Antunes Qual democracia? O governo do povo no Iesp- todas as regiões do país. No âmbito da Anpocs, em que já se contava
2013 Marcelo Jasmin
Cintra pensamento político brasileiro Uerj
com o grupo interdisciplinar de trabalho (GT) de Pensamento Social no
Raízes intelectuais da democracia
Marcelo Brasil, os pesquisadores do PPB passaram a dispor desde 2007 de um
2013 brasileira: linguagens políticas e a Juarez Guimarães UFMG
Sevaybricker Moreira
formação da república GT de Teoria Política, criado por Gildo Marçal Brandão; quatro anos
Democracia, Estado e indústria: uma depois, o GT passaria a se chamar Teoria Política e Pensamento Político
2013 Fabrícia Carla Viviani análise do discurso varguista em A Nova Vera Alves Cepeda UFSCAR
Política do Brasil Brasileiro. Os investigadores do PPB passaram a dispor, por fim, de um
Carlos Alexandre A democracia no pensamento político dos terceiro GT nos encontros da Anpocs, coordenado por Luiz Werneck
2013 Vera Alves Cepeda UFSCar
Ramos comunistas brasileiros (1979-1983) Vianna e Rubem Barboza Filho: Intelectuais, Cultura e Democracia. Hoje,
Leandro do Os caminhos da identidade nacional
Paulo César há teses de doutorado defendidas em sete programas de pós-graduação
2013 Nascimento brasileira: a perspectiva do etno- UnB
Rodrigues simbolismo
Nascimento em ciência política sobre o PPB: Uerj, USP, UFMG, Unicamp, UFSCar,
Daniel Estevão Bresser-Pereira: pensamento como ação Marco Aurélio UFF e UnB. Para além da área, o PPB está presente em outros programas,
2014 UFSCar
Ramos de Miranda política Nogueira especialmente de ciências sociais, trabalhado por diversos cientistas
2014 Martin Adamec
A formação da identidade nacional Paulo César
UnB políticos. No Rio de Janeiro, é possível declinar os nomes de Gilberto
brasileira: um projeto ressentido Nascimento
Hochman (Fiocruz), João Trajano Sento Sé (Uerj), Rogério Dultra dos
Entre a nação e a revolução: o marxismo
2014
André Kaysel Velasco
de matriz comunista e o nacionalismo Bernardo Ricupero USP Santos (UFF) e Darlan Montenegro (UFRRJ); em São Paulo, os de Milton
e Cruz
popular no Peru e no Brasil (1928-1964) Lahuerta e Angélica Lovatto (Unesp), Gabriela Nunes Ferreira, Maria
2015
Diogo Tourino de De um ponto de vista mais geral: a
Renato Lessa
Iesp- Fernanda Lombardi e Diego Ambrosini (Unifesp); em Minas Gerais, o
Sousa república como ideal normativo Uerj
de Rubem Barboza Filho (UFJF); na Bahia, o de Wendel Antunes Cintra
Jorge Gomes O liberalismo entre o espírito e a espada: Iesp-
2015
Chaloub UDN e a República de 1946
Marcelo Jasmin
Uerj (UFBA); na Paraíba, o de José Artigas de Godoy (UFPB); no Ceará, o de
As desventuras do marxismo: Fernando Fábio Gentile (UFC); em Santa Catarina, o de Ricardo Silva (UFSC); etc.
Iesp-
2015 Pedro Rego Lima Henrique Cardoso, antagonismo e César Guimarães
Uerj Como expressão da expansão nos últimos quinze anos, é digno de nota
reconciliação
Sem rei e sem escravos: o republicanismo
o fato de que, na graduação, a disciplina de PPB tenha sido incluída em
André Drummond 2010 no currículo do curso de ciência política da Universidade Federal
2015 e as linguagens políticas do abolicionismo Juarez Guimarães UFMG
Mello Silva
no Brasil do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Cartografia do pensamento político brasileiro 107 108 Christian Edward Cyril Lynch

Figura 1 – Teses de doutorado defendidas na área de PPB da ciência política (1975-2015) entre formas de abordagem mais filosófica ou histórica se reproduziu em
toda a parte onde a tradição de estudo do pensamento político se achava
consolidada. No mundo anglófono, a história da filosofia política de Leo
Strauss concorreu com a história das ideias de Arthur Lovejoy, sucedida
pela história do pensamento político de Quentin Skinner e John Pocock.
Na França, a história das doutrinas políticas de Jean-Jacques Chevallier se
contrapôs à história das ideias políticas de Jean Touchard e Marcel Prélot.
Na Alemanha, foi a história espiritual de Friedrich Meinecke que sofreu os
golpes da história dos conceitos de Reinhart Koselleck13. No Brasil, já vimos
que a querela entre “filósofos” e “historiadores” repercutiu entre investiga-
dores como Marcelo Jasmin, João Feres e Ricardo Silva, de um lado, e Gildo
Marçal Brandão e Renato Lessa, de outro. Na prática, o panorama é mais
variado, devido às diferentes tradições institucionais e ao prestígio do mar-
xismo. Mas é possível nomear e descrever, ainda que em linhas muito gerais,
os três principais grupos de estudo do PPB em atividade no Brasil. Embora
não constituam espaços fechados, eles e seus trabalhos se distinguem por
As diversas abordagens do PPB no campo da ciência política envolvem diferentes orientações teóricas e preocupações intelectuais. Nomeá-los-ei
questões semelhantes àquelas da história intelectual. A clivagem mais im- levando em consideração suas diferentes referências teórico-metodológicas:
portante opõe abordagens mais filosóficas ou textualistas àquelas de natu- são os mannheimianos, os lukacsianos e os gramscianos.
reza mais histórica ou contextual. Como tipo ideal, a abordagem textualista Os mannheimianos prevalecem nos programas do Iesp-Uerj e na UFF.
oriunda da história da filosofia se concentra em obras reputadas exemplares Orientado por uma mundivisão weberiana, no grupo prevalece uma análise
por sua sistematicidade e abrangência, consideradas “clássicas” por sua do pensamento político que remonta em última análise àquela esposada
capacidade de orientar juízos sobre a realidade atual. A fim de escaparem por Karl Mannheim em Ideologia e utopia. Seus investigadores descendem
das limitações inerentes ao contexto político e social de elaboração da obra, de uma tradição nacional de história intelectual tributária do Iseb de Hélio
os partidários dessa abordagem concentram-se nos argumentos de ordem Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que encontrou modernamente na pesquisa de
geral e apresentam alto grau de abstração, dedutivismo e generalização12. A Wanderley Guilherme dos Santos e nos subsequentes estudos históricos de
abordagem contextualista, por outro lado, tende, como história do pensa- José Murilo de Carvalho e filosóficos de Renato Lessa os seus mais impor-
mento ou das ideias, a não separar o exame do texto da referência à época tantes referenciais. A orientação filosófica é visível em pesquisadores como
e à sociedade em que foram produzidas; ela está menos interessada na su- Cristina Buarque e César Kiraly, que frequentaram o seminário de “Estudos
posta sistematicidade ou coerência do texto analisado do que em entender
13 Embora a polêmica continue a grassar, tem prevalecido nos estudos de história intelectual dos países
como o autor reagia às diferentes interpelações de seu tempo. Essa oposição cêntricos um contextualismo matizado, que incorporou as críticas dirigidas à sua versão mais radical
(Bevir, 2008). Para os fins do presente balanço, pode-se dizer que, situada em um nível intermediário
12 Embora reconheça “uma inseparável conexão entre filosofia e história”; que “todo filosofar parte da – aquele da “teoria política” –, o exercício da história do pensamento político deve evitar tanto os ex-
totalidade do passado e se projeta para o futuro, pondo em marcha a história da filosofia”, o filósofo cessos da abordagem puramente filosófica, para a qual não existe tempo e espaço, e aqueles da pura
Julián Marías ressaltava em 1940 que “a verdade da filosofia” não é indiferente à sua história: a “história história, para a qual é tudo agência e contingência (Klosko, 2011, p. 4). Ainda assim, há espaço para
da filosofia não é uma mera informação erudita a respeito das fontes dos filósofos, e sim a exposição abordagens que se inclinem mais para um lado do que para o outro, conforme o objeto e a natureza
verdadeira do conteúdo real da filosofia” (Mariás, 2004, p. 7-8). da pesquisa a ser empreendida.
Cartografia do pensamento político brasileiro 109 110 Christian Edward Cyril Lynch

Hum(e)anos” coordenado pelo autor de Veneno pirrônico. Já os “historiado- e aclimatado em São Paulo por seu discípulo, Michael Löwy. O resultado
res” formados por Marcelo Jasmin, como Christian Lynch (Iesp-Uerj), Ivo transparece nos escritos que compuseram o livro Linhagens do pensamento
Coser (UFRJ) e Wendel Antunes Cintra (UFBA), ou por João Feres Júnior, político brasileiro (2010). Também Bernardo Ricupero (USP) e André Kaysel
como Luísa Rauter (Ufop), procuram na história do pensamento os insumos (Unila) se revelam interessados na plêiade de autores de esquerda que no
da produção teórica. Entretanto, sejam “historiadores” ou “filósofos”, há em passado recente pensavam a política recorrendo menos à ciência homôni-
todos eles a marca forte de temas como o do liberalismo, da democracia e ma do que às áreas em que a influência do marxismo era sentida com mais
do autoritarismo, bem como o interesse crescente pelo pensamento ibero- intensidade, como a sociologia (Florestan Fernandes), a história (Fernando
-americano. É o que se extrai da leitura das obras Visconde do Uruguai: Novaes), a literatura (Roberto Schwarz) e a economia (Celso Furtado).
centralização e federalismo no Brasil (1823-1866), de Ivo Coser; Modos Ricupero tem sua atuação marcada pelo estudo dos “intérpretes do Brasil”
de representação política: o experimento da Primeira República brasileira em geral, com destaque para Caio Prado, compreendendo-os a partir da
(2009), de Cristina Buarque; e Da monarquia à oligarquia: história institu- teoria da dependência. É o que se extrai dos trabalhos como Caio Prado e
cional e pensamento político brasileiro (2014) e Monarquia sem despotismo a nacionalização do marxismo no Brasil (2000), O romantismo e a ideia de
e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas nação no Brasil (2004) e Sete lições sobre as interpretações do Brasil (2007).
(2014), Christian Lynch. Os pesquisadores orientados por Juarez Guima- Tais características o aproximam do GT de Pensamento Social no Brasil, no
rães na UFMG, como Marcelo Sevaybricker (UFLA) e André Drummond qual prevalece a concepção “sincrética” de sociologia do já referido Antonio
(UFJF), parecem comungar da mesma perspectiva. Explica-se o fato pelas Candido (2006, p. 292). Não deixa de ser curioso, porém, que a maioria dos
afinidades de origem do seu Departamento de Ciência Política (DCP) com discípulos de Gildo Marçal, como Gabriela Nunes Ferreira (Unifesp), Maria
o antigo Iuperj, decorrentes da mesma referência isebiana e da mesma pre- Fernanda Lombardi (Unifesp), Vera Cepeda (UFSCar) e Diego Ambrosini
coce institucionalização. Um número significativo de seus pesquisadores (Unifesp), tenha se deixado levar por uma leitura não marxista de Linhagens,
do DCP-UFMG se transferiria em seguida para o Rio de Janeiro, como o o que na prática resultou numa abordagem próxima à dos mannheimianos.
próprio José Murilo de Carvalho, cujas pesquisas haviam começado em É o que se depreende de Centralização e descentralização no Império: o de-
Belo Horizonte em 1969 (Veiga, 1992, p. 65). Isso não significa, porém, que bate entre Tavares Bastos e visconde do Uruguai (1999), de Gabriela Nunes
o trabalho do grupo mineiro de PPB não guarde cor própria. Ela resulta da Ferreira, e Esperança e o desencanto: Silva Jardim e a República, de Maria
preocupação com o tema da república, fundamental na reflexão de outros Fernanda Lombardi (2008).
docentes daquela universidade, como Heloisa Starling e Newton Bignotto. Entretanto, o grupo mais capilarizado do PPB hoje é o dos gramscianos.
De um modo geral, as afinidades mannheimianas na forma de conceber e Seus pesquisadores seniores vieram também da militância do comunismo
tratar o pensamento político os encaminham para o GT de Teoria Política democrático, como os lukacsianos paulistas; sua figura de proa é o sociólogo
e Pensamento Político Brasileiro da Anpocs. Luiz Werneck Vianna – ele mesmo, um “intérprete do Brasil”. Sua abordagem
Os lukacsianos têm o seu quartel-general na USP, instituição na qual há do PPB parte de uma interpretação do processo de modernização do país, en-
muito o estudo do pensamento brasileiro sofre a influência da abordagem tendido como um tipo particular de revolução burguesa efetuada na periferia
socioliterária inaugurada por Antonio Candido e da visão de mundo marxista do capitalismo mundial, na forma de uma revolução passiva. Nessa chave, o
que dominou duradouramente o conjunto da FFLCH. Assim, é visível nos estudo do PPB constitui um instrumento essencial para se aprender o modo
escritos de Gildo Marçal Brandão, antigo militante comunista e intelectual como os intelectuais brasileiros adaptaram as ideologias representativas da
público do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), o mar- modernidade europeia e dos caminhos e descaminhos dessa adaptação. O
xismo hegeliano de György Lukács em História e consciência de classe; este marco teórico é aquele delineado por Gramsci em Os intelectuais e a organi-
foi desenvolvido por Lucien Goldmann para o estudo das ciências sociais zação da cultura, segundo o qual os escritores políticos são compreendidos
Cartografia do pensamento político brasileiro 111 112 Christian Edward Cyril Lynch

como intelectuais públicos encarregados de organizar a cultura política para nessa fase, que parte dos trabalhos ainda se caracterize por uma abordagem
fins hegemônicos ou contra-hegemónicos. Os gramscianos também reúnem metodológica deficiente, ou certa preocupação estéril de encaixar autores nesta
sociólogos, como Maria Alice Rezende de Carvalho (PUC-RJ), João Marcelo ou naquela linhagem (esquecendo-se de que essas classificações são apenas
Ehlert Maia (FGV-RJ) e Fernando Perlatto (UFJF), que pelo caráter “público” mapas gerais da disciplina). Como conjunto de ideologias integrantes da nossa
de sua sociologia (Perlattto, 2010) não se diferenciam em sua abordagem do cultura política, há menos trabalhos do que seria desejável. Como quer Pierre
pensamento brasileiro de cientistas políticos como Marco Aurélio Nogueira Rosanvallon (2010, p. 46), “se certos textos parecem cruciais, não é apenas
e Milton Lahuerta (UFSCar) e Rubem Barboza Filho e Francisco Raul Ma- porque são expressões do pensamento, mas porque eles representam a forma-
galhães (UFJF). Trata-se do grupo que revela mais apreço pela concepção lização de um momento histórico, político ou filosófico específico”. Uma vez
do acadêmico como intelectual público. Sua marca forte é a da república, que o objetivo aqui é o de compreender os intelectuais no seio de sua cultura,
abordando os escritores do passado como predecessores cuja vocação para é preciso também atentar para “o modo de leitura dos grandes textos teóricos,
a intervenção no debate público cumpriria emular. As obras de PPB mais a recepção das obras literárias, a análise da imprensa e dos movimentos de
representativas do grupo – para além daquelas do próprio Werneck Vian- opinião, o destino dos panfletos, a construção dos discursos de circunstância”
na, já mencionadas – são: As desventuras do liberalismo: Joaquim Nabuco, a (Rosanvallon, 2010, p. 86). Em terceiro lugar, também há poucos trabalhos
monarquia e a república (1984), de Marco Aurélio Nogueira; O quinto século: de PPB como “velha ciência política brasileira”. Tanto quanto modelos econo-
André Rebouças e a construção do Brasil (1998), de Maria Alice Rezende métricos gerais extraídos da literatura internacional, eles certamente teriam
de Carvalho; Tradição e artifício: ibérico e barroco na formação americana
algo com que contribuir para iluminar discussões atuais relativas à reforma
(2000), de Rubem Barboza Filho, também autor do importante artigo “A
política. Deve-se lamentar por igual que praticamente todos os estudos do
modernização brasileira e o nosso pensamento político” (2011); e, por fim,
PPB cuidem quase de maneira exclusiva da política interna. O que se começa
Elitismo, autonomia, populismo: os intelectuais na transição dos anos 1940
a estudar na periferia da ciência política é chamado pensamento diplomático
(2014), de Milton Lahuerta. O GT preferido pelos gramscianos na Anpocs
brasileiro – denominação pouco feliz, na medida em que sugere que a tarefa
é o já mencionado Intelectuais, Cultura e Democracia.
de pensar o lugar do Brasil no mundo seja exclusividade dos diplomatas14.
O que parece menos justificável, porém, é a insuficiente aplicação de orien-
Conclusão: crítica do campo e desafios para o futuro.
tações teórico-metodológicas da própria teoria política ao estudo do PPB.
A despeito da expansão quantitativa da subárea, há problemas e desafios a
serem enfrentados pelo campo do PPB que precisam ser encarados para que A existência de um campo de estudos do PPB, destacado daquele de teoria
ele se desenvolva com a qualidade esperada. Em primeiro lugar, a área temá- política, é fenômeno tipicamente periférico. Embora nada impeça que, nos
tica ainda não alcançou o patamar de nacionalização atingida recentemente países cêntricos, haja cursos ou pesquisas sobre o pensamento político de seus
pela ciência política como um todo (Marenco, 2014; Amorim e Santos, 2015). autores nacionais, eles lá são sempre pensados como parte integrante da “teoria
Nos programas de pós-graduação, as linhas de pesquisa estão concentradas política”15. Na América ibérica, acontece o contrário; seus pensadores quase
na região Sudeste, ficando diluídas pelo restante do país nos programas de nunca se pensam ou são pensados como parte integrante daquela teoria, e por
ciências sociais ou de sociologia política. Em segundo lugar, do ponto de 14 O quadro pode reverter graças a esforços como o de Dawisson Belém Lopes, que recentemente (2014)
vista qualitativo, também há ajustes a serem feitos. A maioria dos trabalhos ofereceu no programa de pós-graduação em ciência política da UFMG um curso sobre o tema, sob a
designação mais apropriada de “Pensamento Internacional Brasileiro”.
se concentra naquela dimensão do PPB como estudo de escritores canônicos 15 Assim, um livro como História do pensamento político em contexto nacional, organizado por Dario
– os chamados “intérpretes do Brasil”. Essa predominância é compreensível, Castiglione e Iain Hampsher-Monk (2001), induz o estudante brasileiro ao equívoco de imaginar que
lá encontrará capítulos sobre pensamento político estadunidense, francês, alemão, italiano etc. Na
levando-se em conta que ainda se experimenta um momento de resgate de verdade, trata-se de obra dedicada a compreender as diferentes tradições nacionais de estudo da
autores esquecidos ou mal compreendidos. Também me parece inevitável, “teoria política”, que é ali pensada como geral e não fracionada em “universal” e “particular”.
Cartografia do pensamento político brasileiro 113 114 Christian Edward Cyril Lynch

isso acabam estudados, quando são, em disciplina à parte. Conforme salienta AMADO, Gilberto (1999). Eleição e representação. Introdução Olavo Brasil
Marcelo Sevaybricker Moreira, não se trata aqui de “negar ou subestimar as de Lima Júnior. Brasília: Senado Federal.
vantagens do processo de divisão social do trabalho intelectual, mas de encará-lo AMORIM NETO, Octavio e SANTOS, Fabiano (2015). “La ciencia política
criticamente, alertando para a tendência ainda presente em que teoria e prática en Brasil en la última década: la nacionalización y la lenta superación del
política ficam apartadas uma da outra, do ponto de vista da análise, quando parroquialismo”. Revista de Ciencia Política (Santiago), v. 35, n. 1, p. 19-31.
se teria muito a ganhar em pensá-las como parte de uma mesma realidade” ARAÚJO, Cícero & REIS, Bruno P. Wanderley (2005). “A formação do pós-
(Moreira, 2012, p. 87). Outro que pede o fortalecimento dos vínculos da teoria -graduando em ciência política”, em MARTINS, Carlos Benedito (org.).
política com o PPB, bem como com a história, inclusive a comparada, além de Para onde vai a pós-graduação em ciências sociais no Brasil. Bauru (SP):
maior rigor metodológico é Rubem Barboza Filho (Schwarcz e Botelho, 2011, Edusc.
p. 147). É o caso de pensar se o horizonte último da disciplina de PPB não seria ARAÚJO, Cícero & ASSUMPÇÃO, San Romanelli (2010). “Teoria política
o de sua dissolução final na teoria política. Para tanto, será necessário aguardar no Brasil hoje”, em MARTINS, Carlos Benedito (org). Horizontes das
o dia em que o PPB terá perdido o complexo de inferioridade, e a nossa teoria ciências sociais no Brasil: ciência política. São Paulo: Anpocs.
política, o eurocentrismo que sempre a contaminou. Enquanto esse dia não BARBOSA, Rui (1931). “Ruínas de um governo: o governo Hermes, as ruínas
chega, faço minhas as palavras de Cicero Araujo e San Romanelli: da Constituição, a crise moral, a justiça e manifesto à Nação”. Prefácio e
notas Fernando Néri. Rio de Janeiro: Guanabara.
Urge que a produção da teoria política, propensa a uma salutar elaboração cosmopolita e ______ (1964). Teoria política. São Paulo: W. M. Jackson.
universalizante, não perca de vista a tradição do próprio pensamento político brasileiro e, BEVIR, Mark (2008). A lógica da história das ideias. Trad. Gilson de Sousa.
mais do que isso, procure recompor os seus fios de modo a propiciar uma compreensão, Bauru (SP): Edusc.
ao mesmo tempo nacional e internacional, de suas grandes vertentes. Nunca é demais BOBBIO, Norberto (1996). Saggi sulla scienza política in Italia. Roma: Laterza.
lembrar que essa é a tendência de todas as teorias políticas importantes produzidas alhu- ______ (1997). “Ciência política” [verbete], em BOBBIO, Norberto (org).
res, inclusive e especialmente a produzida em língua inglesa, por mais língua franca que
Dicionário de política, v. 1. 11. ed. Trad. Carmen Carriali et al. Brasília:
pretenda ser. Não se trata aqui de nenhuma queixa patriótica, mas do simples problema
Editora da UnB.
institucional de construir potência intelectual e acadêmica suficiente para sair da etapa do
BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.) (2009). Um enigma
predomínio da recepção, para a do (no mínimo) equilíbrio entre recepção e transmissão
chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das
do que é produzido nas redes globais de conhecimento. Se queremos chegar a esse ponto,
não há como deixar de lado a construção de uma comunidade efetivamente integrada; e
Letras.
esta apenas o será na medida em que, simultaneamente, propiciar o diálogo direto entre ______ (2011). “Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasi-
os autores e sua remissão sistemática ás tradições nacionais. É isso que conferiria massa leiro”. Lua Nova, n. 82, p. 139-59.
crítica, especificidade e força de conteúdo, senão a todas, pelo menos a grande parte das BRANDÃO, Gildo Marçal (1998). “A teoria política é possível?” Revista
contribuições brasileiras que pretendam um impacto universalizante e internacional Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 36, s/p.
(Araújo e Assumpção, 2010, p. 78). ______ (2005). “Linhagens do pensamento político brasileiro”. Dados, v. 48,
n. 2, p. 231-69.
BRASIL, Joaquim Assis (1896). Democracia representativa: do voto e do modo
Referências de votar. 3. ed. Paris: Guillard, Aillard & Cia.
ASI – ANAIS DO SENADO DO IMPÉRIO DO BRASIL (1939, 1940, 1943 CAMIC, Charles (1995). “Three departments in search of a discipline: local-
[1978]). Brasília: Senado Federal. ism and interdisciplinary interaction in American sociology, 1890-1940”.
ALENCAR, José de (1868). O sistema representativo. Rio de Janeiro: Garnier. Social Research, n. 62, p. 1003-33.
Cartografia do pensamento político brasileiro 115 116 Christian Edward Cyril Lynch

CANDIDO, Antônio (2006). “Sociologia no Brasil”. Tempo Social, v. 18, n. LAMOUNIER, Bolívar (1977). “Formação de um pensamento político
1, p. 271-301. autoritário na Primeira República: uma interpretação”, em FAUSTO, B.
CARVALHO, José Murilo de (1980). “Em louvor de Victor Nunes Leal”. (org.). História geral da civilização brasileira, tomo III: O Brasil republi-
Dados, v. 23, n. 1, p. 5-9. cano, vol. 2. São Paulo: Difel.
______ (2000). “História intelectual no Brasil: a retórica como chave de ______ (1978). “Prefácio”, em SADEK, M. T. Machiavel, Machiavéis: a tra-
leitura”. Topoi, n. 1, p. 123-52. gédia octaviana. São Paulo: Símbolo.
______ (2015). “Duas ou três coisas que eu sei sobre Wanderley”. Insight ______ (1980). “Pensamento político, institucionalização acadêmica e rela-
Inteligência, n. 71, p. 118-20. ções de dependência no Brasil”. Dados, v. 23, n. 1.
CAVALCANTI, Temístocles Brandão (1958). Teoria do Estado. Rio de Ja- ______ (1982). “A Ciência Política no Brasil: roteiro para um balanço crítico”,
neiro: Borsoi. em IDEM (org). A ciência política nos anos 80. Brasília: Editora da UnB.
CORBISIER, Roland (1968). Reforma ou revolução? Rio de Janeiro: Civili- LESSA, Renato (1998). “Por que rir da filosofia política?” Revista Brasileira
zação Brasileira. de Ciências Sociais, v. 13, n. 36, s/p.
COSTA, João Cruz (1956). Contribuição ao estudo da história das ideias no ______ (2011). “Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio. conhecimento político no Brasil”. Lua Nova, n. 82, p. 17-60.
CUNHA, Euclides da (1999). À margem da história. São Paulo: Martins
LYNCH, Christian Edward Cyril (2013a). “Por que pensamento e não te-
Fontes.
oria? A imaginação político-social brasileira e o fantasma da condição
DUVERGER, Maurice (1976). Ciência política: teoria e método. 2. ed. Rio
periférica (1880-1970)”. Dados, v. 56, n. 4, p. 727-67.
de Janeiro: Zahar.
______ (2013b). “The institutionalization of Brazilian political thought in
FERREIRA, Oliveiros S. (1994). “Lourival Gomes Machado”. Estudos Avan-
the social sciences: Wanderley Guilherme dos Santos’ research revisited
çados, v. 8, n. 22, p. 279-84.
(1963-1978)”. Brazilian Political Science Review, v.7, n. 3, p. 36-60.
FORJAZ, Maria Cecília Spina Forja (1997). “A emergência da ciência política
______ (2015). “Modulando o tempo histórico: Bernardo Pereira de Vas-
no Brasil: aspectos institucionais”. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 12, n. 35, p. 101-20. concelos e o conceito de ‘regresso’ no debate parlamentar brasileiro
FAORO, Raimundo (1992). Existe um pensamento político brasileiro? São (1838-1840)”. Almanack, n. 10, p. 314-34.
Paulo: Ática. MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de (1865). Obras, tomo VII:
FREEDEN, Michael (2003). Ideology: a very short introduction. Oxford: Opúsculos históricos e literários. 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier.
Oxford University Press. MARENCO, André (2014). “The three Achilles’ heels of Brazilian political
FURTADO, Celso (1965). “Obstáculos políticos ao crescimento econômico science”. Brazilian Political Science Review, v. 8, n. 3, p. 3-38.
do Brasil”. Revista Civilização Brasileira, n. 1, p. 29-45. MARIÁS, Julián (2004). História da filosofia. Trad. Claudia Berliner. São
GUNNELL, John G (1993). The descent of political theory: the genealogy of Paulo: Martins Fontes.
an American vocation. Chicago: University of Chicago Press. MOREIRA, Marcelo Sevaybricker (2012). “O debate teórico-metodológico
JAGUARIBE, Hélio (1955). “O golpe de agosto”. Cadernos do nosso tempo, na ciência política e o pensamento social e político brasileiro”. Teoria &
n. 3, p. 3-20. Pesquisa, v. 21, n. 1, p. 73-89.
______ (1957). A filosofia no Brasil. Rio de Janeiro: Iseb. NABUCO, Joaquim (1949). Balmaceda. São Paulo: Progresso Editorial.
KLOSKO, George (2011). The Oxford handbook of political philosophy. OLIVEIRA, Lucia Lippi (1990). A questão nacional na Primeira República.
Oxford: Oxford University Press. São Paulo: Brasiliense.
Cartografia do pensamento político brasileiro 117 118 Christian Edward Cyril Lynch

______ (1999). “Interpretações sobre o Brasil”, em MICELI, Sergio (org). O ______ (2013). “O sistema oligárquico-representativo da Primeira Repúbli-
que ler na ciência social brasileira. Brasília: Anpocs. ca”. Dados, v. 56, n. 1, p. 9-37.
PACKENHAM, Robert A. (1965). “A pesquisa política no Brasil: ponto de SOARES, Gláucio Ary Dillon (2005). “O calcanhar de Aquiles da ciência
vista de um norte-americano”. Revista de Direito Público e Ciência Polí- política brasileira”. Sociologia, problemas e práticas, n. 48, p. 27-52.
tica, v. 8, n. 1, p. 5-27. SOARES DE SOUSA, José Antônio (1944). A vida do Visconde de Uruguai.
PERLATTO, Fernando (2010). “Sociologia pública e o Brasil: apontamentos Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional.
para um debate”. Revista de Ciências Humanas, v. 1, p. 256-68. STOPPINO, Mario (1998). “Ideologia” [verbete], em BOBBIO, Norberto
QUIRINO, Célia (1994). “Departamento de ciência política”. Estudos avan- (org). Dicionário de política, v. 1. 11. ed. Trad. Carmen Carriali et al.
çados, v. 8, n. 22, p. 337-48. Brasília: Editora da UnB.
RAMOS, Alberto Guerreiro. (1962). A crise do poder no Brasil. Rio de Ja- TORRES, Alberto (1914). A organização nacional. Rio de Janeiro: Tipografia
neiro: Jorge Zahar. Nacional.
______ (1966). Administração pública e estratégia do desenvolvimento. Rio VEIGA, Laura da (1992). A interação entre contexto, atividades e caracterís-
de Janeiro: Editora da FGV. ticas organizacionais no mundo acadêmico. Análise & conjuntura, v. 7,
______ (1995). Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: n. 2-3, p. 56-78.
Editora da UFRJ. VIANNA, Francisco José de Oliveira (1974a). Instituições políticas brasileiras.
RICUPERO, Bernardo (2007). “A (re)conciliação com a tradição”. Revista Rio de Janeiro: Record.
Brasileira de Ciências Sociais, v. 22, n. 63, p. 163-5. ______ (1974b). Problemas de organização, problemas de direção. Rio de
______ (2010). O conservadorismo difícil, em FERREIRA, Gabriela Nunes Janeiro: Record.
& BOTELHO, André (org.). Revisão do pensamento conservador. São ______ (1991). Ensaios inéditos. Campinas: Editora da Unicamp.
Paulo: Hucitec. VILLAS-BOAS, Glaucia (1991). A tradição renovada: reflexões sobre os
RODHES, R. A. W. (2008). “Old institutionalisms”, em RODHES, R. A. W.; temas das ciências sociais no Brasil, 1945-1969, em Helena Bomeny e
BINDER, Sarah A. & ROCKMAN, Bert A. The Oxford handbook of Patrícia Birman (org). As assim chamadas ciências sociais: formação do
political institutions. Oxford: Oxford University Press. cientista social no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
ROMERO, Sílvio (1969). Obra filosófica. Introdução e seleção Luís Washing- ______ (2007). A vocação das ciências sociais no Brasil: um estudo da sua
ton Vita. Rio de Janeiro: José Olympio. produção em livros do acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
ROSANVALLON, Pierre (2010). Por uma história do político. Introdução e FBN/MinC.
trad. Christian Lynch. São Paulo: Alameda. ZEA, Leopoldo (1956). Esquema para una historia de las ideas en Iberoame-
SADEK, Maria Tereza (1982). “Análise sobre pensamento social e político rica. Ciudad de México: Universidade Nacional Autónoma.
brasileiro”. BIB, n. 12, p. 7-21.
SALES, Alberto (1882). Política Republicana. Rio de Janeiro: Leuzinger. Resumo
SANTOS, Wanderley Guilherme dos (1967). “A imaginação político-social O artigo propõe um mapa da área acadêmica de estudos do pensamento político brasileiro
brasileira”. Dados, n. 2-3, p. 182-93. (PPB) no âmbito da ciência política brasileira. Na primeira seção, o trabalho explica as razões
______ (1970), “Raízes da imaginação política brasileira”. Dados, n. 7, p. da sua indeterminação terminológica e indaga seus significados conceituais como objeto
137-61. e disciplina. Como objeto, em sentido lato, o PPB alude ao conjunto de ideologias de que
______ (1978). Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas a cultura política do Brasil é composta, apresentadas em um estilo de escrita “periférico”.
Cidades. De um ponto vista estrito, o PPB se refere aos “clássicos” de nossa teoria ou ciência política,
Cartografia do pensamento político brasileiro 119

escritos antes da institucionalização universitária na década de 1970. Na última seção,


considera-se o pensamento político como disciplina universitária dedicada ao estudo
da história das ideias políticas no Brasil, descrevendo-se seu desenvolvimento, suas in-
terpretações, seus pesquisadores mais notáveis e seus principais grupos de pesquisa: o
mannheimiano, o lukacsiano e o gramsciano. O artigo conclui sugerindo o estreitamento
das relações entre PPB e teoria política geral.
Palavras-chave: pensamento político brasileiro, pensamento social brasileiro, história das
ideias políticas no Brasil, ideologias brasileiras, clássicos do pensamento brasileiro, cultura
política brasileira, grupos de pesquisa do pensamento político brasileiro.

Abstract
This article intends to offer a map of the academic studies of the Brazilian political thought
within the Brazilian Political Science. In the first section, the paper explains the reasons
for their terminological uncertainty and asks its conceptual meanings as object and
subject. As an object in the broadest sense, Brazilian political thought refers to the set of
ideologies that Brazil’s political culture is made, presented in a “peripheral” writing style.
From a strict point of view, that expression refers to the “classics” of our theory or political
science, written before the university institutionalization in the 1970s In the last section,
we consider the political thought as a university discipline devoted to the study of history
of political ideas in Brazil, describing their development, their interpretations, their most
notable researchers and their main research groups, according to their methodological
approach based on Mannheim, Lukács and Gramsci. The article concludes by suggesting
a closer relationship between Brazilian political thought and general political theory.
Keywords: Brazilian political thought, Brazilian social thought, history of political ideas in
Brazil, Brazilian political ideologies, Brazilian political culture, classics of Brazilian political
thought, research groups in Brazilian political thought.

Recebido em 30 de setembro de 2015.


Aprovado em 4 de março de 2016.
2 Christian Edward Cyril Lynch

Artigos
Christian Edward Cyril Lynch1, 2, 3  compreender tanto “a ação política, enquanto ideias traduzidas em
comportamentos, quanto as ideias políticas, como guias estraté-
gicos para a ação” (SANTOS, 2017, p. 166). Em Linhagens do pensa-
mento político brasileiro (2005), Gildo Marçal Brandão igualmente
Idealismo e realismo na teoria política e no sustentaria a “existência de famílias intelectuais que, a meu juízo e
pensamento brasileiro: contra a aparência imediata das coisas, estruturam historicamente
o pensamento político e, por essa via, a luta ideológica e política
três modelos de história intelectual
no Brasil” (BRANDÃO, 2007, p. 15). Bolívar Lamounier também
Idealism and realism in political theory and in Brazilian thought: se reportaria mais recentemente, em Tribunos, profetas e sacerdotes
three models of intellectual history (2014), à existência de diferentes famílias ideológicas na vida brasi-
leira, a partir das quais os intelectuais influenciavam “a evolução do
sistema político” ao longo da história (LAMOUNIER, 2014, p. 14).
A segunda característica saliente dessas interpretações reside na
tendência a aglutinar as referidas tradições em dois polos básicos:
Introdução um, designado negativamente como idealista; o outro, positiva-
As principais interpretações do pensamento político brasi- mente, como realista. Por “idealismo” e “realismo” designo, aqui,
leiro apresentam duas características particularmente salientes. A mais do que o emprego literal dessas palavras, a crença nutrida
primeira delas reside na alta relevância conferida à identificação das por seus autores de que haveria algumas linhagens intelectuais
mentalidades, famílias, tradições ou linhagens de sua cultura política. mais capazes de enxergar a realidade como ela efetivamente seria
Assim, em Instituições políticas brasileiras (1949) Oliveira Vianna (“realistas”), e outras, que o fariam de modo mais precário ou
se referia às diferentes “mentalidades” da elite brasileira, cujas distorcido (“idealistas”). Em 1922, Oliveira Vianna já denunciava as
“metodologias” eram expressivas de diferentes “atitudes espirituais” elites políticas brasileiras por se orientarem conforme um idealismo
perante a realidade política (VIANNA, 1974). Guerreiro Ramos utópico, que ignorava “as condições reais e orgânicas das sociedades
voltaria ao assunto em A ideologia da ordem (1961): “No domínio que pretendem reger e dirigir”. Contra esse cosmopolitismo alie-
da vida intelectual, há famílias. Isto é, grupos cujos integrantes nante, o autor recomendava outro tipo de idealismo, o orgânico,
são marcados sutil ou ostensivamente por um ar de família. Existe alimentado da “realidade, que só se apoia na experiência, que só
uma morfologia do espírito ou da inteligência” (RAMOS, 1961, p. se orienta pela observação do povo e do meio” (VIANNA, 1922, p.
141). Em A práxis liberal no Brasil (1978), Wanderley Guilherme 14-17). Por sua vez, Guerreiro Ramos classificaria, em 1955, os inte-
dos Santos aludiria às tradições intelectuais formadas por grupos lectuais brasileiros, distinguindo os hipercorretos dos pragmáticos-
políticos, atores e autores, cujo conhecimento era necessário para -críticos. Os primeiros tenderiam a “atribuir ideais e teorias impor-
tadas eficácia direta na configuração de comportamentos sociais,
assim negligenciando os seus condicionamentos contextuais”. Já os
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: segundos tenderiam “mais a se servir das ideias e teorias importadas
<Clynch3@hotmail.com> do que a admitir a sua exemplaridade abstrata” (RAMOS, 1983, p.
2 Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3 Professor da Universidade Veiga de Almeida (UVA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil 533). As três interpretações seguintes, formuladas já no contexto da
Revista Brasileira de Ciência Política, nº 34. e237103, 2021, pp 1-57.
DOI: 10.1590/0103-3352.2021.34.237103
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 3 4 Christian Edward Cyril Lynch

ciência política institucionalizada, reiteraram essa tendência de aglu- a teoria política da primeira metade do século 20 parece assim
tinar as tradições intelectuais em dois diferentes polos. Não haveria um caminho especialmente útil para compreender o que seriam
problema, se estivessem de acordo sobre quais seriam idealistas ou idealismo e realismo e explorar as alegadas diferenças entre um
realistas. Não é isso, porém, o que acontece. O polo identificado paradigma “idealista” de ciência política, próprio do século 19, e
como realista para Wanderley Guilherme é aquele por ele denomi- outro, “realista”, próprio do seguinte. Na sequência, seria possível
nado autoritário instrumental; para Bolívar Lamounier, está identi- examinar como esse paradigma alegadamente novo teria dado
ficado, ao contrário, com a linhagem chamada liberal; ao passo que, origem a três modelos ideológicos de história intelectual, cada qual
para Gildo Marçal, a perspectiva que abre as portas para a realidade orientado por diferentes critérios acerca do que fosse a realidade
é a marxista de matriz comunista. Daí a polêmica que acompanha política.
todas essas interpretações, que, partindo sempre de Oliveira Vianna, A hipótese ora apresentada é a de que a dualidade entre idea-
dialogam entre si de modo crítico, quando não ácido4. listas e realistas, empregada para distinguir as tradições do pensa-
No intuito de compreender as razões do desacordo dessas inter- mento brasileiro, decorreria de uma antiga disputa da própria teoria
pretações e de sua tendência em aglutinar as tradições intelectuais política entre diferentes concepções acerca da realidade política
em polos opostos, o presente artigo remonta ao quadro mais amplo e suas relações com a dimensão ética da vida social. A discórdia
da história do pensamento político. Em primeiro lugar, porque envolve questões relativas às características da natureza humana –
o pensamento brasileiro não é determinado somente por suas se “boa” ou “má” – e ao papel auxiliar do conhecimento histórico
próprias tradições. Foi a partir de sua articulação com o movimento na sua compreensão – relativa à sua perfectibilidade ou imuta-
do mundo que nossos politólogos, desde o século 19, hauriram os bilidade. O debate parece ter sido filtrado por pelo menos três
seus modelos de história intelectual e estabeleceram seus critérios paradigmas sucessivos de ciência política. O primeiro, renascen-
de distinção. Em segundo, é preciso remontar à história intelectual, tista/seiscentista, já opunha o “idealismo” identificado com a ética
porque a dicotomia idealismo e realismo parece entranhada na católica dos escolásticos ao “realismo” dos teóricos da razão de
forma de estruturar a disciplina de teoria política. Edward Carr Estado. O segundo, iluminista/ oitocentista, opunha o “idealismo”
já consagrava, em 1939, a tese de que a moderna ciência política identificado com o progresso moral da humanidade ao “realismo”
(“realista”) teria surgido depois da Primeira Guerra Mundial, como associado com a ordem e a autoridade, concebidos como forças
reação a um paradigma oitocentista pautado por uma abordagem metafísicas em eterna luta ao longo da história. Já o paradigma
normativa e ingênua (“idealista”). Chegara o tempo em que “os moderno/novecentista partiu de uma reação “materialista” contra a
pesquisadores pedirão auxílio à análise, e o estudo, emergindo metafísica na segunda metade do século 19, passando pela reivindi-
do seu período infantil e utópico, estabelecerá o seu direito de ser cação de neutralidade axiológica na análise do fenômeno político.
visto como ciência” (CARR, 2001, p. 8). Também Raymond Aron Ela culminou com a proposta de uma ciência política compreen-
denunciaria, na década de 1960, os analistas da Belle Époque por siva, desvinculada de uma filiação ingênua aos valores graças a
seu “idealismo jurídico”, que superestimava o papel do direito na
tomada de decisões ou estratégias (ARON, 2002, p. 706). Revisitar

4 Não é o caso de reapresentar aqui cada uma dessas interpretações de modo minucioso, eis que já
foram objeto de artigos à parte, subscrevendo-se aqui as suas conclusões (LYNCH, 2013; LYNCH;
CASSIMIRO, 2018; LYNCH; CHALOUB, 2021).
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 5 6 Christian Edward Cyril Lynch

procedimentos metodologicamente controlados 5. Entretanto, reconstituir, pelas vinculações de obra a obra, os fios que ligariam
diante da recusa de setores à direita e à esquerda, mas também de cada interpretação a um modelo específico de história intelec-
muitos liberais, em admitirem a possibilidade de uma cisão entre tual. Cada um deles teria sido elaborado pela adaptação, à direita
política e valores, a dicotomia realismo versus idealismo produziu e à esquerda, de um paradigma alegadamente “realista” de ciência
três modelos de história intelectual ideologicamente distintos: o política surgido depois da Primeira Guerra Mundial na Alemanha,
liberal, o nacionalista e o marxista. Esses três modelos ajudaram depois recepcionado na França, na Grã-Bretanha e nos Estados
Wanderley Guilherme, Bolívar Lamounier e Gildo Marçal a orga- Unidos. A investigação cessa por volta de 1970, quando já estava
nizar as suas próprias interpretações sobre as tradições intelectuais formada a constelação intelectual que orientaria nossos três intér-
do pensamento político brasileiro, condicionando de modo visível pretes em suas pesquisas sobre o pensamento político brasileiro. A
a escolha do método científico, cada qual com suas preferências primeira, de Wanderley Guilherme, seria elaborada na confluência
ideológicas subjacentes6. de autores “nacionalistas”, como Hans Morgenthau, com a tradição
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa aqui desenvolvida nacionalista brasileira, lida à esquerda por Guerreiro Ramos, ambas
tentou, por meio de um procedimento genético inspirado pela críticas de um liberalismo percebido como alienado, pois cosmopo-
história dos conceitos de Reinhart Koselleck, rastrear as principais lita (LYNCH, 2013). A segunda, de Bolívar Lamounier, seria produ-
referências bibliográficas daquelas três interpretações, capazes de zida à luz de autores “liberais”, como Juan Linz, em crítica à tradição
fornecer indicações das perspectivas por eles indicadas como “idea- nacionalista, percebida como autoritária (LYNCH; CASSIMIRO,
listas” e “realistas”7. Esse procedimento “rastreador” foi repetido de 2018). Já Gildo Marçal questionaria as interpretações precedentes
modo sucessivo e retrospectivo na literatura referenciada, a fim de como conservadoras à luz de autores “marxistas”, como Lukács e
Goldmann (LYNCH; CHALOUB, 2021). Uma vez que a investi-
5 A análise algo sumária que se fará aqui dos “clássicos”, especialmente dos mais icônicos (como Marx gação não deve ser apresentada necessariamente na ordem em foi
e Weber), não pode fazer justiça à sua complexidade em espaço tão exíguo. Por outro lado, em
um estudo preocupado em identificar as referências intelectuais e ideológicas mais remotas dos feita (no caso, “de frente para trás”), a fim de tornar a sua exposição
intérpretes do pensamento brasileiro, é menos importante a suposta “verdadeira” exegese desses mais lógica, os resultados da pesquisa serão aqui apresentados em
autores, em abstrato, do que a apresentação de seus argumentos gerais, especialmente na forma
como foram lidos na primeira metade do século XX. ordem cronológica, do período mais remoto ao mais recente.
6 As interpretações de Wanderley Guilherme, Bolívar Lamounier e Gildo Marçal foram preferidas
às de outros, com base em dois critérios. O primeiro, de caráter formal, exigia aderência à área
de Ciência Política e aos seus métodos de pesquisa no campo teórico e excluiu colegas que De Hegel a Angell: idealismo e realismo na formação e
militam nos campos da Sociologia, da História, da Filosofia e da Literatura. O segundo critério, apogeu do paradigma “metafísico” de política (1770-1914)
substantivo, privilegiou politólogos cuja contribuição teórica tivesse sido abrangente e influente
para o desenvolvimento da área. A combinação dos dois critérios levou a investigação a preferir Desde a Antiguidade a vida em sociedade foi objeto de refle-
Gildo Marçal Brandão ao sociólogo Luiz Werneck Vianna, um conhecido “intérprete do Brasil”, para xões sobre a natureza do poder ou a melhor forma de governo.
representar aqui o veio marxista; e a Wanderley Guilherme dos Santos a José Murilo de Carvalho,
para ilustrar o veio “nacionalista”. O próprio Murilo já reconheceu ser tributário da visão de Wanderley O seu conjunto atende pelos nomes de ciência política, filosofia
nesse assunto (CARVALHO, 2015, p. 118-120). política, teoria política, pensamento político, história do pensamento
7 A história dos conceitos de Koselleck exige situar os conflitos do passado em suas respectivas
fronteiras conceituais, relacionando-os com as transformações das estruturas políticas, econômicas político, história das ideias políticas ou história das doutrinas polí-
e sociais. Embora ligados a uma palavra, os conceitos são sempre mais do que elas e não possuem ticas (CASTIGLIONE; HAMPSHER-MONK, 2001). Na tentativa
conteúdos estáveis. Daí que as histórias dos conceitos sejam aquelas de suas diferentes recepções
no tempo e no espaço (JASMIN; FERES JR., 2006, p. 25). O fato de não ser possível aqui aplicar de oferecer um mapa desse cipoal de 2.500 anos, os historiadores
rigorosamente os preceitos dessa metodologia não significa que o artigo não tenha-se balizado do pensamento político formularam classificações destinadas a
por ela o tanto quanto possível, para evitar excessos de anacronismos e pensar os processos de
recepção intelectual. lhe conferir alguma inteligibilidade preliminar. A mais popular foi
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 7 8 Christian Edward Cyril Lynch

a divisão binária dos teóricos entre os chamados idealistas, para A história da filosofia expõe-nos a galeria dos nobres espíritos
quem a “ciência política” deve ser conduzida normativamente, que, graças à ousadia da sua razão, penetraram na natureza
ou seja, conforme imperativos éticos, e os realistas, que preferem das coisas do homem, e na natureza de Deus, desvelaram-nos
compreendê-la descritivamente, isto é, conforme a “verdade a sua profundidade e para nós elaboraram o tesouro do mais
efetiva” do poder. Essa divisão atravessa pelo menos três diferentes alto conhecimento (HEGEL, 2006, p. 13).
“paradigmas” de ciência política entendidos à maneira de Thomas
Kuhn (1997). Embora as denominações “idealistas” e “realistas” No contexto da recepção de Hegel na França, caberia a François
ainda não existissem no paradigma renascentista/seiscentista, já Guizot apresentar, na sua História da civilização na Europa (1828),
se disputava em torno da natureza de ciência política em termos a autoridade e a liberdade como dois princípios em luta no processo
semelhantes. Para os teóricos da razão de Estado, a ciência política histórico:
deveria ser “útil”, limitando-se a descrever as técnicas concretas
de exercício do poder. Em O príncipe (1513), Maquiavel entendia Duas grandes forças e dois grandes direitos, a autoridade e a
serem lícitos ao governante todos os meios facultados pela força e liberdade, coexistem e se combatem naturalmente no seio das
pela inteligência (virtù), desde que empregados com habilidade e sociedades humanas [...], sem jamais se reduzirem mutuamente
conforme as circunstâncias (fortuna) (MAQUIAVEL, 2001, p. 85). à impotência, sujeitas uma e outra às oscilações, a retornos de
Em suas Considerações sobre os golpes de Estado (1663), Gabriel fortuna que fizeram, através de uma longa série de séculos, o
Naudé também desprezava a abordagem normativa da escolás- destino dos governos e dos povos (GUIZOT, 1855, p. XIII).
tica, preferindo descrever “os maiores segredos das monarquias, as
intrigas das cortes, as cabalas dos facciosos, os pretextos e motivos Não demorou para que a defesa da autoridade ficasse identificada
particulares” (NAUDÉ, 1667, p. 41). Os escolásticos não admitiam a uma posição realista ou conservadora, e a da liberdade, a uma
a política desvinculada dos preceitos e fins da moralidade cristã, posição idealista ou progressista. Na sua História da ciência política
entendendo que ela precisava ser “honesta” para a manutenção da em suas relações com a moral (1872), Paul Janet argumentava que
paz e da justiça. Por isso, Francisco Suárez sustentava, na sua Defesa os idealistas defendiam a normatividade como horizonte regu-
da fé católica (1613), que as doutrinas da razão de Estado eram lador da política, crentes na perfectibilidade moral e intelectual dos
“insanas” e “ímpias”, sem “valor algum para a conservação de uma seres humanos, revelada por uma história de caráter progressivo.
república ou reino temporal” (SUÁREZ, 2015). Já os realistas advogavam fórmulas políticas extraídas da prática
Embora o novo paradigma que emerge do Iluminismo sete- e da tradição, acreditando na imutabilidade da natureza humana,
centista tenha passado a tratar a ciência política no registro secu- revelada por uma história de caráter pragmático. Entre os dois
larizado, nem por isso deixou de renovar os seus vínculos com a extremos, julgados nocivos, Janet propunha um idealismo prático
moralidade, inscrevendo-a agora no plano da metafísica. A filosofia identificado com as obras de Montesquieu e Tocqueville, entendido
da história de Hegel foi a sua principal fonte idealista de intelecção, como síntese entre realismo e idealismo:
ao conceber o conhecimento como uma sucessão de etapas do
progresso do Espírito Absoluto refletidas nas obras dos grandes O verdadeiro político não é um filósofo como o pensava
homens: Platão, mas um filósofo que sabe que o reino da filosofia não
é deste mundo, e que é preciso tratar os homens tais como
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 9 10 Christian Edward Cyril Lynch

eles são, a fim de conduzi-los pouco a pouco àquilo que eles absoluto, mas tê-lo diante de nós como um ponto fixo, de modo que
devem ser (JANET, 1872, p. XL). caminhemos sempre para ele” (NABUCO, 1901, p. 610).
Na Alemanha recém-unificada, em suas Conferências sobre
Em sintonia com a cultura europeia, para se identificarem poli- Política (1899), o conservador Heinrich von Treitschke denunciava
ticamente, os políticos brasileiros do século XIX também se valiam o “cosmopolitismo passivo” dos idealistas como “imoral e impolí-
da dicotomia que opunha “idealistas” a “realistas”. Era a partir dela tico ao mesmo tempo” e saudava o conflito e a guerra como fenô-
que o senador Bernardo Pereira de Vasconcelos distinguia positi- menos intrínsecos à natureza humana (TREITSCHKE, 1914, p. 34).
vamente os conservadores dos liberais: “Nós não somos os homens O seu nacionalismo serviria de base para a primeira grande obra de
das teorias, os homens dos sistemas, os homens das utopias; somos Friedrich Meinecke, Cosmopolitismo e Estado Nacional (1907), que
os homens da prática, os amigos das realidades” (ASI, 7/10/1843). justificava o fortalecimento nacional pelo Estado como decorrência
Essa posição, que associava ao conservadorismo a sensibilidade ao de uma exigência de “objetividade” científica: “Devemos levar a
real, seria reiterada no Ensaio sobre o direito administrativo (1862) empiria como um objetivo em si e persegui-lo incansavelmente”
por seu principal discípulo, o visconde do Uruguai: (MEINECKE, 1970, p. 43). As nações não surgiam de princípios
abstratos, mas de forças históricas concretas, reunidas e coordenadas
Erram [...] aqueles que, abstraindo do estudo e comparação pelas elites dirigentes. Cada uma delas era descrita por Meinecke
das circunstâncias expostas [...], atêm-se somente a uma ou como uma espécie de singular coletivo, dotada de uma cultura parti-
outra consideração teórica, destacada e declamatória. Para cular. A rivalidade entre eles era julgada benéfica, porque fortaleceria
se julgar as instituições, é preciso atender aos tempos e às suas respectivas identidades. Partindo da premissa de que o Estado
circunstâncias (SOUSA, 2002, p. 428). nacional era a ideia mais poderosa do pensamento moderno, e que
uma história intelectual deveria se concentrar nas personalidades
Trinta anos depois, seria a vez de Joaquim Nabuco condenar, em responsáveis pelo seu desenvolvimento, Meinecke afirmava haver
Balmaceda (1895), a “política silogística” do radicalismo, dogmático duas linhagens políticas na Alemanha. A primeira era formada de
e ignorante das circunstâncias concretas da ação política: “É uma idealistas como Humboldt e Schlegel, alheios à questão nacional.
pura arte de construção no vácuo. A base, são teses, e não fatos; Eram eles os liberais-democratas, os conservadores românticos e os
o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo, e não o socialdemocratas, todos de orientação cosmopolita e afrancesada. A
país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais” (NABUCO, segunda família intelectual era composta por realistas como Hegel e
1949, p. 17). Em Um estadista do Império (1897), ele examinaria as Bismarck, integrantes de uma “corrente conservadora” interessada
atitudes ideológicas dos políticos brasileiros a partir dos mesmos em fortalecer o Estado prussiano, visto como responsável por aglu-
arquétipos: “Teixeira de Freitas era, em relação ao direito, um tinar uma nação alemã dispersa por diversas unidades territoriais.
nominalista; Nabuco [de Araújo], um realista” (NABUCO, 1997, p. A história das ideias políticas contida em Cosmopolitismo e Estado
1073). Leitor de Paul Janet, o intelectual pernambucano também se Nacional terminava assim por justificar a renovação a orientação
dizia partidário de um idealismo prático à maneira de Tocqueville, “realista” que conduzira o processo de unificação da Alemanha,
conforme declarava em Escritos e discursos literários (1901): “A clamando pelo advento de um novo Bismarck.
regra de conduta, em moral política, não é querer realizar um ideal Mas, ao contrário do que pode sugerir uma leitura ingênua dos
autores “realistas”, os “idealistas” recusavam a carapuça de “utopistas”
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 11 12 Christian Edward Cyril Lynch

atiradas por seus adversários, defendendo o “realismo” de suas dizer que, nem em si, nem por si, pode explicar qualquer estado
posições progressistas. Replicavam que, presos a uma concepção social, não adverte sobre nenhuma política mais vantajosa a
estática da natureza humana, os “realistas” se revelavam incapazes seguir e nem justifica, tampouco, o conservantismo contra o
de compreender a natureza dinâmica da realidade política. Norman radicalismo. A pretensa imutabilidade da natureza humana
Angell explicava em A grande ilusão (1910) que a “globalização” em não pode ser admitida; pois ainda que constantes algumas
curso desde as últimas décadas do século XIX tornara os indivíduos das suas necessidades, as consequências que produzem
e as nações cada vez mais interdependentes e, portanto, inclinados (face ao estado de cultura existente, da ciência, da moral, da
a atitudes progressistas, cosmopolitas e democráticas: religião, da arte, da indústria, das normas jurídicas) reagem
sobre os próprios componentes originais para ajustá-los a
Todo progresso no sentido da civilização se verifica às custas formas novas. E, com isso, o padrão primitivo e total sofre
do espírito militar, e à medida que declina a tendência à luta, modificações (DEWEY, 1953, p. 132-133).
desenvolve-se a inclinação para o trabalho. A nação progride
mediante a cooperação das pessoas, que trabalham umas com O debate travado nos termos dicotômicos que opunham
as outras em vez de digladiarem-se (ANGELL, 2002, p. 192). “realistas” e “idealistas” adentrou o século XX brasileiro. Defen-
dendo posições análogas às de Angell, Alberto Torres afirmava
Os conflitos modernos já não eram entre as nações, e sim “entre a em seu Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico (1911)
democracia e a autocracia, ou entre o socialismo e o individualismo, que “o ideal, que não se confunde com a utopia, não é senão o
a reação e o progresso” (ANGELL, 2002, p. 164-165). Incapazes extremo indefinido do futuro que há de ser alcançado por uma
de perceberem a nova realidade saída da globalização, pretensos linha reta, tendo por ponto de partida um sentimento humano”
“realistas” como Treitschke, Nietzsche e Le Bon veiculavam o (TORRES, 1911, p. 558). O presidente do instituto, o conde de
discurso xenófobo e protecionista responsável pelo “atraso das Afonso Celso, respondeu-lhe à maneira de Treitschke: a natureza
nossas ideias políticas em comparação com as outras noções que humana era irremediavelmente belicosa e a paz no mundo só
orientam atualmente a nossa vida” (ANGELL, 2002, p. 170). Nos poderia ser mantida por uma contínua preparação para a guerra
Estados Unidos, era o pragmatismo de John Dewey que combatia (TORRES, 1911, p.596-601). Durante a Grande Guerra de 1914-
os “espíritos reacionários”. Em Liberdade e Cultura (1939), ele 1918, seria a vez de Rui Barbosa defender a posição idealista em O
afirmava que somente de espíritos “interessados na realidade” se Dever dos Neutros (1916): “As doutrinas precedem aos atos. Os fatos
poderia esperar iluminação e direção (DEWEY, 2008, p. 32-133). materiais emanam dos fatos morais” (BARBOSA, 1984, p. 49). O
Em outras palavras, os intitulados “realistas” é que eram “irrea- Brasil deveria seguir o exemplo de idealismo fornecido pelos EUA
listas”. A concepção estática do homem como animal eternamente e pela Grã-Bretanha, vanguarda histórica de todos os “povos pací-
guerreiro e belicoso dos “realistas” é que era, para os progressistas, ficos, as nações liberais, os governos democratizados” (BARBOSA,
uma “grande ilusão”: 1984, p. 60). Por sua vez, em O idealismo na evolução política do
Império e da República (1922), Oliveira Vianna acusaria o cosmo-
A alegada estabilidade da estrutura da natureza humana não politismo liberal de Rui de ignorar “as condições reais e orgânicas
explica, em coisa nenhuma, as diferenças que marcam uma das sociedades que pretendem reger e dirigir”. Contra o idealismo
tribo, uma família ou um povo de outros; o que implica em utópico típico dos liberais brasileiros, Vianna propunha resgatar o
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 13 14 Christian Edward Cyril Lynch

idealismo orgânico dos estadistas conservadores do Império, como uma câmara escura” (MARX, 1968, p. 36). Ele também recorria ao
Vasconcelos e Uruguai, alimentado somente da “realidade, que só conceito de alienação, igualmente ressemantizado, para explicar o
se apoia na experiência, que só se orienta pela observação do povo conformismo das classes exploradas com sua situação de ignorância
e do meio” (VIANNA, 1922, p. 14-17). Como se percebe, a posição e passividade, justificada pela “ideologia burguesa” do liberalismo,
de Oliveira Vianna no Brasil era análoga àquela de Meinecke na entendido como “idealismo”. Único sistema de pensamento capaz de
Alemanha: o parâmetro da realidade política de uma nacionalidade expressar fielmente a “realidade”, só o marxismo poderia emancipar
ainda balbuciante não poderia ser o da mera liberdade individual, os trabalhadores oprimidos, denunciando a ideologia, cancelando a
entendida em uma perspectiva cosmopolita, e sim de um Estado alienação e despertando-os para o programa comunista. Desnudar
forte, comandado por elites patrióticas e esclarecidas. a realidade da luta de classes ao longo da História era indispensável
para a promoção do avanço igualitário: “Sem antagonismo não
De Marx a Mannheim: idealismo e realismo na formação do há progresso. Esta é a lei que a civilização seguiu até a atualidade”
“paradigma científico” de política (1870-1970) (MARX, 1975, p. 115).
A aceleração do processo de secularização, de desenvolvimento O primeiro esboço da “nova” ciência política que se tornaria
científico e de ampliação do eleitorado solapou no último terço hegemônica no século 20 surgiu na Itália, todavia. A partir de
do século XIX a credibilidade do paradigma metafísico da ciência uma pretensão de neutralidade que se opunha tanto ao idealismo
política. Contra a concepção idealista da política liberal, correntes quanto ao materialismo, ela pretendia estudar o fenômeno político
cientificistas como o marxismo, o positivismo e o evolucionismo sem se confundir com qualquer das ideologias em pugna. Gaetano
reivindicavam a descoberta de um “motor da história” de caráter Mosca, Vilfredo Pareto e Roberto Michels, mas também Gustave
exclusivamente materialista: a luta de classes; o progresso da ciência Le Bon e Georges Sorel, viriam a ser conhecidos como elitistas por
e a luta pela vida, respectivamente (HAYES, 1941, p. 50). Das três desmentirem como irrealizáveis os ideais democráticos de auto-
correntes, aquela que fez mais estragos no casco do liberalismo foi governo. A história e a observação dos fatos em todos os tempos
o marxismo. Em A ideologia alemã (1846), Marx sustentava que, e quadrantes demonstravam que a maioria da população sempre
ao contrário do que pressupunha Hegel, o mundo real não era havia sido dominada por uma minoria, formada por uma elite ou
determinado pelas ideias, mas pelas relações materiais decorrentes classe dirigente (BOBBIO, 2002, p. 17). Os elitistas postulavam a
dos diferentes modos de produção: “Os pensamentos dominantes estabilidade da natureza moral dos homens, que se orientavam antes
não passam da expressão ideológica das relações materiais domi- por seus instintos e paixões, do que pelo conhecimento objetivo da
nantes” (MARX, 1975, p. 92). O materialismo histórico apontava realidade. A sociedade era conflituosa; e a política feita de coerção e
a realidade política como um produto do antagonismo entre as violência. As ideologias serviam apenas para encobrir a ambição de
classes dominantes e dominadas, derivado do monopólio privado poder8. Em seus Elementos de ciência política (1896), Mosca deno-
dos bens de produção. Mas não havia correspondência automática minava fórmulas políticas ao “conjunto de doutrinas e crenças que
entre a realidade material e as representações daquela realidade.
Marx ressemantizou então o conceito de ideologia, empregando-o 8 “Apesar das nuances e até importantes distâncias nas visões políticas desses três pensadores, todos
convergem na descrição da democracia liberal como regime utópico cuja rotina institucional não
para designar o conjunto de crenças ou representações social- guarda vínculos com sua motivação ideal. Nessa perspectiva, as ideias de soberania popular, igualdade
mente incongruentes: “Como em toda a ideologia, os homens e política e sufrágio universal compõem um universo abstrato de discurso, sem sustentação real. Na
percepção elitista, todo exercício da política, alheio às suas justificativas formais, está fadado a formação
seus vínculos aparecem diante de nós de ponta-cabeça, como em de pequenos grupos que subordinam a maior parte da população.” (HOLANDA, 2011, p. 10)
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 15 16 Christian Edward Cyril Lynch

dão fundamento moral ao poder dos dirigentes”, periodicamente a qual a ciência desvelaria a “realidade” do universo ao cabo do
modificadas para acompanhar as alterações na forma e na organi- processo histórico. Mesclando descrição e normatividade, as filoso-
zação da classe política (MOSCA, 1987, p. 12). Em seu Tratado de fias materialistas da história transformavam “ciência” em teologia,
sociologia geral (1916), Pareto também explicava as crenças como e “crítica”, em revelação (ROTH; SCHLUCHTER, 1984, p. 50-51).
derivações voltadas para justificar publicamente ações cuja moti- Uma vez que a ciência social não podia conferir sentido à sociedade
vação, na verdade, radicava nos resíduos, isto é, os instintos mais de um mundo secularizado, ela deveria limitar-se a compreender
reprováveis do homem (PARETO, 1984, p. 66). Na impossibili- as motivações subjetivas da ação, que eram orientadas pelos valores
dade de desfazer as ilusões ideológicas que moviam as massas, os presentes na cultura. Essa sociologia compreensiva somente poderia
governantes deveriam instrumentalizá-las para preservar a ordem ser praticada de forma especializada, por profissionais treinados
– premissa que traía as posições conservadoras dos elitistas, ocultas para investigar problemas e orientados por um ideal de neutra-
sob o véu de “realismo científico”: lidade axiológica. Desvinculada primeiro da religião e, agora, da
ciência, a política ficava na dependência exclusiva das decisões
A estabilidade social é de tal maneira benéfica que para tomadas pelos homens, a partir de seus próprios juízos morais. Sem
mantê-la vale bem a pena recorrer à ajuda de ideais fantásticos deuses, os líderes deveriam a assumir sua responsabilidade pelos
desta ou daquela teologia – entre outras, a teologia do sufrágio destinos dos povos. Em A política como vocação (1919), Weber
universal – e resignar-se a aguentar certas desvantagens. apostava no “idealismo prático” ao recomendar aos estadistas que
Antes que seja aconselhável perturbar a paz pública, tais guardassem “o senso das proporções”, adequando suas convicções
desvantagens devem ter-se tornado muito sérias; e já que às circunstâncias concretas da ação: “A ética da convicção e a ética
os seres humanos são guiados não pelos raciocínios céticos da responsabilidade não se contrapõem, mas se completam e, em
da ciência, mas por ‘fés vivas’ expressadas em ideais, teorias conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode
como o direito divino dos reis, a legitimidade das oligarquias, aspirar à vocação política” (WEBER, 2006, p. 122).
do ‘Povo’, da ‘maioria’, das assembleias legislativas, e outras De modo análogo ao “realismo” elitista, Weber reconhecia haver
coisas como estas, podem ser úteis até certo ponto, e de fato em todas as formas de governo uma minoria que dominava pela
provaram ser, não importa quão absurdas possam ser do coação e por mecanismos tradicionais, carismáticos ou racionais-
ponto de vista científico (PARETO, 1966, p. 88). -legais de legitimação ideológica. Em Economia e sociedade (1922),
ele reconhecia igualmente que a política não tinha fins altruístas,
O rechaço do paradigma metafísico de política como “ingênuo” sendo ela essencialmente “a luta, a conquista de aliados e de um
ou idealista, por parte de marxistas, positivistas e elitistas, serviu séquito voluntário” (WEBER, 1999, p. 562). O Estado era o aparato
assim para a emergência de outro, que encontraria sua expressão que monopolizava o exercício legítimo da violência para a minoria
mais característica na sociologia do conhecimento de Max Weber., de dominadores. Enquanto a burocracia uniformizava cada vez
Sua teoria da modernidade, entendida como produto de uma racio- mais a sociedade e o mercado, a democracia perigava converter-se
nalização decorrente da secularização do mundo, rompia a antiga em uma ditadura fundada na emotividade das massas. Mas, ao
unidade cognoscitiva entre natureza e cultura, que havia sido preser- contrário de Pareto e Mosca, Weber não acreditava que a democracia
vada pelo cientificismo de Comte, Marx e Spencer. Para Weber, fosse uma “ilusão”. Ela era produto de um longo processo de racio-
era ilusória a perspectiva teleológica dos materialistas, segundo nalização que, trazendo a reboque o desenvolvimento científico,
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 17 18 Christian Edward Cyril Lynch

capitalista e burocrático, criara um mundo novo, individualista de “intelectual público”. O cientista abandonava então sua torre de
e igualitário. Encarada no quadro mais amplo de todas aquelas marfim de forma consciente para tecer considerações públicas, na
mudanças sociais e econômicas, a democracia era antes de tudo um qualidade de cidadão. Na nota preliminar de Parlamento e governo
enigma a ser decifrado. Ele se perguntava: “Quais as consequências na Alemanha reorganizada (1918), Weber advertia: “Este tratado
desta democratização progressiva dos meios e das organizações da político [...] não se reveste da autoridade de uma ciência, pois as
luta política para as formas de atividade política?” (WEBER, 1999, últimas posições tomadas pela vontade não podem ser decididas
p. 570). A política era a arena das disputas ideológicas, a que a por meios científicos” (WEBER, 2014, p. 167). Respaldado por seu
ciência deveria se manter o tanto quanto possível neutra por meio lugar de fala profissional, o cidadão Weber criticava todas as ideolo-
de rigoroso controle metodológico. Daí se extraiam dois corolários. gias presentes no debate alemão de seu tempo. O conservadorismo
Em primeiro lugar, não era mais possível admitir a existência de parecia cego às mudanças sociais, confessando sua impotência
uma ideologia “realista” do ponto de vista científico, condenando-se no contexto democrático ao clamar por novo tutor para o país. O
as demais como “idealistas”. Em segundo lugar, não cabia à ciência liberalismo havia se tornado anacrônico, incapaz de se livrar de
valorar as doutrinas, seja de modo negativo ou positivo. Socia- sua metafísica burguesa. O socialismo revolucionário padecia de
lismo, liberalismo e conservadorismo eram visões de mundo que óbvios resquícios teológicos e escatológicos. Por outro lado, Weber
orientavam a ação política em uma sociedade de massas, que não admitia a produtividade do nacionalismo moderado e do socia-
podia existir sem crenças. Assim, embora o socialismo marxista, do lismo revisionista na organização de uma “democracia bem orde-
ponto de vista científico, parecesse uma “fé escatológica econômica” nada”9. Embora o seu “realismo” não acreditasse na possibilidade de
que prometia “salvação do domínio de classe”, do ponto de vista erradicação do conflito ideológico, ele acreditava na educação para
democrático, ela era perfeitamente compreensível. Nem por isso, a democracia e no bom funcionamento das instituições parlamen-
em Sufrágio e democracia na Alemanha (1917), Weber deixava de tares para moderar o radicalismo e favorecer soluções negociadas.
expressar o seu desgosto por “literatos”, cujas atitudes moralistas Como intelectual público, portanto, Weber defendia implicita-
compunham “um quadro tão repugnante de falta de objetividade, mente um liberalismo novo, “realista”, porque livre de seus antigos
de ausência de juízo político e de cegueira deliberadamente culti- compromissos oligárquicos e plutocráticos. A despeito de sua justi-
vada perante as realidades” (WEBER, 2014, p. 138). ficação originalmente metafísica, o liberalismo não era uma relíquia
A distinção entre ciência e ideologia não significava que o acadê- pré-moderna, mas uma consequência da racionalização da vida,
mico não pudesse interagir com o mundo público. Havia duas formas que deveria se adequar no quadro novo de uma democracia social
possíveis de interação consequente. A primeira era atuando como à sociedade de massas e ao capitalismo industrial (MAYER, 1985,
técnico. Se a ciência não servia para a tomada de decisões de caráter
ético, ela poderia contribuir para elevar a qualidade das escolhas, 9 Essa posição é dedutível da análise sistemática de diversas passagens de seus textos: “Sempre existirão
oferecendo ao político um quadro mais objetivo das circunstâncias partidos ‘conservadores’, porque sempre haverá pessoas com fortes tendências autoritárias” (WEBER,
2014, p. 137). “As realidades implacáveis do presente cuidarão para que as árvores da democracia
em que elas teriam lugar. A ciência política poderia assim desesti- antiquada, negativa e que do Estado só exige a liberdade não cresçam até alcançar o céu” (WEBER,
mular decisões irresponsáveis, motivadas por ideologias radicais 2014, p. 137). Ele também denunciava, no campo da esquerda radical, “o romanticismo da greve
geral e o romanticismo da esperança revolucionária” (WEBER, 2014, p. 376). Mas reconhecia que o
e irrealistas, em função da sua inviabilidade, inoportunidade ou problema do socialismo estava menos em si do que em torná-lo compatível com a democracia
inconveniência. A segunda forma de interação responsável do cien- liberal: “Não há nenhuma maneira de eliminar do mundo a convicção e as esperanças socialistas.
Todo operariado sempre será em algum sentido socialista. A pergunta é se esse socialismo será
tista com a política, por sua vez, passava pela assunção da condição de um tipo tolerável, do ponto de vista dos interesses do Estado” (WEBER, 2014, p. 382).
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 19 20 Christian Edward Cyril Lynch

p. 41; ELIAESON, 2000, p. 132). A sua preocupação em resguardar delas estivesse vinculada a uma classe (aristocracia, burguesia e
o catálogo de liberdades individuais contra a burocracia do Estado proletariado, respectivamente), nenhuma seria inteiramente verda-
era constante: deira. Crítico das perspectivas normativas, Mannheim apostava
na constituição de uma “ciência política” situada em um “centro
Como será possível salvar ainda pelo menos alguns restos dinâmico” comprometido com o ideal possível da neutralidade
de uma liberdade ‘individual’ de ação em algum sentido, axiológica. Uma intelligentsia, menos contaminada por condicio-
considerando essa tendência superpoderosa rumo à namentos de classe, seria capaz de estudar em seus respectivos
burocratização? Pois, afinal de contas, é um grande contextos sociais os diferentes conhecimentos políticos represen-
autoengano a ideia de que hoje possamos viver sem essas tados por cada ideologia. Ela deveria
conquistas dos tempos dos ‘direitos humanos’ (nem a pessoa
mais conservadora pode) (WEBER, 2014, p. 204). [...] ultrapassar a discussão sem reconhecimento dos
vários antagonistas, assumindo como seu tema explícito de
Ao contrário dos elitistas, Weber encarava os políticos profis- investigação, a descoberta das origens dos desentendimentos
sionais como instrumentos de estruturação democrática. A sobre- parciais que nunca seriam percebidos pelos disputantes,
vivência da democracia liberal dependia de um sistema partidário devido à sua preocupação com o assunto imediato em debate
e parlamentar competitivo, capaz de selecionar políticos de quali- (MANNHEIM, 1972, p. 303).
dade: “Somente a liderança ordenada das massas por parte de polí-
ticos responsáveis pode romper a dominação desordenada pela rua Embora nenhuma ideologia política fosse “realista” ou “idea-
e a liderança de demagogos fortuitos” (WEBER, 2014, p. 160). As lista” do ponto de vista científico, todas eram legítimas como objeto
instituições da “democracia bem ordenada” filtravam os conflitos, de estudo. Entre elas, Mannheim identificava ainda mentalidades
adotando regras que impeliam os atores a resolver suas desavenças, utópicas, desejosas de romper com o estado de coisas; e outras,
não pelo radicalismo, mas por soluções de compromisso: “Toda a ideológicas, justificadoras do status quo. A distinção entre a ciência
política radicalmente orientada em geral é a capacidade de perder praticada por uma intelligentsia profissional (ciência) e o conheci-
oportunidades” (WEBER, 2014, p. 83). Na prática, a conciliação mento político veiculado pelos atores (ideologia) permitiria a estes
entre as éticas da responsabilidade e da convicção apregoada por últimos se aperceberem de suas diferenças no registro da recipro-
Weber renovava, para o contexto democrático e industrial, o elogio cidade, educando-os para uma cultura de tolerância que reduzisse
da prudência como “justo meio” feito por liberais que também o radicalismo irracionalista identificado com o comunismo e o
enxergavam a política no cruzamento da história e cultura – fascismo. A moderação aclimataria uma democracia social, justo
Tocqueville, notadamente. meio em qual Mannheim também depositaria suas esperanças em
Karl Mannheim se encarregaria de levar adiante as orientações de sua grande obra póstuma: Liberdade, poder e planificação democrá-
Weber, especialmente nas relações envolvendo ciência e ideologia. tica (1950). A perspectiva de Mannheim foi recepcionada no meio
Na edição definitiva de Ideologia e utopia (1936), ele explicava a de fala inglesa quando, emigrado na Inglaterra, ele publicou uma
ideologia como um produto da sociedade de classes. A política era o versão de Ideologia e Utopia adaptada ao público anglo-americano.
campo de disputas entre ideologias concorrentes: conservadorismo, O longo prefácio escrito por Louis Wirth, professor da Universi-
liberalismo humanitário e socialismo comunista. Embora cada uma dade de Chicago, fez a mediação entre as tradições sociológicas
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 21 22 Christian Edward Cyril Lynch

alemã – culturalista e historicista – e a anglo-americana - pragma- história intelectual ideologicamente comprometidos: o liberal, o
tista e utilitarista (MAZUCATO, 2014, p. 158). nacionalista e o marxista. 

Liberalismo, nacionalismo e marxismo: três modelos de O “modelo liberal” de história das ideias políticas
história intelectual A obra de Mannheim impactou diversas obras no meio acadê-
Conforme já examinado, o rechaço do paradigma “metafísico” mico da ciência política. A primeira delas foi provavelmente o
de política surgido à época do Iluminismo como “ingênuo” ou clássico de Edward H. Carr, Vinte anos de crise 1919-1939 (1939),
“idealista”, por parte de marxistas, positivistas e elitistas, serviu que buscava reestruturar o estudo da teoria política a partir do
para a emergência de outro que, em diálogo crítico com aquelas novo paradigma científico de ciência social. Tendo como exemplo
três correntes, encontrou sua expressão mais acabada na sociologia negativo de utopismo liberal A grande ilusão, de Norman Angell,
do conhecimento de Max Weber. Entretanto, enquanto Mannheim o internacionalista britânico explicitava seu objetivo da seguinte
a desenvolvia para criar o seu próprio modelo de estudo das ideo- maneira: “A ciência política deve ser baseada no reconhecimento
logias políticas, outros dois ex-alunos do autor de Economia e da interdependência da teoria e da prática, que só pode ser atingida
Sociedade reinterpretaram criticamente a sua proposta de ciência através da combinação de utopia e da realidade” (CARR, 2001, p.
social, recusando a pretendida possibilidade de disjunção entre 20). Ele fundava assim abertamente sua pretensão de cientificidade
fatos e valores. Se Carl Schmitt reinterpretou o paradigma científico na sociologia compreensiva de Mannheim, recorrendo também ao
de Weber pelo lado da direita, recorrendo às doutrinas da razão “realismo” de Reinhold Niebuhr, que nos Estados Unidos criticava
de Estado, do absolutismo e do reacionarismo, Gyorgy Lukács o o idealismo de progressistas como John Dewey. Em seu livro, Carr
releu pelo lado da esquerda, apelando ao socialismo marxista de aplicava, ao estudo da ciência política, pares conceituais antitéticos
matriz hegeliana. Recusaram a caraterização do fenômeno político expressivos de abordagens utópicas e realistas: utopia e realidade;
a partir de uma matriz pluralista, que comportasse a existência de teoria e prática; radicalismo e conservadorismo; idealismo e prag-
pelo menos três ideologias ou correntes de opinião. Preferiram matismo; internacionalismo e nacionalismo. A corrente utópica ou
outra, que descrevesse o conflito político como reduzido a dois idealista, representada por personalidades de tendência liberal e
polos irredutivelmente antagônicos, fossem amigos e inimigos em radical - como o Abade de Saint-Pierre, Kant, Saint-Simon, Comte
torno da questão nacional, ou proletariado e burguesia no quadro e Woodrow Wilson -, seria movida por uma visão universalista e
da questão social. Essa concepção de política como um conflito abstrata da política. Ela acreditava contribuir para uma ordem mais
intenso, permanente e inarredável entre dois campos levaria à justa, forçando a aceleração de um processo histórico marcado pelo
produção de modelos de história intelectual que, a despeito de seu desenvolvimento moral. Já a corrente realista, integrada por conser-
propalado “realismo” científico, acabaram por reproduzir a visão vadores como Maquiavel, Hobbes e Clausewitz, alimentaria uma
dicotômica do paradigma metafísico, ao dividir o espectro político visão empírica da política condicionada pelo passado. Para eles,
entre idealistas ou realistas. Depois da Segunda Guerra Mundial, a história obedecia a leis de causalidade orientadas pela luta pelo
vários liberais também voltaram a defender doutrinariamente o poder, que não poderiam ser modificadas por nenhuma vontade
liberalismo como a única tradição que “verdadeiramente” corres- particular. Carr criticava ambas as abordagens: o idealismo incorria
pondia à “realidade” histórica da política. Emergiram, assim, no na pecha de ingenuidade por negligenciar os meios práticos condu-
seio do novo paradigma científico de política, três modelos de centes ao aprimoramento da ordem, ao passo que, ao descrer nas
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 23 24 Christian Edward Cyril Lynch

potencialidades de progresso embutidas no processo histórico, No entanto, de acordo com Aron, o “realismo” da prudência não se
o realismo redundava em completa esterilidade moral. Ele reco- opunha ao “idealismo”, compreendido como a aspiração a um futuro
mendava, pois, um meio termo, capaz de colocar a epistemologia melhor, mas tão somente à “ilusão idealista, seja ela jurídica ou
científica – realista – a serviço do ideal – utópico – de justiça: ideológica” (ARON, 2002, p. 710). Havia espaço, portanto, para um
idealismo moderado, realista, expressivo de uma aspiração legítima
Coerção e consciência, inimizade e boa vontade, de “respeito às ideias, a aspiração a valores elevados, a preocupação
autoafirmação e autossubordinação, estão presentes em toda com as obrigações contraídas” (ARON, 2002, p. 737). Tanto quanto
a sociedade política. O Estado é construído a partir desses Carr, Raymond Aron era, desse modo, fiel ao ideal weberiano de
dois aspectos conflitantes da natureza humana. Utopia e uma ciência social localizada naquele “centro dinâmico” descrito
realidade, o ideal e a instituição, moral e poder, estão, desde por Mannheim, que evitava simultaneamente a utopia e a ideologia,
o início, inextrincavelmente combinados nele […] O utópico, e que saudava a democracia social como o horizonte natural do
que sonha ser possível eliminar a autoafirmação da política, liberalismo moderno. Esta era uma posição que, a despeito de seus
e basear um sistema filosófico unicamente na moral, está tão rechaços metafísicos, coincidia ideologicamente com o “idealismo
distante dos fatos quanto o realista, que crê que o altruísmo prático” de liberais oitocentistas como Tocqueville e Paul Janet. Era
seja uma ilusão, e que toda ação política seja baseada no o que Aron reconhecia, ao definir as ideologias políticas em O ópio
interesse próprio [...]. Não se pode divorciar política de poder dos intelectuais (1955):
(CARR, 2001, p. 129).
As ideologias políticas misturam sempre, com maior ou menor
Na França, era Raymond Aron que advogava a causa do “realismo” felicidade, julgamentos de fato e de valor. Elas exprimem uma
em Paz e Guerra entre as Nações (1962). Responsável pela introdução perspectiva sobre o mundo e uma vontade voltada para o
de Weber na França e pelo resgate de Tocqueville do esquecimento, futuro. Elas não recaem diretamente sob a alternativa do
Aron acreditava que “a necessidade do egoísmo nacional deriva do verdadeiro e do falso, nem do gosto ou das cores. A filosofia
‘estado de natureza’ ou ‘estado natural’ que prevaleceria no rela- última e a hierarquia de preferência pedem antes o diálogo
cionamento entre as unidades políticas soberanas” (ARON, 2002, do que a prova e a refutação; a análise dos fatos atuais ou
p. 705). Ele denunciava assim os males da “ilusão idealista” oito- a antecipação dos fatos vindouros se transforma com o
centista, que, supostamente, ignorava o primado político da força. desenrolar da história e o conhecimento que adquirimos.
Tratava-se de uma ilusão epistemológica, manifestada tanto por um A experiência corrige progressivamente as construções
“idealismo ideológico”, satisfeito com a crença de que a ideia fosse doutrinárias (ARON, 1955, p. 246).
o critério exclusivo e suficiente da definição do justo e do injusto,
quanto por um “idealismo jurídico”, que superestimava o papel do Contudo, diante da exigência ética de defender a democracia
direito na tomada de decisões (ARON, 2002, p. 706). Em contrapar- contra o bolchevismo e o fascismo depois da Segunda Grande
tida, os realistas se conduziam pela “virtude suprema do estadista”: Guerra, diversos liberais – especialmente radicados na Grã-Bretanha
a prudência, a qual dispensava o principialismo e o espírito de e nos Estados Unidos – retomaram uma abordagem doutrinária da
sistema. O estadista orientava-se “em função da singularidade da história das ideias políticas, organizada a partir da dicotomia idea-
situação e dos dados concretos disponíveis” (ARON, 2002, p. 709). lismo versus realismo. Exemplo dessa retomada foi a conferência
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 25 26 Christian Edward Cyril Lynch

Absolutismo e relativismo na filosofia e na política (1948), da autoria extraídos da filosofia e da economia política. A oposição entre um
do cientista político e jurista austríaco Hans Kelsen. O seu ponto “realismo” liberal e um “idealismo” totalitário atravessa obras de
de partida era a suposta constância, na história da filosofia política, ambos, as mais paradigmáticas tendo sido O caminho da servidão
do “antagonismo entre o absolutismo e o relativismo filosófico” (1944) e A sociedade aberta e seus inimigos (1945). O antilibera-
(KELSEN, 2000, p. 347). Identificado com o pensamento de Platão, lismo não passava de uma “grande utopia”, que reivindicava para si
o primeiro era definido como “a concepção metafísica da existência um “espúrio realismo e até cinismo” (HAYEK, 1990, p. 32)
de uma realidade absoluta, i.e., uma realidade que existe indepen- No Brasil da Guerra Fria, a deriva normativa dos liberais também
dentemente do conhecimento humano”. O absolutismo filosófico levaria à elaboração de histórias intelectuais comprometidas com a
resultava na “personificação do absoluto, sua representação como “realidade política” da liberdade humana, muitas das quais redi-
o criador onipotente do universo cuja vontade é a lei da natureza gidas por expoentes do partido liberal da época, a União Democrá-
assim como do homem” (KELSEN, 2000, p. 348). Esse tipo de filo- tica Nacional (UDN). “Realistas” eram todos aqueles pensadores e
sofia desembocava na justificação do absolutismo político, gênero políticos que reconheciam a liberdade como a essência mesma do
que abrangia o despotismo, a ditadura e a autocracia, ancoradas juri- regime democrático. Já os críticos do liberalismo, fossem socialistas
dicamente no conceito de soberania absoluta. Já o relativismo filo- ou conservadores, apareciam caracteristicamente etiquetados como
sófico, cujo principal epistemólogo teria sido Kant, fundamentava a “idealistas”. Em sua História do direito constitucional brasileiro
liberdade e a igualdade como base da vida social e encontrava a sua (1954), o jurista liberal Waldemar Ferreira acusava o ex-presidente
contrapartida política na doutrina liberal. Enquanto os absolutistas Getúlio Vargas do “propósito malsão de introduzir no país o idea-
eram “idealistas”, porque metafísicos, sofistas e anticientíficos, os lismo” de inspiração totalitária durante a ditadura do Estado Novo
relativistas seriam os verdadeiros “realistas”, por reconhecerem o (FERREIRA, 1954, p. 111). Em Formação constitucional do Brasil
pressuposto da liberdade humana. Em Fundamentos da democracia (1960), Afonso Arinos de Melo Franco condenava ideólogos auto-
(1955), Kelsen defenderia a dimensão realista do liberalismo contra ritários como Francisco Campos por sua obstinação “na defesa de
o decano do conservadorismo norte-americano, Reinhold Niebuhr. soluções jurídicas irrealistas, que contrariavam a evolução da nossa
O mantra conservador de que liberais ignoravam a “natureza” História” (FRANCO, 1960, p. 151). A dicotomia estava implicita-
humana não passava de uma caricatura: mente presente também na obra de outro liberal, Raymundo Faoro.
Em Existe um pensamento político brasileiro? (1987), Faoro susten-
Há muitos representantes do liberalismo, sobretudo tava que o liberalismo seria a expressão ideológica de uma moder-
economistas liberais, que levam plenamente em conta nidade irrealizada no Brasil, devido à opressão de sua sociedade por
as tendências egoístas do homem e, em sua confiança na um “estamento burocrático” de matriz ibérica, autoritário e patri-
natureza humana, nenhum dos mais importantes filósofos monialista. O “outro” do “verdadeiro” liberalismo, aqui ausente,
liberais chegou ao ponto de considerar supérflua uma ordem existiria na forma do pseudoliberalismo conservador, que teria
coercitiva (KELSEN, 2000, p. 232). supostamente prevalecido no curso de toda a história nacional: “Os
liberais do ciclo emancipador foram banidos da história das liber-
De fato, intelectuais como Karl Popper e Friedrich Hayek também dades, qualificados de exaltados, de extremados, de quiméricos,
faziam então a defesa doutrinária do liberalismo como expressão de teóricos e metafísicos” (FAORO, 1987, p. 54). Na medida em que a
“realismo”, substituindo seus fundamentos metafísicos por outros, “realidade” moderna faltaria ao país, o Brasil não teria liberalismo:
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 27 28 Christian Edward Cyril Lynch

só um simulacro de pensamento político. Dedicado a Raymond construção institucional da democracia brasileira (1999), e Tribunos,
Aron, O liberalismo antigo e moderno (1991) de José Guilherme profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século XX (2014),
Merquior já admitia ser “um livro liberal sobre liberalismo, escrito Bolívar compararia a atuação dos intelectuais brasileiros com a
por alguém que acredita no liberalismo” (MERQUIOR, 2014, p. dos norte-americanos e europeus, em seus respectivos contextos
37). Com o fim da Guerra Fria, o liberalismo voltara a ser veiculado nacionais. Enquanto o liberalismo era definido por ele como a
por seus corifeus como o horizonte único e insuperável da reali- ideologia “do capitalismo e da democracia”, o “antiliberalismo”
dade histórica: “A nossa sociedade permanece caracterizada por compreenderia o fascismo e o comunismo, com “suas respectivas
uma dialética continua, embora sempre em transformação, entre ramificações e derivações” (LAMOUNIER, 2014, p. 17). Marcadas
o crescimento da liberdade e o ímpeto sem direção a uma maior tanto pelo holismo epistemológico e moral quanto pelo autorita-
igualdade” (MERQUIOR, 2014, p. 264). rismo, as doutrinas antiliberais esmeravam-se na divinização do
Elaborada durante a sua pós-graduação nos Estados Unidos, à Estado, do líder e do partido. A identificação da democracia apenas
luz das teorias de Juan Linz, a interpretação do pensamento político com o liberalismo arquetípico o levaria a incluir até intelectuais
brasileiro formulada por Bolívar Lamounier reflete de modo fiel de tendência social-democrata, como Hélio Jaguaribe, Guerreiro
esse modelo liberal de história intelectual, crítico do autoritarismo Ramos e Celso Furtado, no rol daqueles inclinados ao autoritarismo
ibérico e do ideário nacionalista (LYNCH; CASSIMIRO, 2018, (LYNCH; CASSIMIRO, 2018).
p. 5-6). Em Formação de um pensamento autoritário na Primeira
República (1977), Bolívar propugnava a existência de duas famílias O “modelo nacionalista” de história das ideias políticas
intelectuais no período republicano: a autoritária e a liberal. Auto- Aluno de Weber no Seminário de Munique, Carl Schmitt foi o
ritários como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Francisco Campos principal responsável pela variante do paradigma de ciência política
e Azevedo Amaral se guiariam por uma “ideologia de Estado” novecentista que tomava a nação representada pelo Estado como
que se contrapunha àquela autenticamente liberal e própria da parâmetro da realidade política. Ele concordava com o diagnóstico
democracia, que tinha o mercado por matriz organizadora. Despre- weberiano relativo ao advento da modernidade como produto de
zando as condições históricas que levavam ao amadurecimento do um processo de secularização, que trouxera o capitalismo, a ciência
sistema representativo, os autoritários preferiam que a sociedade, e a burocratização. Concordava, igualmente, com a tese de que as
considerada imatura, fosse tutelada por um Estado tecnocrático, ideologias eram resquícios secularizados de formas religiosas de
apresentado como superior a ela do ponto de vista étnico-cognitivo intelecção do mundo. Entretanto, orientado por um modo católico
(LAMOUNIER, 1981, p. 244). Os verdadeiros “realistas” no Brasil ultramontano de pensar a política, Schmitt criticava aquela mesma
teriam sido liberais como Tavares Bastos, Rui Barbosa e Sérgio modernidade como incompatível com a essência do político, cuja
Buarque de Holanda, que apostavam na construção da demo- característica maior residia na capacidade que teria o soberano
cracia a partir do amadurecimento de suas instituições e de sua de decidir de maneira incontestável, sempre que estivessem em
cultura. Bolívar se dizia surpreso com a ingenuidade dos pretensos jogo valores transcendentes para a comunidade. Em Catolicismo
“realistas”, cujo autoritarismo acreditava poder centralizar um país romano e forma política (1923), a política era definida por Schmitt
como Brasil, marcado pelo baixo grau de urbanização e por inca- como luta: “O antagonismo está no universalmente humano”
pacidades estruturais de transportes e de arrecadação (LAMOU- (SCHMITT, 1998, p. 44). Ao contrário de Weber, porém, não acre-
NIER, 1981, p. 241). Em escritos posteriores, como Rui Barbosa e a ditava nem desejava que o antagonismo pudesse ser domesticado
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 29 30 Christian Edward Cyril Lynch

pelo racionalismo liberal. A dimensão teológica da ideologia estava nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas
associada aos “mitos” criadores da identidade nacional: “Nenhum a própria regra vive da exceção. Na exceção, a força da vida
sistema político pode sobreviver sequer a uma geração com simples real rompe a crosta de uma mecânica cristalizada da repetição
técnica e afirmação do poder. Ao político pertence a ideia, pois não (SCHMITT, 1996, p. 94).
há nenhuma política sem autoridade e nenhuma autoridade sem
um ethos de convicção” (SCHMITT, 1998, p. 31). Para Schmitt, Schmitt reconhecia que, em uma sociedade secularizada, não era
o liberalismo não passava, também, de uma teologia protestante possível reproduzir a admirável teologia política do Antigo Regime,
de índole romântica, abstrata, voltada para esvaziar a dimensão cujas doutrinas do catolicismo, da razão de Estado e do absolutismo
concreta e agonística da política, pela consagração do primado das exprimiam com fidelidade a “realidade política”. Por outro lado, na
relações econômicas, do pluralismo partidário, do federalismo, da conjuntura de crise do liberalismo entre as duas guerras mundiais, ele
separação de poderes e dos freios e contrapesos10. Mas eram tenta- acreditava na possibilidade de recuperar e atualizar aquela teologia
tivas baldadas. A “essência” da política não estava na rotina da lega- para organizar uma verdadeira democracia de massas. A unidade e
lidade, imanente, neutra, burocrática e impessoal, mas nas situações a homogeneidade do corpo político, outrora garantida pela Igreja e
de exceção, que suspendiam aquela rotina e revelavam a “verdade pelo príncipe, poderiam ser restauradas por um Estado totalitário,
do poder” em toda a sua inteireza. Como os milagres divinos e os que rompesse com o anacrônico sistema parlamentar pluriparti-
golpes de Estado, a decretação da ditadura revelava, para Schmitt, dário do liberalismo. Em Situação intelectual do sistema parlamentar
o “verdadeiro soberano” e o caráter transcendente e existencial da atual (1923), Schmitt estabelecia uma distinção completa entre
política. Era o que ele explicava em Teologia política (1922): liberalismo e democracia: “A crença no sistema parlamentar, num
government by discussion, pertence ao mundo intelectual do libe-
A filosofia da vida concreta não pode subtrair-se à exceção ralismo. Não pertence à democracia. O liberalismo e a democracia
e ao caso extremo, mas deve interessar-se por ele. Para ela, devem ser separados” (SCHMITT, 1996, p. 10). Livre da ideologia
a exceção pode ser mais importante do que a regra, não por burguesa, a democracia “verdadeira” se expressava por intermédio
causa da ironia romântica do paradoxo, mas porque deve ser de uma ditadura cesarista, cujo líder fosse aclamado pelas multidões.
encarada com toda seriedade de uma visão mais profunda do Por isso, Schmitt considerava positivamente o fascismo de Musso-
que as generalizações dos repetidores medíocres. A exceção lini como a expressão viva do “princípio da realidade política” na
é mais interessante que o caso normal. O normal não prova contemporaneidade (SCHMITT, 1996, p. 70). O “realismo político”
passava pela afirmação da irredutível singularidade cultural de
10 As relações entre Weber e Schmitt foram esmiuçadas por Kjell Engelbrekt: “Schmitt ativamente se cada nação e na satisfação de suas necessidades existenciais, através
apresentava na década de 1920 como herdeiro de Weber para obter credibilidade acadêmica. Em
seu capítulo de 1923 [de O conceito do político] demonstra que desde o começo o jovem professor de da mobilização de mitos: “O mito mais forte está no sentimento
direito se apropriou do trabalho de Weber, embora ao mesmo tempo solapasse a noção weberiana nacional” (SCHMITT, 1996, p. 69). Daí porque o pacifismo era uma
de liberalismo. Não seria um exagero dizer que depois ele seletivamente admitia ou ignorava os
argumentos weberianos conforme a sua conveniência [...]. Havia várias coisas que ele não compreendia impossibilidade. Renovando o antigo “realismo” de Clausewitz e
nos trabalhos de Weber, o que levou a muitas descaracterizações e, além disso, sua metodologia e Treitschke, Schmitt defendia ser a guerra a expressão necessária da
filosofia da ciência diretamente contradiziam as próprias convicções de Weber. Durante a maior parte
do tempo, Weber se apresentava acima de tudo como um cientista que orientava suas pesquisas luta pela identidade e existência das nações, e que a noção cosmopo-
a partir de problemas, e que ocasionalmente intervinha nos negócios públicos, enquanto Schmitt lita de uma única humanidade não passava de “um ideal sem ativi-
aparece como um acadêmico ideologicamente orientado, que recorria à história, à filosofia e à
ciência para avançar as políticas públicas de sua preferência” (ENGELBREKT, 2009, p. 680). dade política” (SCHMITT, 1992, p. 73). Representada pelo Estado,
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 31 32 Christian Edward Cyril Lynch

a nação se tornara a personagem central da “realidade”, devendo e reacionários, como De Maistre, De Bonald e Donoso Cortès.
ser apreendida como unidade particular, homogênea e indivisível, Porque acreditavam na natureza problemática e corrompida dos
rompidas as neutralizações operadas pelas tentativas de autonomi- homens, eram esses os escritores que teriam efetivamente logrado
zação da sociedade civil e do mercado pelos liberais. Era como ele discernir a “essência” da política:
explicava na sua Teoria da Constituição (1928):
Como eles [os realistas] não perdem jamais de vista o fato
Nação significa, frente ao conceito geral de povo, um povo concreto, existencial, de um inimigo possível, estes pensadores
individualizado pela consciência política de si mesmo. políticos fazem frequentemente prova de uma espécie de
Diversos elementos podem cooperar para a unidade da realismo próprio a amedrontar os seres humanos ansiosos
Nação e a consciência dela: língua comum, comunidade por segurança (SCHMITT, 1992, p. 110).
de destinos históricos, tradições e recordações, metas e
esperanças políticas comuns. [...]. Um Estado democrático Se a capacidade de distinguir entre o amigo e o inimigo era a
que encontra seus pressupostos de sua democracia na prova de uma “teoria política lúcida”, para Schmitt, sua incapaci-
homogeneidade de seus cidadãos, se corresponde com o dade ou recusa era sintomática de declínio político: “A realidade
chamado princípio da nacionalidade, segundo o qual uma concreta da existência política não é comandada por hierarquias
Nação forma um Estado e um Estado encerra dentro de si abstratas ou por um jogo de normas; ao contrário, não são nunca
uma Nação (SCHMITT, 1966, p. 268). senão homens ou grupos concretos que dominam outros homens
ou grupos concretos” (SCHMITT, 1992, p. 118). A partir daí ressur-
A história das ideias políticas desempenhava papel crucial na giam as bases de uma história nacionalista das ideias políticas, à
construção teórica de Schmitt. Em O conceito do político (1927), ele maneira daquela empreendida pelo jovem Meinecke, adaptada,
agrupava os clássicos em duas linhagens antagônicas. A primeira porém, ao paradigma “científico” da ciência política novecentista,
era composta por “idealistas” ou “normativistas”. Eram aqui encai- crítico da “metafísica” associada ao liberalismo.
xados liberais como Locke, Montesquieu, Kant, Constant, Guizot, Nos Estados Unidos, o novo “realismo” de fundo schmittiano
Mill, Tocqueville e Kelsen, que teriam trabalhado pela impossível teve de aclimatar-se a uma cultura política muito diversa da alemã,
despolitização da política pelo direito e pelo mercado a título de na qual era impossível romper completamente com o liberalismo. O
regenerar o homem. O liberalismo não passava de uma mera “ideo- expoente do conservadorismo norte-americano da década de 1930
logia” no sentido marxista da expressão, cujo fim era o de encobrir era o teólogo Reinhold Niebuhr que, em Homem moral e sociedade
a realidade política para melhor defender o status quo. Socialistas imoral (1932), apontava os limites opostos pela natureza humana
como Marx e Kautsky também entravam na categoria de idealistas, à pretensão dos progressistas de modificá-la. A objetividade moral
embora em menor grau, por admitirem uma concepção agônica da seria impossível no âmbito coletivo, porque cada nação ou classe
política (trabalhadores versus burguesia), passível de superação por manifestava os próprios interesses por uma ideologia particular. Ele
recurso a uma ditadura (a do proletariado). Já a segunda família denunciava assim a vacuidade do idealismo de Kant e Dewey, para
intelectual de clássicos da política era integrada pelos “realistas” ou quem a educação poderia redimir o mundo: “O movimento liberal
“decisionistas”. A ela pertenciam teóricos da razão de Estado, como tanto religioso como secular parece ignorar a diferença básica entre
Maquiavel e Naudé; absolutistas, como Bodin, Hobbes e Bossuet; moralidade dos indivíduos e a moralidade das coletividades, sejam
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 33 34 Christian Edward Cyril Lynch

raças, classes ou nações” (NIEBUHR, 1960, p. IX). Tendo em vista mal maior, deixando de lado as abstrações para se guiar somente
que a essência egoísta e conflitiva do homem não era passível de pelos “precedentes históricos” (MORGENTHAU, 2003, p. 4). A
modificação pela razão ou pela moral, a ordem social precisaria história da teoria política se resumiria a uma “crônica da contenda
sempre recorrer à pressão e à coerção (RICE, 1993). O “realismo” entre duas escolas doutrinárias que diferem fundamentalmente em
de Niebuhr foi transportado para a Ciência Política no começo da suas concepções da natureza do homem, da sociedade e da política”.
década seguinte por James Burnham, autor de Os maquiavelianos: Aqui ele seguia em linhas gerais a tipologia de linhagens estabele-
defensores da liberdade (1943). O livro visava à apologia acadêmica cida por Schmitt em O conceito do político. A primeira, utópica ou
dos chamados “elitistas”: Mosca, Pareto, Michels e Sorel. Movido idealista, acreditava que “uma determinada ordem política, racional
por uma “intensa e dominante paixão pela verdade”, Maquiavel era e moral, por ser derivada de princípios abstratos válidos universal-
apresentado como o fundador da linhagem do realismo político. mente, pode ser alcançada nas condições atuais e de pronto”. Ela
Contrariando a filosofia normativa de seu tempo, ele teria lançado as pressuporia “a retidão inerente e a maleabilidade infinita da natureza
bases de uma “verdadeira” ciência política, vista como pura “ciência humana” e atribuiria as deficiências, irracionalidade e imoralidade
do poder”, objetiva e passível de validação pelo recurso a exemplos da política ao anacronismo das instituições, à má-fé de indivíduos
extraídos da história (BURNHAM, 1943, p. 53). Os elitistas italianos ou à ignorância, males que poderiam ser corrigidos por diversos
somente teriam seguido as pegadas do ilustre predecessor floren- meios. A segunda escola – a realista, que era a dele – considerava
tino, alcançando os mesmos excelentes resultados na modernidade. “que o mundo, imperfeito como é do ponto de vista racional, resulta
Na prática, a consagração da literatura “elitista” por Burnham servia do encontro de forças inerentes à natureza humana” (MORGEN-
para validar “cientificamente” as acusações de Niebuhr ao caráter THAU, 2003, p. 3). Ao discutir a condição do intelectual e o dilema
supostamente ingênuo do liberalismo, confirmando a premissa de moral da política em O declínio da política democrática (1962),
que a liberdade americana dependia de uma visão conservadora depois das usuais homenagens a Niebuhr, Morgenthau recriminava
da política: “Através dos maquiavelianos, comecei a compreender a teoria política liberal por se ocupar unicamente do efêmero, ao
de modo mais verdadeiro aquilo que eu já sentia havia muito: que invés de ater-se ao “sentido da realidade” do eterno: “Os dilemas
apenas renunciando a todas as ideologias poderíamos começar a moral da história são existenciais. Eles podem ser mitigados, mas
ver o mundo e o homem” (BURNHAM, 1943, p. VIII). não resolvidos” (MORGENTHAU, 1962, p. 14-15). Como Burnham
Foi a essa cultura política liberal que teve de se adaptar um antigo antes dele, Morgenthau promovia uma conjunção de equivalên-
discípulo de Carl Schmitt: o jurista alemão Hans Morgenthau. cias típicas do elitismo italiano ao longo de sua exposição teórica,
Em seu processo de adaptação aos Estados Unidos, na condição que faziam do “realismo político” um sinônimo, tanto de “ciência
de emigrado, ele verteu em odre novo o vinho velho trazido da política”, quanto de “conservadorismo”.
Alemanha e entronizou Reinhold Niebuhr como sua nova refe- No Brasil, a polarização entre realismo e idealismo explodiu
rência em matéria de “realismo político” (JUTERSONKE, 2010, p. depois da Revolução de 1930. O grande inimigo era o idealismo
30; PICHLER, 1998, p. 186). Em A política entre as nações (1948), cosmopolita dos liberais. Conforme esclarecia Almir de Andrade
Morgenthau afirmava que a política seria atravessada por um em Força, cultura e liberdade (1938), a literatura universalista que
“conflito contínuo” de interesses contrariados, sendo vã a pretensão repudiava a ideia de pátria como prejudicial à paz e à fraternidade
de erradicá-lo com vistas a uma ordem pacífica. O objetivo da humana estava “mais próxima da metafísica do que da ciência”,
ciência política não era orientar a ação para o bem, e sim evitar o sendo “uma deplorável ilusão acerca da realidade humana”
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 35 36 Christian Edward Cyril Lynch

(ANDRADE, 1938, p. 30). Em O Estado autoritário e a realidade Ramos afirmava na sua Introdução crítica à sociologia brasileira
nacional (1938), Azevedo Amaral pretendia examinar o “conjunto (1955) que, naquele momento histórico, o nacionalismo era um
da realidade nacional” a fim de demonstrar, por uma análise “cientí- importante elemento de sustentação do esforço desenvolvimentista.
fica”, que a democracia não passava de uma “farsa caricata” fora dos A industrialização modernizaria a atrasada realidade brasileira,
países anglófonos (AMARAL, 1981, p. 43). Em O Estado Nacional: retirando-a de seu estado de alienação cultural em relação aos países
sua estrutura, seu conteúdo ideológico (1938), o principal divulgador cêntricos. Cada nação possuía uma ciência social que refletia seus
da obra de Schmitt, Francisco Campos, sustentava que o caráter problemas e tradições intelectuais no caminho da modernidade.
“realista” da nova Constituição só incomodava “os românticos e os Como o Brasil não deveria ser diferente, revisitar seu pensamento
ideólogos, que nunca ficam advertidos de que uma condição essen- social era procedimento preliminar à constituição de uma ciência
cial da vida é nunca perder contato com a terra” (CAMPOS, 2001, social a ele adaptada. Nesse quadro, parecia-lhe que a sociologia
p. 99). Em 1949, Oliveira Vianna retomaria sua famosa dicotomia política de Oliveira Vianna, “na parte que diz respeito às nossas
em Instituições políticas brasileiras. Apresentando a ciência política elites, é, certamente, o máximo de objetividade que, até agora, os
como o conhecimento e a prática do direito público orientados estudos sociológicos atingiram, entre nós” (RAMOS, 1996, p. 79). O
pela sociologia, ele reprovava o “idealismo utópico” para fazer a seu mapeamento preliminar do pensamento sociológico brasileiro
apologia do nacionalismo político, entendido como uma “meto- detectava duas linhagens intelectuais principais. A primeira era por
dologia objetiva ou realista” destinada a “construir, senão uma ele denominada de “enlatada” ou “consular”, porque, importada do
ciência política, pelo menos uma pragmática política para o nosso Atlântico Norte, ignorava que “os meios e os resultados do trabalho
Brasil” (VIANNA, 1974, p. 65). Miguel Reale e Manoel Gonçalves sociológico são condicionados por estruturas nacionais ou regio-
Ferreira Filho renovariam vinte anos depois o mesmo argumento, nais. Afirma-se a eficácia imanente das transplantações”. A segunda
para estimular os generais a converterem a ditadura militar em uma corrente, “embora aproveitando a experiência acumulada do
“democracia limitada”. Em A democracia possível (1972), Ferreira trabalho sociológico universal, está procurando servir-se dele como
Filho sublinhava que o “realismo político” exigia “imaginar insti- instrumento de autoconhecimento e desenvolvimento das estru-
tuições que facilitem a realização do ideal democrático, segundo as turas nacionais e regionais” (RAMOS, 1996, p. 108) – a qual serviria
verdades da ciência política, desde que adaptadas ao momento e ao de base a uma “sociologia autêntica”, referida à realidade nacional.
meio em que vive cada povo” (FERREIRA FILHO, 1972, p. 78-79). Ao se debruçar, depois, sobre o pensamento político brasileiro, ele
Em Da revolução à democracia (1977), Reale também argumentava identificaria a corrente “enlatada” com a ideologia conservadora, e
que o “caráter objetivo” da ciência política aconselhava uma “orien- a nacionalista, com a progressista. Tendo se referido por diferentes
tação pragmática e realista quanto à solução do problema essencial nomes à dicotomia idealistas vs. realistas ao longo dos anos, ele
da participação dos indivíduos nos benefícios da riqueza social”. Ela fixou-se afinal nas expressões hipercorretos e pragmático-críticos:
deveria superar “os valores políticos do liberalismo clássico”, sem se
deixar “enredar pelos preconceitos e mitos inerentes ao marxismo” Hipercorreção é característica do posicionamento de
(REALE, 1977, p. 126). intelectuais que, por força de sua identificação ambivalente
Mas a proposta teórica de Oliveira Vianna também foi apro- com o elemento nacional, tendem a atribuir ideais e
priada à esquerda, por intelectuais de inclinação social-democrata. teorias importadas eficácia direta na configuração de
Pioneiro na leitura de Weber e Mannheim no Brasil, Guerreiro comportamentos sociais, assim negligenciando os seus
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 37 38 Christian Edward Cyril Lynch

condicionamentos contextuais. O pragmatismo crítico, ao forma dicotômica por seus intelectuais desde pelo menos o começo
invés, caracteriza o posicionamento de intelectuais que, por da República, ele afirmava em A Práxis Liberal no Brasil o predo-
força de sua identificação positiva com o elemento nacional e mínio de duas tradições intelectuais no seu pensamento político. A
de sua sensibilidade às condições contextuais típicas do meio primeira era composta pelos liberais doutrinários, que acreditariam
em que vivem, tendem mais a se servir das ideias e teorias que “a reforma político-institucional no Brasil, como em qualquer
importadas do que a admitir a sua exemplaridade abstrata lugar, seguir-se-ia naturalmente à formulação e execução de regras
(RAMOS, 1983, p. 533). gerais adequadas”. Acreditavam na eficácia de fórmulas universais
independentemente das particularidades de cada país, incorrendo
Oliveira Vianna e Guerreiro Ramos serviram de fontes imediatas em uma “reificação institucional”. Eram, assim, “idealistas”. Já os
para a interpretação do pensamento político brasileiro desenvol- autoritários instrumentais, como o visconde de Uruguai, Alberto
vida por Wanderley Guilherme dos Santos na virada de 1960-1970. Torres e Oliveira Vianna, também desejavam, a exemplo dos liberais,
A sua perspectiva de história do pensamento político se aproxi- que o Brasil se tornasse uma democracia liberal, mas acreditavam
mava bastante de autores “realistas” como James Burnham, lido por que sua sociedade era atrasada demais para atingir aquele fim por
ele durante sua pós-graduação nos Estados Unidos11. Wanderley suas próprias pernas. Por isso, preferiam atribuir ao Estado o papel
chamava atenção para o problema do autoritarismo em uma socie- de “fixar as metas pelas quais a sociedade deveria lutar, porque a
dade que, percebendo-se atrasada e periférica, exigia um esforço própria sociedade não seria capaz de fixá-las, tendo em vista a maxi-
prévio de construção nacional para o estabelecimento da demo- mização do progresso nacional” (SANTOS, 1978, p. 106). Embora
cracia. No contexto periférico, a questão do nacionalismo e do não aderisse abertamente a nenhuma das duas posições, tecendo
papel do Estado transcendia em muito o papel conservador que críticas a ambas, a forma pejorativa como Wanderley denunciava
lhe era atribuído nos países centrais 12. Depois de destacar que a o caráter alienado e elitista do liberalismo brasileiro e elogiava
cultura política brasileira fora atravessada por conflitos descritos de Oliveira Vianna e Guerreiro Ramos denunciavam suas preferências.
Tanto mais que sua pesquisa se iniciara com a intenção de detectar
11 Responsável pela cadeira de Teoria Política no antigo IUPERJ (atual IESP-UERJ) nas décadas de 1970
e 1980, o programa criado por Wanderley Guilherme seguia a tese de Burnham de que com os as origens do pensamento do ISEB, instituto ao qual ele próprio
elitistas começava o que se poderia chamar propriamente de ciência política moderna. Daí porque pertencera. Para Wanderley, os autoritários instrumentais teriam
o seu estudo encerrava o módulo de Teoria Política I, dedicada aos “clássicos”, e iniciava o de Teoria
Política II, dedicada aos “modernos” (LYNCH, 2020, p. 40). conseguido pensar os dilemas da modernização periférica a partir
12 A inclusão de Guerreiro Ramos e Wanderley Guilherme no modelo nacionalista, a despeito de sua de considerações concretas da sociedade brasileira (LYNCH, 2013).
posição progressista à maneira de Weber, nada tem de contraditória. Em primeiro lugar, porque o
ideário social-democrata não é incompatível com um nacionalismo moderado (MAYER, 1985, p. 37). Foram, assim, “realistas”.
Em segundo lugar, porque, no contexto periférico, a ideologia nacionalista perde frequentemente
os contornos conservadores, como explica Raymond Aron: “As ideologias são suscetíveis de adquirir,
em um quadro diferente, o significado aposta seu significado original. […]. Nos países da América O modelo marxista de história das ideias políticas
do Sul ou da Europa Oriental, se produziu mais de uma vez a mesma combinação de meios Conforme já referido, o socialismo científico de Marx e Engels
autoritários e objetivos socialmente progressistas. À imitação da Europa, foram criados parlamentos
e introduzidos o direito de sufrágio, mas as massas eram iletradas, e as classes médias, débeis: as apresentava-se na segunda metade do século XIX como o único
instituições liberais foram inevitavelmente monopolizadas pelos feudais ou pelos plutocratas, os sistema intelectual capaz de desvelar a “realidade” da exploração
grandes proprietários e seus aliados no Estado […]. Valores políticos e valores sociais e econômicos
da esquerda, que marcaram as etapas sucessivas do desenvolvimento e estão em vias de conciliar-se dos trabalhadores, oferecendo-lhes um instrumento cognitivo defi-
finalmente na Europa, em outros lugares permanecem radicalmente dissociados” (ARON, 1955, nitivo para combater a opressão. Os “idealismos” burguês e aristo-
p. 23-24). Esta última observação ajuda a explicar a designação de “autoritária instrumental”, por
Wanderley, de certa linhagem do pensamento brasileiro. crático (i.e., o liberalismo e o conservadorismo) eram considerados
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 39 40 Christian Edward Cyril Lynch

ideológicos porque negavam o fundamento material das relações e incluindo “sucessores” como Kautsky, Bernstein, Luxemburgo,
sociais e incutiam nas classes dominadas uma falsa consciência que Lenin, Trotsky, entre outros.
naturalizava a exploração, recorrendo a premissas falaciosas, tais O modelo marxista mais profícuo para se pensar historicamente
como a da desigualdade natural da humanidade ou a da igualdade as relações entre realidade e intelecção foi elaborado por outro
formal como a única possível. Cabia à revolução socialista romper aluno de Weber: Gyorgy Lukács. Embora tenha depois renegado
com um passado intelectual dominado pela ideologia e pela falsa a sociologia compreensiva como um “idealismo subjetivo”
consciência da classe trabalhadora. A tradição dos mortos pesava (LICHTHEIM, 1970, p. 167), nem por isso ele deixou de com ela
como um pesadelo na cabeça dos vivos: “A revolução social do século dialogar, elaborando uma solução marxista-historicista à questão
XX não pode extrair a sua poesia do passado, mas apenas do futuro. da objetividade científico-social. O materialismo histórico não
Não pode começar consigo mesma antes de ter rejeitado todas seria apenas um instrumento de conhecimento da realidade, mas
as superstições em relação ao passado” (MARX, 1975, p. 57-58). também uma ação voltada para a modificar. Lukács resgatou a
Nesse contexto marxista de ruptura com os modos anteriores de dialética hegeliana para criar uma síntese superadora dos impasses
pensamento, teológicos e metafísicos, não fazia o menor sentido entre ciência e política. Em História e consciência de classe: estudos
uma história das ideias políticas pretensamente desinteressada. sobre a dialética marxista (1920), ele apresentava a realidade como
Ela deslocaria a atenção da infraestrutura para a superestrutura; resultado de uma prática (praxis) social cuja dinâmica resolvia
adotaria um enfoque metafísico e não materialista; e daria prota- naturalmente a antítese entre o pensamento (o ideal) e realidade
gonismo a indivíduos e não a classes. Para o socialismo científico, (o real). A sua visão do fenômeno ideológico também era mais
uma história intelectual só serviria para fazer a crítica do caráter sofisticada do que a do marxismo vulgar: uma vez que todas as
mistificador das ideologias criadas para justificar a exploração dos formas de pensamento seriam socialmente determinadas, cada
trabalhadores, conforme os sucessivos modos de produção econô- classe social teria sua própria concepção de ciência. As ideologias
mica. Era o que sugeria Plekhânov em Da concepção materialista de eram as “consciências possíveis” da realidade de cada uma delas.
história (1897): Nem por isso elas estariam todas no mesmo plano qualitativo:
algumas permitiriam compreender o real da forma mais efetiva do
A história das ideologias explica-se, em grande parte, pelo que as demais. Era o caso da consciência da classe trabalhadora que,
surgimento, a modificação e a destruição das associações de uma vez liberada pelo marxismo dos condicionamentos ideoló-
ideias sob a influência do surgimento, da modificação e da gicos, lograria enxergar a realidade, na qualidade de classe universal:
destruição de determinadas combinações de forças sociais “Ciência e consciência coincidem para o proletariado porque ele é,
(PLEKHÂNOV, 1956, p. 96). ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do conhecimento: o conhe-
cimento de si significa ao mesmo tempo o conhecimento correto
Nesse quadro, uma história marxista das ideias, de caráter de toda a sociedade” (LÖWY, 1987, p. 124). Daí a diferença entre
exemplar, só poderia ser uma história intelectual do próprio Lukács e Mannheim: ao invés de um centro dinâmico ocupado por
marxismo. Ela deveria ser redigida como uma narrativa de caráter intelectuais desvinculados de sua condição de classe, o único “lugar
teleológico que desembocasse no materialismo histórico de Marx e social” de onde se poderia observar o mundo de modo menos
Engels, admitindo “precursores” como Babeuf, Owen e Proudhon ideologicamente comprometido seria aquele ocupado pela classe
trabalhadora:
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 41 42 Christian Edward Cyril Lynch

A ciência burguesa – de maneira consciente ou inconsciente, O investigador sempre deve esforçar-se por encontrar a
ingênua ou sublimada – considera os fenômenos sociais sempre realidade total e concreta, ainda que não saiba poder alcançá-la
do ponto de vista do indivíduo. E o ponto de vista do indivíduo a não ser de uma maneira parcial e limitada, e para isso
não pode levar a nenhuma totalidade [...]. A totalidade só pode esforçar-se por integrar no estudo dos fatos sociais a história
ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma das teorias a respeito desses fatos, assim por ligar o estudo
totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele dos fatos à sua localização histórica e à sua infraestrutura
tem que pensar o objeto como totalidade. Somente as classes econômica e social (GOLDMANN, 1976, p. 28).
representam esse ponto de vista da totalidade como sujeito da
sociedade moderna (LUKÁCS, 2003, p. 106-107). Não só a ideologia passava a designar antes um estilo social de
pensamento do que uma mera ilusão, como permitia incorporar
A empreitada epistemológica lukacsiana foi continuada na França outros autores ao cânone de clássicos, além dos marxistas13. Nem
por Lucien Goldmann. Em Ciências humanas e filosofia (1952), por isso o historiador das ideias deveria deixar de expor critica-
Goldmann explicava o fenômeno ideológico como expressivo da mente as visões de mundo dos agentes, distinguindo os progres-
tendência humana de modelar pensamentos e ações conforme os sistas dos conservadores:
valores de seu próprio grupo social. Os valores classistas agiriam
sobre a estrutura cognitiva dos pensadores, condicionando sua No domínio das ciências humanas, o desejo de compreender
percepção dos fatos. Algumas classes sociais, porém, estariam a realidade exige do investigador a coragem de romper
mais próximas de conseguir ver a realidade do que as outras. Era o com os preconceitos conscientes ou implícitos, de ter
caso dos trabalhadores, cujo lugar social, instruído pelo marxismo sempre presente que a ciência não se faz da perspectiva
e representado do Partido, permitia “o máximo de consciência deste ou daquele particular, nem duma posição exterior e
possível”. A intenção de Mannheim de atribuir aquele “lugar social” pretensamente objetiva, que supõe a eternidade das estruturas
aos intelectuais era condenada por “transformar a verdade em fundamentais da sociedade atual, mas da perspectiva da
privilégio de um certo número de diplomados e especialistas em liberdade e da comunidade humana, a perspectiva do homem
sociologia” (GOLDMANN, 1976, p. 52). Na elaboração de uma e da humanidade (GOLDMANN, 1976, p. 65).
história intelectual marxista, Goldmann sublinhava a necessidade
de apreender a singularidade do acontecimento histórico em toda A história marxista das ideias se difundiu no Brasil na década de
a sua totalidade concreta. A história deveria ser compreendida 1950, com o propósito de denunciar o caráter alegadamente retró-
como uma sucessão de estruturas, entendidas como totalidades grado e autoritário de sua sociedade, escamoteado pelas ideologias
históricas transitórias expressivas de uma realidade em permanente de classe. A “história das ideias” só podia existir como “história das
reconstrução. Pensada à maneira de Hegel, uma história marxista ideologias”. Foram exemplares desta perspectiva: O caráter nacional
da ideias deveria estudar os grandes intelectuais (os “gênios”) que brasileiro: história de uma ideologia, de Dante Moreira Leite (1954);
houvessem exprimido de modo sistemático e coerente (“total”) as
13 “Enquanto obra conceitual, um sistema filosófico pode e deve ser julgado no plano do conceito e
“consciências possíveis” de suas classes, desenvolvidas no interior de sua adequação à verdade. Mas, enquanto expressão global de uma visão de mundo, filosofias
de suas respectivas estruturas: ‘falsas’ podem ter certo valor graças à sua coerência interna e ao fato de representarem certa
maneira de pensar e de sentir a vida e o universo, e por isso mesmo, um dos aspectos essenciais
da realidade humana” (LÖWY; NAIR, 2008, p. 52).
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 43 44 Christian Edward Cyril Lynch

Ideologia do colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro, em dois polos básicos, um “conservador” e o outro, “progressista”.
de Nélson Werneck Sodré (1961) e Ideologia da Cultura Brasileira, No primeiro, estariam as linhagens por ele denominadas generica-
de Carlos Guilherme Mota (1977). Este último aspirava a denun- mente como “idealismos opostos e complementares” (i.e., o “consti-
ciar tudo o que se produzira “no sentido de mascarar, justificar, tucional” e o “orgânico”), marcados pelo seu caráter “conservador”
desviar ou diagnosticar os processos vividos” (MOTA, 1977, p. 50). ou “aristocrático”. No segundo polo, ficariam as outras duas linha-
A melhor interpretação marxista do pensamento político brasi- gens (i.e., o “radicalismo de classe média” e o “marxismo de matriz
leiro, porém, seria formulada pelo cientista político Gildo Marçal comunista”), marcadas pelo caráter “progressista” e “antiaristocrá-
Brandão em Linhagens do pensamento político brasileiro (2007). tico”. Enquanto o primeiro polo era referido pejorativamente como
Influenciada pelo marxismo hegeliano de Lukács e Goldmann, produto de um “fetiche”, o segundo elogiosamente considerado por
Gildo compreendia aquelas linhagens como consciências histori- sua abordagem “de esquerda”, marcada pela “inter e pela transdis-
camente determinadas, mas socialmente necessárias, ao menos em ciplinaridade” e pela capacidade de fornecer um “conhecimento
seu momento inicial de formulação (LYNCH; CHALOUB, 2021). totalizante” da realidade (BRANDÃO, 2007, p.158-162). Ao fim
As duas primeiras, elitistas ou antipopulares, teriam prevalecido e ao cabo, as linhagens políticas reapareciam agrupadas em dois
até o início da democratização do país na década de 1950: a do polos básicos: o primeiro, negativo e “idealista”, das ideologias
“idealismo orgânico” e a do “idealismo constitucional”. O idealismo conservadoras; e o segundo, positivo e “realista” das ideologias
orgânico corresponderia ao conservadorismo, que subordinava progressistas14.
“todo dever–ser à estreita métrica do existente, reduz o necessário
ao possível e este ao imediato, assume e transfigura a empiria” Considerações finais
(BRANDÃO, 2007, p. 146). Dessa corrente faziam parte Uruguai, Este artigo buscou, pela reconstituição das linhagens teóricas
Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral. Já o “idealismo dos intérpretes do pensamento político brasileiro, compreender os
constitucional” acreditava que os problemas eram antes políticos motivos pelos quais eles organizaram as suas tradições intelectuais
do que sociais e que o segredo da democracia estava na construção a partir de polos antagônicos ocupados por “idealistas” de um lado
institucional cumulativa. Dela fariam parte liberais como Tavares e “realistas” de outro, divergindo na caracterização de cada uma
Bastos, Joaquim Nabuco, André Rebouças e Rui Barbosa. Com delas. Tal divergência refletiria uma disputa mais ampla dentro
a massificação da política, teriam surgido duas outras linhagens, do campo da história do pensamento político, cada qual orien-
agora de caráter “progressista” e “antiaristocrático”: o “radicalismo tado por diferentes concepções da realidade e suas relações com
de classe média” (sugerido por Antonio Candido) e o “marxismo de a dimensão ética da vida social. Elas envolvem questões relativas
matriz comunista”. O primeiro seria um pensamento “socializante, às características da natureza humana (se boa ou má) e ao papel
quase sempre socialista, de matriz liberal, por vezes constituciona- auxiliar do conhecimento histórico na sua compreensão (relativa
lista”. Já o “materialismo histórico” ou “marxismo de matriz comu-
nista” buscava “a unidade entre, digamos, a infra e a superestrutura 14 Caso a pesquisa visasse a oferecer um painel mais amplo de interpretações do pensamento político
na explicação do social” (BRANDÃO, 2007, p. 37-38). brasileiro, certamente mencionaria, no campo do marxismo, a influência exercida por Antonio
Gramsci na ciência social de Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho.
Entretanto, a tentativa de Gildo Marçal de romper a estrutura Aplicada ao estudo dos autores do pensamento político brasileiro, essa perspectiva produziu
dicotômica na categorização das linhagens intelectuais ficava preju- uma bibliografia de grande interesse e qualidade, elaborada por acadêmicos como Marco Aurélio
Nogueira, Maria Alice Rezende de Carvalho, Rubem Barboza Filho e Milton Lahuerta (LYNCH, 2016,
dicada na medida em que ele admitia ser possível enquadrá-las p. 110-112). Este não foi, porém, o objetivo deste artigo.
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 45 46 Christian Edward Cyril Lynch

à perfectibilidade ou imutabilidade daquela natureza). A exigência as diferentes formas ideológicas de conhecimento (normativos),
generalizada por “realismo” decorreria de um paradigma “científico” em uma perspectiva pluralista, que não se limitava a opor “idea-
de ciência política estabelecido na primeira metade do século XX, listas” e “realistas”. Postos na defensiva, weberianos como Edward
derivada do imperativo de substituir o vigente no século anterior, Carr e Raymond Aron rejeitaram o estilo normativo oitocentista
detratado como “idealista” por sua fundamentação metafísica. A para argumentar dentro do novo paradigma “realista”. Isso não
adoção da oposição entre idealistas e realistas como critério de os impediu de defender as possibilidades éticas da política, apro-
triagem teórica serviria a dois fins: primeiro, para classificar as dife- ximando-se da tradição moderada de liberais oitocentistas como
rentes concepções de mundo oferecidas pelos clássicos da política; Montesquieu e Tocqueville (ou Nabuco, no caso brasileiro), que
segundo, para validá-las ou não do ponto de vista científico. Essa advogavam uma espécie de “idealismo prático” em matéria política.
suposição de que haveria métodos científicos ideologicamente mais É porque sua abordagem continuou comprometida com o libera-
bem equipados para enxergar a realidade política foi recepcionada lismo político, ainda que se tratasse de um liberalismo reformado,
pela ciência política por Oliveira Vianna e influiu sobre a orientação “realista”, porque despido de sua antiga metafísica e organizador de
das três principais interpretações do pensamento político nacional, uma democracia social regulada por instituições parlamentares e
elaboradas por Wanderley Guilherme dos Santos, Bolívar Lamou- políticos responsáveis.
nier e Gildo Marçal Brandão. Nem por isso instaurou-se o sonhado reino da cientificidade
Foram as diferenças entre os três intérpretes na identificação das em matéria de análise ou história das ideias políticas. Com o
linhagens intelectuais que motivaram a pesquisa aqui apresentada. começo da Guerra Fria, muitos liberais de extração filosófica, como
Os primeiros resultados revelaram que a dicotomia realismo versus Kelsen, Popper e Hayek, adotaram uma postura mais doutrinária
idealismo na organização da história da teoria política era bastante na defesa do liberalismo com o intuito de combater publicamente
anterior ao período entreguerras. Da mesma forma, o propalado as “ideologias do totalitarismo”. Mas o “novo” paradigma científico
“idealismo” do paradigma de ciência política vigente no século XIX, também serviu para que conservadores como Schmitt, Burnham
identificado com o liberalismo, não era alienado nem anticientífico, e Morgenthau vendessem como objetividade científica o próprio
se entendido em seus próprios termos. “Idealistas” como Angell, “realismo político” por eles identificado com a nação. Por sua vez,
Rui e Dewey não desconheciam a realidade: apenas não se confor- a exigência de realidade por parte do socialismo foi expressa pela
mavam com ela, desejando modificá-la a partir de críticas de ordem versão marxista de ciências sociais esboçada por Gyorgy Lukács e
moral. Nem por isso a dicotomia idealismo vs. realismo deixaria aprimorada por Goldmann. Ela reconhecia os condicionamentos
de comportar a possibilidade de um meio termo, na forma de um sociais dos estilos de pensamento, privilegiando a consciência do
idealismo prático ou realista como aquele sugerido por Tocqueville proletariado como instância máxima de consciência possível contra
e Paul Janet. Tendo feito da ciência oitocentista um espantalho as demais. O resultado foi o surgimento, na academia francesa,
de “idealismo”, todavia, o novo paradigma “científico” novecen- britânica e norte-americana, de três modelos de história intelec-
tista agitado inicialmente pelos socialistas, positivistas e elitistas tual, organizadas pela velha dicotomia “realismo” vs. “idealismo”: o
levantou a bandeira do “realismo” metodológico. Ele encontraria liberal; o nacionalista; e o marxista. Cada um deles adotava, como
a sua materialização mais bem-sucedida na ciência social de Max critério definidor do real, o valor que orientava sua visão de mundo
Weber, a partir da qual Mannheim desenvolveu uma proposta de – a liberdade contra o autoritarismo, a nação contra o cosmopoli-
ciência (descritiva) capaz de estudar, desde um “centro dinâmico”, tismo e a igualdade contra a opressão de classe. Suas narrativas de
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 47 48 Christian Edward Cyril Lynch

história do pensamento privilegiavam a linhagem ideológica de dividido em apenas duas tradições intelectuais: a nossa, verda-
seus autores, localizando-a no polo positivo que acessava o conhe- deira e boa, e a de nossos inimigos, falsa e má. Se os modelos de
cimento adequado e/ou desejável da realidade, e aglutinando as história intelectual são pelo menos três (o liberal, o nacionalista e o
demais no polo negativo, porque dela daria uma noção equivocada marxista), por aí já se infere a impropriedade de tratar das tradições
e/ou condenável. Esses três modelos de história intelectual se refle- como se fossem somente duas. A adoção de uma grade analítica
tiram, com maiores ou menores adaptações, nas interpretações do dicotômica, alimentada por interesses práticos de intervenção no
nosso pensamento político, deixadas por Wanderley Guilherme, debate público, por mais defensável que seja do ponto de vista
Bolívar Lamounier e Gildo Marçal. Não se trata aqui, obviamente, ético, pode produzir devastadores efeitos científicos. Ao reduzir
de diminuir o seu valor, porque suas interpretações foram muito artificialmente as hipóteses de pesquisa para predeterminar os
além da mera identificação e mapeamento de tradições intelec- resultados, ela esteriliza o potencial exploratório, inviabilizando
tuais. Ademais, as caracterizações das linhagens oferecem subsídios uma agenda consistente de investigações. É verdade que, até certo
preciosos para compreendê-las, tanto do ângulo de seus defensores, ponto, a influência da ideologia sobre o método é inevitável, porque
quanto de seus detratores. Assim, enquanto autoritarismo instru- a neutralidade absoluta é uma impossibilidade para quem está
mental (Wanderley), liberalismo (Bolívar) e marxismo de matriz enredado nas malhas do mundo social. Por outro lado, o reconhe-
comunista (Gildo) servem como descrições da autoimagem do cimento da ilusão cientificista não autoriza o estudioso a abdicar do
nacionalismo, do liberalismo e do marxismo, respectivamente, as ideal de objetividade como horizonte normativo. Daí a necessidade
descrições do que sejam liberalismo doutrinário (Wanderley), auto- de uma grade analítica mais complexa, capaz de contemplar os
ritarismo (Bolívar) e idealismos orgânico e constitucional (Gildo) são três gêneros ideológicos da modernidade – liberalismo, conser-
valiosas por indicarem o modo crítico por que seus adversários as vadorismo e socialismo –, bem como as suas diferentes espécies e
enxergam. nuances adquiridas na América Latina. Será possível, então, mini-
A existência de diferentes modelos de história intelectual é tão mizar a incidência, sobre a pesquisa, da famosa “lei de Helvécios”
ineliminável quanto as ideologias que os inspiram. Esse fato deve descrita por Machado de Assis, nas suas Histórias sem data (1884):
desestimular o estudioso da aspiração ingênua de um dia conseguir
reduzi-los a um único ou de impor o seu por meio de críticas ou Não sei se o leitor é da minha opinião; eu cuido que se pode
argumentos científicos que, por melhores que sejam, são impotentes avaliar um homem pelas suas simpatias históricas; tu serás
contra barreiras ideológicas. Mesmo assim não precisamos nos mais ou menos da família dos personagens que amares
contentar, no campo estritamente acadêmico das ciências sociais, deveras. Aplico assim aquela lei de Helvécios: “O grau de
com um padrão de apresentação e explicação das tradições intelec- espírito que nos deleita dá a medida do grau do espírito que
tuais em apenas dois polos antagônicos. Especialmente quando já possuímos” (ASSIS, 2004, p.79).
está claro que categorias como idealismo e realismo não remetem
a padrões científicos de análise, mas a estilos discursivos de argu-
mentação concorrentes, cada qual reivindicando congruência com Referências
uma “realidade” definida a partir de valores e critérios distintos. AMARAL, Azevedo. O Estado autoritário e a realidade nacional.
Acima de tudo, não é razoável supor que, em um mundo de cres- Brasília: Câmara dos Deputados, 1981. (Publicado originalmente
cente pluralidade e complexidade, o campo político esteja sempre em 1938).
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 49 50 Christian Edward Cyril Lynch

ASI – Anais do Senado do Império do Brasil. 7 out 1843. DEWEY, John. Essays, reviews, miscellany, and “Impressions of
ANDRADE, Almir de. Força, cultura e liberdade: origens históricas Soviet Rússia”. In: DEWEY, John. The later works, 1925-1953.
e tendências atuais da evolução política do Brasil. Rio de Janeiro: Carbondale: Southern Illinois University, 2008. v. 3: 1927-1928.
Editora José Olympio, 1938. DEWEY, John. Liberdade e cultura. Tradução de Eustáquio Duarte.
ANGELL, Norman. A grande ilusão. Tradução de Sérgio Bath. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1953.
Brasília: Editora UnB, 2002. (Publicado originalmente em 1910). ELIAESON, Sven. Constitutional cesarism: Weber’s politics in
ARON, Raymond. L’opium des intellectuels. Paris: Calmann-Lévy, their German context. In: TURNER, Stephen. The Cambridge
1955. companion to Weber. Cambridge: Cambridge University Press,
ARON, Raymond. Paz e guerra entre as nações. Prefácio de 2000, p. 131-148.
Antônio Paim. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, ENGELBREKT, Kyell. What Carl Schmitt picked up in Weber’s
2002. (Publicado originalmente em 1962). Seminar: a historical controversy revisited. European Legacy,
ASSIS, Joaquim Maria Machado de Assis. Histórias sem data. Rio de London, v. 14, n. 6, p. 667-684, 2009.
Janeiro, Editora Globo, 2004. (Publicado originalmente em 1884). FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro?
BARBOSA, Rui. Embaixada a Buenos Aires. Rio de Janeiro: Estudos Avançados, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 9-58, 1987.
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1984. FERREIRA, Waldemar. História do direito constitucional
BOBBIO, Norberto. Ensaio sobre ciência política na Itália. brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 1954.
Tradução de Maria Celeste F. Faria Marcondes. Brasília: Editora FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível.
UnB, 2002. São Paulo: Saraiva, 1972.
BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de direito constitucional
brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007. brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1960. v. 2: Formação
BURNHAM, James. The machiavellians: defenders of freedom. constitucional do Brasil.
Chicago: Gateway Edition, 1943. GOLDMANN, Lucien. O que é Sociologia? Tradução de Lupe
CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu Cotrim Garaude e José Arthur Giannotti. Rio de Janeiro: Editora
conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, 2001. (Publicado Difel, 1976.
originalmente em 1938). GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en Europe: depuis la
CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise 1919-1939: uma chute de l’Empire romain jusqu’à la Révolution Française. 6. ed.
introdução ao estudo das relações internacionais. Brasília: IRI, Paris: Perrin et Cie, Libraires-Éditeurs, 1855.
2001. (Publicado originalmente em 1939). HAYEK, Friedrich. O caminho da servidão. 5. ed. Tradução e
CARVALHO, José Murilo de. Duas ou três coisas que eu sei sobre revisão de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de
Wanderley. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, ano XVIII, n. Morais Ribeiro. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
71, p. 118-120, out./dez. 2015. HAYES, Carlton J. H. A generation of materialism (1871-1900).
CASTIGLIONE, Dario; HAMPSHER-MONK, Iain (ed.). The New York: Harper & Row, 1941.
history of political thought in national context. Cambridge: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução à história da
Cambridge University Press, 2001. filosofia. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 79, 2006.
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 51 52 Christian Edward Cyril Lynch

HOLANDA, Cristina Buarque de. Teoria das elites. Rio de Janeiro: LAMOUNIER, Bolívar. Tribunos, profetas e sacerdotes:
Zahar, 2011. intelectuais e ideologia no século XX. São Paulo: Companhia das
HUME, David. Ensaios morais, políticos e literários. In: BERKELEY, Letras, 2014.
George; HUME, David. Tratado sobre os princípios do LICHTHEIM, George. As ideias de Lukács. Tradução de Jamir
conhecimento humano; três diálogos entre Hilas e Filonous Martins. São Paulo: Cultrix, 1970.
em oposição aos céticos e ateus; investigação sobre o LÖWY, Michael. As aventuras do barão de Münchhausen:
entendimento humano; ensaios morais, políticos e literários. marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São
Traduções de Antônio Sérgio, Leonel Vallandro, João Paulo Paulo, Busca Vida, 1987.
Gomes Monteiro e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo: Editora LÖWY, Michael; NAIR, Sami. Lucien Goldmann ou A dialética
Abril, 1984. (Coleção Os Pensadores). da totalidade. Tradução de Wanda Caldeira Brandt. São Paulo:
JANET, Paul. Histoire de la science politique dans ses rapports Boitempo, 2008.
avec la morale. 2. ed.. Paris: Librairie Philosophique de Ladrange, LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudo sobre a
1872. t. 1. dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo:
JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JR., João. História dos conceitos: Martins Fontes, 2003.
dois momentos de um encontro intelectual. In: JASMIN, Marcelo LYNCH, Christian Edward Cyril (2016). Cartografia do pensamento
Gantus; FERES JR., João (org.). História dos conceitos: debates político brasileiro: conceito, história, abordagens. Rev. Bras.
e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Edições Loyola; Ciênc. Polít., [Online], n. 19, p. 75-119, 2016.
IUPERJ, 2006. p. 39-53. LYNCH, Christian Edward Cyril.  The institutionalization of
JUTERSONKE, Oliver. Morgenthau, law and realism. Cambridge: Brazilian political thought in the social sciences: Wanderley
Cambridge University Press, 2010. Guilherme dos Santos’ research revisited (1963-1978). Bras.
KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Ivone Castilho Political Sci. Rev., [Online], v.7, n. 3, p. 36-60, 2013. 
Benedetti, Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cippola e LYNCH, Christian Edward Cyril. Um pensador da democracia: a
Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ciência política de Wanderley Guilherme dos Santos. DADOS –
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 63, n. 1, p. 75-119,
Paulo: Editora Perspectiva, 1997. 2020.
LAMOUNIER, Bolívar. A representação política: a importância LYNCH, Christian Edward Cyril; CASSIMIRO, Paulo Henrique
de certos formalismos. In: LAMOUNIER, Bolívar; WEFFORT, Paschoeto.  Freedom through form: Bolívar Lamounier and
Francisco; BENEVIDES, Maria Vitória (org.). Direito, cidadania the liberal interpretation of Brazilian political thought. Bras.
e participação. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1981, p. 233-260 Political Sci. Rev., [Online],, v.12, n. 2, p. 1-28, 2018. 
LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político LYNCH, Christian Edward Cyril; CHALOUB, Jorge Gomes. “Um
autoritário na Primeira República: uma interpretação. In: projeto de pesquisa à esquerda”: Gildo Marçal Brandão e a
FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira. interpretação marxista do pensamento político brasileiro. 2021.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1974. p. 371-388. (t. III: O Brasil No prelo.
Republicano). MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de César
Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 53 54 Christian Edward Cyril Lynch

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de M. J. Goldwasser. PARETO, Vilfredo. As elites e uso da força na sociedade. In: SOUZA,
São Paulo: Martins Fontes, 2001. Amaury de (org.). Sociologia política. Rio de Janeiro: Zahar
MARX, Karl. Textos filosóficos. Tradução de Maria Flor Marques Editores, 1966, p. 51-70.
Simões. Lisboa: Editorial Estampa, 1975. PARETO, Vilfredo. Sociologia. Organização de José Albertino
MAYER, Jacob Peter. Max Weber e a política alemã: um estudo Rodrigues. Tradução de Ruy C. Cunha. São Paulo: Ática, 1984.
de sociologia política. Tradução de Ana Cândida Perez. Brasília: PICHLER, Hans-Karl. The godfathers of ‘truth’: Max Weber and
Editora UnB, 1985. Carl Schmitt in Morgenthau’s theory of power politics. Review
MAZUCATO, Thiago. Ideologia e utopia de Karl Mannheim: o of International Studies, Cambridge, v. 24, n. 2, p. 185-200, Apr.
autor e a obra. Prefácio de Vera Alves Cepeda. São Paulo: Ideias 1998.
& Letras, 2014. PLEKHÂNOV, G.. A concepção materialista de história & o papel
MEINECKE, Friedrich. Cosmopolitanism and the national do indivíduo na história. Rio de Janeiro: Editorial Vitória Ltda,
state. Translated by Robert B. Kimber. New Jersey: Princeton 1956.
University Press, 1970. RAMOS, Alberto Guerreiro. A crise do poder no Brasil (problemas
MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo antigo e moderno. da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar
Tradução de Henrique de Araujo Mesquita. 3.. ed. São Paulo: É Editores, 1961.
Realizações, 2014. RAMOS, Alberto Guerreiro. A inteligência brasileira na década de
MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo 1930. à luz da perspectiva de 1980. In: CPDOC-FGV. A revolução
poder e pela paz. Traduzida por Oswaldo Biato da edição revista de 30: seminário internacional. Brasília: Editora UnB, 1983. p.
por Kenneth W. Thompson. Prefácio de Ronaldo Sardenberg. 527-556. (Coleção Temas Brasileiros, v. 54).
Brasília: Editora, UnB, 2003. (Publicado originalmente em 1948). RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia
MOSCA, Gaetano. História das doutrinas políticas desde a brasileira. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1996. (Publicado
antiguidade. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. 6. originalmente em 1955).
ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987. REALE, Miguel. Da revolução à democracia. 2. ed. São Paulo:
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Editora Convívio, 1977.
Paulo: Ática, 1977. RICE, Daniel F. Reinhold Niebuhr and John Dewey: an American
NABUCO, Joaquim. Balmaceda. São Paulo: Editorial Progresso, Odissay. Albany: State University of New York Press, 1993.
1949. (Publicado originalmente em 1895). ROTH, Günther; SCHLUCHTER, Wolfgang. Max Weber’s vision
NABUCO, Joaquim. Escritos e discursos literários. Rio de Janeiro: of history: ethics and methods. Berkeley: University of California
Garnier, 1901. Press, 1984.
NABUCO, Joaquim. Um estadista do império. Rio de Janeiro, SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A imaginação política
Topbooks, 1997. (Publicado originalmente em 1897). brasileira: cinco ensaios de história intelectual. Prefácio e
NAUDÉ, Gabriel. Considérations politiques sur les coups d’État. organização de Christian Edward Cyril Lynch. Rio de Janeiro:
Paris: [S. n.], 1667. Revan, 2017.
NIEBUHR, Reinhold. Moral man and immoral society. A study SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e
in ethics and politics. New York: Charles Scribner’s Sons, 1960. liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 55 56 Christian Edward Cyril Lynch

SCHMITT, Carl. Catolicismo romano e forma política. Prefácio, polarização entre idealistas, que veriam a realidade de forma distorcida,
tradução e notas de Alexandre Franco de Sá. Lisboa: Hugin, 1998. e realistas, que a veriam de forma adequada. Alega-se que a divergência
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradução de entre os intérpretes, relativamente a quais fossem as linhagens “idealistas”
Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996. e “realistas, reflete uma disputa entre diferentes concepções da realidade
SCHMITT, Carl. La notion du politique & théorie du partisan. política e suas relações com a dimensão ética da vida social, presente
há séculos na teoria política. A discórdia envolve questões relativas às
Traduit de l’allemand par Marie-Louise Steinhauser. Préface de
características da natureza humana (se boa ou má) e ao papel auxiliar do
Julian Freund. Paris: Flammarion, 1992. conhecimento histórico na sua compreensão (relativa à perfectibilidade
SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Traducción de ou imutabilidade daquela natureza). A exigência generalizada por
Francisco Ayala. Mexico D.F.: Editora Nacional, 1966. “realismo” decorreria da elaboração de um paradigma de ciência política
SOUSA, Paulino José Soares de. Visconde do Uruguai. Organização e estabelecido na primeira metade do século XX, derivada do imperativo de
introdução de José Murilo de Carvalho. São Paulo: Editora 34, 2002. substituir aquele vigente no século anterior, detratado como “idealista”. Esse
SUÁREZ, Francisco. Defesa da fé católica. São Paulo: Editora novo paradigma, elaborado na Alemanha, teria sido adaptado à esquerda
Concreta, 2015. e à direita, originando três modelos de história intelectual – um liberal,
TORRES, Alberto. Discurso de posse. Revista do Instituto Histórico outro nacionalista, e um terceiro marxista. Daí a tendência, no interior
e Geográfico Brasileiro, v. 74, n. 124, p. 546-601, 1911. de cada um deles, de apresentar as linhagens a partir de uma estrutura
TREITSCHKE, Heinrich von. Selections from Treitschke’s dicotômica, que aglutina de um lado as linhagens ideologicamente “boas”,
e de outro, as “más”. O artigo conclui destacando a necessidade de evitar
lectures on politics. Translated by Adam L. Gowans. New York:
as classificações dicotômicas, a fim dar conta de forma mais produtiva da
Frederick & Stokes Company Publishers, 1914. complexidade ideológica da vida social.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. O idealismo na evolução Palavras-chave: Pensamento político brasileiro. Ideologias políticas.
política do Império e da República. São Paulo: Biblioteca d’o Teoria política. Ciência política. Idealismo e realismo.
Estado de São Paulo, 1922.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas Abstract
brasileiras. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1974. v. II. The article problematizes the tendency of Brazilian political thinkers to
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de organize their intellectual traditions based on a polarization between
Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: idealists, who see reality in a distorted way, and realists, who see it properly.
Cultrix, 2006. (Publicado originalmente em 1919). We argue that the divergence between these authors regarding which
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia traditions are “idealistic” or “realist” reflects a dispute among different
compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. conceptions of political reality and their relations with the ethical dimension
of social life, present for centuries in political theory. Disagreement involves
Revisão técnica de Gabriel Cohn. Brasília: Editora UnB, 1999. v. 2.
questions about the characteristics of human nature (whether good
WEBER, Max. Escritos políticos. Tradução de Regis Barbosa e
or bad) and the auxiliary role of historical knowledge in understanding
Karen Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 2014. it (concerning the perfectibility or immutability of human nature). The
widespread demand for “realism” would result from the elaboration of a
Resumo political science paradigm established in the first half of the 20th century
O artigo problematiza a tendência que têm os intérpretes do pensamento derived from the imperative to replace the perspective that was dominant
político brasileiro de organizar suas tradições intelectuais a partir de uma in the previous century, now rejected as “idealistic”. This new paradigm,
Idealismo e realismo na teoria política e no pensamento brasileiro:
três modelos de história intelectual 57

developed in Germany, was adapted to the left and to the right, giving rise
to three models of intellectual history - one liberal, another nationalist, and
a third Marxist. Hence the tendency within each of these approaches to
present a dichotomous structure of political traditions, bringing together,
on the one hand, the ideologically “good” lines of thought, and on the
other, the “bad” ones. The article concludes by highlighting the need to
avoid dichotomous classifications to account more productively for the
ideological complexity of social life.
Keywords: Brazilian political thought. Political ideologies. Political theory.
Political science. Idealism and realism.

Recebido em 23 de abril de 2020


Aprovado em 27 de outubro de 2020
Christian Edward Cyril Lynch

Por Que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Enfim, houve progresso. No entanto, qualquer crescimento de uma área
do conhecimento gera crises: emergem novas questões, velhas certezas
Político-Social Brasileira e o Fantasma da são alvos de objeções, os consensos começam a sofrer questionamentos,
Condição Periférica (1880-1970) por força do aprofundamento e da especialização dos estudos.

No âmbito das ciências sociais brasileiras, dois projetos de pesquisa


servem de referência obrigatória para todos os que se dedicam ao estu-
do do nosso pensamento político-social; a eles se deve sempre volver,
Christian Edward Cyril Lynch quando se trata de pensar o estatuto da área. O primeiro é aquele de
Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade Wanderley Guilherme dos Santos, que fundou o campo de estudos na
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Brasil
década de 1970 com textos como Paradigma e história e A práxis liberal no
Brasil. Aqui é preciso passar em revista, ainda que sucintamente, suas
contribuições à disciplina. Em primeiro lugar, ela produziu um enqua-
dramento disciplinar do objeto. Sua perspectiva epistemológica prag-
mático-moderada permitiu superar os dilemas até então impostos pe-
las oposições resultantes, seja do hegelianismo filosófico predominan-
te no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), seja do positivis-
INTRODUÇÃO mo científico esposado pela sociologia da Universidade de São Paulo
(USP) em meados dos anos 1950, e que redundavam no desprezo do
a última década, a área do chamado pensamento político-social bra-
N sileiro apresentou uma expansão significativa. Ela pode ser medi-
pensamento brasileiro como periférico ou inferior. Havia uma cultura
política nacional; o pensamento político-social brasileiro era, por exce-
da pelo aumento expressivo do número de dissertações e teses defen- lência, o seu produto intelectual, e não era possível compreender o aci-
didas nos programas de pós-graduação; de comunicações apresenta- dentado processo político brasileiro sem estudá-lo. Em segundo lugar,
das nos respectivos grupos de trabalho nos congressos da Associação com a pesquisa surgiu uma definição clara do seu estatuto e o seu com-
Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), bem como petente nome de batismo: trata-se de estudar o “pensamento políti-
nos encontros da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Asso- co-social brasileiro” e, em particular, a “imaginação política” nele pre-
ciação Brasileira de Ciência Política (ABCP); de coletâneas de artigos sente. Em terceiro lugar, delimitou-se o perímetro do pensamento bra-
dedicados aos autores canônicos do pensamento brasileiro, como In- sileiro no âmbito das ciências sociais. Ao excluir deliberadamente da
trodução ao Brasil: um banquete nos trópicos (1999); Nenhum Brasil existe – pesquisa “as obras estritamente históricas, antropológicas, psicoló-
pequena enciclopédia (2003); Intérpretes do Brasil – cultura e identidade gicas, econômicas, metodológicas e escolásticas” (Santos, 2002:14),
(2004); e Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país (2009)1. Além Wanderley organizou o campo de estudos do pensamento político-social
disso, surgiram novas tentativas de conferir um tratamento teóri- brasileiro no âmbito das ciências sociais2. Em quarto lugar, da pesquisa
co mais elaborado a essa área do pensamento político brasileiro, como resultava a caracterização do pensamento brasileiro como indissolu-
Linhagens do pensamento político brasileiro, de Gildo Marçal Brandão velmente vinculado à prática. Ao contrário da teoria sociológica ou da
(2007), e Formação do pensamento político brasileiro, de Francisco Weffort filosofia, a teoria política está sempre vinculada à prática e, por esse
(2006). Ao mesmo tempo, pesquisadores como Marcelo Jasmin e João motivo, seu estudo não pode ser eliminado a priori a pretexto de sua di-
Feres Júnior procuraram aplicar novas metodologias da teoria política mensão não científica ou ideológica.
ao pensamento político brasileiro, como a história dos conceitos, de
Koselleck, e o contextualismo linguístico da Escola de Cambridge. O segundo projeto de pesquisa a se reportar para avaliar e se orientar
acerca do pensamento político-social brasileiro é o de Gildo Marçal
DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 56, no 4, 2013, pp. 727 a 767. Brandão. O livro Linhagens do pensamento político brasileiro (2007) teve

727 728
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

por fim fornecer à nova geração uma plataforma intelectual sobre a de ideologia, teoria ou ciência. Por que se empregam essas diferentes ex-
qual os estudos pudessem avançar. Tratava-se de uma necessidade, pressões? São sinônimas? Ou querem dizer coisas diferentes? Coabi-
que já estaria justificada pela simples falta de qualquer outra tentativa tam em extraordinária polissemia designações como pensamento social,
de renovar o estudo da área, trinta anos depois da primeira (embora o pensamento político, pensamento social e político e pensamento político-so-
projeto de Wanderley esteja ainda longe de esgotar seu potencial teóri- cial, às vezes como sinônimos, às vezes como antônimos, sem que se
co). Em suas preocupações, Gildo se revelava interessado em diversas saiba sua abrangência ou seu significado. Outra questão: por que al-
questões, das quais destaco três: a) Podem ser tomadas por equivalen- guns preferem dizer que a disciplina é de pensamento no Brasil e não de
tes as categorias criadas pelos acadêmicos para designar as duas prin- pensamento brasileiro? Há diferença? Caso positivo, quais são os crité-
cipais “linhagens” da tradição política brasileira (a “liberal” e a “con- rios que orientam essas escolhas? Permanecem válidos? Em suma, os
servadora”)? Oliveira Viana falava em idealistas orgânicos e utópicos; pressupostos que têm orientado as pesquisas permanecem implícitos,
Guerreiro Ramos, em críticos e ingênuos; Wanderley Guilherme, em naturalizados. Não será hora de revistar essas questões, a fim de avan-
autoritários instrumentais e liberais doutrinários; Werneck Vianna, çar a pesquisa da área e firmá-la em solo menos vacilante?
em iberistas e americanistas; b) A caracterização conferida por tais aca-
dêmicos a cada uma daquelas linhagens não espelharia suas próprias Para dar conta desses problemas, seria preciso desenvolver um projeto
filiações ideológicas a alguma delas? Ou seja, em que medida as deno- voltado para a apreensão do próprio processo histórico, conceitual e
minações e descrições conferidas por cada um deles àquelas linhagens intelectual de gestação desse campo de estudos, capaz de oferecer um
não reflete a preferência de seus autores a uma ou outra?; c) Poderia primeiro balanço sobre o processo de formação da disciplina. Uma re-
uma reconstrução adequada da trajetória daquelas linhagens, a partir flexão de cunho metateórico, na forma de uma história da história do pen-
de suas respectivas matrizes ideológicas, servir de instrumental inter- samento político-social brasileiro, permitiria romper com o naturalismo
pretativo do campo político-partidário brasileiro, de forma a compre- que predomina nos estudos da área, identificar os eventuais proble-
ender a história política brasileira? Em outras palavras, a luta política mas existentes e apontar os meios para sua resolução. Em princípio,
atual, travada principalmente por dois partidos – os tucanos e os petis- esse projeto se organizaria em torno de questões como as seguintes: a)
tas – não representaria, de algum modo, a sobrevivência daquelas li- Como a filosofia, a história e as ciências sociais europeias pensaram a
nhagens na atualidade?3 Infelizmente, a morte inopinada de Gildo, natureza e a finalidade de uma história das ideias ou de uma história
poucos meses depois de inaugurado o debate público sobre o seu pro- intelectual?; b) De que maneira a intelectualidade ibero-americana re-
jeto, na Universidade de São Paulo, nos privou da possibilidade de vir cepcionou, pensou e praticou esse gênero? Como os intelectuais brasi-
a ouvi-lo, nos anos que se seguiram, não somente sobre essas questões, leiros lidaram com o objeto, antes da institucionalização das ciências
mas sobre tantas outras, que certamente surgiriam no caminho. sociais?; c) De que maneira se deu a institucionalização acadêmica do
pensamento político brasileiro ou da história das ideias políticas brasi-
Para tornar a perspectiva ainda mais incerta, havia uma série de per- leiras no âmbito das ciências sociais? O modo diverso por que ela foi
guntas ou problemas que, a meu juízo, deveriam ser enfrentados antes institucionalizada em diferentes centros acadêmicos não se reflete
de se lançar ao desafio de responder às questões antes referidas. Um igualmente nos diferentes modos por que ela é ainda hoje compreendi-
dos maiores obstáculos ao desenvolvimento consistente da disciplina da?; d) Qual o estado atual da arte? Ele induz a pensar em continuida-
nos dias atuais reside, a meu ver, na falta de uma reflexão metateórica des ou em rupturas? Quais as suas tendências atuais?
sobre o seu estatuto, que deveria passar por uma discussão dos funda-
mentos sobre os quais a disciplina se encontra ancorada. Não são ape- Este artigo representa uma tentativa de começar a responder a tais
nas os problemas metodológicos que não são discutidos ou explicita- questões. Ele tenta compreender, em primeiro lugar, por que chama-
dos; as próprias categorias e conceitos da disciplina parecem ocultar mos à reflexão política brasileira pensamento e não teoria. A hipótese
problemáticas de grande envergadura. Por exemplo: empregam-se as que pretendo aqui explorar é a de que, no Brasil, suas elites sempre
expressões história das ideias e pensamento indistintamente, para deno- consideraram seus produtos intelectuais mais ou menos inferiores
miná-la. Mas o conceito de pensamento mantém tensas relações com os àqueles desenvolvidos na Europa e nos Estados Unidos, em conse-

729 730
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

quência de uma percepção mais ampla do caráter periférico do seu de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj (atual Instituto de Estudos So-
país. Na primeira seção deste artigo, para contextualizar a hipótese ciais e Políticos – Iesp-Uerj) constituiu o campo de estudos homônimo
aventada, discutirei a questão terminológica entre “teoria” e “pensa- e difundiu na ciência social a expressão por que veio a ser conhecido:
mento” no âmbito da ciência política. Por pensamento político, entendo pensamento político-social brasileiro.
aqui uma gama de manifestações mais amplas que aquelas de cunho
estritamente jurídico-constitucional; e que se refere ao domínio do po- POR QUE PENSAMENTO E NÃO TEORIA POLÍTICA BRASILEIRA?
lítico entendido como poder, e que incorpora, na análise, o seu entorno
“social” (Santos, 1970:137). Sempre provocado pelas reflexões de A palavra “teoria” costuma ser empregada para designar um conjunto
Marcelo Gantus Jasmin (especialmente depois de ouvir sua conferên- de proposições lógico-abstratas que descrevem as leis de funciona-
cia Limites da história universal)4, aplicarei à história do pensamento mento de um determinado fenômeno. Não é por outro motivo que, nas
político-social brasileiro, entendido como periférico, as consequências ciências humanas, as grades curriculares do ensino superior estão re-
da hegemonia, durante o seu primeiro século e meio de existência, de pletas de disciplinas de “teorias” alusivas a ramos do conhecimento
um regime eurocêntrico e evolucionista de historicidade, tal como des- como filosofia, direito, sociologia, antropologia, economia, adminis-
crita por historiadores como Reinhart Koselleck, François Hartog e tração, história etc. Na ciência política, temos teoria política. Por emula-
Hans Georg Gumbrecht, e hoje em estágio final de superação. Parto da ção do método autoral empregado pela filosofia, o ensino de tal disci-
suposição de que aquela hegemonia, entendida como uma moldura in- plina é ministrado pela leitura sucessiva das obras dos autores julga-
telectual ampla a partir da qual eram pensadas as condições de exis- dos “clássicos” daquela área em virtude de contribuições julgadas fun-
tência da comunidade política, permite compreender por que nossos damentais por aqueles que a ensinam. Assim, os estudantes de política
autores não reconheciam a dignidade da produção intelectual, levan- não escapam à leitura de Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu,
do-os a ignorá-la ou a menosprezá-la. Rousseau, Tocqueville, Marx, Mosca, Michels, Carl Schmitt, ou
Schumpeter. Mais adiante, o estudante pode vir a encontrar outra dis-
Em seguida, examinarei como alguns dos nossos principais intérpretes ciplina, por que tomará contato com as principais obras políticas pro-
avaliaram o lugar do Brasil no mundo e a qualidade de seus produtos duzidas no Brasil. Essa disciplina parece o equivalente nacional da-
intelectuais, especialmente os de natureza social e política. Esse exame quela de teoria política e é ministrada da mesma forma, pela apresenta-
será dividido em duas partes. Na primeira, que corresponde ao que ção dos “grandes livros” dos nossos “clássicos”, como o visconde de
chamo hegemonia do paradigma cosmopolita periférico (1880-1930), Uruguai, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Tor-
selecionei os intelectuais através de um critério institucional, focando res, Oliveira Viana, Sérgio Buarque, Raimundo Faoro etc. Ela se chama
naqueles que ocupavam a Academia Brasileira de Letras (ABL) e o pensamento político-social brasileiro, pensamento social e político brasileiro
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tal escolha não me ou simplesmente pensamento político brasileiro.
impediu, porém, de recorrer também ao testemunho de intelectuais de
Diante dessas informações, a primeira pergunta que vem à cabeça do
outras instituições, como as Faculdades de Direito, a Politécnica e o estudante é: por que esta última recebe uma denominação diferente?
Colégio de Dom Pedro II. Na segunda parte, que corresponde ao perío- Por que aquela se chama “teoria” e esta se chama “pensamento”? A
do que chamo do paradigma nacionalista periférico (1930-1970), cen- resposta não é simples. Poucos autores explicitam os motivos de terem
trei a atenção nas três instituições que mais se destacaram no estudo do escolhido esta ou aquela denominação. Em princípio, pode-se conjec-
pensamento brasileiro: o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), o Insti- turar não haver qualquer motivo especial em se distinguir o nome de
tuto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e a Faculdade de Filosofia, uma disciplina da outra; é possível argumentar que, na verdade, não
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo houve nenhum propósito de distingui-las: teoria ou pensamento se-
(FFLCH-USP). No final, espero ter podido oferecer um panorama pre- riam expressões intercambiáveis5.
liminar do pensamento político brasileiro, assombrado pelo “fantas-
ma da condição periférica” – até a década de 1970, quando a pesquisa Há, porém, uma primeira justificativa para diferenciar teoria ou filoso-
de Wanderley Guilherme dos Santos no antigo Instituto Universitário fia política, de um lado, de pensamento ou história das ideias políticas,

731 732
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

de outro. Os textos “teóricos” ou “filosóficos” seriam coerentes, abran- Rousseau, Constant e Tocqueville, contasse também com outros, “me-
gentes e abstratos, ao passo que aqueles sob a rubrica “pensamento” nores”, como Sieyes, Guizot, Laboulaye, Taine ou Barrès. Seguindo
seriam fragmentários, contingentes ou assistemáticos. No campo dos esse raciocínio, para além dos autores de vocação “universal”, integra-
estudos políticos, foi Leo Strauss quem esclareceu as diferenças entre riam o cânone do “pensamento político nacional” autores “menores”,
filosofia política e pensamento político. Se a filosofia pura se caracteri- que, no entanto, teriam repercutido na vida intelectual do país. De fato,
zava pela busca da sabedoria e do conhecimento do verdadeiro e do na Espanha e na Argentina fala-se em “pensamento político espanhol”
universal, a filosofia política consistia na tentativa de se orientar, não e “pensamento político argentino”7. Conciliar-se-iam assim a dimen-
pela opinião, mas pelo ideal da ordem política justa. Composta de um são universalista da teoria política ou da filosofia, de um lado, com o
conjunto de reflexões elaboradas por autores desapaixonados e con- seu reflexo nacional particular, de outro, designado este como pensa-
templativos, dialogando com a tradição filosófica clássica, a filosofia mento ou história das ideias políticas. Em síntese: o “pensamento polí-
política tinha por fim discutir as “questões perenes da humanidade” e tico” seria a “teoria política” em contexto nacional.
tinha por veículos longos, densos e sistemáticos tratados (Strauss,
Cropsey, 1996:11). A filosofia política se distinguia do “pensamento Por mais que essas explicações sejam válidas para justificar a diferença
político em geral” na medida em que este último estava voltado para a no emprego das expressões teoria e pensamento no Brasil, creio que,
prática e, por conseguinte, não tinha o mesmo rigor, a mesma coerên- além delas, há uma terceira: a percepção difusa do tempo (atrasado) em
cia, a mesma universalidade. O pensamento político se manifestava que o país se encontraria, decorrente do lugar (periférico) por eles ocu-
por meio de leis, códigos, poemas e histórias das ideias, panfletos e dis- pado no mundo. Essa percepção secular, por parte das elites ibe-
cursos públicos. Seria assim possível fazer, alternativamente, ou “his- ro-americanas, de se acharem excluídas de um “centro” do mundo,
tória da filosofia”, ou “história das ideias”, dependendo da qualidade mais importante e superior, localizado no Atlântico Norte, repercutiu
do material estudado: filosofia política, no primeiro caso, pensamento po- diretamente na definição de suas identidades nacionais depois da in-
lítico, no segundo. Ali se achariam autores como Platão, Aristóteles, dependência.
Locke, Hobbes, Hume, Montesquieu; aqui, outros, como Sieyès, Jeffer-
son, Constant, Guizot ou Macauley6. A internalização desta condição de inferioridade, na forma de um sen-
timento de exclusão do “mundo civilizado”, ou de sua inserção nele
Para além dessa primeira explicação, pode-se avançar uma segunda numa condição subalterna, se refletiu no pouco caso demostrado pelas
para justificar a diferença entre filosofia e teoria (e, por conseguinte, elites dos países periféricos ao pensamento produzido por elas mes-
história da filosofia ou da teoria), de um lado, e “pensamento” (ou his- mas, comparado àquelas elaboradas nos países centrais. Dependentes
tória das ideias ou do pensamento), de outro. A palavra filosofia ou teo- dos modelos culturais dos países cêntricos, que distribuíam os lugares
ria seria empregada para designar o conjunto de textos de natureza po- e os papéis das nações no mundo, elas internalizaram o pressuposto de
lítica de validade universal, ao passo que pensamento político ou história sua inferioridade neles inscrito. As diferenças quantitativas entre as
das ideias nomearia aqueles de validade apenas nacional. O próprio Isa- nações do “centro” e da “periferia”, medidas objetivamente em termos
iah Berlin se referia sem constrangimentos a uma “filosofia inglesa”; a de tecnologia ou poder militar, se converteram em diferenças qualitati-
uma “história do pensamento político inglês”; a uma “história intelec- vas no plano da existência: aquilo que era apenas um juízo de fato (as-
tual americana”, objeto de uma cadeira específica nas universidades simetria militar e econômica) se transformou, no plano das representa-
estadunidenses (Jahanbegloo, 1996: 123). Poderíamos, assim, falar ções sociais, num juízo de valor (inferioridade no plano da existência e
num pensamento político britânico, que, para além de autores “universa- da cultura). Os europeus e norte-americanos seriam “adiantados”,
is” como Locke, Hobbes, Burke, Bentham, Mill e Spencer, contaria com “desenvolvidos”, “civilizados”, “primeiro mundo”, ao passo que os
autores de menor estatura, mas relevantes no contexto nacional daque- ibero-americanos eram “atrasados”; “subdesenvolvidos”; “bárbaros”
le país, como Macauley, Brougham, T.H. Green, Hobson e Hobhouse. ou “semibárbaros”. Era como se prevalecesse uma divisão internacio-
Poder-se-ia pensar, por idêntico, num pensamento político francês, que, nal do trabalho intelectual: na geografia do mundo, o “centro”, o “lu-
para além de autores “clássicos” como Bodin, Bossuet, Montesquieu, gar” produzia o “universal” (filosofia, teoria, ciência); ao passo que ca-

733 734
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

bia à periferia aplicá-lo às suas circunstâncias particulares. Esse pro- elas se encontravam de alguma maneira no “passado” das nações cên-
cesso por que os autores periféricos “aplicavam” a teoria cêntrica dava tricas, vivenciando etapas que aquelas já tinham vencido. As nações
origem a um tipo de reflexão menor, espécie de rescaldo da anterior: periféricas estavam, assim, aos olhos do centro, numa condição “atra-
precário, fragmentário, contingente ou assistemático, válido somente sada” e “anormal”. Terra do exótico, a presunção era a de que nenhum
dentro de seus próprios limites (nacionais). Em outras palavras, por produto cultural que viesse delas pudesse contribuir para o avanço da
meio daquele processo de “aplicação”, a periferia se tornava por exce- civilização, já que ela se encontrava no passado dos países cêntricos.
lência o lugar onde se concentravam todas as características do pensa-
mento descritas nas explicações anteriores. Assim, por exemplo, a versão liberal da filosofia da história, elaborada
por Condorcet e aperfeiçoada por Constant, compreendia a articula-
Nas décadas que se seguiram à independência das nações do subconti- ção da temporalidade como um quadro das sucessivas etapas por que
nente, uma matriz histórico-filosófica se destacou no papel de estabe- progredia o “espírito humano”. O conhecimento do processo histórico
lecer distinções qualitativas entre uma teoria cêntrica, valorada como
permitia constatar o aperfeiçoamento do homem ao longo da história,
universal e original, e um pensamento periférico, avaliado como local,
que redundaria num futuro de absoluta liberdade e igualdade entre in-
bárbaro, ou copiado, ou deformado. Trata-se da filosofia da história ou
divíduos e nações. Em virtude da “superioridade de suas luzes e as
cronosofia, bosquejada na Europa ocidental na passagem do século
vantagens de seu comércio”, esse progresso era produzido nos países
XVIII para o seguinte, e renovada, em diferentes versões, como “uma
europeus e se disseminava sobre o seu entorno: América, África e Ásia
interpretação sistemática da história universal de acordo com um prin-
(Condorcet, 1993:179). Os povos periféricos esperavam “instruções
cípio segundo o qual os acontecimentos e sucessões históricos se unifi-
para se civilizar e encontrar irmãos nos europeus, para tornarem-se
cam e dirigem para um sentido final” situado no futuro (Löwith, 1977:
seus amigos e seus discípulos” (Idem:180). Nessas regiões, o progresso
15). Pressupondo a falta de identidade da natureza humana no tempo,
seria mais veloz, já que todas as atitudes, comportamentos e princípios
entendida, agora, não mais como constante, mas perfectível ou mutá-
“modernos” já a elas acorreriam prontos, explicados pelos livros euro-
vel, o passado não ensinava mais o presente, que lhe era intrinseca-
peus que civilizariam o resto do mundo. No Novo Mundo, caberia à
mente diferente; sua utilidade estava tão somente em fornecer ao filó-
sofo material para que ele pudesse compreender as leis por que se su- população de origem europeia “civilizar ou fazer desaparecer, mesmo
cediam os estádios do processo histórico. Assimilada como um esque- sem conquista, as nações selvagens que ali ainda ocupam vastas re-
ma de ordem e sentido progressivos, organizador dos lugares das di- giões” (Idem:178). Na África e na Ásia, os emigrados europeus difun-
versas nações ao longo do tempo, a filosofia da história recebeu diver- diriam, pelos povos selvagens e pelas civilizações decadentes que as
sas versões, sendo as mais conhecidas as de Condorcet, Hegel, Comte, habitavam, “os princípios e o exemplo da liberdade, as luzes e a razão
Spencer e Marx. Todas tentavam explicar o papel dos diversos povos e da Europa” (Idem:179). Por sua vez, Hegel elaborou uma cronosofia
a função de suas ideias ou de sua cultura naquele processo. Todas pres- descritiva das sucessivas etapas do progresso do Espírito que condu-
supunham que, orientadas por um telos futuro de paz, de liberdade e zia o homem rumo à liberdade e desvelava a razão de Deus na história.
igualdade “universais”, havia nações que marchavam à frente, e ou- Essa cronosofia deu origem a uma história da filosofia na qual cada
tras, atrás, conforme critérios como maior ou menor esclarecimento etapa daquele processo de desenvolvimento do espírito poderia ser in-
(isto é, difusão das “luzes”, da “razão”, do conhecimento), e/ou maior telectualmente apreendida pelo conteúdo das obras deixadas pelos
ou menor desenvolvimento material (quase sempre entendido como grandes homens ou gênios de cada povo. Eram elas que revelavam a exis-
industrial). As primeiras pertenciam ao “centro”; as segundas, à sua tência daquela razão divina, exterior à vida humana, na forma de uma
periferia. As nações “cêntricas” o eram porque estavam mais próximas ideia que possuía, igualmente, uma “essência” acima das contingên-
de atingir aquele telos; do ponto de vista da sua temporalidade, eram cias da história. O papel da história da filosofia era, portanto, o de co-
julgadas como situadas no “presente” e, como tal, eram “normais”. As nhecer as grandes obras e, por intermédio delas, as ideias dos gênios
demais nações, “periféricas”, se achavam numa etapa mais recuada e, das diversas nações, cuja originalidade desvelava em perspectiva uni-
como tal, distante do “futuro”, estando, enquanto tais, “atrasadas”; versal a marcha do espírito humano.

735 736
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

A história da filosofia expõe-nos a galeria dos nobres espíritos que, gra- das tolices ou, pelo menos, dos desvios do homem que se absorveu no
ças à ousadia da sua razão, penetraram na natureza das coisas do ho- pensar e nos simples conceitos” (Hegel, 2006:113). A partir de seme-
mem, e na natureza de Deus, desvelaram-nos a sua profundidade e lhantes noções hauridas de cronosofias eurocêntricas, os países ibe-
para nós elaboraram o tesouro do mais alto conhecimento. Semelhante ro-americanos formularam a imagem que longamente guardariam de
tesouro, de que nós próprios queremos partilhar, constitui a filosofia si mesmos, e que, na sua versão mais negativa, os apresentava como
em geral; a origem de tal tesouro é o que neste curso aprendemos a co- culturalmente exóticos, historicamente atrasados e racialmente
nhecer e a captar (Hegel, 2006:13). inferiores.

O problema é que, do ponto de vista geográfico, o surgimento desses Ao mesmo tempo, identificadas com os valores “civilizados” euro-
grandes homens não se dava, nem aleatória, nem democraticamente. peus, suas elites “crioulas” se viam como “administradoras” de uma
Embora a marcha do Espírito fosse universal, ele somente se manifes-
realidade em tudo diferente daquela do Velho Mundo, que lhes era cul-
tava naqueles povos mais antigos e de cultura mais adiantada; só neles
turalmente familiar. Enquanto a condição política colonial durou, es-
havia condições de se produzir pensamento original, ou seja, filosofia.
sas elites se consideravam sentinelas avançadas da “civilização” cên-
Para piorar, Hegel entendia que o Novo Mundo, por muito tempo, não
trica na periferia. Depois da independência, alguns intelectuais perifé-
teria possibilidade de produzir uma filosofia de verdade, original. De-
ricos perceberam-nas como um momento de queda, que os desligara
sabitado, ou parcialmente habitado por populações transplantadas de
do “universal” para exilá-los na América 8. Os intelectuais pertencen-
outras regiões, que delas traziam as suas experiências, o Novo Mundo
tes às elites periféricas passaram então a vivenciar o “dilema do ma-
era um continente que não deixava, é certo, de ter uma especificação
zombo”, entendido como o “descendente de europeu ou reputado tal,
própria. Mas, do ponto de vista do verdadeiro conhecimento, a Améri-
ca só podia exprimir sonhos e aspirações futuras, não presentes. Ainda com um pé na América e outro na Europa, e equivocadamente persua-
às voltas com o controle da natureza, que dizia respeito antes à questão dido de que, cedo ou tarde, terá de fazer uma opção” (Mello, 2002:368).
da necessidade do que à da liberdade, os países americanos não ti- Entre nós, foi Joaquim Nabuco quem, em 1900, fez a clássica descrição
nham como figurar tão cedo no plano da história universal. Na Améri- do dilema do mazombo, fraturado entre uma jovem pátria “geográfica”,
ca, “as meditações sobre o passado não se expressavam em filosofia da periférica, lugar do sentimento e da natureza (o Brasil), e uma antiga
história do mundo”, ou seja, como “reflexão sobre o ser do homem com pátria “espiritual”, cêntrica, lugar da inteligência e da civilização (a
entrada na ontologia”. A América Ibérica não produzia filosofia, mas Europa). Segundo ele afirmava em Minha formação, todos os povos do
pensamento; não filósofos, mas pensadores encarregados de redigir “en- Novo Mundo pertenciam “à América pelo sedimento novo, flutuante,
saios pedagógicos, políticos ou sociais” (Zea, 1956:106). Criava-se, as- do nosso espírito, e à Europa, por suas camadas estratificadas”. Este
sim, um circuito fechado que aprisionava a reflexão dotada de sistema- duplo pertencimento, todavia, não se dava de forma igualitária: “Des-
ticidade, originalidade e profundidade nos limites dos países “cêntri- de que temos a menor cultura, começa o predomínio destas sobre
cos”, excluindo a possibilidade de sua existência na periferia. aquele”. O resultado era que, no Novo Mundo, as elites culturais fica-
vam condenadas “a mais terrível das instabilidades”, o que explicava
Por isso, ao inventariarem o que seus países produziram de relevante “o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa. É a atra-
no campo da reflexão, os intelectuais periféricos não poderiam acredi- ção de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos
tar que aquilo pudesse ser considerado parte integrante da “história nós, da nossa comum origem europeia”. E prosseguia:
da filosofia”. O máximo a que se poderiam permitir era acreditar que o
inventário da produção intelectual nacional pudesse ser descrito no A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à paisa-
plano de uma “história de ideias”, marcada pela sua dimensão prática, gem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo
pela sua contingência e pela sua validade limitada ao plano do local. histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a Pátria, isto
Não é inútil recordar aqui o modo por que Hegel se referia às histórias é, a forma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do
das ideias: elas eram “o magote das opiniões filosóficas”, a “galeria mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do País. O sen-

737 738
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

timento em nós é brasileiro, a imaginação é europeia (Nabuco, ria da Filosofia. “Um povo só é um verdadeiro povo se exprimir uma
1949b:47-48). ideia que, passando por todos os elementos de que é composta a vida
interior de um povo, na sua língua, na sua religião, nos seus costumes,
A imagem do brasileiro culto sentindo-se expatriado no próprio país, nas suas artes, nas suas leis, na sua filosofia, dá a esse povo um caráter
alheio à própria cultura da população local, seria formulada em 1922 comum, uma fisionomia distinta na história”. O “espírito do povo” era
por Lima Barreto, em Transatlantismo: “Nós, brasileiros, somos como definido como “o princípio de desenvolvimento e de ação, é uma força
Robinsons: estamos sempre à espera do navio que nos venha buscar da da qual o povo extrai a sua, que o move e o sustenta enquanto ele dura,
ilha a que um naufrágio nos atirou” (Barreto, 1922). Em 1932, em Brasil e que, quando ele se retira, depois que o seu desenvolvimento está
errado, Martins de Almeida diria: “O brasileiro é um exilado dentro da completo e esgotado, o abandona e o entrega ao primeiro conquista-
própria terra” (Almeida, 1932:53). Quatro anos depois, Sérgio Buarque dor” (Idem: 261-262). Esse “espírito do povo”, entendido como sua
de Holanda se limitaria a repetir a fórmula de Almeida, em Raízes do cultura própria, original, se manifestava nas obras dos “grandes ho-
Brasil: “Somos ainda uns desterrados em nossa terra” (Holanda, mens” que formavam sua elite social, política, militar, artística
1936:3). (Idem:263). Bastava reunir os grandes homens fornecidos pelos diver-
sos povos ao longo do tempo, e o estudioso teria diante de si a história
O PENSAMENTO BRASILEIRO SOB O SIGNO DO COSMOPOLITISMO inteira, a ordem universal (Idem:266). A filosofia, por seu turno, era
PERIFÉRICO (1880-1930) considerada a atividade mais elevada por que um grande homem po-
deria exprimir aquele “espírito”. Haja vista que “o degrau mais eleva-
Exposta esta hipótese – a de que a percepção periférica das elites ibe-
do da individualidade é necessariamente a reflexão”, a filosofia era “o
ro-americanas se refletiu num sentimento de inferioridade a respeito
último degrau e o resumo necessário do desenvolvimento de um
de seus produtos culturais –, gostaria de me deter no caso brasileiro.
povo” (Idem:261-262).
Ao longo de nossa história intelectual, manifestou-se esse sentimento
de inferioridade entre nós? Para responder a essa pergunta, é preciso
As elites oitocentistas brasileiras cedo absorveram esses conceitos e ca-
recuperar os pressupostos da filosofia da história que especificavam as
tegorias, extraídos da filosofia da história, e a cultivaram por muito
condições para a existência de uma cultura nacional.
tempo Assim, por exemplo, em 1919, em sua História da civilização, Oli-
Até o final da Primeira Grande Guerra, a intelectualidade ibero-ameri- veira Lima ainda ensinava: “A história da civilização é, em resumo, a
cana vivia sob o influxo de um paradigma civilizacional liberal, cos- história da luta da liberdade contra o despotismo, e da igualdade con-
mopolita, para o qual havia um processo unilinear de civilização que, tra o privilégio”; ela se desdobrava na forma de um “progresso huma-
partindo da Europa, se espalhava pela periferia dela. Fenômeno euro- no constante: mesmo quando se dá recuo, é para melhor avançar”
peu, a civilização poderia ser difundida para a periferia pelas armas, (Lima, 1967:29). Para ele, era “a contribuição para o progresso comum”
pela economia e pela cultura. Na França, as linhas gerais da filosofia da que emprestava, “a uma raça qualquer, foros de civilizada” (Idem:16).
história de Hegel foram absorvidas por intelectuais como Victor Cou- O mundo era composto de três raças: a branca oferecia “o espetáculo
sin, Renan e Taine9. Daí a utilidade de a elas recorrer aqui. Para Cousin, de um progresso contínuo e compreensivo”; a amarela, longamente es-
“as ideias diversas representadas pelos diversos povos” eram os obje- tacionária, dava sinais de querer se adiantar; já a negra se mostrava
tos centrais de uma história universal ou filosófica (In: Gauchet, “ainda hoje refratária a uma civilização regular e progressiva”
2002:191). Os povos eram os grandes sujeitos da história. Mas um (Idem:24-25). Essa concepção etnocêntrica de ordem internacional se
“povo verdadeiro” não se confundia com mera população; ele tinha estendia à concepção que os países cêntricos faziam do lugar de cada
um “espírito”, na forma de uma cultura própria, que o habilitava a con- país independente na ordem internacional, que transpareceu em 1907
tribuir para o processo civilizador e se projetar no plano da história na proposta britânica para a composição do tribunal internacional ar-
universal: “Um povo não é somente uma coleção mais ou menos consi- bitral planejado por ocasião da Segunda Conferência de Haia. Os paí-
derável de indivíduos reunidos acidentalmente pelo vínculo de uma ses de primeira linha, que dariam um juiz cada, eram: França, Inglater-
força externa preponderante”, explicava ele na sua Introdução à Histó- ra, Áustria, Alemanha, Itália, Rússia, Estados Unidos, Japão e Holan-

739 740
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

da. Os de segunda classe, que, agrupados, dariam cada qual um juiz, Gilberto Amado (futuro membro da ABL) declará-lo, da tribuna da Câ-
eram: Espanha e Portugal; Bélgica, Suíça e Luxemburgo; Turquia e Pér- mara dos Deputados: “Povo propriamente não o temos. Sem contar o
sia; China e Sião; Suécia, Noruega e Dinamarca. Os países de terceira das cidades, que não se pode dizer seja uma população culta, a popula-
ordem tinham suas individualidades totalmente dissolvidas: eram ção politicamente não têm existência” (Anais, 11/12/1916).
aqueles situados nos Bálcãs; na América Central e México, e na Améri-
ca do Sul; cada subcontinente daria um juiz cada. Por esse critério, po- Ora, no esquema da filosofia hegemônica da história, o povo era o pro-
dem ser vistos quais eram o lugar e o peso do Brasil na ordem mundial: tagonista da história universal. Se não havia povo brasileiro, não havia
estava na extrema periferia dos países independentes; valia tanto cultura brasileira; e, sem ela, o país não participava da “história uni-
quanto a Sérvia e menos do que protetorados asiáticos, como o Sião e a versal”. Considerando sua localização americana, sua composição po-
Pérsia (Laidler, 2010:146). pulacional e o seu caráter de país novo, o Brasil não podia ter história
no sentido universal. Não houvera ainda tempo para que a ação do ho-
No entanto, como nossos intelectuais situavam ou percebiam o Brasil a mem de origem europeia trabalhasse a natureza para transformá-la em
partir desse quadro da história universal entendida como um processo cultura. O Brasil ainda não tinha história, mas geografia; ainda não ti-
de civilização? Eles por certo não duvidavam de que houvesse aqui um nha povo, permanecendo tão somente um país (i.e., território). Essa
Estado; do que eles não estavam certos era que houvesse aqui um povo imagem do Brasil como reduzido à condição de natureza e geografia,
como aquele descrito por Cousin, distinto de uma mera população. privado de cultura e excluído da civilização, perpassava os testemu-
Percepções como esta podem ser encontradas em intelectuais atuantes nhos dos principais intelectuais da nossa belle époque. Em Minha forma-
nas principais instituições intelectuais do país entre 1880 e 1930: o ção (1900), o sobredito Nabuco escrevia: “O espírito humano, que é um
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a Academia Brasi- só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo
leira de Letras (ABL) e o Colégio de Dom Pedro II (CPII), em primeiro Mundo para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verda-
lugar, mas também noutras, como as Faculdades de Direito, a Escola deira solidão” (Nabuco, 1949b: 48). Em Contrastes e confrontos (1907),
Politécnica e o Pedadogium (instituição encarregada de balizar o ensino afirmava Euclides da Cunha (ABL, IHGB e CPII): “Não temos ainda
médio dos Estados federação). Assim, o professor da Escola Politécni- uma história. Temos anais, como os chineses. A nossa história, reduzi-
ca do Rio, Louis Couty, declarava em A escravidão no Brasil (1881): “O da aos múltiplos sucessos da existência político-administrativa, falta
Brasil não tem povo” (Couty, 1988:102). Em 1905, o diretor do Pedagogi- inteiramente a pintura sugestiva dos homens e das coisas, ou os trava-
um, Manuel Bonfim, declarava em América Latina: males de origem: mentos de relações e costumes que são a imprimidura indispensável
“Pouco importa o que está escrito nas Constituições, que as camadas ao desenho dos acontecimentos” (Cunha, 1975:161). Não fossem uns
políticas vão depositando nos armários oficiais. Como estamos, não poucos “fatos, episódios empolgantes e alguns atores esculturais”, de
somos nem nações, nem repúblicas, nem democracias” (Bonfim, que a nossa pequena curta política era feita, seria possível estender
1993:331). Em 1889, o deputado Joaquim Nabuco (futuro membro da para o conjunto do Brasil a expressão por que, havia pouco, Euclides
ABL e do IHGB) explicava por que ainda não teria chegado a hora de designara a Amazônia: tratava-se de uma “terra sem história” (Cunha,
substituir a monarquia pela república: “É que ainda não temos povo” 1999). Em A organização nacional (1914), Alberto Torres volvia à carga:
(Nabuco, 1949a:373). Para Oliveira Lima (também IHGB e ABL), havia “O destino de um país é função de sua história e de sua geografia. O
uma diferença entre povo, que supunha unidade de raça, e nacionalida- Brasil não tem história, que tal nome não merece a série cronológica
de, que exigia apenas unidade de Estado (Lima, 1967:21). Coerente com dos fastos das colônias dispersas, e a sucessão, meramente política, de
essa distinção, ele batizou o livro que reuniu suas conferências sobre a episódios militares e governamentais” (Torres, 1982a:64).
história brasileira na Sorbonne de Formação histórica da nacionalidade
brasileira (1911). Em 1914, Alberto Torres (IHGB) ia mais longe: “Este Mas os efeitos devastadores da condição periférica à luz da filosofia da
Estado não é uma nacionalidade; este país não é a uma sociedade; esta história oitocentista não paravam por aí. Se o Brasil não tinha povo
gente não é um povo. Nossos homens não são cidadãos, não são nem cultura, também não tinha grandes homens. Era de que se lamen-
pessoas, não são valores” (Torres, 1982a:199). Em 1916, era a vez de tava em 1910 o jovem Gilberto Amado, em A chave de Salomão: “Não ti-

741 742
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

vemos ainda um grande homem. Temos tido apenas pedaços de gran- leira, por parte daqueles que se dedicavam a inventariá-la, desde o fi-
des homens. No desenlace de uma história de quatro séculos, não tive- nal do Império até a Primeira Guerra Mundial.
mos ainda um pensador”. Quando apareciam os candidatos ao posto,
eles rapidamente se desfaziam “numa coruscação de insetos efême- Em A filosofia no Brasil (1886), Sílvio Romero (futuro fundador da ABL)
ros” (Amado, 1963:16). Daí o deserto de ideias e ideais; a vacuidade da foi terminante: “Este país não tem impulsos originais. Não existe uma
vida intelectual no Brasil. “Quase ninguém se ocupa de ideias gerais”, só ideia deposta entre os tesouros intelectuais da humanidade que seja
prosseguia Amado. “Nós somos vinte e cinco milhões, e não chega a oriunda do Brasil”. O brasileiro era “um povo de quarta ou quinta or-
uma dezena o número de homens capazes de se apaixonarem por uma dem, quanto às lutas do pensamento” (Romero, 1969:136-137). As coi-
ideia pura, por um pensamento desinteressado” (Idem:17). Num am- sas não estavam melhores do ponto de vista estético. Num estudo cha-
biente como esse, em todo adverso, era trágica a vida daqueles que, na mado Belas artes (1889), em que descrevia e avaliava o estado delas en-
América do Sul, pretendiam dedicar-se ao pensamento: tre nós, o barão do Rio Branco (IHGB e ABL) declarava que, “no Brasil,
como na maior parte da América do Sul, a cultura das artes não está
Todos nós sabemos do horror que é o destino do intelectual, do pensa- ainda suficientemente desenvolvida”. De notável, a época colonial le-
dor de nascença no Brasil (...). A sua solidão é a mais patética do mun- gara apenas o Aqueduto da Carioca e “algumas igrejas de estilo jesuíti-
do. Não tem eco no seio dos seus contemporâneos. É um inútil. (...). co com imitações desastrosas do antigo, e alguns vastos edifícios, mais
Quando ele se lembra de que não terá eco no ambiente em que vive, sólidos do que graciosos, que serviram de residência aos governadores
nem fora dele, e se lembra de que nunca poderá intervir na corrente do e aos vice-reis”. No que diz respeito à escultura, o país produzira um
pensamento universal, o seu desgosto pode ser ingênuo, para os goza- único “estatuário de real mérito”; quanto à arquitetura, ela lhe parecia
dores e superficiais, mas é profundamente trágico. Nunca o seu pensa- mesmo ter regredido. Sua conclusão geral era desalentadora: “Seria
mento será um fato capital do espírito humano, e a sua ambição intelec- preciso recomeçar a obra mal tentada por D. João VI, chamando ao Bra-
tual terá de restringir-se aos papéis secundários, aos arremedos, aos co- sil, durante uma vintena de anos, professores estrangeiros” (Rio Bran-
mentários (Idem:15). co, 2000:130-140). Em 1896, Clóvis Beviláqua (outro futuro membro da
ABL) reconhecia que o “Brasil não contribuiu com uma escola própria,
Esse sentimento de exclusão do Brasil da “história universal”, que de-
sequer com um conceito original de vulto, para a desenvolução da filo-
via procurar o tanto quanto possível imitar a “civilização” para dimi-
sofia humana”. A atividade filosófica entre nós só poderia ser compre-
nuir a distância em relação a ela, se traduziu na produção de uns pou-
endida como composta da repercussão do movimento europeu no Bra-
cos e incompletos inventários de sua história intelectual até a Primeira
sil (Beviláqua, 1975: 66). O brasileiro lhe parecia ter voo baixo para a es-
Guerra Mundial10. Sem história, sem cultura, sem povo, sem grandes
peculação intelectual: “Faltam-nos asas para esses voos” (Idem:100).
homens, não havia pensamento intelectual digno de ser inventariado.
As mesmas considerações pessimistas se encontram nos inventários
Poderiam ser redigidas “histórias do Brasil” de natureza pragmática,
da literatura brasileira. Em sua História da literatura brasileira (1912),
descritivas dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais ocorri-
José Veríssimo (IHGB e CPII) avaliava a produção literária nacional da
dos no país. Também poderiam ser produzidos trabalhos de utilidade
seguinte forma:
para a realidade local ou consumo de suas elites, a partir dos modelos
europeus. Mas nada disso tinha importância para a história do mundo. Uma literatura (...) só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de
Essa sensação periférica teve repercussões na forma por que o “ma- valor efetivo e permanente e não momentâneo e contingente. A litera-
zombo” avaliava suas atividades intelectuais no Novo Mundo. Se os tura brasileira (...) é uma literatura de livros na máxima parte mortos, e
frutos de sua atividade intelectual lhe pareciam sempre brilhantes, sobretudo de nomes, nomes em penca, insignificantes, sem alguma re-
quando comparados àquele da população autóctone, vista como infe- lação positiva com as obras. (...) Não pode haver maior argumento da
rior e primitiva, por outro lado, eles lhe pareciam sempre de escasso sua desvalia (Veríssimo, 1963:14).
valor, quando comparados àqueles oriundos dos países cêntricos, que
lhe serviam de modelo. Os exemplos a seguir ilustram uma tendência A aceitação da filosofia eurocêntrica da história, que tornava a produ-
persistente de se avaliar negativamente a produção intelectual brasi- ção intelectual dotada de originalidade privativa das potências euro-

743 744
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

peias, se refletiu, assim, na sua preferência pelo produto cultural ori- te, Marx, Spencer, Darwin e Haeckel. Ele pregava a necessidade de que
undo daqueles países, em detrimento dos próprios, vistos invariavel- os intelectuais brasileiros voltassem suas atenções para o nosso passa-
mente como inferiores, precários, parciais, locais. Ao se dirigir aos di- do. Pelo conhecimento das singularidades de sua formação, seria pos-
plomatas estrangeiros chegados ao Rio para a Exposição de 1922, o sível compreender as leis da nossa evolução e colaborar para a supera-
próprio presidente da República, Epitácio Pessoa (ex-professor da Fa- ção de nossa condição periférica: “Nenhum erro maior do que o daque-
culdade de Direito do Recife), foi o primeiro a preveni-los de que de les que, partindo de uma suposta identidade entre nós e os outros
que a cultura brasileira “naturalmente” não estava ao nível daqueles grandes povos civilizados (porque temos a mesma civilização), jul-
dos países “mais adiantados em civilização”. Depois de desculpar-se gam-se dispensados de estudar o nosso grupo nacional nas suas pecu-
com o “argumento etário” da juventude da nação, que só contava um liaridades”, afirmava Viana. Daí a “necessidade de estudarmos o nos-
século de existência, Epitácio pediu aos presentes a sua indulgência: o so povo em todos os seus aspectos; no imenso valor prático destes estu-
Brasil estava no bom caminho, ele afirmava, pois estava emulando os dos: somente eles nos poderão fornecer os dados concretos de um pro-
bons exemplos dos países cêntricos, a que eles pertenciam – países que grama nacional de reformas políticas e sociais” (Viana, 1956:39). O
eram, afinal, os protagonistas verdadeiros da história universal: apelo de Viana não caiu no vazio. Nas duas décadas seguintes vieram a
lume os principais clássicos da formação nacional, como Casa-grande e
Vejais que não ficamos estacionários; que o Brasil, compenetrado da senzala, de Gilberto Freire; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holan-
missão que lhe cabe na cena internacional, tem prestado devotadamen- da; a Aventura política do Brasil, de Azevedo Amaral, ou Formação do
te o seu concurso à obra da civilização em que viveis empenhados e é digno Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr. Surgiram então também obras
da consideração com que o honrais neste momento – vós, que decerto de análise política que teriam impacto por muitas décadas, como Elei-
reconhecereis no esforço pertinaz da nossa adolescente nacionalidade a ção e representação, de Gilberto Amado; Brasil errado, de Martins de
promessa de uma larga política de realizações (Pessoa, 1961:155; ênfa- Almeida, O sentido do tenentismo, de Virgínio Santa Rosa; Maquiavel e o
ses minhas). Brasil, de Otávio de Faria. Esse novo contexto nacionalista também se
refletiu no surgimento das primeiras histórias do pensamento político
O PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO SOB O SIGNO DO brasileiro, destituídas de viés autodepreciativo, como Inteligência do
NACIONALISMO PERIFÉRICO (1922-1970) Brasil, de José Maria Belo, e Orientações do pensamento brasileiro, de Nél-
son Werneck Sodré (Oliveira, 1995:111-112).
O advento de um paradigma cultural nacionalista entre as duas guer-
ras mundiais desencadeou no subcontinente uma mudança importan- A contribuição intelectual decisiva no sentido de rejeitar o papel de
te no modo de conceber o lugar dos países periféricos no mundo e de passivo espectador do movimento do mundo se deu pela recepção do
aferir a qualidade da sua produção cultural. A crítica às concepções historicismo pós-helegiano da escola de Dilthey, promovida por Orte-
evolucionistas unilineares que haviam predominado sob o paradigma ga y Gasset no mundo ibero-americano. Ortega y Gasset estava preo-
cosmopolita permitia identificar a singularidade da cultura de cada cupado com o lugar da atrasada cultura espanhola numa época em que
nacionalidade. Essa crítica matizava a crença na universalidade dos o imperativo da superação do atraso prescrevia aos países periféricos
modelos, avançando, em seu lugar, a tese de que cada país possuía conscientes do seu atraso romper com a sua atrasada identidade cultu-
uma trajetória própria; que não havia linearidade, mas pluralidade ral. Resolver o dilema era impossível no quadro da cronosofia cosmo-
das linhas de evolução nacional. Por outro lado, a singularidade da tra- polita hegeliana, que pusera a filosofia “em um ponto de vista univer-
jetória de cada país se refletia na especificidade de sua cultura, que ga- sal humano, rebelde às determinações concretas do espaço e do tempo,
nhava também, ao menos potencialmente, o selo de “originalidade”. isto é, da história” (Zea, 1956:103). O contato com o historicismo
pós-hegeliano ajudara Ortega y Gasset a resolver o impasse entre na-
Entre nós, Oliveira Viana (IHGB e ABL) já proclamava, na introdução cionalismo reacionário e cosmopolitismo modernizador, adotando
de Evolução do povo brasileiro (1956 [1a edição, 1922]), a inexistência de uma via intermédia pela qual o passado cultural nacional era assumi-
“leis gerais da evolução dos povos”, conforme haviam pregado Com- do e convertido em experiência vital, sem a obrigação de preservá-lo a

745 746
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

qualquer custo. A lição de Ortega y Gasset foi assimilada pelos estu- co estava simplesmente à margem da civilização, porque desprovido
diosos ibero-americanos: a revelação dos vínculos intrínsecos do pen- de originalidade, reconhecia-se que ele estava integrado ao movimen-
samento com as circunstâncias históricas revelava-lhes a similitude es- to intelectual do mundo e que ele tinha o seu valor. No entanto, ele era
sencial entre os processos intelectuais europeus e americanos e a di- considerado qualitativamente inferior aos dos países cêntricos, fican-
mensão simultaneamente nacional e universal de qualquer conheci- do seu valor adstrito à nação que o havia produzido, para fins de auto-
mento, que tornava sem sentido hierarquizá-los. O perspectivismo orte- conhecimento e valorização de sua cultura. Passava-se da condição de
guiano resolvia a oposição entre vida e cultura, entre tradição e ciência, uma não cultura para a de uma meia cultura, quando comparada àquela
ao historicizar e relativizar o conhecimento. Ele permitiria aos intelec- dos países cêntricos. Exemplo de internalização da nova concepção da
tuais ibero-americanos pensar os seus produtos intelectuais, conferin- inserção subalterna da cultura periférica na “história universal” pode
do-lhes “a dignidade de uma filosofia, a dignidade de uma ciência” ser encontrado na obra clássica de José Luis Romero sobre o pensamen-
(Idem:105). to político argentino (2008 [1a edição, 1944]). Para Romero, haveria
dois tipos de reflexão política: “vigoroso e original”, o primeiro deles
Entretanto, não se deve imaginar que a mudança de paradigma – do era produzido em países como a Inglaterra, a França, a Alemanha; o se-
cosmopolita para o nacionalista – tenha sido de tal monta, que essas gundo, constituído de “arremedos de ideias”, em decorrência de sua
obras se traduzissem invariavelmente no reconhecimento de uma condição de países colonizados, seria elaborado em países como Ar-
igualdade da sua reflexão frente àquela dos países cêntricos. Conside- gentina, Brasil e Chile. É verdade que aqueles “arremedos” eram im-
rar e hierarquizar as diversas nacionalidades no plano de uma “histó- portantes para os países ibero-americanos, pois serviam para que eles
ria universal” não significava equiparação automática entre eles no se conhecessem e pudessem modificar seus destinos. Bem se vê, toda-
plano da dignidade. Embora matizada e relativizada, o elemento evo- via, que o interesse em conhecer o pensamento periférico não se justifi-
lutivo da filosofia da história oitocentista – e, com eles, a sua produção cava no seu valor heurístico intrínseco (como o europeu), mas como
intelectual – permanecia, porém, a escaloná-los. Euclides da Cunha já mero documento histórico do passado nacional:
exprimia essa perspectiva do nacionalismo periférico em 1907: “Mais
Nem na Argentina nem no resto dos países hispano-americanos flores-
vale ser um original do que uma cópia, embora esta valha mais do que
ceu um pensamento teórico original e vigoroso em matéria política,
aquele. O ser brasileiro de primeira mão, simplesmente brasileiro, mal-
nem era verossímil que florescesse. Mas (...), à parte o que seja ou não
grado a modéstia do título, vale cinquenta vezes mais do que ser a cópia
original no plano doutrinário, o pensamento político de uma coletivi-
de segunda classe, ou servil oleografia, de um francês ou de um inglês”
dade possui sempre um altíssimo interesse histórico; não somente en-
(Cunha, 1975:114). A antiga classificação entre países civilizados e bár-
quanto é ideia pura, mas também – e acaso mais – enquanto é consciên-
baros foi substituída por outras que, embora supusessem a vocação de
cia de uma atitude e motor de uma conduta (Romero, 2008:10).
todos para se encontrarem na “linha de chegada”, não deixava de reco-
nhecer que eles se achavam em graus diferentes de “desenvolvimen- No Brasil, entre 1930 e 1970, três instituições se notabilizaram por pen-
to” (novo nome do velho “progresso” ou “civilização”). Da mesma for- sar o problema da cultura brasileira no mundo e no seu respectivo sta-
ma, o reconhecimento de um lugar a cada nacionalidade e à sua respec- tus: o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), o Instituto Superior de
tiva cultura não significava que uma e outra estivessem à altura de Estudos Brasileiros (Iseb) e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
seus equivalentes cêntricos. Era possível assim reivindicar a singulari- Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-SP).
dade e a originalidade da cultura nacional, sem prejuízo de seu caráter
exótico, ou subalterno, quando comparadas aos países cêntricos. Os responsáveis pela parte mais expressiva dos estudos de história do
pensamento político no período foram os juristas e filósofos do Institu-
Forjou-se, por força do caráter crítico do paradigma nacionalista, to Brasileiro de Filosofia (IBF), fundado em 1949 por Miguel Reale, ca-
adaptado pelos nacionalistas ibero-americanos, a perspectiva daquilo tedrático de filosofia do direito do Largo de São Francisco. A criação do
a que chamarei inserção subalterna da cultura ibero-americana. Diferen- instituto se deu no contexto de reação dos filósofos ibero-americanos à
temente do paradigma anterior, quando o produto intelectual periféri- tese de que a produção daquele saber fosse um monopólio europeu. A

747 748
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

ambição filosófica de Miguel Reale era a de dar ao Brasil um lugar no bavam sendo produzidas por razões de ordem pragmática. O “realis-
mundo filosófico universal, para além da mera exegese do pensamen- mo social” que atravessara a reflexão brasileira decorreria desse “de-
to estrangeiro. Ao instituto se filiaram outros intelectuais da cena bra- sencanto, da consciência de que o fracasso se deve ao divórcio entre os
sileira, como Djacir Menezes, Antônio Paim, Paulo Mercadante, Vicen- sonhos do ingênuo racionalismo dos fundadores e uma realidade so-
te Barreto e Ubiratan Borges de Macedo, no Rio de Janeiro; Luís Was- cial inadequada para a realização desses ideais, uma realidade social
hington Vita e Roque Spencer Maciel de Barros, em São Paulo; e Nélson que eles desconheciam por completo” (Vita, 1965:4). Não se estava dis-
Saldanha, em Pernambuco (Paim, 1981: 93). Orientado por um autono- tante do diagnóstico de Clóvis Beviláqua, segundo o qual o futuro da
mismo de tintas conservadoras, o IBF se opôs à perspectiva de inserção filosofia brasileira não viria dos “cimos elevados da metafísica”
subalterna do pensamento brasileiro, considerando-a questão de prin- (Beviláqua, 1975:66).
cípio. “O objetivo da história das ideias, que tanto pode se referir à cul-
tura universal como à civilização de cada país” passava, para Reale, O futuro dos estudos “filosóficos” estava naquilo que por eles já se es-
por “indagar das raízes e desenvolvimento das produções humanas tava chamando de “pensamento brasileiro”. Em 1956, Djacir Menezes
que lograram se converter em signos ou momentos da vida espírito”. O publicava no Rio de Janeiro uma coletânea de artigos de diversos auto-
maior erro que se poderia cometer na formulação de nossos juízos críti- res intitulada O Brasil no pensamento brasileiro, que reunia páginas de
cos era o de espelhar-se “tão somente em arquétipos da cultura univer- autores interpelados pelos problemas do desenvolvimento (isto é, da
sal”. Era preciso considerar “as conjunturas históricas que condiciona- superação do “atraso”) e representativos do “alvorecer da consciência
ram a recepção das teorias concebidas nos grandes centros científicos nacional” – não apenas sociólogos e políticos, mas também literatos e
ou artísticos, e, por conseguinte, o papel que aqueles modelos ideais poetas. O tom da coletânea era pedagógico-patriótico: aos olhos do seu
podiam desempenhar em nosso acanhado mundo intelectual” (Reale, autor, o mérito dela estava menos em “ler cuidadosamente os autores
1994:11-12). Também para Antônio Paim, participando do caráter uni- nacionais para compreender os problemas sociais e políticos”, do que
versal da filosofia, as filosofias nacionais se distinguiriam umas das em “selecionar ensinamentos sobre aqueles problemas”. O objetivo
outras apenas por privilegiarem determinados problemas filosóficos era o de levar o leitor a “amar a Pátria na Verdade e na Justiça, com a ve-
em detrimento de outros (Paim, 1984:13). rificação de seus valores autênticos, que os há reconhecidos e reconhe-
cíveis” (Menezes, 1972:19 e 21). O pensamento brasileiro não podia ser
Entretanto, esse intuito de romper com a inserção subalterna esbarrava qualificado como um decalque das concepções estrangeiras, nem mes-
na dificuldade sentida pelos membros do Instituto de se livrarem da mo “quando os autores parecem repetir o que está na literatura euro-
concepção essencialista hegeliana de ideia, vista como um ente univer- peia”. E explicava por quê:
sal, absoluta e desencarnada, que se manifestava na história da cultura As ideias, que se importam e ensaiam aplicar ao Brasil, encontram mai-
como dotada de originalidade. O resultado era previsível: todos eles or ou menor ressonância segundo as circunstâncias sociais e políticas
acabavam concluindo que, devido ao recente passado colonial brasile- nativas: e sua estranheza em relação ao meio teria, como consequência,
iro, não era adequado falar em filosofia brasileira. Não houvera tempo, a desadaptação intelectual das elites, falseando-lhes a compreensão do
alegava-se, para que se formasse entre nós uma corrente autônoma, or- desenvolvimento histórico e de suas leis internas. Tal fato despertaria
gânica, original de ideias. Para os ibefianos, a filosofia brasileira pare- correções – porque as ideias são em toda parte instrumentos de ação,
cia na verdade avessa à especulação, sendo essencialmente pragmáti- mesmo que não pareçam; e nesta hipótese, inscrevem-se na convivên-
ca. Em 1956, Cruz Costa escrevia: “A nossa origem, as condições de cia humana, onde se transformam em forças à medida que representam
nossa formação, a nossa experiência histórica, nos afastam do alcanti- aspirações, projeções de interesses, vitalidade (Idem:10).
lado das metafísicas e nos impelem para a meditação das realidades
concretas e vivas” (Costa, 1956:1). Luís Washington Vita engrossava o Para fugirem do fantasma da condição periférica, que os assombrava
coro: haja vista que o esforço da reflexão latino-americana passava por com a falta de originalidade, os filósofos do IBF decidiram, então, abra-
conhecer a realidade social, econômica, cultural e geográfica do conti- çar aquela parte do acervo intelectual nacional que mais lhes parecia
nente para transformá-lo e modernizá-lo, a filosofia e a sociologia aca- conter algo de único: a “filosofia social”, que reunia alguma coisa de

749 750
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

ética, outro bocado de estética, e muita política. Nelas, percebia-se que, Alberto Torres, dava o tom das futuras críticas em 1914: nossos intelec-
ao receber as ideias europeias, o Brasil as adaptara, de modo a confe- tuais políticos “bordavam sobre a realidade da nossa vida uma teia de
rir-lhe um colorido particular. O objeto de uma história intelectual bra- discussões abstratas, ou retóricas; digladiavam-se em torno de fórmu-
sileira deveria recair, portanto, sobre o modo como a filosofia europeia las constitucionais, francesas ou inglesas; tratavam das eleições, discu-
foi recepcionada no Brasil – entendendo-se aqui, por recepção, a apro- tiam teses jurídicas (...), imitando ou transplantando instituições e
priação ativa de autores, ideias e temas de um sistema cultural-intelec- princípios europeus” (Torres, 1982a:62). Por isso, não lhe doía afirmar:
tual para os propósitos de outro: “Na maneira de sermos influenciados “Nunca chegamos a possuir cultura própria, nem mesmo uma cultura
poderá residir algo de próprio e singular” (Reale, 1998:75). geral” (Torres, 1982b:14). Em 1922, seu principal discípulo, Oliveira
Viana, daria nome a essa ideologia que contaminaria a produção inte-
Por outro lado, partindo da premissa de que, para além da nossa “filo- lectual nacional desde a nossa independência: “idealismo utópico”. E
sofia social”, a produção intelectual nativa não alcançava qualidade, explicava do que se tratava:
era preciso reconhecer que seria exagerado pretender inventariá-las
Entre nós, não é o povo, na estrutura, na sua economia íntima, nas con-
numa “história da filosofia do Brasil”. Na melhor das hipóteses, seria
dições particulares da sua psique, que os organizadores brasileiros, os
possível elaborar, no lugar daquela, uma “história das ideias filosóficas
elaboradores dos nossos códigos políticos, vão buscar os materiais
no Brasil”. A mudança de terminologia queria dizer que, para os mem-
para as suas formosas e soberbas construções: é fora de nós, é nas juris-
bros do IBF, a filosofia não era nacional, mas universal; e que, no Brasil,
prudências estranhas, e em estranhos princípios, é nos modelos estra-
não havia um encadeamento de pensadores originais, profundos e coe-
nhos, é nos exemplos estranhos, é em estranhos sistemas que eles se
rentes. E as histórias das ideias não tardaram. Em seus ensaios de 1962,
abeberam e inspiram (Viana, 1939:7).
Miguel Reale empregava como equivalentes as expressões “história
das ideias no Brasil” e “história do pensamento brasileiro”. Obras ge- Voltando ao assunto em 1949, ele recorreria ao dilema do mazombo de
rais sobre o pensamento político brasileiro, publicadas por Nélson Sal- modo crítico: “Vivem todos eles [nossos autores políticos] entre duas
danha e João Camilo de Oliveira Torres, chamaram-se, respectivamen- ‘culturas’: uma – a do seu povo, que lhes forma o subconsciente coleti-
te, História das ideias políticas no Brasil (1967) e Interpretação da realidade vo; outra – a europeia ou norte-americana, que lhes dá as ideias, as di-
brasileira – Introdução à história das ideias políticas no Brasil (1968). Foi retrizes do pensamento, os paradigmas constitucionais, os critérios do
também em 1967 que a obra resultante do maior esforço desenvolvido julgamento político” (Viana, 1974:19).
pelo instituto na produção de uma história da filosofia brasileira acabou
batizada por seu autor, Antônio Paim, como História das ideias filosóficas Encontramos a mesma postura de rejeição do passado intelectual bra-
no Brasil. Já se consolidava na academia a noção de que, embora valesse sileiro pelo seu caráter antinacional na década de 1950, junto aos inte-
a pena ser inventariada, a produção intelectual nacional não era boa o lectuais nacional-desenvolvimentistas reunidos no Iseb. Para Hélio
bastante para ser qualificada como “filosofia” (ou “teoria”); que ela só Jaguaribe, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, filosofia ou cultura
podia ser apreendida em suas manifestações como “pensamento” e es- autenticamente brasileira não poderia ter existido até então, dada a
tudada por meio de uma “história das ideias”. Inserção subalterna, condição de colonial, depois semicolonial do país, marcada pela in-
portanto. consciência de si. O Brasil havia sido um país formalmente colonizado
e depois passara a uma situação semicolonial face aos países cêntricos.
Já os intelectuais nacionalistas do Instituto Superior de Estudos Brasi- Uma vez que a colonização era “um fenômeno social total”, o comple-
leiros (Iseb) se situavam entre o nacionalismo conservador do IBF e o xo colonial era “globalmente alienado”. Resgatando a imagem do Bra-
cosmopolitismo cientificista e marxista da USP. A primeira reação do sil como uma terra sem história nem povo, Corbisier afirmava: “A colô-
nacionalismo crítico isebiano, diante do acervo intelectual brasileiro, nia não é cultura, mas natureza; não é história, mas geografia; não é
elaborado sob o paradigma cosmopolita, foi o de rejeitá-lo como ex- tempo, mas espaço; não é vigília, mas torpor; não é forma, porém maté-
pressivo da mentalidade alienada e, como tal, inautêntica, típica da ria; não é consciência, mas autonomismo” (Corbisier, 1958:69). Em seu
condição periférica. O fundador da linhagem que desaguaria no Iseb, inventário sobre a história da filosofia brasileira, Jaguaribe já expressa-

751 752
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

ra o seu juízo: “Nossa filosofia, até os dias correntes, não tem originali- por exemplo. Todos eles partiam do pressuposto de que era necessário
dade e é pouco autêntica” (Jaguaribe, 1957:14). Melhor juízo não era superar o estado de dependência do país e de alienação de suas elites
aquele de Nélson Werneck Sodré, cujo nacionalismo marxista conde- face aos “países cêntricos”. Uma vez que “jamais se chega a constituir
nava o pensamento nacional brasileiro por refletir a ideologia do colonia- uma ciência nacional, se as gerações de especialistas não se articulam
lismo, que legitimava o domínio da classe dominante, pela “adoção ser- no sentido de um labor contínuo” (Ramos, 1957:124), lhe parecia ser so-
vil de modelos externos” extraídos das potências imperialistas (Sodré, bre aquela tradição que se deveria fundar a nascente ciência social bra-
1965:12). Somente àquela altura da década de 1950, graças ao processo sileira: “O caminho da autoafirmação do pensamento brasileiro já está
acelerado de industrialização, urbanização e integração do mercado aberto, carecendo apenas dos que continuem o trabalho dos
interno, a condição semicolonial do país estava em vias de superação; desbravadores” (Ramos, 1953:34).
somente então, por conseguinte, surgiam condições objetivas para a
produção de uma autêntica cultura brasileira. Era o que explicava Viei- Guerreiro Ramos se destacava, assim, como crítico frontal do caráter
ra Pinto: a “consciência brasileira, em virtude do ponto a que chegou o etnocêntrico da filosofia da história positivista e marxista, bem como
processo de desenvolvimento material da nação”, apenas então (1956) das “teorias da modernização” subjacentes a ela, elaboradas nos Esta-
alcançava “aquele grau de claridade que começa a permitir-nos a per- dos Unidos. Em seu livro O processo da sociologia no Brasil (1953), já de-
cepção exata do nosso ser” (Pinto, 1960:28). Antes, não. nunciava o caráter eurocêntrico do ideal sociológico do conhecimento
“universal”, atribuindo sua aceitação na periferia a uma “superfetação
Chefe do departamento de sociologia do Iseb, Guerreiro Ramos foi compensatória” decorrente do complexo de inferioridade de suas eli-
quem combateu essa postura de rejeição integral do pensamento brasi- tes (Ramos, 1953:9). Em toda a parte, as ciências sociais teriam surgido
leiro pretérito por parte dos colegas. Guerreiro não discordava do cará- como “instrumentos de decifração nacional” em função de imperati-
ter colonizado ou inautêntico do pensamento brasileiro, nem que ele vos políticos práticos. No entanto, devido à importância que a filosofia
estava em vias de emancipação em meados da década de 1950. De acor- da história possuía no pensamento na década de 1950, o estatuto do
do com a filosofia da história corrente na instituição, ele entendia à pensamento brasileiro ainda não estava de todo isento de ambiguida-
moda hegeliana que, por não terem história própria, todos os países des em Guerreiro Ramos. Se, por um lado, ele afirmava que os autores
colonizados ou descobertos eram “versões da história de povos coloni- referidos constituíam “o elo da ciência brasileira, da teoria social brasile-
zadores, ou material etnográfico destes povos”; daí a inclinação de ira, que vem se formando por acumulação” (Ramos, 1961:169), por ou-
suas elites por “adotar as ideias alienígenas”, obedecendo “à lei da tro, ele ponderava que as obras por eles deixadas refletiam “o grau de
imitação do superior pelo inferior”. Tratava-se de um tipo de imperia- consciência possível” da época em que foram elaboradas; que, antes de
lismo cultural “assegurado pelo próprio fascínio que exercem sobre os 1930, ainda não era possível “atingir-se uma concepção configurada
colonizados as instituições dos povos conquistadores” (Ramos, da sociedade brasileira” por faltarem então “condições objetivas”; e
1953:11). Explicava-se desse modo o caráter alienado do pensamento que de nenhuma delas resultara “a formação de uma ideologia orgâni-
periférico – o seu “idealismo utópico”, para recuperar a expressão de ca da realidade brasileira apta a tornar-se o suporte de uma ação políti-
Oliveira Viana. Entretanto, o processo de superação da condição colo- ca de verdadeiro sentido nacional” (Ramos, 1957:69). Apenas naquele
nial ou semicolonial, explicava Guerreiro, era concomitante àquele de momento (a década de 1950) havia plenas condições de se teorizar a re-
superação da mentalidade alienada por parte dos intelectuais. O estu- alidade brasileira de modo competente. Esse rescaldo de cronosofia
do do nosso passado – e aqui estava sua diferença em relação aos seus não deixava de rebaixar, em alguma medida, as tentativas anteriores
colegas – revelava que nem tudo o que aqui se produzira fora cópia ser- efetuadas no sentido de apreender a realidade política brasileira.
vil dos modelos estrangeiros; que havia, ao longo de nossa história,
uma tradição de autores que haviam deixado valiosas contribuições no No extremo oposto do IBF, e polemizando contra o Iseb, a instituição
campo do pensamento, vinculadas “à problemática da sociedade bra- onde eram menos favoráveis as condições para a superação ou crítica
sileira”: o visconde de Uruguai, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, Eu- da perspectiva subalterna era a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
clides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral, cias Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Devido à

753 754
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

longamente cultuada formação afrancesada da instituição e por sua dos ideais que possuem caráter ‘universal’” (Fernandes, 1977:50). A
ojeriza ao nacionalismo isebiano, percebido como sinônimo de autori- cronosofia por ele mobilizada não era a hegeliana, cultural-nacional,
tarismo, os uspianos se orientavam por um cosmopolitismo que, fun- de livre curso no IBF e no Iseb, mas a positivista, elaborada por Comte e
dando-se em critérios qualitativos dotados de alcance “universal”, amaciada por Durkheim. Examinando a partir dessa matriz o “pro-
não tinha pruridos em reconhecer a inferioridade da produção brasi- gresso da ciência social” brasileira, Florestan postulava que, apenas
leira. Eis como o sociólogo Fernando Azevedo avaliava a cultura bra- em 1920, tivera início no Brasil “a transição da análise histórico-socio-
sileira em seu livro homônimo, em 1939: lógica, descritiva ou pragmática em investigação positiva” (Idem: 42).
O principal marco desse progresso era a fundação da própria Universi-
A cultura [brasileira] apresenta graves lacunas e, tanto pela qualidade
dade de São Paulo, onde lecionava, e, nela, do departamento de socio-
como pelo volume, sobretudo do ponto de vista filosófico e científico,
logia, de que ele era o chefe. Praticado por bacharéis em direito e jorna-
não se desenvolveu no mesmo ritmo da civilização, apresentando-se
listas, o pensamento brasileiro pretérito era descartado como “ensaís-
ora retardada em relação a outros países de civilização comum, ora
mo”, ideológico ou parassociológico, típico de uma etapa ultrapassa-
marcada pela superficialidade e pelo diletantismo, artificial e “desinte-
da da vida científica brasileira, que participava agora do movimento
ressada pela civilização em que floresceu” (Azevedo, 1963:44).
“universal” da sociologia. Os estudos da sociologia não deveriam par-
Dezesseis anos depois, o filósofo João Cruz Costa expunha visão seme- tir, assim, das anteriores hipóteses veiculadas pelos pensadores brasi-
lhante na sua Contribuição à história das ideias no Brasil: prolongamento leiros, porque o seu valor era apenas histórico. Nesta perspectiva, tudo
da Europa, a América não teria civilização própria, nem filosofia origi- o que os sociólogos poderiam fazer a respeito dos autores brasileiros
nal – tinha apenas esboço de filosofia. Sua posição era a mesma de José do passado era estudá-los como tais, enquanto grupo, deixando de
Luis Romero na Argentina, quando afirmava que o estudo das “ideias” lado a questão do valor heurístico das obras por eles deixadas, e que
brasileiras só se justificava na medida em que era preciso conhecer a deveriam ser consideradas somente no plano de suas estratégias de as-
“experiência americana” da filosofia. O pensamento europeu teria ad- censão social. Em outras palavras, se um dia o fizessem, os sociólogos
quirido na América um “estilo” próprio, decorrente do transplante das uspianos poderiam estudar os autores brasileiros do passado somente
ideias para este lado do oceano. As “transformações ou deformações” no plano de uma sociologia dos intelectuais, deixando de fora a possibili-
sofridas neste processo era o que tornavam o pensamento brasileiro dade de estudar suas obras como representativas de uma sociologia bra-
digno de ser estudado (Costa, 1956). Dois anos depois, em Formação da sileira. Produzida a partir da década de 1970, a obra de Sérgio Miceli
literatura brasileira, o crítico literário Antônio Cândido reiterava a pers- não romperia, pelo menos neste aspecto, com a lógica de Florestan Fer-
pectiva da inserção subalterna, partilhada por seus colegas da sociolo- nandes.
gia e da filosofia. Embora reconhecesse a peculiaridade da literatura
brasileira, o autor não deixava de reconhecer a sua inferioridade, A filosofia da história positivista não era a única a ter livre curso na
quando comparada à dos países cêntricos: “Comparada às grandes, a FFLCH-USP. Porque, na sua vertente mais dogmática, tendia a refutar
nossa literatura é pobre e fraca”. Ela era “um galho secundário da por- como ideológico quase tudo o que se produzira no país, a filosofia mar-
tuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem do jardim das musas” xista da história renovou os antigos obstáculos para a superação da
(Cândido, 2008:11). Ou seja, era uma literatura de terceira categoria. perspectiva da “inserção subalterna” do pensamento brasileiro. O
marxismo dera pela primeira vez o ar de sua graça no campo em 1954,
Nos anos 1950, o estudo do pensamento brasileiro acabou interditado quando Dante Moreira Leite defendera na faculdade de pedagogia sua
na sociologia uspiana por considerações derivadas da filosofia da his- tese intitulada O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia
tória. Desta vez, sua inferioridade não foi decretada a partir dos crité- (1954). Esta última era definida como um “obstáculo no processo pelo
rios “universais” (cêntricos) do que fosse a filosofia, mas sim do que qual uma nação surge entre as outras, ou pelo qual um povo livre surge
fosse a “ciência”. Florestan Fernandes alegava em Desenvolvimento his- na história”, e acusava os autores do pensamento brasileiro de encobri-
tórico-social da sociologia no Brasil (1956) que o trabalho do cientista so- rem a realidade de luta de classes no país (Leite, 1992:329). O advento
cial deveria ser examinado “à luz das obrigações, dos procedimentos e do regime militar, dez anos depois, acirrou a aversão dos uspianos ao

755 756
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

nacionalismo e entronizou o marxismo como sua linguagem acadêmi- Costa assegurava que o liberalismo oitocentista brasileiro não teria
ca. Naquele contexto, uma história das ideias políticas no Brasil só va- sido eficaz em seus efeitos supostamente liberatórios porque era estra-
leria na medida em que fizesse a denúncia do traço autoritário que, nho ao meio para o qual fora transportado (Costa, 1968:90). A imagem
desde o período colonial, atravessaria a nossa cultura política. A “his- da periferia a desfigurar as ideias cêntricas reaparecia no célebre ensa-
tória das ideias” só podia existir como “história das ideologias”. Nesse io de Roberto Schwarz, As ideias fora do lugar (1972), em que o autor afir-
quadro, não admira que um dos primeiros textos modernos acerca do mava que a importação da ideologia liberal burguesa europeia para
pensamento político da independência, elaborado na Faculdade de uma sociedade escravista e latifundiária, como a brasileira, resultara
História por Maria Odila Leite da Silva Dias, tivesse por título Ideologia numa verdadeira “comédia ideológica” (Schwarz, 2000:25). Em outras
liberal e construção do Estado (1976). Ao publicar em 1977 seu livro Ideo- palavras: o pensamento político, ou permanecia estranho ao meio e
logia da cultura brasileira, o também historiador Carlos Guilherme Mota passava a ser empregado pela elite culta para fins de ornamentação,
declarava pretender denunciar por meio dele tudo o que, entre nós, se ou, se aplicado, terminava “deformado” em relação à sua matriz
produzira “no sentido de mascarar, justificar, desviar ou diagnosticar europeia.
os processos vividos” (Mota, 1977:21, 50). Naquele mesmo ano, Caio
Navarro de Toledo condenava em sua tese o pensamento nacionalista CONCLUSÃO
dos isebianos, acusando aquela instituição de ter sido uma “fábrica de
ideologias”. Por ideologia, entendia-se aqui “a ideologia da classe do- Não há como desvincular o estudo da história do pensamento brasilei-
minante: mistificadora, dissimuladora”, em contraposição à ciência ro da visão de mundo daqueles que o produziram, de acordo com a
que, por sua vez, equiparada ao marxismo, seria aliada ou instrumento qual o Brasil se achava na periferia do mundo “civilizado”. Assim é
natural das classes dominadas (Toledo, 1977:21-22). que, nela, o emprego da palavra “pensamento” no lugar de “teoria”,
para designar os seus produtos intelectuais, parece já embutir o reco-
A partir da segunda metade da década de 1960, a chamada teoria da nhecimento da sua inferioridade. Havia implícita uma espécie de divi-
dependência de Fernando Henrique Cardoso facultou a diversos pro- são do trabalho intelectual: os países cêntricos produziriam a “teoria”,
fessores da instituição uma abordagem que, embora marxista, era me- ou a “ciência”, ou a “filosofia”, ou seja, reflexões de alcance “univer-
nos dogmática e, portanto, menos improdutiva para a análise do pen- sal” e, portanto, mais densas, mais abstratas, mais generalizantes, ao
samento político brasileiro. Ao invés de descartarem como ideologia passo que os países periféricos produziriam somente “pensamento”,
burguesa o pensamento político brasileiro, muitos professores passa- reflexões de alcance puramente particular ou local, de caráter menos
ram a se interessar pelo modo por que o Brasil recepcionara o ideário abrangente e contingente, orientado para a ação prática. Quem produ-
oriundo dos países centrais, especialmente na história e na literatura. zia teoria era um autor, isto é, um especialista, um acadêmico, um cien-
No entanto, diferentemente dos ibefianos, os uspianos salientavam o tista. Quem produzia pensamento, ao contrário, era um ator, voltado
modo equivocado ou desviante por que aquelas ideias politicas teriam para a aplicação da teoria para um contexto mais circunscrito no tempo
sido recepcionadas11. Deslocadas da estrutura social e econômica ori- e no espaço. O pensamento se caracterizaria pela aplicação prática, por
ginal dos países cêntricos, ao serem absorvidas pela elite brasileira, ru- parte dos atores dos países periféricos, à sua realidade política específi-
ral, escravista, analfabeta, as ideias políticas no Brasil acabaram con- ca, concreta e particular, da teoria político-social produzida por autores
denadas à esterilidade, à deformação ou à hipossuficiência (Carvalho, que, instalados nos países cêntricos, elaborariam uma reflexão dotada
1998:124-125). Em 1967, Cruz Costa afirmava que “as culturas estra- de um nível maior de abstração e uma pretensão de validade universal.
nhas”, isto é, cêntricas, expressavam “uma experiência histórica mais O pensamento era considerado um subproduto da teoria, tanto quanto
rica do que a nossa”. A vida intelectual brasileira restara prejudicada se considerava a periferia um subproduto do centro, e os atores políti-
pelas “contradições existentes em nossa história, relacionadas com as cos, subproduto dos autores. O pensamento periférico, entendido
vicissitudes da adaptação das ideias de importação e as estruturas so- como um ramo de segunda ordem, qualitativamente inferior ao euro-
cioeconômicas sobre as quais ainda pesa o resíduo de um passado colo- peu, porque examinado por meio de critérios como “originalidade”, só
nial” (Mota, 1968:9). No ano seguinte, a historiadora Emília Viotti da teria serventia para os membros da própria comunidade igualmente

757 758
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

periférica que o produzira. O centro produziria teoria, filosofia e ciência antiga periferia – entre os quais o próprio Brasil. Por fim, com a crise do
na forma de tratados originais e universais; da periferia, só se pode- marxismo soviético, esgotou-se a própria filosofia da história. Hoje, ra-
riam esperar pensamentos ou histórias das ideias, plasmados em ensaios ros são os estudiosos brasileiros que ainda têm a coragem de procla-
sem originalidade ou simplesmente de baixa densidade intelectual. mar – em público, ao menos – a inutilidade do estudo do pensamento
nacional em razão de sua “inferioridade”. Mas essa reorientação pare-
Entretanto, o artigo mostrou que esse quadro não permaneceu estáti- ce ter ocorrido antes de modo intuitivo do que em função de uma críti-
co. Ao longo do século XX, houve uma atenuação do grau de inferiori- ca adequada à matriz anterior.
dade do pensamento brasileiro na percepção de suas elites, que acom-
panhou a mudança de atitude imposta pelo paradigma nacionalista, Muitas questões permanecem abertas. Este texto esteve mais preocu-
adaptado para a periferia. Ela foi impulsionada pelas transformações pado em comprovar a má impressão que nossos próprios intelectuais
operadas no âmbito da estrutura social, política e econômica brasilei- tinham do nosso pensamento político do que em esmiuçar as razões
ra, no sentido de uma maior urbanização, demografia, integração do por eles apresentadas para justificá-la. Outras questões ainda estão
mercado interno e desenvolvimento social e tecnológico. Por outro por investigar. Por que nossos intelectuais consideravam que não exis-
lado, aquele “crescendo” experimentou certa interrupção em 1964, tia o povo? Em algum momento, mudaram de diagnóstico? De que
quando o advento do regime militar levou parte significativa da inte- modo os “males da formação nacional” afetaram a percepção da quali-
lectualidade a instrumentalizar o estudo do passado nacional para de- dade ou da própria existência do pensamento político nacional? Como
nunciá-lo por seu caráter autoritário. Ao mesmo tempo, apesar de ma- foi que cada modalidade de filosofia da história – a liberal, a positivis-
tizada, persistia uma abordagem tributária de uma cronosofia etno- ta, a culturalista e a materialista – impactou no processo de cognição
cêntrica, que pensava a ideia como um ente essencializado, absoluto, sociopolítica nacional e se refletiu, em cada época, na forma de se ava-
desencarnado das pessoas, que tinha um “lugar” (o “centro”) e que so- liar nossos produtos intelectuais? Compreendido de modo detido a
fria forçosamente alterações qualitativas negativas quando transferi- maneira por que o pensamento político foi fabricado na periferia, será
do a outro (a “periferia”). Esses vaivéns decorrentes do acidentado possível, mais adiante, sugerir um método alternativo de estudá-lo,
processo brasileiro de democratização e da expansão do seu capitalis- apto a suprimir a distinção qualitativa entre “teoria política” (“univer-
mo, entre as décadas de 1940 a 1970, se refletiram – em graus maiores sal” – cêntrico – superior) e “pensamento político” (“local” – periférico
ou menores – no juízo acerca do valor do pensamento político brasilei- – inferior). Essa tarefa passa, também, pela superação da consideração
ro expresso por intelectuais das três instituições aqui examinadas, ain- das “ideias políticas” como dotadas de vida e lugar próprios, bem
da que de modo panorâmico: o IBF, o Iseb e a FFLCH-USP. como de sua indeclinável historicidade. Este texto constitui uma pri-
meira tentativa de compreender a história da história do pensamento polí-
Por fim, o quadro descrito não parece mais representativo da situação tico brasileiro, a fim de que, conhecidas as premissas sobre a qual ele e
atual. O processo de superação da “condição periférica”, ao menos no seu estudo se assentam, seja possível, mais adiante, sugerir formas al-
que diz respeito à avaliação do pensamento político-social brasileiro, ternativas e mais produtivas de investigá-lo.
sofreria uma primeira importante inflexão na década de 1970, com a (Recebido para publicação março de 2013)
pesquisa de Wanderley Guilherme e o debate sobre o pensamento au- (Reapresentado em julho de 2013)
toritário brasileiro; e uma segunda, nos últimos quinze anos, ao longo (Aprovado para publicação em outubro de 2013)
dos quais erodiram muitos dos pressupostos por que se justificara, no
passado, a crença da inserção subalterna da nossa cultura no quadro
mundial. Para tanto, contribuíram a denúncia das concepções cultura-
is etnocêntricas vigentes na nossa sociedade desde a segunda metade
da década de 1980 e a própria crise do eurocentrismo, agravada nos úl-
timos anos pela estagnação econômica daquele continente e sua deca-
dência relativa frente aos novos poderes emergentes oriundos de sua

759 760
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

NOTAS da depois da Guerra Franco-Prussiana. Apenas na virada da década de 1920 para a


de 1930 começou a haver uma introdução e recepção da filosofia hegeliana na França
1. É verdade que a maior parte dessas obras versa sobre o pensamento social do Brasil de modo mais aberto e sistemático, por parte de estudiosos como Jean Wahl, Alexan-
em geral e não apenas sobre sua parte política. Mas a subárea cresce junto com a área dre Kojève e Jean Hyppolite. Seja como for, a primeira tradução francesa do corpus
como um todo. hegeliano só foi feita na década de 1860 (Bohm, Mudimbe, 2010:8).

2. Esse caráter fundador da pesquisa é reconhecido mesmo pelos seus críticos, como 10. Embora houvesse histórias da literatura em sentido amplo (como as de Norberto de
Bolívar Lamounier (1982:430) e Gildo Marçal Brandão (2007:25). Sousa, Sílvio Romero e José Veríssimo), não faltaram ensaios de história da filosofia,
escritos por Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. Algumas histórias constitucionais da
3. A simples tentativa de responder tais momentosas questões, no âmbito do projeto de
lavra de Aurelino Leal e Agenor de Roure, efetuadas na década de 1910, eram o que
pesquisa elaborado por Gildo Marçal, teria um alcance extraordinário: ela poderia
mais se aproximava de uma história do nosso pensamento político.
criar novos instrumentos para analisar obras e autores no contexto do próprio pro-
cesso político brasileiro. Da mesma forma, se ela tivesse tido lugar, teria sido possí- 11. Em 1977, o próprio Fernando Henrique Cardoso aludiria em livro aos “efeitos da de-
vel realizar interpretações de conjunto e de maior fôlego do pensamento brasileiro, pendência sobre a produção das ideias”, citando como autores comprometidos com
que lhe permitiria ir além da mera descrição atomizada dos argumentos dos autores aquela visão justamente Cruz Costa, Antônio Cândido e Roberto Schwarz (Cardoso,
canônicos, ou da comparação de seu pensamento no plano teórico. 1980:17-18).

4. Pronunciada a 10 de maio de 2013 no Laboratório de Teoria e Historiografia da Ponti-


fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
5. É neste sentido que, no texto introdutório da coleção em vários volumes denomina-
da História da Teoria Política, Fernando Vallespín, seu organizador, responde à ques-
tão: “Nos momentos atuais, a opção por um ou outro título parece responder mais à
necessidade de cumprir com a denominação convencional das distintas especialida-
des acadêmicas de cada país que a autênticos critérios metodológicos. O que na Fran-
ça é quase unanimemente classificado como Histoire des idées politiques vem a corres-
ponder à politische Theoriengeschichte alemã ou à History of Political Thought an-
glo-saxã, que são os termos dominantes nesses países” (Vallespín, 1990:7).
6. Encontramos a distinção implícita na própria coleção de Fernando Vallespín, que in-
titula o capítulo dedicado a Hegel de “filosofia política”; o de Stuart Mill de “teoria
política”, e aquele de Donoso, Balmès e Martinez de Rosa de “pensamento político”.
7. Assim, por exemplo, um livro organizado por professores da Universidade de Bue-
nos Aires e publicado em 2001, que cuida da obra de Moreno, Echeverría, Alberdi e
Sarmiento, se intitula “Origens do pensamento político argentino”. A referida Histó-
ria da teoria política, organizada na Espanha em seis volumes por Fernando Vallespín,
na década de 1990, traz, em seus diversos volumes, capítulos referentes ao chamado
“pensamento político espanhol” e ao “pensamento político ibero-americano”. Em
2000, a Editorial Trotta deu à luz também um livro chamado “O pensamento social e
político ibero-americano do século XIX”.
8. “O hispânico de agora, como de ontem, se lamenta, não tanto pelo que não possui,
mas pelo que podendo possuir não tem. Formando parte, como formava, da cultura
europeia; sendo, como era, parte da história por excelência, que ele, o hispânico, não
pôde fazer e que agora se vê obrigado a realizar. O hispânico não quer começar a his-
tória como se nada estivesse feito; simples e puramente quer formar parte da história
que se vinha fazendo, da história já feita pelo espírito, como assinalava Hegel, que
outra coisa não faz senão tomar consciência de si mesmo; realizar-se a si mesmo,
ler-se num livro que foi escrito desde a eternidade. Tudo o que está fora deste espírito
não poderá ser outra coisa, que um arremedo da história” (Zea, 1983:158).
9. Na França oitocentista, Hegel era visto como o filósofo do pan-germanismo e, como
tal, vitimado pelos nacionalismos conflitantes dos países, cuja tensão foi maximiza-

761 762
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERNANDES, Florestan. (1977), A Sociologia no Brasil: Contribuição para o Estudo de sua
Formação e de seu Desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.
ALMEIDA, Martins de. (1932), Brasil Errado: Ensaio Político sobre os Erros do Brasil como HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. (2006), Introdução à História da Filosofia. Lisboa, Alme-
País. Rio de Janeiro, Schmidt Editor. dina.
AMADO, Gilberto. (1963), Três Livros: A Chave de Salomão e Outros Escritos; Grão de Areia e GAUCHET, Marcel (org.). (2002), Philosophie des Sciences Historiques: Le Moment Romanti-
Estudos Brasileiros; A Dança sobre o Abismo. Rio de Janeiro, José Olympio. que. Paris, Seuil.
ANAIS do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Senhores Deputados, 1826-1889 (1889). HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1936), Raízes do Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio.
Rio de Janeiro, Tipografia de Viúva Pinto & Filho.
JAGUARIBE, Hélio. (1957), A Filosofia no Brasil. Rio de Janeiro, Iseb.
AZEVEDO, Fernando. (1963), A Cultura Brasileira: Introdução ao Estudo da Cultura no Bra-
sil. 4a edição, revista e ampliada. Brasília, UnB. JAHANBEGLOO, Ramin. (1996), Isaiah Berlin: Com toda Liberdade. Tradução de Fany Kon.
São Paulo, Perspectiva.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. (1922), Transatlantismo. Careta, Rio de Janeiro, 8
de julho. LAIDLER, Christiane Vieira. (2010), A Segunda Conferência da Paz de Haia – 1907: O Brasil e
o Sistema Internacional no Início do Século XX. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui
BEVILÁQUA, Clóvis. (1975), Obra Filosófica. Volume II: Filosofia Social e Jurídica. Introdu- Barbosa.
ção de Santiago Dantas. São Paulo, Edusp.
LAMOUNIER, Bolívar. (1982), “Formação de um Pensamento Político Autoritário na
BOHM, Arnd; MUDIMBE, Valentin-Yves. (2010), Hegel’s Reception in France. Disponível
Primeira República: Uma Interpretação”, in B. Fausto (org.), História Geral da Civiliza-
em http://web.ics.purdue.edu/~smith132/French_Philosophy/Fa94/hegel.pdf.
ção Brasileira – O Brasil Republicano, vol. 9, 3a edição, Rio de Janeiro, Difel.
Acessado em 6 de fevereiro de 2013.
LEITE, Dante Moreira. (1992), O Caráter Nacional Brasileiro: História de uma Ideologia. 5a
BONFIM, Manuel. (1993), A América Latina: Males de Origem. 4a edição. Rio de Janeiro,
edição. São Paulo, Ática.
Topbooks.
LIMA, Manuel de Oliveira. (1967), História da Civilização. 16a edição, revista. São Paulo,
BRANDÃO, Gildo Marçal. (2007), Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. São Paulo,
Melhoramentos.
Hucitec.
LÖWITH, Karl. (1977), O Sentido da História. Tradução de Maria Georgina Segurado. Lis-
CÂNDIDO, Antônio. (2008), Formação da Literatura Brasileira. 10a edição. Rio de Janeiro,
boa, Edições 70.
ABL.
MELLO, Evaldo Cabral. (2002), Um Imenso Portugal: História e Historiografia. São Paulo,
CARDOSO, Fernando Henrique. (1980), As Ideias e seu Lugar: Ensaios sobre as Teorias do
Editora 34.
Desenvolvimento. Petrópolis, Vozes.
MENEZES, Djacir. (1972), O Brasil no Pensamento Brasileiro. 2a edição. Brasília, Conselho
CARVALHO, José Murilo de. (1998), “História Intelectual no Brasil: A Retórica como
Nacional de Cultura.
Chave de Leitura”. Revista Topoi, no 1, pp.123-152.
MOTA, Carlos Guilherme (org.). (1968), O Brasil em Perspectiva. São Paulo, Difel.
CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de. (1996), Esboço de um Qua-
dro Histórico dos Progressos do Espírito Humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de . (1977), Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo, Ática.
Moura. Campinas, Unicamp.
NABUCO, Joaquim. (1949a), Discursos parlamentares. São Paulo, Progresso Editorial.
CORBISIER, Roland. (1958), Formação e Problema da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro,
. (1949b), Minha Formação. Rio de Janeiro, Jackson Editores.
Iseb.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. (1995), “As Ciências Sociais no Rio de Janeiro”, in S. Micelli
COSTA, Emília Viotti da. (1968), “Introdução ao Estudo da Emancipação Política”, in C.
(org.), História das Ciências Sociais no Brasil. Volume II. São Paulo, Fapesp.
G. Mota (org.), Brasil em Perspectiva. 7a edição. São Paulo, Difel.
PAIM, Antônio. (1981), “Miguel Reale e a Filosofia Brasileira”, in M. Reale (org.), Miguel
COSTA, João Cruz. (1956), Contribuição à História das Ideias no Brasil (O desenvolvimento da
Reale na UnB. Brasília, UnB.
filosofia no Brasil e a evolução histórica nacional). Rio de Janeiro, José Olympio.
. (1984). História das Ideias Filosóficas no Brasil. 3a edição, revista e aumentada. São
COUTY, Louis. (1988), A Escravidão no Brasil. Tradução de Maria Helena Rouanet. Rio de
Paulo, Convívio.
Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa.
PESSOA, Epitácio. (1961), Conferência da Paz, Diplomacia e Direito Internacional. Obras
CUNHA, Euclides da. (1975), Contrastes e Confrontos. São Paulo, Cultrix.
completas de Epitácio Pessoa, volume XIV. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Li-
. (1999), À Margem da História. São Paulo, Martins Fontes. vro.

763 764
Por Que Pensamento e Não Teoria? Christian Edward Cyril Lynch

PINTO, Álvaro Vieira. (1960), Ideologia e Desenvolvimento Nacional. 4a. edição. Rio de Jane- . (1974), Instituições Políticas Brasileiras. Volume II: Metodologia do direito público (os
iro, Iseb. problemas brasileiros de ciência política). 3a edição. Rio de Janeiro, Distribuidora Re-
cord.
RAMOS, Alberto Guerreiro. (1953), O Processo da Sociologia no Brasil (esquema para uma
história das ideias). Rio de Janeiro, [s.n.]. VITA, Luís Washington. (1965), Alberto Sales: Ideólogo da República. São Paulo, Compa-
nhia Editora Nacional.
. (1957) Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro, Editorial Andes Li-
mitada. WEFFORT, Francisco. (2006), Formação do Pensamento Político Brasileiro. Idéias e Persona-
gens. São Paulo, Ática.
. (1961), A Crise do Poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de
Janeiro, Zahar Editores. ZEA, Leopoldo. (1956), Esquema para una Historia de las Ideas en Iberoamerica. México, Uni-
versidad Nacional Autónoma.
REALE, Miguel. (1994), Figuras da Inteligência Brasileira. 2a. edição. São Paulo, Siciliano.
. (1983), “La Historia en la Conciencia Americana”, in Luis José Gonzales Alvarez,
. (1998), Pluralismo e Liberdade. 2a. edição revista. Rio de Janeiro, Expressão e Cultu-
(org.), Temas de Filosofia de la Historia Latinoamericana. Bogotá, Editorial El Buho.
ra.
RIO BRANCO; José Maria da Silva Paranhos Filho, barão do. (2000), “As Belas Artes”, in
Émile Levasseur (ed.), O Brasil. 1a edição brasileira. Rio de Janeiro, Bom Texto/Letras
& Expressões.
ROMERO, José Luis. (2008), Las Ideas Politicas en Argentina. 2a Edição. Buenos Aires, Fon-
do de Cultura Económica (1a edição, 1944).
ROMERO, Sylvio. (1969), Obra Filosófica. Introdução e seleção de Luís Washington Vita.
Rio de Janeiro, José Olympio.
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1970), “Raízes da Imaginação Política Brasileira”.
Dados, no 7, pp. 137-161.
. (2002), Roteiro Bibliográfico do Pensamento Político-social Brasileiro (1870-1965). Belo
Horizonte, Ed. UFMG; Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz.
SCHWARZ, Roberto. (2000), Ao Vencedor as Batatas: Forma Literária e Processo Social nos
Inícios do Romance Brasileiro. 5a edição. São Paulo, Editora 34.
SODRÉ, Nélson Werneck. (1965), A Ideologia do Colonialismo. 2a edição. Rio de Janeiro, Ci-
vilização Brasileira.
STRAUSS, Leo; CROPSEY, Leo (orgs.). (1996), História de la Filosofía Política. México, Fon-
do de Cultura.
TOLEDO, Caio Navarro de. (1977), Iseb: Fábrica de Ideologias. São Paulo, Ática.
TORRES, Alberto. (1982a), A Organização Nacional. 4a. edição. São Paulo, Companhia Edi-
tora Nacional.
. (1982b), O Problema Nacional Brasileiro. 4a edição. São Paulo, Companhia Editora
Nacional.
VALLESPÍN, Fernando. (1990), “Introducción General”, in F. Vallespín (ed.), Historia de
la Teoría Política, 1. Madrid, Alianza Editorial.
VERISSIMO, José. (1963), História da Literatura Brasileira: De Bento Teixeira a Machado de
Assis. 4a edição. Brasília, UnB.
VIANA, Francisco José de Oliveira. (1939), O Idealismo da Constituição. 2a edição, aumen-
tada. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
. (1956), Evolução do Povo Brasileiro. 4a edição. Rio de Janeiro, José Olympio.

765 766
Por Que Pensamento e Não Teoria?

ABSTRACT
Why Thought and not Theory? The Brazilian Political and Social
Imagination and the Spectrum of Peripheral Condition (1880-1970)

Why do we refer to Brazilian political reflection as Thought rather than theory?


The hypothesis I intend to explore here is that in Brazil, the main reason for the
term “thought” to refer to the country’s intellectual products lies in the fact
that the elites have always considered such products more or less inferior to
those developed in Europe and the United States, due to their own more
general perception of Brazil’s peripheral status. To frame this question, I will
discuss the terminological issue of “theory” and “thought” in the field of
political science. Next, I will examine how some leading Brazilian scholars
assess the country’s place in the world and the quality of its intellectual
products, especially those of a social and political nature. This analysis will be
divided into two periods, the first pertaining to the predominance of the
cosmopolitan cultural paradigm from the late 19th century to the 1920s, and the
second with the nationalist cultural paradigm, lasting nearly until the late 20th
century.

Key words: periphery; philosophy of history; Brazilian political and social


thought

RÉSUMÉ
Pourquoi Pensée et non Théorie? L’Imagination Politique et Social
Brésilienne et le Spectre de la Condition Périphérique

Pourquoi désigne-t-on la réflexion politique brésilienne par pensée et non pas


théorie? On formule ici l’hypothèse que la raison pour laquelle, au Brésil, il est
usuel de nommer “pensée” ses produits intellectuels, vient du fait que les
élites d’ici les ont toujours considérés comme inférieurs à ceux développés en
Europe et aux États Unis, en raison d’une large perception du caractère
périphérique de leur pays. En contexte à cette hypothèse, on examinera l’écart
terminologique entre “théorie” et “pensée” dans le cadre de la science
politique. Ensuite, on verra comment certains de nos principaux interprètes
ont évalué la position du Brésil dans le monde ainsi que la qualité de ses
produits intellectuels, surtout ceux de nature sociale et politique. Cet examen
comprend deux moments: le premier concernant la période où a prévalu le
paradigme culturel cosmopolite, depuis la fin du XIXe siècle jusqu’aux années
1920, et le second, pratiquement jusqu’à la fin du XXe siècle, où l’accent a été
mis sur le paradigme culturel nationaliste.

Mots-clés: périphérie; philosophie de l'histoire; pensée politique et sociale


brésilienne

767

Você também pode gostar