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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PSICOLOGIA

DISCIPLINA: PSICOLOGIA COMUNITÁRIA


CARGA HORÁRIA: 03 créditos (48 h/a) - HF0171
PROFESSORA: Dra.Verônica Morais Ximenes
PERÍODO: 2022.2 PRÉ-REQUISITOS: Teorias e Práticas em Psicologia Social II
Estágio em Docência II: Felipe Coura Rocha (Mestrando em Psicologia)

EMENTA:
Origem e história da Psicologia Comunitária; correntes européias, estadounidenses e latino-
americana; conceitos básicos; o papel do Psicólogo Comunitário; métodos e técnicas de
investigação e de intervenção em Psicologia Comunitária; trabalho de campo.

OBJETIVOS:
• Facilitar um processo de aprendizagem sobre Psicologia Comunitária;
• Propiciar um conhecimento mais aprofundado no manejo do processo e de técnicas de
intervenção comunitária;
• Compreender as influências psicossociais dos problemas sociais na vida das pessoas.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO:
UNIDADE I – História e conceituação da Psicologia Comunitária
• Bases da Psicologia Comunitária: Crítica, Libertação e América Profunda na América
Latina;
• Análise histórica e marcos teórico-metodológicos da Psicologia Comunitária;
• Psicologia Comunitária e suas categorias: atividade comunitária e estigma

UNIDADE II – Métodos de atuação e de investigação em Psicologia Comunitária


• Trabalhos em Psicologia Comunitária
• Metodologias em Psicologia Comunitária: visita domiciliar, entrevista e mapeamento
psicossocial.

METODOLOGIA

A metodologia será participativa e cooperativa e buscará a construção de um espaço de


aprendizagem através do diálogo entre professora, alunos, alunas e estagiária/o em
docência. A participação dos envolvidos no processo de aprendizagem é fundamental para
a realização da disciplina e socialização dos temas apresentados. A busca por assuntos
relacionados com a disciplina será incentivada. A leitura de todos os textos antes das aulas
é fundamental para o bom funcionamento da disciplina.
1
AVALIAÇÃO
A avaliação da disciplina terá como base os seguintes pontos: frequência, as avaliações
parciais e se for o caso, avaliação final.
• 1ª Avaliação Parcial (1º AP) será realizada a partir dos conteúdos ministrados até o
dia: 03/05/22. A prova valerá 10 pontos e será no dia 18/10/22.

• 2ª Avaliação Parcial (2ª AP) será um trabalho realizado em grupo ou de forma


individual e terá como foco a contextualização e análise da realidade das
comunidades/bairros a partir dos textos da disciplina, da consulta a sites, visita a
campo e entrevistas com moradores e moradoras das comunidades/bairros. A
escolha das comunidades/bairros será realizada a partir do local de moradia de
algum/a integrante do grupo. O trabalho será apresentado pelo grupo nos dias 29/11
ou 06/12/22 e a entrega do trabalho pelo grupo será de forma eletrônica para o
email da professora ou compartilhar o drive no email: vemorais@ufc.br e valerá 10
pontos.
O trabalho poderá ser:
✓ Trabalho acadêmico escrito que deverá ter de 6 a 8 páginas e seguir as Normas da
ABNT.
✓ Produto técnico criativo que poderá ou não ser veiculado nas redes sociais:
podcast, vídeo, fanzini, paródia, padlet, tiktok e outros. No caso de podcast, vídeo, tiktok
deverá ser no máximo de 15 minutos.
✓ Site para consulta das comunidades: https://mapas.fortaleza.ce.gov.br/#/
http://portal.ceara.pro.br/

Roteiro da 2ª AP:
Análise crítica do contexto social e psicossocial das comunidades/bairros
1. Introdução
2. Caracterização dos aspectos relevantes da comunidade/bairro
3. Análise crítica de alguma categoria/tema da Psicologia Comunitária
4. Potencialidades e fragilidades da comunidade/bairro
5. Conclusões
6. Referências

A nota do 2ª AP trabalho será dividida em e avaliação do produto Técnico/Acadêmico


a partir dos seguintes critérios:
1. Apresentação do trabalho em sala de aula - 2 pontos
2. Processo criativo e inovador – 2 pontos
3. Articulação com o conteúdo teórico – 3 pontos
4. Análise crítica da realidade – 3 pontos

A nota da disciplina será a soma da nota da 1ª AP e da 2ª AP dividida por dois, que gerará
a média. A data da Avaliação Final (AF) será definida posteriormente no final da
disciplina. O/a aluno/a deverá cumprir 75% de freqüência e poderá ter no máximo 12 faltas

2
que equivalem a 4 dias de aula. É importante salientar que o número excessivo de faltas
causará a reprovação na disciplina.

CRONOGRAMA
Mês Dia Conteúdo Texto
Agosto 16 Semana
Pedagógica
Agosto 23 Apresentação
da disciplina e
dos/as
participantes e
levantamento
das expectativas
da disciplina
Agosto 30 Apresentação
da disciplina e
dos/as
participantes e
levantamento
das expectativas
da disciplina
Setembro 06 Crítica e 1. Cap. Montero (2009)
libertação na
América Latina
Setembro 13 América 2. Cap. Gois et al. (2016)
Profunda e
Psicologia
Comunitária
Setembro 20 Análise 3. Artigo: Gonçalves e Portugal (2016)
histórica da
Psicologia
Comunitária

Setembro 27 Psicologia 4. Cap. 3: Ximenes e Góis (2010)


Comunitária –
uma práxis
latino-
americana
Outubro 4 Psicologia 5. Cap. 3 – Gois (2005)
Comunitária e
Atividade
comunitária

3
Núcleo de Vídeo: Vídeo Institucional – NUCOM -
Psicologia https://www.youtube.com/watch?v=00Idft--4dA&t=4s
Podcast: Cadeira na Calçada: Ep. #01 - Primeiramente, olá
Comunitária –
fanbase mundinho NUCOM!
caminho https://open.spotify.com/episode/1KFJceU0dWtdSynZpis4YP
histórico
Outubro 11 Discussão e Preparação para a 1ª Avaliação Parcial
articulação de
todos os
conteúdos
teóricos
Outubro 18 1ª Avaliação
Parcial
(1º AP)
Outubro 25 Psicologia 6. Cap. Moura Jr. e Sarriera (2016)
Comunitária e
Obs.: Esclarecimentos para realização do trabalho 2º AP e
Estigma
definição das equipes

Novembro 1 Metodologias 7. Cap. 10 Rocha, Moreira e Boeckel (2010)


da Psicologia
Comunitária:
Entrevista e
visita domiciliar

Novembro 8 Metodologias 8. Artigo: Lima e Bonfim (2012)


da Psicologia
Comunitária:
Mapeamento
psicossocial

Atuação de Vídeo: Documentário "Auto da Canafístula: Vivência do


Psicologia NUCOM no Sertão do Ceará"
Comunitária em https://www.youtube.com/watch?v=ImLJANXMpeU
comunidade
rural
Novembro 15 Feriado – Não haverá aula
Proclamação
da República
Novembro 22 XV Semana de Não haverá aula
Humanidades
Novembro 29 Apresentação Entrega do trabalho pelo grupo - de forma eletrônica para o
dos trabalhos email da professora ou compartilhar o drive no email:
do 2º AP vemorais@ufc.br
4
Dezembro 6 Apresentação Entrega do trabalho pelo grupo - de forma eletrônica para o
dos trabalhos email da professora ou compartilhar o drive no email:
do 2º AP vemorais@ufc.br
e Avaliação
geral da
disciplina

REFERÊNCIAS
GÓIS, C.W.; OLIVEIRA, L.; GÓIS, S.; SILVA. A. O conceito de América profunda e suas
implicações na Psicologia Comunitária de base latinoamericana. In: XIMENES, V.,
SARRIERA, J, BOMFIM, Z., ALFARO, J. (Org.). Psicologia Comunitária no mundo
atual: desafios, limites e fazeres. 1ed.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016, p. 235-
250.
GOIS, C. W. Cap. 3. Atividade Humana. In: C. GOIS. Psicologia Comunitária: atividade e
consciência. Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire, 2005, p. 75-90.
GONÇALVES, M. A.; PORTUGAL, F. T. Análise histórica da psicologia social
comunitária no Brasil. Psicologia & Sociedade, v. 28, n. 3, p. 562-571, 2016. Disponível
em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822016000300562&lng=en&nrm=iso>.
LIMA, D. M. A.; BONFIM, Z. A. C. Mapeamento psicossocial participativo: Metodologia
de facilitação comunitária. Psicol. Argum., Curitiba, v. 30, n. 71, p. 679-689, out./dez.
2012. Disponível em
https://periodicos.pucpr.br/index.php/psicologiaargumento/issue/archive
MONTERO, M. Ser, fazer e aparecer – crítica e libertação na América Latina. In R.
GUZZO; F. LACERDA Jr.. (Org.). Psicologia Social para a América Latina: o resgate da
Psicologia da Libertação.Campinas, SP: Editora Alínea, 2009, p.88 -100.
MOURA JR., J. F.; SARRIERA, J. C. . Práticas de resistência à estigmatização da pobreza:
Caminhos possíveis. In: XIMENES, V. M.; NEPOMUCENO, B. B.; CIDADE, E. C.;
MOURA JR., J. F.. (Org.). Implicações Psicossociais da Pobreza: Diversidades e
Resistências. 1ed.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editoria, 2016, p. 263-288.
ROCHA, K., MOREIRA, M., BOECKEL, M. A entrevista e a visita domiciliar na prática
do psicólogo comunitário. In: Sarriera, J.; Saforcada, E. (Org.). Introdução à Psicologia
Comunitária: bases teóricas e metodológicas. Porto Alegre: Editora Sulina, 2010, p. 205-
214.
XIMENES, V.; GÓIS, C. Psicologia Comunitária – uma práxis libertadora latino-
americana. In: Guzzo, R.; LACERDA JR. F. Psicologia e Sociedade: interfaces no debate
da questão social. Campinas: Alínea Editora, 2010, p. 45-64.

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

5
GUARESCHI, P. (2009). Pressupostos epistemológicos implícitos no conceito de
Liberação. In R. GUZZO; F. LACERDA Jr.. (Org.). Psicologia Social para a América
Latina: o resgate da Psicologia da Libertação.Campinas, SP: Editora Alínea, 2009. p.49 -
64.
MOURA JR., J.F.; CARDOSO, A.A.V.; RODRIGUES, D.C.; VASCONCELOS, R.M;
XIMENES, V.M. Práxis em Psicologia Comunitária: festa de São João como atividade
comunitária. In: Revista Ciência em Extensão v.9, n.1, p.104-122, 2013.
MOURA JR., J. F.; SARRIERA, J. C. . Práticas de resistência à estigmatização da pobreza:
Caminhos possíveis. In: XIMENES, V. M.; NEPOMUCENO, B. B.; CIDADE, E. C.;
MOURA JR., J. F.. (Org.). Implicações Psicossociais da Pobreza: Diversidades e
Resistências. 1ed.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editoria, 2016, p. 263-288.
XIMENES, V. et al . Saúde Comunitária e Psicologia Comunitária:: suas contribuições às
metodologias participativas. Psicol. pesq., v. 11, n. 2, p. 4-13, 2017 .
XIMENES, V. M.; De PAULA, L. R. C.; BARROS, J. P. P. Psicologia Comunitária e
política de Assistência Social: diálogos sobre atuações em comunidade. Psicologia Ciência
e Profissão, v. 29, n.4 , p. 672-685, 2009.
XIMENES, V.; CIDADE, E.; NEMOPUCENO, B; LEITE, F. Pesquisa e intervenção a
partir da realidade social – Desvelar das implicações psicossociais da pobreza. In: Stella, C.
Psicologia Comunitária – contribuições teóricas, encontros e experiências. Editora Vozes,
2014, p. 87 – 110.

6
GÓIS, C.W.; OLIVEIRA, L.; GÓIS, S.; SILVA.A. O conceito de América profunda e
suas implicações na Psicologia Comunitária de base latinoamericana. In: XIMENES,
V., SARRIERA, J, BOMFIM, Z., ALFARO, J. (Org.). Psicologia Comunitária no
mundo atual: desafios, limites e fazeres. 1ed.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora,
2016, p. 235-250.

O CONCEITO DE AMÉRICA PROFUNDA E SUAS


IMPLICAÇÕES NA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA DE BASE
LATINOAMERICANA
Cezar Wagner de Lima Góis
Luciane Alves de Oliveira
Sara Cavalcante Góis
Alexsandra Maria Sousa Silva

1 INTRODUÇÃO
De que trata a noção de América Profunda, passível de ser
aplicada em qualquer país americano, e qual a sua importância para
a Psicologia Comunitária? O conceito de América Profunda (Kusch,
2012a) desvela criticamente uma realidade etnicamente soterrada e,
paradoxalmente, visível, não sendo reconhecida com a ênfase que se
deveria dar com relação à formação do americano atual, porém evidente
em sua constituição e cotidiano (Kusch, 2009). Ademais, a ideia
de culturas subalternas e profundas é pouco considerada na academia
quando se questiona o novo que fazer nas ciências humanas na América.
Na Psicologia, é óbvio o desconhecimento ou desconsideração
com o tema.
En América, ya lo dije en mi primer libro, se plantea ante todo un problema
de integridad mental y la solución consiste en retomar el antiguo
mundo para ganar la salud. Si no se hace así, el antiguo mundo continuará
siendo autónomo y, por lo tanto, será una fuente de traumas para
nuestra vida psíquica y social (Kusch, 2012a, p. 8).

A possibilidade de reconhecer as culturas originárias, milenárias


e presentes insistentemente nas sociedades e em nos rostos do
povo dá força e dignidade cultural. Não se pode negar essa riqueza
cultural, como habitualmente se faze. Veja-se o que diz Timoteo
Francia, liderança do povo Qom, Chaco argentino, entrevistado por
Florencia Tola, antropóloga argentina:
El pasado habita en nuestro presente. Es él que nos hace sentir competentes
frente a las otras culturas, sobre todo ante aquella que se cree más
alta, única, sabia. La que tiene todo y considera marginales a quienes
estamos fuera de ella. Mientras conservemos nuestra cultura nos sentiremos
capaces de debatir e intercambiar con otros seres poseedores, tal vez,
de otra sabiduría. La nuestra no nació hace poco. Es milenaria, viene de
siglos atrás y todavía tiene vigencia. Nuestras prácticas y costumbres del
presente responden a ella (Francia & Tola, 2011, p. 14).
Entende-se claramente o sofrimento marginal de Timoteo
Francia, revelando o sentimento de ser negado dos povos originários
em pleno século XXI, como também se pode ver no cotidiano das sociedades
americanas e em cada um o desigual étnico constituindo-se
como identidade cultural e pessoal. O desigual sendo a base de uma
confi guração forjada na colonização e reproduzida hoje pela colonialidade
(Santos, 2013; Quijano, 2013). Estamos diante de uma relação
hierárquica externa e interna (social e psicológica) entre o originário,
o europeu e o africano. Por cima, o europeu marcando a vida social, o
conhecimento, a verdade, a fé e a nossa existência cotidiana; logo abaixo
o escravo libertado lutando como quilombola e afrodescendente:
bem depois vem o originário, negado inclusive pela América mestiça.
Enquanto persistirem culturas e existências desiguais, o desigual
fora e dentro, as sociedades americanas seguirão carregadas de
subalternidades, preconceitos, violência, exclusão social e sentimentos
de inferioridade, autonegação e dependência. Resta mudar o caminho
da lógica europeizante e da colonialidade, deixar esse que domina e
quase proíbe de superar o desigual que está fora e na interioridade;abrir-se à
pluralidade epistemológica e étnica por meio de aproximações, mediações, traduções
e convivencialidades (Góis et al., 2015).

Quando se examinou o livro Historias de la Psicología Comunitaria


en América Latina: participación y transformación, organizado
por Maritza Montero e Irma Serrano-García, publicado em 2011; ou
quando se analisou o livro Psicologia & Sociedade: interfaces no debate
sobre a questão social, organizado por Fernando Lacerda e Raquel Guzzo,
publicado em 2010, o que se viu foi o olhar social e acadêmico da
racionalidade moderna (Dussel, 2013) situando as questões cruciais
da Psicologia Comunitária na América Latina.
São dois livros representativos para esta análise sobre a Psicologia
Comunitária na América Latina. Trazem textos de Psicologia
Social e de Psicologia Comunitária com claro posicionamento ético e
compromisso social e acadêmico, porém neles se encontra de fora do
social o étnico, a América Profunda. O americano da Psicologia Comunitária
é simplesmente aquele que vive demarcado e definido pelas
fronteiras nacionais, nas quais se sobressaem o elitismo aristocrático
e burguês, a exclusão social e a pobreza. Portanto, não considerando a
realidade profunda que constitui a identidade de americano (Kusch,
2012b). Os rostos da Psicologia Comunitária são rostos sociais, do
americano descaracterizado de suas etnicidades profundas, negadas e
evidentes.
É comum em Psicologia o racionalismo europeu, a lógica advinda
da modernidade e o discurso aristocrata, burguês e cristão sobre
o ser humano. Isso não é novidade, as nossas universidades surgiram
daí, foram fundadas para educar mediante a lógica moderna, sem
considerar outros pensares, outros saberes e outros modos de viver e
construir conhecimento. Os jesuítas tiveram um papel crucial nessa
educação quando da catequese e da fundação dos primeiros colégios e
universidades da América ou Abya Yala (que signifi ca terra em plena
maturidade ou terra do sangue vital, expressão da língua Kuna, adotada para substituir
o nome América a partir da Cumbre dos povos
originários realizada no Panamá).
Entender os povos originários na perspectiva deles próprios,
não tomando como referência o olhar hegemônico da modernidade
europeia, de sua lógica, de sua racionalidade, bem como reconhecer
a formação do americano atual impregnado do rosto originário e de
outros rostos, signifi ca também examinar a realidade latino-americana
a partir desse lugar de fora da colonialidade. “A ideia de que as pessoas
não conseguem sobreviver sem as conquistas teóricas ou culturais da
Europa é um dos mais importantes princípios da modernidade. Há
séculos que esta lógica é aplicada ao mundo colonial” (Torres, 2013,
p. 403).
Essa questão da perspectiva própria do originário foi formulada
por Rodolfo Kusch em América Profunda, publicado em 1962;
depois a ideia reaparece em um ensaio de Guillermo Bonfi l, publicado
em 1987, o qual trata sobre o México Profundo. Em 2003, o tema
torna-se objeto do Simpósio América Profunda, realizado pelo Editorial
Fundación Ross, na Cidade do México, e sistematizado para publicação
por Esteva, Vasquez e Plascencia (2011).
Ao trazer-se o conceito de América Profunda para dentro da
Psicologia, o que se pretende é contribuir com o debate sobre outros
alcances e aberturas da Psicologia Comunitária quando trata do
indivíduo e da vida social na América (Góis et al., 2015). Busca-se
isso porque, primeiramente, o social, visto pela Psicologia acadêmica,
é genérico e homogêneo, sem a compreensão mais detalhada que se
encontra na Sociologia e na Antropologia latino-americanas; segundo,
pelo fato de o social, o histórico e o étnico mais profundos serem descartados
em Psicologia por uma posição psicológica explicativa europeizante
do indivíduo na realidade americana; e terceiro, por estarmos
implicados numa Psicologia Comunitária que pergunta insistentemente
sobre quem é o indivíduo americano e aquele denominado de pobre das nossas
periferias (Góis, 2012 e 2008; Góis, 2011; Cidade,
2010; Silva, 2014).
2 AMÉRICA PROFUNDA
É pluralidade étnica, epistemologias locais, sabedoria milenar,
cultura viva, riqueza, colorido, sofrimento étnico e social, resistência,
alegria, modo de conhecer e lidar com a vida, valores, convivência
harmoniosa com a natureza, rituais, arte e beleza. São inúmeras cosmovisões
entrelaçadas tratando do Universo, das origens humanas, da
astronomia, do tempo cronológico e mítico, dos acontecimentos da
natureza, da religiosidade, da família, da comunidade, da saúde, da
educação, da comunicação, da engenharia, da agricultura, do uso da
água, das guerras, da morte, do trabalho e das formas de organização
social e política. O pensamento intuitivo e mítico, o estar-aqui com
tudo o mais (imanente-transcendente), os rituais, as danças e a vida
comunitária ocupando um lugar central no cotidiano dos povos originários.
América Profunda é a cultura do buen vivir e também a Ameríndia,
onde o originário vive, nas terras defi nidas como América, denominação
que estabelece a posse legal dessas terras e de tudo que há
nelas para os conquistadores e herdeiros. Esse nome demarcou a vida
originária em reservas de obediência, onde se tolerava e se tolera a expressão
das culturas originárias dentro de certos limites legais, sociais
e políticos, conforme o país considerado.
Entretanto, em meio a essa situação existente em diversos países,
tem-se a Bolívia caminhando constitucionalmente, social e academicamente,
para a multiculturalidade, reconhecendo em sua constituição
identitária o desigual a ser superado por meio de convivência e
participação étnicas na formulação do estado nacional boliviano e dos
seus que fazeres. Outros países, como Equador, Peru, Chile e Brasil,
estão dando passos menores, ainda tímidos.

Olhar a América desde a sua multiculturalidade profunda signifi


ca também compreender que a realidade atual dos países que a
constituem é também forjada por uma realidade étnica e social que
afl ora de uma civilização antiga, hoje visível e conservada em grupos
étnicos mais defi nidos, como em boa parte das populações urbanas e
rurais das sociedades nacionais.
El México profundo está formado por una gran diversidad de pueblos,
comunidades y sectores sociales que constituyen la mayoría de la población
del país. Lo que los une y los distingue del resto de la sociedad mexicana es
que son grupos portadores de maneras de entender el mundo y organizar
la vida que tiene su origen en la civilización mesoamericana, forjada
aquí a lo largo de un dilatado y complejo proceso histórico. Las expresiones
actuales de esa civilización son muy diversas: desde las culturas que
algunos pueblos indios han sabido conservar con mayor grado de cohesión
interna, hasta la gran cantidad de rasgos aislados que se distribuyen de
manera diferente en los distintos sectores urbanos. La civilización mesoamericana
es una civilización negada, cuya presencia es imprescindible
reconocer (Bonfi l, 1987, p. 9).
América Profunda é vida humana que, paradoxalmente, continua
até hoje se manifestando e sucumbindo ao poder das armas, da
catequização e da educação moderna. Torna-se, portanto, vida dependente
a partir do direito autoproclamado dos conquistadores sobre a
verdade, aí implicando, por consequência, a posse da terra, a subordinação
de povos e a negação das suas culturas e dos modos de pensar
originários. Quer dizer, a civilização cristã e a modernidade europeia
outorgaram o direito aos conquistadores de dominarem e educarem
os povos originários, os negros e os mestiços como cristãos, modernos
e subalternos.
As culturas originárias resistem, por mais deformadas que
possam estar pela falta da terra e de direitos, pela produção social da
pobreza e pela hegemonia crescente e impositiva do pensar dominante.
Catedrais foram construídas com as pedras dos templos incas nos
mesmos lugares destes (Kusch, 2012a). Um pensar que tentou e tenta destruir outro
pensar, um problema de negação étnica e assassinato
epistemológico (Santos, 2009).
Queremos também enfatizar nesse conceito de América Profunda
a ideia de superação da relação entre desiguais, facilitada por
mediações, traduções e convivências entre essa diversidade cultural; de
convivência étnica e social em um só país e atravessando a ele, aí reconhecendo
o valor dos diversos: os descendentes europeus, africanos
e asiáticos, os mestiços e os povos originários. Um horizonte plural
ético, étnico e social cabível em nosso que fazer.
3 INTEGRAR O DIFERENTE, ENRIQUECENDO O SER
AMERICANO
Fazendo alguns contrastes a partir do que se revela predominantemente
na noção do ser moderno e na expressão do ser originário,
pode-se tecer a seguinte aproximação pela possibilidade de um outro
entrelaçamento existencial forjador do ser americano. Aqui, não se
buscam hierarquias e dicotomias, somente a caracterização principal
das duas formas de constituição do ser visando à recriação do ser americano
integrado, de sua identidade cultural e pessoal sem a marca das
relações de desigualdades e subalternidades.
A noção do Ser chega desse lado do Atlântico como uma das
verdades da lógica moderna, em que o intuitivo, o mítico e o pré-refl
exivo originários são desconsiderados. Também as noções de tempo,
ação e trabalho que aqui chegaram, não permitiram entender o que
ocorre com o comportamento dos povos originários, passando os
conquistadores a classifi car, julgar e punir as populações originárias
por serem indolentes, sem aspirações e reverenciarem a natureza numa
convivência pagã. Não consideraram, dado o autoproclamado direito
da verdade, as cosmovisões e o modo-de-ser dos povos originários
(Kusch, 2012a).
O ser europeu moderno é o que se diferencia, se valora para
ser alguém, alcançar status e ter coisas, objetos. Uma noção do pensamento burguês
do Século XV presente na modernidade. Por outro
lado, em Abya Yala, o ser é conviver, é estar-aqui com tudo o mais
(Meneses, 2006). O ser europeu é aquele que busca, que controla, que
privilegia a técnica, que transforma e possui, ao contrário do ser originário,
que atua a partir da convivência e da oferenda. Ambos trabalham,
um para acumular e outro para viver comunitariamente. Um se
impõe como racionalidade e o outro se revela mítico (Kusch, 2012c).
Esse mundo racional europeu, afi rmativo e excludente, constituído
de objetos e hierarquias, forjou em boa parte o pensamento do
americano desenraizado do seu mundo originário. Perdeu-se a potência
do pensar mítico-existencial: a comunhão cósmica, espiritual e natural.
Pensar absurdo para a lógica racional que o entende no âmbito
do irracionalismo ou da psicopatologia. “Una cosa es utilizar la afi rmación
y la negación dentro de la lógica proposicional, con sus leyes apriorísticas,
y otra lo es cuando se las toma desde el ángulo existencial. Varía entre
ambas propuestas el sentido de la verdad” (Kusch, 2012c, p. 8).
O ser da racionalidade está aí proclamando o mundo e a ele
mesmo, em sua luminosidade, angústia e poder, diferente do ser originário
que aqui está no imediato intuitivo e mítico de um conviver
num tempo ancestral e presente, sem a premência do futuro. Este sim
é o que se impõe no ser que se constitui como busca e posse, o ser da
modernidade, forjador do ser americano.
O tempo, nos povos originários, não é tempo de trabalhar para
acumular, é tempo de viver, de conviver, de reverenciar no cotidiano a
sacralidade realizadora de suas vidas e de suas obras. O trabalho originário
tem marca comunitária e mítica, de solidariedade para o bom viver.
Seus ofícios e construções têm uma intimidade com as divindades
e com a Natureza (muitas vezes ambas se confundindo), seguem um
processo demarcado por uma reverência cósmica, clara no pensamento
mítico, conforme estudado por Kusch (2012c).
La búsqueda de un pensamiento indígena no se debe solo al deseo de
exhumarlo científi camente, sino a la necesidad de rescatar un sentido de pensar que, según
creo, se da en el fondo de América y que mantiene cierta
vigencia en las poblaciones criollas (Kusch, 2012c, p. 23).
Essas distinções não negam a importância recíproca, em que
o ser alguém e o ter objetos da modernidade, integrado ao estar aqui
com tudo o mais dos povos originários, podem potencializar nossa
identidade cultural e pessoal e a saúde desde o moderno e o comunitário
(Góis, 2008) profundo. Integrar o soterrado ou rebaixado com o
que se sobrepõe talvez seja o caminho do indivíduo e das sociedades
americanas, um caminho próprio em que ser alguém, ter coisas e estar
aqui com tudo o mais expressem uma integração de fundo possível
e forjadora do americano atual em seus processos de superação de si
mesmo como identidade nacional, comunitária e pessoal.
4 O FAZER DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA A PARTIR
DO CONCEITO DE AMÉRICA PROFUNDA
Problematizar o que fazer desde o conceito de América Profunda
signifi ca aproximar a Psicologia Comunitária de um debate enriquecedor
para ampliar sua compreensão de comunidade e de indivíduo
americano, o qual vive em uma realidade social complexa, em que
se integram diversos signifi cados étnicos compreendidos como Abya
Yala e América. Desse modo, pode-se ir além do conceito de América
Latina e de suas categorizações sociais, estabelecidos no Séc. XIX pelas
elites crioulas nacionais, superando, assim, um grave problema ético,
étnico e epistemológico que essa denominação traz para a Psicologia
Comunitária, por impor uma aceitação tácita do latino-americano,
americano de origem latina. Um engano, conduzindo a um pensar e a
um atuar carregados de negação, de subalternidade e de dependência
externa, ignorantes das raízes profundas de uma terra milenariamente
rica de povos originários, de civilizações antigas (Mandrini, 2013).
Compreender o profundo, a riqueza étnica na vida social de
qualquer país da América e na expressão individual do americano
é uma tarefa enriquecedora para a Psicologia Comunitária de corte latino-americano.
É trazer para dentro da Psicologia um outro entendimento
sobre a formação das sociedades, das comunidades e do
homem e da mulher dessas terras.
Os novos povos nacionais, como o brasileiro e outros,
se construíram a partir da mestiçagem entre povos originários,
povos europeus, povos africanos e depois povos asiáticos. Há em
cada brasileiro uma raiz originária muitas vezes não reconhecida,
rejeitada na constituição do latino-americano. O predominante na
linhagem latino-americana é o europeu, por mais mestiços que seja.
Depois predomina o africano. O originário, nem pensar, não se
sabe, não se comenta. O orgulho de boa parte do americano atual
é descobrir sua linhagem europeia e, só recentemente, sua linhagem
africana; ainda que bem reduzida tal preocupação, pois praticamente
quase não há registros individuais dos escravos com respeito às suas
origens africanas; há dos senhores da terra. Registros individuais de
descendência originária são praticamente inexistentes, salvo pessoas
de geração atual próxima a seus ancestrais originários.
Os povos atuais da América, por não se reconhecerem também
claramente originários, negam uma fonte que os constitui e isso
traz consequências para a vida social e para a sua identidade cultural
e pessoal. No Brasil, por exemplo, uma das consequências é a Síndrome
do Vira-Lata, expressão cunhada pelo grande teatrólogo brasileiro
Nélson Rodrigues. Signifi ca que tudo que vem de fora é melhor, que
as coisas daqui não são boas: do produto ao comportamento, da roupa
à arte. O bom vem da Europa ou dos Estados Unidos. Outra consequência
é o preconceito racial ainda forte, sendo o indígena mais
hostilizado e excluído do que o negro. Estes seguem lutando pelo reconhecimento
social e cultural.
No sul da América do Sul se vê marcadamente a forte presença
europeia, principalmente alemães e italianos. É um Sul branco,
de linhagens europeias que se perpetuam por vários motivos oriundos
do arianismo europeu, dos seus costumes e tradições desde os primeiros colonos aqui
chegados no século XIX. Mesmo assim, por
mais negados ou desconhecidos, essa região é povoada por inúmeros
povos originários, além da população mestiça. Todavia, grande parte
da população branca e parda desconhece a existência profunda desses
povos locais.
O social na América tem inúmeros rostos, expressões reveladoras
de uma multiculturalidade que não pode ser entendida somente
como os novos povos que surgiram da defi nição das fronteiras entre
as nações atuais. São rostos também mais antigos, vivendo dentro e
atravessando as fronteiras nacionais, como é o caso de povos originários.
Os europeus e as elites mestiças foram defi nindo os limites geográfi
cos dos países através de invasões, guerras, genocídios e acordos,
até chegarem à resolução atual. Com isso, inúmeros povos originários
foram seccionados geográfi ca, social e politicamente, mas não em sua
raiz cultural.
Somos povos e terras com várias denominações: KayPacha,
Abya Yala, Novo Mundo, América e América Latina – Tupinambás,
Guaranis, Tamoios, Pitaguaris, Quéchua, Quéchua-Inca, Aymara,
Diaguita, Mapuche, Qom, Ranquel, Charrua, Kuna, Astecas, Maias,
Hopis e centenas de outros interagindo, a partir de 1492, com europeus,
logo depois com africanos e mais adiante com asiáticos. A marca
dessa interação foi a dominação e a exploração, jamais o reconhecimento
étnico. Daí se formaram os povos americanos recentes, como
os da América do Sul: brasileiros, uruguaios, argentinos, paraguaios,
chilenos, peruanos, bolivianos, equatorianos, colombianos, venezuelanos
e guianenses. Vivemos uma grande mestiçagem, porém em meio
de grupamentos sociais que se consideram brancos, puros de linhagem,
especialmente formados por descendentes de alemães, italianos
e japoneses. Toda essa interatividade revela a presença de uma relação
desigual pressionando por debate e compreensão acerca da formação
dos povos nacionais, da identidade cultural e da vida social e comunitária. A
superação dessa relação de dominação é ato de libertação
(Ximenes & Góis, 2010; Góis, 2008; Martin-Baró, 1998).
Não se pode voltar na história, quando aqui somente viviam
os povos originários, ou esquecer que também os povos americanos
são formados por mestiços mestiços e afrodescendentes. Tampouco
esquecer o descendente direto do europeu e do africano. O que se
pode fazer é não reproduzir a história que não se quer, tampouco seu
fruto maior – a colonialidade. Fazer sim nova história tendo consciência
do passado para criar um futuro na tessitura entre mestiços,
povos originários, afrodescendentes, quilombolas e descendentes de
europeus, outra “mestiçagem” sem a violência colonizadora e de classes
que marcou o passado e marca o presente.
O pensar em Psicologia Comunitária vem da clareza disso,
propiciada pelo conceito de América Profunda, uma realidade apontando
um horizonte ético, étnico, libertário e plural para o que fazer.
Por isso entende-se de suma importância, entre outras ações, a criação
nas sociedades nacionais de espaços de convivencialidade, como
o proposto por Oliveira (Góis et al., 2016) na forma do Fórum Dialogando
sobre Longevidade. Um espaço de trocas de saberes e práticas
sobre longevidade (Oliveira, 2003), em que participantes plurais tiveram
direito à voz, trazendo refl exões sobre esse novo tempo de viver
muito. Buscou-se garantir e valorizar a participação; presentes pessoas
de diversas origens sociais, culturais, econômicas, étnicas, etárias, moradores,
profi ssionais e políticos. Também, estudantes universitários,
professores, profi ssionais liberais, profi ssionais das políticas públicas
de assistência, educação, saúde, lazer, desporto, urbanização, trabalho
e renda, previdência, comunidades da agricultura familiar e permacultores,
quilombolas, povo originário Tremembé, organizações não governamentais,
lideres espontâneos de grupos de idosos, de moradores,
representantes religiosos, pessoas referências de saúde na comunidade,
geralmente idosas, tais como: raizeiras, benzedeiras, parteiras; também
vereadores, representantes do executivo municipal, dos conselhos de saúde, do idoso,
da educação e tutelar, gerontólogos e geriatras.
Participaram em torno de 150 pessoas, em atividades que duraram
um dia inteiro.
Contribuir com a realização de encontros refl exivos, dialógicos,
criativos e afetivos, geradores de aproximação e convivência, como
esse, em um espaço local, comunitário, pode ser de grande relevância
para a Psicologia Comunitária em sua ação de descolonialidade, por
favorecer a pluralidade dos saberes e do humano, e não a supremacia
de um saber sobre outro, de um ser humano que domina e outro
que se encontra dominado, submetido a uma subalternidade, inclusive
de conhecimento (Freire, 2002; Silva, 2014). E não se pode esquecer,
quando se trata, em Psicologia Comunitária, dos saberes plurais,
que também se está tratando das ignorâncias plurais, inclusive das ignorâncias
acadêmicas/profi ssionais sobre o cultural, o comunitário, e
mesmo para estar com o outro, este historicamente dominado que se
mantém, sem se aperceber, nessa posição de subalterno étnico, social
e de conhecimento.
Indo além, esse outro convida a olhar para o indivíduo e compreender
sua complexa trama singular forjada em seu mundo local
profundo. Uma compreensão incapaz de ser traduzida apenas por outras
epistemologias sem que se inclua aí a de sua própria cultura local.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O rumo do americano, dada a sua riqueza cultural e existencial,
pode ir por caminhos em que ele não precise se reproduzir unicamente
como moderno. A potência criativa da riqueza étnica profunda,
própria de cosmovisões milenárias, ao ser reconhecida e integrada à
potência da lógica racional sem o seu racionalismo hegemônico, sem
proclamações de verdades, pode levar-nos a outras formas de educação
(Cavalcante & Góis, 2015), a epistemologias complexas e a um
existir com a expressividade de muitos rostos comunitariamente reconhecidos.
Entende-se que essa é uma das importantes tarefas da Psicologia Comunitária, quer
dizer, trabalhar o sujeito e o comunitário
desde essa perspectiva.
O que se propõe, enfi m, em meio a essas grandes questões
de fundo é fazer uma Psicologia Comunitária capaz de torná-la cada
vez mais uma ciência da mediação étnica e social e do sujeito comunitário
(Góis et. al., 2015), que propicie integração comunitária e um
meio para se construírem e se reconstruírem conhecimentos em meio
à pluralidade de saberes e de práticas locais, bem como favorecer a
expressão e fortalecimento do comunitário e do étnico.
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Análise histórica da psicologia social comunitária


no Brasil
El análisis histórico de la psicología social comunitária
en Brasil
Historical analysis of communitarian social psychology in
Brazil
http://dx.doi.org/10.1590/1807-03102016v28n3p562

Mariana Alves Gonçalves e Francisco Teixeira Portugal


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil

Resumo
Este texto apresenta debates relativos ao campo da Psicologia Social Comunitária (PSC) tomando como base
suas produções textuais nas últimas duas décadas (1990-2010). O mapeamento do conjunto de artigos, teses,
dissertações e livros produzidos sob o signo PSC foi o procedimento utilizado para problematizar o que tem
sido realizado por este movimento que se constitui como uma das versões contemporâneas da Psicologia Social.
Contextualizamos as produções a partir das mudanças de rumo da profissão e da reivindicação por uma nova
direção para a Psicologia Social produzida em território latino-americano. A exposição está centrada em dois
pontos principais: as vinculações teórico-epistemológicas da PSC e a caracterização do trabalho do psicólogo
comunitário. Concluímos o artigo indicando que as reflexões em torno da diversidade das vinculações teórico-
epistemológicas e da tentativa de unificação da PSC nublaram a análise do problema central dos efeitos de sua
prática e de seus compromissos éticos e políticos.
Palavras-chave: psicologia social comunitária; história da PSC no Brasil; teorias da PSC; trabalho do psicólogo.

Resumen
Este articulo presenta debates sobre el campo de la Psicología Social Comunitaria (PSC) utilizando producciones
textuales de las últimas décadas (1990-2010) como base de pesquisa. El mapeo del conjunto de la producción
bajo el signo del PSC fue el procedimiento empleado para hablar de lo que ha hecho este movimiento que es
una de las versiones contemporáneas de la psicología social. Contextualizamos las producciones a partir de los
cambios en los rumbos de la profesión y de la reivindicación de una nueva dirección para la psicología social
producida en territorio latinoamericano. La exposición se centra en los enlaces teóricos y epistemológicos de
la PSC y la caracterización del trabajo del psicólogo comunitario. Se concluye que las reflexiones sobre la
diversidad de los enlaces teóricos y epistemológicos y el intento de unificar el PSC nublaron el análisis del
problema central de los efectos de su práctica y de sus compromisos éticos y políticos.
Palabras clave: psicología social comunitaria; história de la PSC en Brasil; teorias de la PSC; trabajo del
psicólogo.

Abstract
This paper presents discussions on the field of Community Social Psychology (CSP) based on textual productions
done over the last decades (1990-2010). The mapping of the set of articles, theses, dissertations and books
produced under the CSP sign was the procedure used to discuss what has been done by this movement that has
been conceived as one of the contemporary versions of Social Psychology. Those productions are contextualized
considering the changes in the course of the profession and the demand for new direction for Social Psychology
produced in Latin American territory. The exposition is focused on the theoretical and epistemological bindings
of the CSP and the depiction of the community psychologist work. We conclude the work indicating that the
diversity of theoretical and epistemological bindings of CSP and the attempt to unify it disregarded the central
problem of the effects of their practice and their ethical and political commitments.
Keywords: community social psychology; history of CSP in Brazil; theories of CSP; Psychologist practice.

562
Psicologia & Sociedade, 28(3), 562-571.

A Psicologia Social e a profissão de psicólogo no predominante entre os psicólogos, sendo o consultório


Brasil o espaço preferido de atuação.

Essas questões articularam-se também com


Para que a história não figure como mero o prosseguimento histórico da Psicologia Social.
adereço a embelezar um conjunto de problemas que Existem pontos importantes desse desdobramento
se deseja analisar, atribuiremos um papel constituinte a serem considerados quando tematizamos a PSC
às condições históricas na análise da Psicologia Social no Brasil: a crise de identidade da Psicologia Social
Comunitária (PSC). Neste sentido, convém discriminar (Boechat, 2009; Lane, 1984), a defesa de um paradigma
fatores históricos essencialmente envolvidos com latino-americano (Campos & Guareschi, 2000) e a
a formação do que veio a ser objetivado como PSC. criação da Associação Brasileira de Psicologia Social
O percurso profissional dos psicólogos a partir, (ABRAPSO). A partir da década de 1980, sobretudo
principalmente, de um determinado momento em que com a criação da ABRAPSO, a disciplina tomou um
a Psicologia se arvorou pelo lema da transformação caminho diferente daquele estabelecido pelos estudos
social, sentindo-se comprometida com as questões cognitivos e experimentais. O que percebemos,
sociais do contexto onde se desenvolvia, constitui uma então, é que novos temas começam a protagonizar as
série histórica relevante para a PSC. É neste mesmo discussões em Psicologia Social, já que sua pretensão
bojo que tratamos dos rumos da Psicologia Social, era se desvencilhar de um pensamento individualista
disciplina essa que se revigora por volta da década de e privilegiar temas de maior relevância social para
1970, elaborando novas propostas não só para si, mas a população brasileira e latino-americana. O que
para a própria Psicologia. O movimento1 despertado interessava, a partir de então, era tematizar aquilo
“dentro” da Psicologia Social, portanto, não se conteve que faz parte do cotidiano e da realidade das maiorias
nos limites desse campo, ao menos no contexto populares.
brasileiro.
A Psicologia reivindicou, neste momento,
Fornecendo o tom, três têm sido os aspectos a tarefa de transformar as condições sociais das
fundamentais considerados nos debates sobre os maiorias populares,2 embora tal categoria não tenha
caminhos da profissão de psicólogo no Brasil: onde a sido conceitualizada naquele momento. Parece-
atuação profissional está sendo realizada; o que está nos, entretanto, que o termo “maiorias populares”
sendo feito e com que objetivos; e para quem se dirige designa genericamente a maior parte dos brasileiros
aquela intervenção, isto é, qual é seu público-alvo. que tem acesso restrito aos equipamentos sociais
A partir destes elementos, sabe-se que a literatura e renda insuficiente para uma subsistência digna.
acerca da profissão de psicólogo no Brasil comumente Surgiram propostas de intervenção atentas a três
classifica uma determinada atuação como tradicional, novos objetivos: deselitizar a Psicologia, aproximar-
porque exercida nos espaços clássicos da profissão – a se da realidade concreta da população e afastar-se dos
clínica, a escola e o trabalho (Bastos & Gomide, 2010; lugares tradicionais de trabalho (Andery, 1984; Bock,
Bastos, Gondim, & Borges-Andrade, 2010; Botomé, 1999). Questionamentos e problematizações sobre a
1979/2010; Yamamoto & Costa, 2010). É comum realidade social e a configuração da Psicologia Social,
também que tal atuação classificada como tradicional e da própria Psicologia, constituíram as bases para as
seja caracterizada historicamente como um trabalho a proposições por novos caminhos, novas orientações
serviço das elites. e outros modos de intervenção. A mudança de rumo
A identificação da atuação profissional como nos caminhos da profissão e a reivindicação por uma
um serviço voltado e submetido primordialmente nova direção para a Psicologia Social exercida em
aos interesses das elites (Amorin, 2010; Bock, 1999, continente latino-americano compõem o cenário desta
2003; Bock, Gonçalves, & Furtado, 2007) serviu para pesquisa.
alimentar o argumento contrário, a saber: a Psicologia
não deve mais comprometer-se com as elites, mas Histórias da PSC: EUA, América Latina e
voltar-se aos interesses das maiorias populares. Brasil
A mudança de rumo nos caminhos da profissão e
a configuração de um novo modo de trabalho em
que os profissionais estejam comprometidos com Ao apresentar a trajetória histórica da PSC nos
as questões sociais do contexto no qual se inserem contextos norte e latino-americano, pretendemos,
foram amplamente fomentadas. Diante das pesquisas primeiro, situar os leitores quanto à existência dessas
de avaliação da profissão realizadas nas décadas de experiências, mas almejamos também tematizar a
1970, 1980 e 2000, percebe-se que a área clínica era forma como tradicionalmente tal história é contada.

563
Gonçalves, M. A. & Portugal, F. T. (2016). Análise histórica da psicologia social comunitária no Brasil.

A história da PSC é comumente narrada a partir de dos caminhos da Psicologia Social no estado, com o
uma divisão primordial entre um percurso norte e objetivo de produzir novas formas de fazer e pesquisar
latino-americano. Não pretendemos afirmar que não Psicologia no Brasil (Lima, 2012). Como parte desse
há diferença entre estes percursos, reconhecemos mesmo movimento, em 1974, foi criada a disciplina
suas singularidades. Há, no entanto, referenciais Psicologia Comunitária e Ecologia Humana na UFMG
e pressupostos da Psicologia Comunitária norte- no curso de graduação em Psicologia, caracterizado
americana que circularam, e ainda circulam, na PSC pelas articulações entre questões comunitárias e
brasileira (Gallindo, 1981; Sarriera, 2010). ecológicas.
No território norte-americano, o surgimento da No Rio de Janeiro, desde o fim da década de
Psicologia Comunitária ocorreu em meados da década 1970, identificamos experiências de inserção de
de 1960, relacionado aos movimentos sociais comuni- estudantes e profissionais de Psicologia para as favelas
tários, em especial os de saúde mental (Álvaro & Gar- cariocas. O incômodo com o que era produzido nas
rido, 2006; Bennet et al., 1966). Inspirados nos pres- universidades e a já mencionada crise de atuação no
supostos da Psiquiatria Preventiva, tais movimentos modelo liberal voltado às categorias de alta renda
tinham como objetivo não somente tratar as doenças podem ter motivado esse movimento de inserção dos
mentais, mas também preveni-las. As intervenções, referidos estudantes e profissionais de Psicologia para
antes limitadas aos indivíduos, foram ampliadas para as favelas. Os trabalhos realizados por tais psicólogos
seu entorno – também chamado comunidade – conce- e estudantes estavam vinculados a projetos de
bido como fonte dos problemas mentais e, ao mesmo extensão, instituições públicas de assistência e estágios
tempo, como agente potencialmente terapêutico. curriculares3. Convém notar que as experiências de
atuação em comunidades no Rio de Janeiro não foram
A PSC foi apresentada na América Latina como
identificadas como práticas de Psicologia ou Psicologia
um dos produtos das problematizações instituídas no
Comunitária. Quando esses profissionais se lançaram
campo da Psicologia Social e não da Psiquiatria, como
em práticas não hegemônicas, não respaldadas por
no caso norte-americano. Mesmo quando vinculado
referenciais teóricos e metodológicos consagrados
ao campo da saúde mental (Vasconcelos, 1985), é
até aquele momento, houve um desconforto e certa
preciso reconhecer que este movimento adquiriu
relutância em afirmar que tal atuação estava vinculada
características distintas nos contextos norte-americano
à Psicologia (Soares, 2001).
e brasileiro (Amarante, 1995). Assim sendo, a PSC
teria sido uma das saídas para a crise da Psicologia No Ceará, a Psicologia Comunitária surgiu
Social (Cruz & Stralen, 2012) na medida em que em outubro de 1980, com o curso de formação de
propunha redirecionamentos para as intervenções animadores populares para a alfabetização de adultos.
psi. No Brasil, o surgimento da PSC foi atrelado aos A ideia, nessa época, era criar círculos de cultura
movimentos sociais e às reformulações na área de saúde na periferia de Fortaleza para a luta e organização
mental. O processo de pauperização da população, as comunitária. O objetivo inicial era aproximar a
Reformas Sanitária e Psiquiátrica e as políticas sociais Psicologia dos grupos pobres do estado e suas
pós-Constituição de 1988 (Yamamoto & Oliveira, primeiras atividades eram trabalho com grupos de
2010) compõem o cenário em que aconteceram as jovens marginalizados e alfabetização de adultos
primeiras experiências de atuação da Psicologia em (Góis, 2003).
comunidades. Nesse contexto, inicia-se um projeto de
Dentre as experiências brasileiras, destacamos intervenção no bairro Nossa Senhora das Graças do
aquelas que tiveram curso em São Paulo, Minas Pirambu, vinculado ao Departamento de Psicologia da
Gerais, Rio de Janeiro e Ceará por sua relevância Universidade Federal do Ceará (UFC). Esse projeto
histórica para a PSC. de atendimento psicossocial “tinha o objetivo de
compreender os moradores e suas práticas enquanto
Ao historiar a PSC no Brasil, Lane (1996)
pessoas e cidadãos, em lugar de moradia e convivência,
reconhece dois pontos relevantes nesta trajetória: a
além de facilitar processos de mudança social no
criação dos Centros Comunitários de Saúde Mental
bairro” (Mendes & Correia, 1999, p. 21). Vale lembrar
cuja finalidade foi transformar, na década de 1970, o
que esses primeiros trabalhos eram denominados
modelo de atenção psiquiátrica vigente e os trabalhos
de Psicologia Popular. Posteriormente, passaram a
de alfabetização de adultos, inspirados na Educação
se chamar Psicopedagogia Popular, uma união entre
Popular de Paulo Freire.
Psicologia e Educação Popular, e somente em 1987
Em Minas Gerais, o Setor de Psicologia Social tais práticas começaram a ser intituladas Psicologia
da UFMG representava o movimento de redefinição Comunitária. Assim,

564
Psicologia & Sociedade, 28(3), 562-571.

acompanhando o processo de constituição da Institucionalista; Promoção da Saúde; Psicologia


psicologia comunitária – que nessa época caminhava Sócio-Histórica; Psicossociologia; Sociologia Clínica;
decisivamente rumo à especificidade, com método Perspectiva Sistêmica; Psicologia da Libertação;
e campo próprios, demarcando, enfim, um corpo de Educação Libertadora; Biodança; Socionomia; Teoria
atuação e um saber específico – o projeto passa a ser
Histórico-Cultural; Intervenção Psicossocial; Grupo
identificado como Projeto de Psicologia Comunitária.
(Mendes & Correia, 1999, p. 22) Operativo (Pichón-Riviére); Psicanálise e Paradigma
Ecológico.
Ao contrário do percurso da PSC no Rio de A pluralidade de referenciais teórico-
Janeiro, a experiência cearense revela um esforço deste epistemológicos que compõe o campo é evidente. Tal
grupo em oferecer a essas práticas uma especificidade. multiplicidade indica que muitas coisas cabem dentro
Isso se revela pelo uso de algumas estratégias, como, da PSC e que essa forma-disciplina está longe de
por exemplo: o conjunto de referenciais teórico- ter limites conceituais bem definidos e consensuais.
epistemológicos adotados, a não vinculação de seu Analisando detidamente a produção textual foi
percurso ao de outras práticas em PSC que aconteciam possível, contudo, vincular a PSC a três grandes
no país e a defesa explícita de que a PSC produzida campos de atuação, a saber, a saúde, a assistência
naquele estado se diferenciava de outras experiências social e a educação. Além disso, destacamos duas
nacionais. vinculações teóricas da PSC: uma com a Psicologia
Clínica e outra com o Paradigma Ecológico.
Adiciona-se um novo rótulo à Psicologia, que
agora, além de ser “comunitária”, é também “do Ceará”. Discutir as alianças da Psicologia Clínica com
Portanto, a ideia que nos parece circular por esses a Psicologia Comunitária envolve duas questões
argumentos é que: falar em Psicologia Comunitária do principais. A primeira diz respeito à nossa dificuldade
Ceará é diferente de falar em Psicologia Comunitária em escapar das formas já consagradas de atuação e, por
de modo geral, seja de experiências nacionais ou sua vez, de encarar o desafio de buscar novas referências
internacionais. Não que as práticas cearenses (ou e de criar outro modo de fazer psicologia. Parece que a
outras) não tenham a sua singularidade de acordo ânsia pelo conforto de “saber o que fazer” no momento
com o contexto onde são produzidas. A questão está em que “é preciso fazer alguma coisa” nos faz procurar
no esforço em defender mais uma especialidade para acolhimento naquilo que já está estabelecido, no lugar
a Psicologia e em que efeitos essa sobreposição de onde encontramos as respostas e onde o modo de fazer
etiquetas pode gerar. Como se não fosse suficiente já está prescrito. Ao mesmo tempo, ao cair, novamente,
o rótulo “comunitário”, colocamos ainda outro por no atendimento psicológico (seja ele individual, em
cima relacionado ao estado no qual aquela Psicologia grupo, ou nos seus diferentes formatos), a Psicologia
é produzida. Já o fizeram com a Psicologia Social não consegue ampliar seu escopo de atuação. Parece
produzida na cidade de São Paulo, ou especificamente que os limites de intervenção de um psicólogo sempre
na PUC-SP, com a instituição de uma suposta “Escola serão definidos pelos limites do indivíduo. Apesar de
de São Paulo” (Carvalho & Souza, 2010). E agora todo o clamor por incluir a dimensão comunitária-
também com a PSC e sua “Escola do Ceará”. As social em suas intervenções, do esforço em se deslocar
estratégias de constituir identidades aos campos não até os espaços de periferia-favela-comunidade, não
nos parecem ter qualquer consequência positiva. conseguimos abrir mão do indivíduo, nem de suas
O esforço em defender a especificidade só produz correlações - o sujeito, o desejo, a subjetividade.
isolamentos, especialismos e especialistas, que serão Um dos aportes teóricos mais citados nas
as autoridades que poderão falar em seu nome. produções textuais da PSC é o que tem sido
chamado de “Perspectiva sistêmica” ou “Paradigma
Produções atuais da PSC: as vinculações ecológico”. Sem a pretensão de explicitar os conceitos
teóricas e o trabalho do psicólogo comunitário e pressupostos que compõem esta “perspectiva”
ou este “paradigma”, nós chegamos a, pelo menos,
duas problematizações acerca desta vinculação: o
Algumas vinculações teórico-epistemológicas alinhamento com a Psicologia Positiva e a utilização
da PSC norte-americana como referência.
A análise documental das produções textuais
da PSC expõe os seguintes referenciais teóricos e A aliança entre a Psicologia Comunitária e a
epistemológicos: Psicologia Clínica, psicoterapia, Psicologia Positiva deve ser analisada com cuidado.
Psicoterapia Breve e Orientação Psicodramática; Esta não é nossa pretensão neste momento, mas a
PSC, PC; Psicologia Social Crítica, Psicologia identificação de tal enlace já produz questão. A princípio,
Política; Psicologia Histórico-Cultural; Movimento a PSC em sua trajetória latino-americana esteve próxima

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Gonçalves, M. A. & Portugal, F. T. (2016). Análise histórica da psicologia social comunitária no Brasil.

aos setores populares tendo como direção produzir negação de uma prática. É preciso não fazer clínica
algum tipo de mudança ou transformação social. para que alguma coisa diferente possa acontecer.
Este campo aliou-se fundamentalmente à Psicologia
Social, em sua perspectiva crítica, a fim de produzir Na análise das produções textuais, deparamo-
intervenções sociais de caráter coletivo. A Psicologia nos com duas dicotomias principais na descrição do
Positiva surge nos Estados Unidos no fim da década trabalho dos psicólogos comunitários: uma diz respeito
de 1990 e se define como um movimento que pretende à oposição individual versus coletivo-comunitário;
contribuir para o florescimento e o funcionamento e outra está associada às dimensões concreta versus
saudável de pessoas, grupos e organizações por meio subjetiva. É comum encontrar pelo menos uma dessas
do fortalecimento das competências ao invés de duas oposições no relato de suas tarefas. Além disso,
corrigir deficiências. A Psicologia Positiva reconhece apresentamos também as discussões sobre a formação,
o sofrimento humano, situações de risco e patologias, pois ela está diretamente atrelada ao debate sobre o
mas pretende investigar outra face das questões, trabalho do psicólogo.
por exemplo, o altruísmo e a felicidade. (Paludo
& Koller, 2005, 2007). Essa elaboração enfatiza a A (não) formação
individualização de aspectos relacionais e purifica as
É possível afirmar que a temática da formação
relações profundamente desiguais constitutivas da
circula nos referenciais da PSC. Há uma ideia de que é
história de nossas classes populares comparada aos
preciso construir um arcabouço teórico-metodológico
segmentos mais privilegiados de nossa sociedade.
consistente para instrumentalizar aqueles que atuam
Torna-se interessante observar que os autores em comunidades. Não ter referenciais para a atuação é
de referência de tal paradigma são norte-americanos um desafio e causa desconforto aos profissionais. Logo,
e as publicações citadas referem-se às décadas de a ideia de que eles devem estar munidos de teorias
1970 e 1980 (Saforcada, 2010; Sarriera, 2010, 2011). consistentes para intervir em contextos comunitários
Dentre eles, são apontados, sobretudo James Kelly parece ter alguma relação com o aparecimento da
(1966, 1986), Edison Trickett (1972, 1984), e Julian temática da formação. Essa ideia está intimamente
Rapapport (1981), conforme Sarriera e Saforcada, relacionada com as defesas de constituição de um
2010. A referência a esses autores assinala a tentativa campo e de uma especialidade em PSC. Na medida
de aproximação entre o passado norte-americano e o em que temos um campo de trabalho, com teorias
presente latino-americano na medida em que alguns e metodologias próprias, é necessário formar
autores da PSC se esforçam em distinguir o surgimento profissionais que tenham domínio sobre ele. Este é o
e as trajetórias da disciplina nos dois continentes. processo de construção de um especialista.

O que se percebe no material analisado é uma


O trabalho do psicólogo comunitário
crítica geral dirigida à formação em psicologia. A crítica
É comum encontrarmos alguma indicação sobre consiste em denunciar uma deficiência na formação,
qual é a tarefa do psicólogo que atua em comunidades. historicamente pautada na atividade clínica. Essa
Em geral, criticam-se as atuações relacionadas à falha na formação tem como consequência a falta de
chamada Psicologia tradicional e, ao mesmo tempo, preparo dos profissionais para o trabalho com políticas
propõe-se um novo tipo de intervenção. públicas ou em contextos comunitários. Por isso,
justifica-se o desconforto sentido pelos profissionais
Portanto, ao examinar o trabalho do psicólogo
ao se depararem com a atividade comunitária por
comunitário, convém verificar que, de fato, suas ações
tal deficiência latente na formação em psicologia.
se distanciam disto que é apresentado como Psicologia
Ao discutir a formação, critica-se a exclusividade
tradicional (em geral, indicado como psicologia clínica
do trabalho clínico e transposição desse modelo na
ou àquelas que se limitam à dimensão individual).
atuação comunitária:
Ao tentar estabelecer o escopo do seu trabalho, o
psicólogo comunitário se embaraça entre o que se O debate a respeito dos problemas sociais não adentra
define como clínica e todas as práticas que, mesmo sem a formação básica da graduação do psicólogo. Não
se trata, então, de criticar o atendimento individual,
saber exatamente em que consistem, se definem como
mas sim a pura e simples transposição de um modelo
“não clínicas”. Na tentativa de escapar das práticas clínico para um trabalho que requer dimensões sociais
tradicionais, caímos no limbo de tudo aquilo que, em e políticas muito mais abrangentes. ... a formação
tese, não são atuações clínicas. Todavia, estar no limbo maciça em clínica prepara para uma relação dual,
e não saber exatamente o que se faz não nos parece ser importante, mas com aplicação pouco eficaz para a
um problema. É interessante notar que a proposta de inserção na comunidade. (Paiva & Yamamoto, 2010,
novas formas de fazer psicologia seja construída pela p. 155)

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A consequência desse argumento é de que é se estabelece entre a dimensão concreta e a dimensão


preciso, então, uma formação para a intervenção subjetiva. Apesar de reconhecer a materialidade da
psicossocial ou comunitária. A crítica geral à vida das pessoas que vivem em comunidades, como
formação em psicologia nos parece coerente. Apesar condições de saneamento básico e saúde, acesso à
de serem recorrentes e existirem, pelo menos, desde escola, questões econômicas, políticas, o psicólogo
a sua regulamentação, as críticas à formação ainda parece não intervir nessa esfera. Seu alvo sempre se
são necessárias. Isto porque, apesar das muitas constitui em torno do que vagamente denominamos
transformações que sofre ao longo dos anos, a dimensão subjetiva. Ou aquela que envolve relações,
formação em psicologia ainda enfatiza o trabalho afetos, vínculos, desejo.
clínico e discute muito pouco a questão social e as
A defesa das intervenções na dimensão subjetiva
políticas públicas. É preciso então mudar a formação
vem acompanhada dos argumentos que defendem
em psicologia, para que todos os profissionais possam
uma especificidade para o trabalho do psicólogo
estar atentos a questões políticas, econômicas e
quando inserido em contextos comunitários. É
sociais implicadas em suas práticas. Para que possam,
necessário então individualizar ou psicologizar
principalmente, refletir sobre as consequências de suas
questões econômicas, políticas, sociais para que o
intervenções na sociedade.
psicólogo possa intervir, tendo em vista os limites
No entanto, o argumento de que é preciso formar de sua atuação e de sua formação. Alguns textos
especialistas em psicologia comunitária, a partir de reivindicam explicitamente uma especificidade para o
um processo de formação próprio para tal, não parece trabalho do psicólogo comunitário, relacionada à sua
fazer sentido. A ideia não é formar profissionais caracterização como o profissional que pode lidar com
especializados em intervenções comunitárias, mas o desejo, a singularidade, a emoção, os afetos etc. A
sim ampliar o olhar dos psicólogos de maneira geral. sua exclusividade está justamente na possibilidade de
Incluir discussões relativas aos problemas sociais, intervir em tais dimensões. Assim, esse argumento,
políticos, econômicos na formação em psicologia para em geral, sustenta a necessidade de diferenciarmos a
que todos tenham acesso a esse debate, para que todos prática do psicólogo de outros profissionais também
pensem sobre as consequências de suas práticas. Isso envolvidos nas atuações comunitárias.
não deve ser privilégio dos especialistas em psicologia
comunitária ou daqueles que, de alguma forma, Considerações finais
estejam inseridos no campo das políticas públicas.
A problematização sobre os limites deste
A caracterização da prática – em que dimensão,
campo revelam que as aproximações da Psicologia
afinal, atuam os psicólogos comunitários? com as comunidades (ou favelas, periferias, etc)
Ao descrever suas práticas, os psicólogos não estiveram sempre dentro de tais contornos. Não
costumam diferenciar as ações direcionadas à dimensão seguiram sempre este conjunto de referenciais e
individual, nomeadas Psicologia Tradicional, daquelas metodologias que hoje, ao menos em tese, compõem
direcionadas à dimensão coletiva. Assim, o que se uma área específica dentro da Psicologia denominada
defende na atuação comunitária é um deslocamento das PSC. O que queremos dizer é que as práticas dos
intervenções centradas no indivíduo para aquelas que psicólogos em comunidades não foram sempre
se dirigem à dimensão ambiental-coletiva-contextual- definidas como intervenções que pertenciam a um
comunitária. Isso porque as novas formas de fazer campo e que pretendiam aplicar suas orientações. A
psicologia devem passar a considerar que as causas imagem que nos parece traduzir este raciocínio é a de
do sofrimento não pertencem somente à dimensão um profissional que se deslocava até as comunidades
intrapsíquica, mas estão também condicionadas de sem o livro de PSC embaixo do braço. Realizar
acordo com o contexto ou o ambiente comunitário. intervenções em comunidades não representava
Portanto, a oposição individual versus coletivo se estar aplicando referências, conceitos ou métodos
revela nessa outra: Psicologia Tradicional versus da PSC. Os profissionais não se identificavam como
Psicologia Comunitária. As intervenções na dimensão psicólogos comunitários. Em alguns casos, ele ia sem
individual parecem pertencer somente à Psicologia saber muito bem o que fazer, mas com o intuito de
Tradicional, enquanto as ações sobre a dimensão colocar em questão os espaços que a Psicologia, até
coletiva ficam a cargo da Psicologia Comunitária. então, tinha ocupado como profissão. Foi possível
perceber tal movimento quando descrevemos as
Ainda quanto às oposições que definem a prática primeiras experiências de aproximação de psicólogos
do psicólogo comunitário, é preciso alertar para a que às comunidades na cidade do Rio de Janeiro.

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Gonçalves, M. A. & Portugal, F. T. (2016). Análise histórica da psicologia social comunitária no Brasil.

No que tange aos referenciais teórico- aventuram em intervenções comunitárias só indica


metodológicos, encontramos argumentos que mais uma das estratégias de delimitar quem pode ou
defendem a constituição de teorias sólidas que não fazer parte de um determinado grupo. É necessário
sustentem as intervenções comunitárias. Tendo isto em incluir debates acerca de questões sociais e políticas
vista, parece não ser mais possível que os psicólogos públicas na formação de psicólogos. Mas isso não
se aventurem em práticas comunitárias sem estarem deve ser privilégio dos que buscam se aproximar de
munidos destes referenciais. Ora, era compreensível atuações comunitárias. Dizer que é preciso passar
que os primeiros psicólogos que se deslocaram até por um processo de formação para fazer PSC é uma
os espaços comunitários não tivessem suas práticas forma de excluir profissionais não especialistas.
embasadas em algum tipo de teoria ou metodologia, Ademais, este argumento prevê uma burocratização
mas hoje não mais. Afinal, a defesa é de que o campo, (Lapassade, 1983, p. 202) da intervenção e uma captura
depois de seu percurso de quase cinco décadas, institucional que inibem a criação de novas formas
possui um volume de produção teórico-metodológica de fazer Psicologia e confere a grupos específicos a
que deve ser usada entre os psicólogos que realizam autoridade. Mas sabemos que “não saber muito bem
atividades comunitárias. Os profissionais não precisam o que fazer” pode incitar à criação de novas práticas,
ir até as comunidades sem saber o que fazer ou como entretanto também pode provocar a adesão a práticas
fazer. A ideia é de que aqueles que atuam no contexto tradicionalmente estabelecidas pelo conforto que elas
comunitário fazem, necessariamente, parte de um provocam nos profissionais.
campo específico da Psicologia, objetivado sob o
Também aí se situam as tentativas de defender
título PSC. Por conseguinte, ao realizar tal prática,
uma especificidade para o trabalho do psicólogo
o psicólogo deverá estar com esse conjunto teórico
comunitário. As referências em PSC costumam
supostamente já consolidado para sustentar suas
mostrar qual é o papel do psicólogo em atuações
intervenções.
comunitárias. Vimos que essa definição envolve
Vimos também que a PSC se apresenta, ela mesma, algumas contradições, pois ora é sua tarefa lidar com
como um dos referenciais indicados como base teórico- questões objetivas e concretas, ora é sua tarefa lidar
epistemológica. Contudo, muitos outros referenciais com questões subjetivas, simbólicas. No entanto, os
são citados pelo campo. Não há como identificá-los em argumentos que defendem uma especificidade para o
marco epistemológico comum. Ao mesmo tempo que psicólogo que intervém em comunidades, em geral,
há esse esforço em defender um marco teórico para a vinculam tal especificidade a sua possibilidade de
PSC, uma teoria explicativa, o que fica claro, quando lidar com a dimensão simbólica, subjetiva, afetos,
mapeamos o campo, é que a PSC está longe de possuir relações, emoções etc. O psicólogo possui um
um marco teórico-epistemológico comum. Isso mostra escopo específico de atuação que se atualiza também
uma das fragilidades dos argumentos que pretendem no contexto comunitário. Este argumento defende
reafirmar sua etiqueta. A análise histórico-crítica uma especificidade da Psicologia, mesmo quando
torna visível as pretensões políticas do esforço de inserida nas intervenções comunitárias. Ao mesmo
justificação epistemológica da PSC. A ausência de um tempo, essa ideia parece contradizer a defesa de um
marco teórico-epistemológico comum não constitui domínio específico para o psicólogo comunitário.
fragilidade da PSC. Reiteramos que o foco de nossa Afinal, a especificidade se justifica pelo fato de serem
análise visa evidenciar o próprio esforço de unificação psicólogos ou por estarem inseridos em um novo
e etiquetagem como uma operação de criação de mais contexto de atuação?
um especialismo com as consequências excludentes
A Análise Institucional já evidenciou como
que o caracterizam (Baremblitt, 1992).
o conhecimento especializado para a produção de
No conjunto destas estratégias identitárias bens materiais e serviços essenciais à sobrevivência
da PSC, há também as discussões a respeito da tem operado historicamente uma dominação,
formação e do trabalho do psicólogo comunitário implementando forças desiguais em função de seu
e sua especificidade. Ao delimitar um campo com controle por instâncias sociais como o Estado, empresas
seus referenciais teórico-metodológicos próprios, o e outras corporações, entre elas, as universidades
argumento da necessidade de formação para aqueles (Baremblitt, 1992). A análise histórico-crítica constitui,
que pretendem pertencer a ele começa a fazer sentido. neste sentido, esforço relevante para evitar a formação
Os questionamentos sobre a formação em Psicologia de novas “especialidades” da psicologia na medida em
disparados pelos debates em PSC nos parecem que ela permite combater especialistas que operam
pertinentes. Porém, a ideia de que é necessária uma sobre o pressuposto de que existe uma realidade prévia
formação específica para aqueles profissionais que se e definitivamente instituída.

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Psicologia & Sociedade, 28(3), 562-571.

O estabelecimento de uma área que chamamos nos faz ver algumas proveniências e investimentos
PSC faz parte de um processo histórico. Não é sociais da PSC. Nem pelos seus referenciais teórico-
consequência natural de uma sucessão de fatos, mas metodológicos, nem pelo que define como sendo
fruto de estratégias e esforços daqueles que pretendem objetivo de suas intervenções é possível afirmar
defender esta etiqueta e sua especificidade. Há quem uma identidade à PSC. É importante destacar que o
argumente ser uma vantagem o fato de que a PSC é hoje investimento em defender uma unidade para o campo nos
uma área bem definida, com seus próprios referenciais parece uma tentativa de captura institucional com seus
teóricos e metodológicos e com um escopo de trabalho efeitos hierarquizantes. Em seu lugar, julgamos mais
reservado dentro da Psicologia. Esse parece ser o interessante pensar que práticas estamos produzindo
lugar onde se queria chegar. O horizonte daqueles que ao nos aproximarmos das maiorias populares, se elas
pertencem ao campo. realmente instauram novas formas de fazer Psicologia,
quais são seus efeitos, e, principalmente, qual é o seu
Ao perseguir a sua constituição como um
compromisso ético-político.
campo específico, a PSC limita aqueles que podem
falar e intervir em seu nome. Como se, para lidar
com questões sociais, se aproximar de determinados Notas
espaços da cidade e das maiorias populares, o
psicólogo necessariamente precisasse estar vinculado
1
Para nos referirmos à PSC, optamos, preferencialmente,
pelo vocábulo “movimento” na medida em que estamos
a este campo. Assim, acabamos caindo no perigoso
interessados no caráter dinâmico de proposições autorais,
raciocínio de que só psicólogos comunitários devem reflexões não sistemáticas, teorias e suas ações sociais. A
se implicar com questões políticas e sociais, só eles caracterização da PSC em uma teoria, em um campo, em
devem estar atentos às maiorias populares, só eles um paradigma – categorias de uso comum em trabalhos que
devem se deslocar até os espaços de exclusão, só eles buscam caracterização epistemológica – não constitui nosso
devem pensar novas formas de fazer Psicologia. objetivo. Não pretendemos estabelecer um critério para
determinar o que é e o que não é PSC, pretensão própria
O movimento em direção às comunidades pode a análises – vale reiterar – epistemológicas que sempre
produzem divisores entre o verdadeiro e o falso. Buscamos
ter representado uma novidade para a profissão. Um
empreender uma análise histórico-crítica das argumentações
impulso para construir novas práticas. Todavia, ao produzidas na PSC em torno da profissão de psicólogo e de
longo do tempo, o que foi efetivamente feito em seu querelas epistemológicas produzidas nas últimas décadas
nome parece, algumas vezes, se aproximar de práticas em busca de uma identidade teórica. Sem pretender indicar
realizadas pela Psicologia hegemônica. Em relação a legitimidade epistemológica da PSC ou, mesmo, defender
a isso, o que identificamos é uma contradição entre uma ação profissional respaldada na PSC, interessa-nos
mapear estas trajetórias, indicar seus movimentos para que
buscar práticas que se distanciem das hegemônicas,
uma análise crítica possa surgir daí.
tendo a clínica como uma delas, e apontar como uma 2
O termo maiorias populares, diante da literatura revisada,
de suas bases teórico-metodológicas referenciais da parece ser usado para fazer oposição ao termo elite, visto
própria Psicologia Clínica, como a Psicanálise ou que circulava uma crítica à elitização da psicologia.
a Teoria Rogeriana. Não que os referenciais em si 3
Para adensar os estudos sobre as atuações comunitárias na
definam o sucesso de uma prática e garantam seus cidade do Rio de Janeiro, ver o trabalho de Soares (2001),
efeitos. Uma intervenção clínica pode produzir efeitos Landin e Lemgruber (1980), Aguiar e Brasil (1991), Souza
positivos, enquanto uma prática em Psicologia Social (1985).
pode se configurar de forma reacionária. No entanto,
se a PSC representou uma tentativa dentro do campo Referências
profissional de instaurar novas formas de fazer
Psicologia, talvez tenhamos que estar atentos e não Aguiar, K. & Brasil, V. V. (1991). História de andanças de
perder de vista tal objetivo. técnicos em favelas: da “Alegria” ao “Sossego” e vice-versa.
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570
Psicologia & Sociedade, 28(3), 562-571.

Mariana Alves Gonçalves é doutoranda do Programa de Francisco Teixeira Portugal é doutor em Psicologia
Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica
Rio de Janeiro - UFRJ. do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-
Endereço: UFRJ, Instituto de Psicologia. Av. Pasteur, 250, graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio
Pavilhão Nilton Campos, Praia Vermelha. CEP 22290-240 de Janeiro. - UFRJ. Bolsista de Produtividade em Pesquisa
Rio de Janeiro/RJ, Brasil. do CNPq - Nível 2.
E-mail: mariana.alvespsi@gmail.com E-mail: fportugal@ufrj.br

571
GOIS, C. W. Cap. 3. Atividade Humana. In: C. GOIS. Psicologia Comunitária:
atividade e consciência. Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire, 2005, p. 75-90.

3. ATIVIDADE HUMANA
Neste capítulo, trataremos de algumas das questões relativas ao problema
da atividade humana, situando esta no campo da Psicologia e, por
conseguinte, na área da Psicologia Comunitária na forma de atividade
comunitária. Para isso, buscamos basear-nos em determinadas
concepções gerais, na teoria psicológica da atividade e na teoria histórico-
cultural da mente, as quais enfocam a atividade humana do ponto de vista
da interação dialética indivíduo-mundo e da perspectiva de que o
desenvolvimento social e o desenvolvimento dos processos psíquicos
superiores são aspectos de um só processo de desenvolvimento cultural
de um povo.

3.1. NOÇÃO DE ATIVIDADE


A palavra atividade se refere, segundo o Dicionário da Real Academia
Espanhola, a um “conjunto de operaciones o tareas propias de una
persona o entidad.” Este é o conceito comumente usado por boa parte das
pessoas ao explicar a atividade. Por outro lado, para Vasquez (1977), é
importante distinguir a atividade humana da atividade natural, sendo esta
última a atividade no sentido geral, como por exemplo, um pássaro
construindo seu ninho, um órgão do corpo em funcionamento ou um vulcão
em erupção; já a atividade das pessoas, é a práxis, uma atividade
essencialmente humana.
A noção de atividade humana como práxis está presente na Filosofia e nas
Ciências Sociais e Humanas, assim como em áreas específicas e técnicas
das Ciências da Saúde, como é o caso da Terapia Ocupacional. Nesta área,
Caniglia (1991) entende que a atividade humana requer, para sua
compreensão e uso como instrumento de saúde, aportes antropológicos,
filosóficos, biológicos e psicológicos. Só assim, diz ela, é possível
compreender e lidar com o ser humano como um ser de práxis.
Ao tomar como referência a noção de atividade em Marx (1975),
constatamos que esta se apresenta não só como tarefas, operações ou
procedimentos, mas, também, como ação consciente, criativa e
transformadora, quer dizer, uma ação que permite ao ser humano apropriar-
se da natureza, produzir a sociedade e sua existência conforme sua vontade.
Para Ritzer (1993) e Codo (1984), o conceito de atividade em Marx está
integrado aos conceitos de trabalho e de criatividade, além de possuir um
sentido de ação intencionada, planejada (o trabalho de produção material,
de transformação) e de criação (capacidade que as pessoas têm de fazer
produtos novos). Tanto a ação planejada como a criatividade, não se
encontram isoladas uma da outra.
Na visão marxista, a capacidade do ser humano de controlar sua atividade,
fazendo-a objeto de sua vontade, é o que lhe permite diferenciar-se dos
demais animais.
Uma aranha executa operações que recordam as do tecelão, e uma abelha
envergonharia, pela construção de sua colméia, mais de um mestre de
obras. Porém, o que distingue com vantagem o pior mestre de obras da
melhor abelha é que o primeiro tem modelada sua colméia em sua cabeça
antes de construí-la na cera. Ao se consumar o processo de trabalho surge
um resultado que, antes do começo daquele, já existia na imaginação do
operário, ou seja, idealmente (MARX, in RITZER, 1993:178).

3.2. ATIVIDADE E TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL DA MENTE


A obra de Marx e Engels exerceu grande influência no pensamento de
Vygotski, servindo de base às questões que levantou no debate de então,
acerca das concepções de consciência e do objeto da Psicologia. Através de
suas pesquisas, a noção de atividade ganhou especial relevância em sua
teoria histórico-cultural da mente e na Psicologia em geral, juntamente com
os estudos sobre a linguagem, o pensamento e a consciência.
Baseado no materialismo dialético, Vygotski buscou com seus
colaboradores (Luria, Leontiev, Zaporozhets e outros) respostas a algumas
perguntas que fez frente à crise da Psicologia na União Soviética dos anos
20, dando a partir daí um rumo novo e revolucionário a suas pesquisas,
iniciadas em 1924 com o informe sobre “Métodos de pesquisa
reflexológica e psicológica”, e finalizadas com sua morte em 1934, ano em
que publicou o informe sobre “Problemas de desenvolvimento e destruição
das funções psicológicas superiores”. Foram questões que marcaram sua
breve e bem sucedida carreira de pesquisador, voltada para a construção de
uma nova ciência psicológica que, também, estivesse voltada para a
solução dos graves problemas sociais e humanos existentes em seu país.
Seus trabalhos continuam atuais e, ainda hoje, orientam linhas e programas
de pesquisa na própria Rússia, bem como na Europa, Estados Unidos e
América Latina.
Vygotski desenvolveu um exigente, audacioso e criativo plano de pesquisa
com base em determinadas questões que, ao longo de seu trabalho de
investigação, sempre o direcionou através de um método de pesquisa
inovador (genético-experimental), cujo foco é o desenvolvimento dos
processos psicológicos e não somente a compreensão dos seus estágios em
um determinado momento. Por isso as suas indagações, dentre elas as que
se seguem:
. De que modo os processos psíquicos superiores se formaram no curso da
história humana e de que modo se desenvolvem ao longo da vida de um
indivíduo?
. Qual é a relação entre os seres humanos e seu entorno físico-social?
. Quais foram as novas formas de atividade, responsáveis pelo
estabelecimento do trabalho como meio fundamental para relacionar os
seres humanos com a natureza, e quais são as conseqüências psicológicas
de tais formas de atividade?
. Qual é a natureza da relação entre o uso de ferramentas e o
desenvolvimento da linguagem e da consciência?
Ao longo de suas investigações, Vygotski concluiu, entre outras coisas, que
a atividade humana implica uma atividade com significado, própria dos
seres humanos e de suas estruturas sociais, e não dos outros animais, o que
foi demonstrado em seus estudos sobre o mono antropóide, o homem
primitivo e a criança. Nos monos se verifica a atividade semiótica primária,
isto é, limitada ao campo visual do animal (KÖHLER, 1926, apud
VYGOTSKI, 1991; apud LURIA, 1991) e sem a qualidade presente na
atividade semiótica do ser humano, em decorrência da fala.
O significado disto é que o comportamento animal não vai além dos limites
da experiência sensível e imediata, posto que o homem, simplesmente,
assimila este princípio abstrato, reagindo, não só de acordo com a
experiência imediata, passada, mas, também, em correspondência com o
princípio abstrato dado. O homem vive não só no mundo das impressões
imediatas, mas igualmente no mundo dos conceitos abstratos. Acumula não
só sua experiência visual imediata, mas, da mesma forma, a experiência
social, formalizada no sistema dos conceitos abstratos. Conseqüentemente,
o homem, diferentemente dos animais, pode operar, não somente em um
plano imediato, mas, também, dentro de um plano abstrato, penetrando
assim, profundamente, a essência das coisas e de suas relações (LURIA,
1987:13).
Sob esse enfoque, a atividade humana designa um processo que vai da
filogênese a microgênese, passando pela ontogênese e sociogênese; vai do
símio e o homem primitivo ao sujeito da história, passando pelo
desenvolvimento de cada indivíduo segundo a espécie e pela formação do
homem e da mulher culturais. A atividade humana se constitui a condição
mediadora pelo qual se realiza o processo de hominização (filogênese e
ontogênese), humanização (sociogênese) e construção do sujeito
(microgênese).
A atividade levou ao desenvolvimento do ser humano, a partir de um
mundo imerso na realidade sensorial, na qual, como mono antropóide,
estava prisioneiro de seu campo sensório-perceptivo, até um mundo sutil
de relações e nexos. Em um primeiro momento, temos o antecessor do
homem, vivendo no mundo concreto, imediato, sensório-perceptivo;
depois, surge o homem primitivo dependente da atividade prática, dos
objetos e das situações concretas, porém já capaz de dar significado ao
mundo imediato. Aqui, o significado da palavra estava associado à
situação concreta da atividade prática, por isto, atividade simpráxica. Mais
adiante, então, vem o homem cultural, construtor, cada vez mais, da
autonomia e da liberdade, ao construir um mundo de significado e
criação, no qual a linguagem ganha autonomia frente à realidade imediata
e concreta. Assim, o ser humano passou de uma atividade de caráter
simpráxico (homem primitivo) a uma atividade puramente simbólica, de
caráter sinsemântico, própria do homem cultural (LURIA, 1987).

A atividade humana, portanto, é atividade mediatizadora, visto que, ao se


diferenciar da atividade com instrumentos dos antropóides, principalmente,
por integrar a ferramenta ao símbolo, permite, em função dessa integração,
que se cumpra boa parte de sua função de mediatização. Isso torna possível
o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, os quais, por sua
vez, diferenciam, qualitativamente, a mente humana do psiquismo animal
(VYGOTSKI, 1991; VYGOTSKI e LURIA, 1996).
A analogia entre o signo e o instrumento consiste na função mediatizadora
de ambos, ainda que Vygotski indique que não são equipotenciais nem
equivalentes por sua função, nem tampouco esgotam todo o conteúdo da
categoria de atividade mediatizadora. A diferença fundamental é que o
instrumento está dirigido a provocar umas e outras modificações no objeto
da atividade, é o meio da atividade externa do homem destinada a
conquistar a natureza. O signo não muda nada no objeto da operação
psicológica; é o meio da ação psicológica sobre o comportamento, está
dirigido para dentro. Por último, ambos estão unidos na filo – e na
ontogênese. O domínio da natureza e de si mesmo estão mutuamente
enlaçados, tanto que a transformação da natureza muda a própria
natureza do homem. Assim como o emprego de instrumentos marca o
início do gênero humano, na ontogênese, o uso primeiro do signo assinala
que o sujeito tem saído dos limites do sistema orgânico da atividade
(SHUARE, 1990: 64).

Além de sua função de mediatização, a atividade é, também, orientadora.


Segundo Galperin (1982), a atividade orienta constantemente o indivíduo
em sua ação de transformação e de controle da realidade e de si mesmo, ao
levar à compreensão da situação em que ele atua, à clareza do caminho a
seguir e “à regulação da ação ao longo do processo de execução” (p.40).
Para Vygotski (1996), a atividade possui dois aspectos chave: uma
estrutura instrumental e sua inclusão em um sistema de relações com outras
pessoas. Significa que se realiza com ferramentas e se desenvolve somente
em condições de cooperação e de comunicação humanas. Além disso, a
atividade apresenta três outras importantes características: direção,
transformação e interiorização. A primeira trata da relação entre motivo-
objeto-objetivo; a segunda, da construção cultural; e a terceira diz respeito
à reconstrução interna e particular dos objetos e de suas relações no mundo
físico-social, isto é, a construção do sujeito.
A atividade, assim, implica um sistema de interações de crescente
complexidade entre indivíduo e mundo objetivo (interação dialética) que,
ao mesmo tempo, transforma a natureza e a sociedade, bem como permite
ao ser humano exercer o controle sobre si mesmo. Por esse aspecto
entendemos que a atividade humana é, em primeiro lugar, social, e
constitui a base da aprendizagem e do desenvolvimento cultural.
Olhando por esse prisma, a palavra atividade, aplicada ao ser humano,
deve ser considerada distinta do seu emprego geral, seja para distingui-la
da forma utilizada para explicar o uso de instrumentos pelos demais
animais, seja para diferenciá-la da maneira mecânica como é empregada
em relação às tarefas e operações realizadas por uma pessoa ou por uma
máquina.

A preocupação de Vygotski, quanto ao estudo da atividade humana, não era


“reducionista” ou “dualista”, já que pretendia compreender a mente
humana como um todo sistêmico, noção esta tomada dos trabalhos de
Anokhin (LURIA, 1992).
A teoria de Vygotski se baseia em uma série de conceitos interconectados,
tais como a noção de processos mentais superiores, a noção de atividade
mediatizada e a noção de ferramentas psicológicas. Os processos mentais
superiores, segundo Vygotski, são funções de atividade mediatizada
(KOZULIN, 1994:113).
Ao tomarmos a Teoria Histórico-Cultural da Mente como base para a
compreensão da atividade humana em Psicologia, consideramos esta como
o elo que estabelece o vínculo indissolúvel entre o mundo objetivo e o
mundo subjetivo, entre a atividade cerebral e a atividade psíquica, entre a
atividade consciente e as instâncias inconscientes e automáticas
(SOLOZÁBAL, 1981).
A atividade, em um dos seus pólos, tem o objeto da própria atividade (um
objeto material ou uma situação social dada); e no outro, o sujeito da
atividade. Por um lado, apresenta dimensão externa; e por outro, dimensão
interna. A primeira é a dimensão onde instrumento e fala se encontram
unidos entre si e com o objeto; e a segunda, a interna, é a dimensão onde se
formam e se fortalecem as conexões nervosas (atividade nervosa superior)
e o processo psíquico (atividade mental superior), que estão relacionados
entre si e com as ações externas (LURIA, 1989). A atividade mental não se
encontra isolada da atividade externa do indivíduo, nem de sua realidade
histórico-cultural, por mais que o indivíduo tenha desenvolvido o
pensamento abstrato. Tampouco se encontra separada da atividade cerebral.
A atividade humana, então, se apresenta como atividade com objetos, isto
é, um sistema que integra as ações, o objeto da realidade e o objetivo da
própria atividade, em contínua relação de inter-influência. Aí se dá a
interação dialética entre sujeito e objeto (aquilo que o individuo busca
controlar e transformar segundo seus objetivos), e não simplesmente uma
ação ou reação.
Podemos dizer que a atividade é um processo pelo qual se realizam as
transformações recíprocas entre sujeito e objeto. Nela ocorre,
simultaneamente, a passagem do objeto real a sua forma de representação
mental (imagem e símbolo) e a passagem desta ao mundo objetivo na
forma de atividade prática consciente.
Para Vygotski, o ponto de partida não são as representações, mas as
formas objetivas de comunicação verbal que surgem no processo real e
objetivo da atividade conjunta. O aspecto ideal das estruturas formais da
linguagem, ou seja, o significado das palavras, vai-se formando
progressivamente na criança, dentro de uma atividade real. A criança está
em estreita colaboração com o adulto, e seu desenvolvimento psíquico se
produz junto com a ampliação e aprofundamento de suas relações com o
mundo que a rodeia e com as mudanças que ocorrem dentro de sua
atividade direcionadora (GALPERIN, 1982:12).
No processo de transformação do real em ideal (e vice-versa), o ser
humano se apropria da realidade e se transforma através desta para, a
seguir, transformá-la e novamente apropriar-se dela e assim transformar-se.
Aqui, os objetos e situações da realidade, apropriados no transcurso da
atividade, ressurgem como contradição na consciência, com significados e
sentimentos ao mesmo tempo históricos, universais e singulares.
Vygotski parte de um homem que, inserido em sua cultura e suas relações
sociais, está permanentemente internalizando as formas concretas de suas
atividades interativas, as que se convertem em sistemas de signos que
mediatizam e organizam o funcionamento integral de todas as suas funções
psíquicas (GONZÁLEZ REY, 1996:64).
Outro aspecto a considerar diz respeito a que a atividade humana exerce
função reveladora da contradição entre individualidade e contexto, e entre
motivos, significados, sentimentos e o resultado da própria atividade
prática. A primeira contradição é externa, estabelece as interações entre o
que está representado no psiquismo (mundo subjetivo, ideal) e o que está
presente na realidade (mundo objetivo, material); e a segunda é interna,
trata-se da relação entre o processo da consciência (integrando, regulando,
transformando e dirigindo a vida psíquica) e as conseqüências da atividade
para o próprio indivíduo que a realiza. Desse modo, se estabelece a união
indissolúvel entre o interno e o externo, mediatizada pela cultura e pela
atividade prática do indivíduo no mundo.
Isso não significa que a atividade deva ser considerada na perspectiva do
“reducionismo do interno ao externo”, nem da “sobrevalorização da
atividade”, em detrimento da autonomia e da capacidade criadora do ser
humano (GONZÁLEZ REY, 1996), mas sim no sentido de afirmar que a
atividade psíquica humana se origina e se desenvolve em uma realidade
concreta e histórico-cultural, por meio de interações dialéticas entre o
indivíduo e o seu próprio mundo social.
Ao considerar em seus estudos que o ser humano emergiu da natureza e se
construiu como história, a partir de complexos processos de interação,
mediatização, transformação e interiorização, Vygotski (1995) aportou à
Psicologia um novo enfoque da gênese e do desenvolvimento da
consciência, do comportamento e da identidade, ao abordar o problema do
desenvolvimento das funções psíquicas superiores a partir de uma base
objetiva e experimental.
Ao distinguir a atividade mental inferior da superior, e dado que esta se
desenvolve mediante o uso de ferramentas, signos e símbolos em um
contexto de comunicação e cooperação, fez avançar a Psicologia para um
espaço onde o psíquico e o material constituem uma unidade dialética e
objetiva (GONZÁLEZ SERRA, 1984).
Sua ênfase dada ao desenvolvimento dos processos psíquicos superiores,
como algo inerente aos seres humanos e mediatizado pela atividade
prática e semiótica, é decisiva para a nova Psicologia Soviética nascida na
década de 20, assim como para questões que até hoje estão presentes no
debate da Psicologia. Vygotski (1989, 1991) deu novo rumo à Psicologia a
partir da década de 20, ao demonstrar que era possível estudar, sem
reducionismo, estruturas e processos complexos da mente, como a
linguagem, o pensamento e a consciência, mediante o uso de provas
empíricas (método genético-experimental) e a partir de uma concepção
na qual a atividade prática, o manejo de objetos e de situações concretas,
e mais a interação social em um contexto cultural determinado, estão na
raiz da formação e desenvolvimento dos processos mentais complexos.

Hoje, Vygotski e também Piaget (1985, 1989), com suas diferenças e


semelhanças epistemológicas, teóricas e metodológicas, ocupam lugar de
destaque no estudo da gênese e desenvolvimento da mente humana (KOHL
DE OLIVEIRA, 1992, 1996; FERRERO, 1996; CASTORINA, 1996). Vale
ressaltar na obra de Vygotski o conceito de atividade, inicialmente
introduzido na Psicologia por Jennings (apud VYGOTSKI, 1995) como
sistema de atividade, para designar os modos e as formas de conduta
disponíveis biologicamente em cada espécie e em cada animal, assim
definindo os limites de ação impostos pela natureza através da relação
estrutura-função. Vygotski demonstrou em seus estudos sobre a ferramenta,
o signo e o símbolo, que o ser humano, através da relação cérebro-mãos
(ENGELS, 1960), amplia seu sistema de atividade a um ponto quase
ilimitado, indo além da limitação biológica da ação, algo desconhecido nos
outros animais.
Ao enfocar de determinado modo a integração entre desenvolvimento
biológico e desenvolvimento cultural, mostrou que o ser humano
desenvolve seu sistema de atividade e o transforma em um sistema especial
de ação, cuja característica básica é a de ampliar até o infinito sua
capacidade de adaptação (apropriação), interação e transformação da
natureza e de si mesmo, por meio do desenvolvimento da técnica, das
relações sociais e da própria consciência.
Estudando esse sistema especial em crianças, Vygotski e colaboradores
constataram uma particularidade no desenvolvimento do sistema de
atividade na ontogênese, a qual descreve do seguinte modo:
Toda a peculiaridade da passagem de um sistema de atividade (animal) a
outro (humano) que realiza a criança, consiste em que um sistema não
simplesmente substitui a outro, mas que ambos os sistemas se desenvolvem
conjunta e simultaneamente: fato que não tem similitude nem na história
do desenvolvimento dos animais, nem na história do desenvolvimento da
humanidade. A criança não passa ao novo sistema depois que o velho
sistema de atividade, condicionado organicamente, se tenha desenvolvido
até o fim. A criança não chega a empregar as ferramentas como o homem
primitivo, cujo desenvolvimento orgânico tenha se completado. A criança
ultrapassa os limites do sistema de Jennings quando o próprio sistema
ainda se encontra em sua etapa inicial de desenvolvimento (VYGOTSKI,
1995:38).
A atividade humana é, de fato, um sistema especial de ação que inclui os
processos de apropriação, interiorização e transformação da realidade. Por
meio da atividade, o indivíduo não só se identifica, mas consegue mudar a
realidade objetiva e dar significado ao mundo e a ele mesmo, faz a história,
cria a cultura e forma sua consciência no mundo.
O conceito de apropriação aparece na Teoria Histórico-Cultural da Mente
explicando a diferença existente entre o ser humano e os outros animais no
modo de se relacionar com seu entorno, especialmente quanto a demonstrar
que a interiorização da realidade pelo ser humano é um processo ativo e de
significação - dar significados - e não passivo (LEONTIEV, 1978).
Significa que o indivíduo se apropria da realidade transformando-a,
mediante o uso de instrumentos e da fala, e a reconstrói internamente de
modo singular. Aqui, o externo atua sobre o interno através das condições
do próprio indivíduo.
O ser humano não se adapta, se apropria do mundo por meio de uma
atividade que é significativa, orientadora e transformadora. O sujeito,
então, vai além dos seus limites biológicos e faz história coletiva e pessoal.

Ao falarmos de apropriação, estamos nos referindo a um processo pelo qual


o mundo físico-social é transformado e reconstruído no psiquismo humano
por meio de uma atividade cada vez mais consciente. A apropriação trata-
se do modo como o indivíduo se adapta transformando a si mesmo e ao
mundo, assim se construindo como sujeito à medida que faz cultura, cria e
atribui significados a si mesmo e ao mundo. Uma das conseqüências da
apropriação é a identificação do individuo com o mundo e a pertença a ele,
como algo que lhe é próprio. Além disso, apropriando-se da realidade, a
pessoa exerce maior controle sobre si e sobre o mundo ao redor. Ao
transformá-lo, é transformada por ele para, assim, transformá-lo ainda
mais.
Sabemos da importância do conceito de apropriação, mas este não pode ser
confundido com o conceito de marcação, apresentado por Pol (1996) em
seus estudos sobre apropriação. Por exemplo, ao analisarmos o conceito de
território, o vemos qualitativamente diferenciado quanto a sua aplicação ao
ser humano e aos outros animais. Marcar o território parece ser o mesmo
tanto nos homens como nos outros animais, mas não o é. Os indivíduos
marcam seu território e o defendem de modo distinto dos outros animais.
Nos seres humanos, essa atividade vai além de seu sistema biológico e dos
sinais primários (visuais e, principalmente, olfativos), pois se caracteriza
por ser uma atividade transformadora e semiótica, consciente, de ocupar e
defender um território, usando meios tanto físicos como simbólicos,
inclusive institucionais.
O conceito de apropriação é de grande influência em vários campos da
investigação humana, principalmente em Psicologia Social e Psicologia
Ambiental. Nesta última, busca-se compreender a relação entre o ambiente
físico e o indivíduo, relação de inter-influência e de inter-dependência
(HOLAHAN, 1994). Na perspectiva interacionista-dialética esta relação é
compreendida no âmbito maior dos processos culturais, históricos e sociais.
Quanto à interiorização, esta se caracteriza como o processo pelo qual
ocorre a reconstrução interna e particular de uma operação externa. Refere-
se tanto a passagem do processo psíquico natural ao processo psíquico
cultural, formação da atividade psíquica superior na filogênese
(hominização), como a passagem de uma situação externa, material e
social, a uma situação interna, psicológica, na ontogênese, na sociogênese e
na microgênese (humanização e construção do sujeito).
Esse modo de compreender a interiorização é distinto do proposto por
Berger e Luckmann (1983) sobre a interiorização da realidade e por Piaget
(1987, 1989) sobre assimilação e acomodação – equilibração - e sobre a
gênese da fala interna. Distingue-se também do enfoque de Chomsky
(1979) sobre a gênese e desenvolvimento biológicos das estruturas
gramaticais.
Vygotski compreendia a interiorização como processo ativo, da ação à
consciência, que é parte da atividade e que se realiza por meio de dois
momentos chaves: um primeiro, que é externo, interpessoal (social); e um
segundo, que é interno, intrapessoal (psicológico). Para ele, as ferramentas
e a comunicação são decisivas na reconstrução interna particular da
realidade externa.
Leontiev, um dos seus colaboradores mais próximos, pesquisando sobre
esse sistema especial de ação, propôs uma importante teoria psicológica da
atividade, na qual considera que esta não se encontra separada da
consciência nem das condições objetivas de vida, por isso não se pode
considerá-la isoladamente, e sim dentro da dialética indivíduo-mundo. Uma
está imbricada na outra e em todo o sistema histórico-cultural da sociedade.
Aqui, ele se aproxima das idéias de Rubinstein (1979), porém segue um
rumo próprio, como veremos:
A Psicologia Humana se ocupa da atividade de indivíduos concretos que
transcorre nas condições de uma coletividade aberta: entre as pessoas que
a formam, conjuntamente com elas e em interação com elas, ou
diretamente com o mundo dos objetos ao redor; ante a forja do ferreiro ou
por trás de uma escrivaninha. Sem dúvida, em quaisquer condições e
formas em que transcorra a atividade do homem, qualquer estrutura que
adote, não se deveria considerá-la como abstraída das relações sociais, da
vida da sociedade com todas as suas peculiaridades e sua particularidade.
A atividade do indivíduo humano aparece como um sistema incluído no
sistema de relações da sociedade. A atividade humana não existe em
absoluto fora destas relações (LEONTIEV, 1979:11).
Os estudos sobre a atividade humana ocupam lugar de destaque na
Psicologia atual (PETROVSKI, 1984; ZEIGARNIK, 1979) e em distintos
ramos da ciência que tratam do social e do humano. Aqui também incluídas
a neurologia, a reabilitação e o desenvolvimento diferenciado de pessoas
com limitações (LURIA, 1981; VYGOTSKI, 1997).

ATIVIDADE COMUNITÁRIA E PSICOLOGIA COMUNITÁRIA


O primeiro contexto em que se deu a interação social primitiva e o uso de
instrumentos e signos foi, certamente, um pequeno bando “humano”
próprio dos primeiros hominídeos, um espaço primitivo voltado para a
proteção, sobrevivência, reprodução e desenvolvimento de seus membros e
do bando. A transformação do espaço físico em um espaço de relações
comunitárias primitivas passou a ser, também, um dos primeiros produtos
culturais. O espaço físico transformado tornou-se um produto social (POL e
VARELA, 1994). Supõe-se aí que a atividade humana primitiva já
apresentava no início um caráter social e comunitário, como se vê em
Vygotski (1996), quando diz que a atividade humana primitiva e a
atividade na ontogênese requerem a presença de outros seres humanos em
cooperação e comunicação.
A atividade comunitária primitiva, ainda que tenha gerado outras formas de
atividades sociais complexas, não pode ser comparada à atual, pois esta,
após o aparecimento das cidades e a Revolução Industrial, se realiza e se
desenvolve em um modo de vida social de maior complexidade cultural,
portanto, é de outra grandeza, quer dizer, tornou-se um complexo sistema
de interações sociais (MUNNÉ, 1995) e de mediatização entre o psiquismo
e o mundo físico-social da comunidade, enlaçando as necessidades e os
motivos individuais e coletivos com o objeto e o objetivo da própria
atividade e da vida comunitária na qual se inclui de modo cada vez mais
complexo.
A atividade conjunta dos moradores, em favor do desenvolvimento da
comunidade, é uma atividade socialmente significativa (consciente),
respondendo tanto às demandas da comunidade como aos motivos e
interesses individuais de seus moradores. Aí se incluem a convivência
social autêntica e o reconhecimento da própria possibilidade de optar e
caminhar com os próprios pés. Se diferencia das noções de ação
comunitária, de participação comunitária e de comportamento participativo
- empregadas por autores como: Rueda Palenzuela (1989); Martín
González (1989); Arango (1996); Díez et al (1996) – por implicar a
interação dialética indivíduo-mundo e sujeitos cognoscentes-mundo
cognoscível, bem como por enfatizar a atividade comunitária como
mediatizadora, orientadora e transformadora. Isto significa dar prioridade à
transformação objetiva da realidade e ao desenvolvimento da consciência
pessoal e social em um só processo de desenvolvimento, no qual são
essenciais a ação-discurso, o diálogo-problematizador, a conscientização, o
conhecimento crítico e a transformação solidária da realidade.
Em nosso estudo, entendemos a atividade comunitária como um sistema
complexo de interações instrumentais e comunicativas (GÓIS, 1993a) que,
ao mesmo tempo em que se encontra cada interação limitada a seus
objetivos específicos, estão organizadas e orientadas pela integração entre o
sistema necessidades-motivos-objetos-objetivos e o sistema de
significados-sentidos-sentimentos decorrentes da vida comunitária. Estas
interações, também, estão organizadas e orientadas pelo próprio sistema de
atividades comunitárias e pelas condições histórico-culturais da
comunidade e da sociedade nas quais se realizam essas complexas
interações instrumentais e comunicativas.
As interações instrumental e comunicativa não se apresentam isoladamente
nem são determinadas somente por seus objetos e objetivos parciais, já que
estão enlaçadas entre si (interdependência) e estruturadas rumo ao objetivo
final da atividade comunitária, segundo a complexidade cultural alcançada
até aquele momento pela comunidade (relações sociais, leitura da realidade,
conhecimento crítico, experiências sociais, tecnologia, valores, tipos e
modos de produção, escolaridade, profissionalização, tempo livre e outros).
A dimensão instrumental da atividade comunitária é caracterizada pelo uso
de ferramentas necessárias à transformação objetiva e funcionamento da
comunidade. São interações voltadas para a elaboração e uso de
instrumentos com finalidade comunitária, seja tecnologias simples (arado,
enxada, pá, machado, martelo, tratores, casa de engenho, forno de pão,
irrigação) ou tecnologias avançadas (projetos, desenho de produção,
técnicas de administração e comercialização, técnicas de grupos e de
tomada de decisão, computadores e outras). Quanto à dimensão
comunicativa, esta compreende o diálogo, a expressão de sentimentos e a
cooperação entre os moradores, no intuito de alcançar os objetivos da
atividade comunitária e favorecer o desenvolvimento das relações sociais
da comunidade. Contribui para que os moradores compartilhem suas
leituras do mundo e construam outras em conjunto, fortaleçam o trabalho
coletivo e a maneira de realizá-lo, clarifiquem mais o futuro que juntos
pretendem construir e a própria existência que levam, assim como favorece
a expressão de novos sentimentos e significados pessoais e coletivos acerca
do lugar, da relação com o entorno e de sua influência sobre a comunidade.
Como já havíamos mencionadas, as dimensões instrumental e comunicativa
não se encontram isoladas uma da outra. É impossível falar de interações
instrumentais sem falar de interações comunicativas, posto que,
necessariamente, uma não ocorre nem se desenvolve sem a outra. Por mais
que a interação comunicativa ocorra sem necessitar dos objetos da
realidade, mediante o uso de imagens e símbolos, esta requer, de algum
modo, imediata ou mediatamente, o enlace com a própria interação
instrumental dos moradores.
Quando a ação comunicativa não tem conseqüências práticas para a vida
das pessoas, tende a debilitar-se como meio de intercâmbio, diálogo e
reflexão. O mesmo se aplica à ação instrumental. Quando esta se realiza
sem a cooperação e o diálogo, os laços existentes entre o instrumento,
quem o maneja e a realidade concreta, ficam enfraquecidos, assim como a
visão crítica do morador em relação a si mesmo e ao mundo, ao processo
social e produtivo da comunidade e ao conjunto da sociedade.
As ações instrumentais sem o intercâmbio, o diálogo e a reflexão perdem,
também, sua potência transformadora, assim impedindo o processo de
desenvolvimento do sujeito e de sua coletividade.
As ações instrumentais e comunicativas constituem um sistema orientado
tanto para o morador (dimensão pessoal) como para a comunidade
(dimensão social). O desenvolvimento desse sistema se produz mediante as
conseqüências positivas que tem para os indivíduos, como: satisfação de
necessidades e motivos pessoais, e desenvolvimento do sentido da vida
comunitária para cada um dos moradores; e para a coletividade, como:
satisfação de necessidades e motivos coletivos, e desenvolvimento do
significado da vida comunitária para a própria coletividade.
Para nós, a atividade comunitária revela de imediato a unidade
instrumento-comunicação e sua força realizadora da consciência e da
comunidade, pois sabemos que o operar juntos (cooperar) e o diálogo são
manifestações complexas da vida consciente e são essenciais à vida social
(FREIRE, 1993; HABERMAS, 1987). Ambos se aperfeiçoam e se
desenvolvem na atividade humana, a qual, além de aperfeiçoar o trabalho e
todas as formas de relação do indivíduo com o mundo, o faz cada vez mais
complexo em uma realidade social e comunitária, também, cada vez mais
complexa, que surge mediante a própria atividade transformadora dos
indivíduos.
Podemos dizer que a atividade comunitária é a atividade prática e coletiva
realizada por meio da cooperação e do diálogo em uma comunidade, sendo
orientada por ela mesma e pelo significado (sentido coletivo) e sentido
(significado pessoal) que a própria atividade e a vida comunitária têm para
os moradores da comunidade. Ela é uma rede de interações sociais,
instrumental e comunicativa, direcionada para a autonomia do morador e
da própria comunidade, na perspectiva do fortalecimento de uma
identidade social (TAJFEL, 1982; TURNER, 1990) de comunitário, do
desenvolvimento da consciência social e pessoal, e da construção da
responsabilidade comunitária. Assim, o uso de instrumentos e a
comunicação fundam e desenvolvem a vida comunitária.
A atividade comunitária, então, se dirige não somente para o
desenvolvimento da autonomia da gestão coletiva e competência na
resolução de problemas, mas, também, para a realização dos motivos
pessoais e comunitários. Significa que a atividade comunitária é uma
atividade pessoal e coletiva socialmente significativa, e que responde às
demandas da comunidade e dos indivíduos. Leva, inclusive, à contínua
superação das contradições entre o individual e o social na comunidade,
além da construção de uma ética comunitária.
Por fim, queremos ressaltar que a atividade comunitária inclui o sujeito da
ação, pressupõe uma opção real de participação na comunidade, além de
revelar aspectos históricos, culturais, sociais e psicológicos pertencentes ao
lugar, aspectos estes determinantes e resultantes da própria vida da
comunidade.
Analisando e vivenciando a atividade, chegaremos a conhecer não só o
processo social e econômico do lugar, como também (e para o Psicólogo é
o principal) o que pensam os moradores, o que sentem e o que fazem no
dia-a-dia com relação a si mesmo e aos outros. Desse modo, podemos
compreender as condições externas e internas que fazem ou que impedem o
morador de se desenvolver como sujeito de sua própria história e da
história de sua comunidade.
Esta via de análise e vivência da vida comunitária e da própria atividade
comunitária constitui um método valioso para a Psicologia Comunitária.

Ajuda-nos a compreender o modo de vida dos moradores, o entorno em que


vivem e como estes se refletem em suas mentes na forma de significado,
sentido, sentimento e ação. É um método científico e político, interativo,
reflexivo e vivencial, no qual morador e psicólogo, conjuntamente,
analisam e vivenciam a comunidade, constroem conhecimentos e
aprofundam suas consciências de si e do lugar. Para nós, é o método
principal da Psicologia Comunitária. Se apóia em uma dada concepção de
indivíduo, de comunidade e de ação, evidenciando uma ética (de
libertação) e uma relação de inserção, ação e convivência, comum na ação-
participante, na observação-participante e na pesquisa-participante.
A análise e vivência da atividade comunitária incluem a presença ativa dos
moradores em todas as fases do processo de inserção, construção de
conhecimento, transformação e avaliação. A integração viva do saber
científico com o saber popular, no ato de conhecer e transformar a vida
comunitária e seu entorno, por meio da atividade comunitária, tem um
sentido maior - o da construção compartilhada e solidária de um saber, de
uma realidade social, do sujeito da comunidade e do próprio Psicólogo
Comunitário.
A análise da atividade constitui o ponto decisivo e o método principal do
conhecimento científico do reflexo psíquico da consciência. No estudo das
formas de consciência social está a análise da vida cotidiana da sociedade,
das formas de produção próprias desta e do sistema de relações sociais; no
estudo do psiquismo individual está a análise da atividade e dos indivíduos
nas condições sociais dadas e nas circunstâncias concretas que lhes tem
tocado (LEONTIEV, 1975:17).
MOURA JR., J. F.; SARRIERA, J. C. . Práticas de resistência à estigmatização da
pobreza: Caminhos possíveis. In: XIMENES, V. M.; NEPOMUCENO, B. B.;
CIDADE, E. C.; MOURA JR., J. F.. (Org.). Implicações Psicossociais da Pobreza:
Diversidades e Resistências. 1ed.Fortaleza: Expressão Gráfica e Editoria, 2016, p. 263-
288.

PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA À ESTIGMATIZAÇÃO DA POBREZA: CAMINHOS POSSÍVEIS

James Ferreira Moura Jr.

Jorge Castellá Sarriera

1 INTRODUÇÃO

Primeiramente, identifi ca-se que a concepção de pobreza utilizada

neste estudo está baseada na perspectiva multidimensional da Abordagem

das Capacitações (AC). De acordo com Avila, Bagolin e Comim

(2012), utilizar a renda como única forma de identifi cação de diversos

tipos de privação é uma perspectiva restrita e não adequada. Por isso,

deve-se entender a pobreza como a privação de liberdades que os indivíduos

teriam possibilidade de escolher em diversas dimensões, como no

âmbito econômico, educacional, salutar, social e cultural. O foco dessa

perspectiva são os funcionamentos. Eles representam ações e estados

que o indivíduo pode alcançar ou realizar, ou seja, são formas de ser e

de fazer motivadas pela própria pessoa (Sen, 2000). Também se devem

conceber essas liberdades como escolhas ligadas a responsabilidades e

deveres (Sen, 1980). A agência signifi ca esse processo de responsabilização

relacionada ao exercício da liberdade. Entende-se essa capacidade

de agenciamento como a própria atividade.

A agência é o controle e o poder que a pessoa exerce na realização

de suas escolhas (Alkire, 2008), funcionando como um ato de liberdade.

A liberdade pode ser dividida em intrínseca e instrumental. A liberdade

instrumental se relaciona com os meios para a obtenção de determinados


fi ns, como alcançar um padrão de vida digno, viver sem sentir vergonha,

ter um índice adequado de bem estar, entre outros. Além disso,

a liberdade intrínseca se refere ao valor da liberdade por ele mesmo. Ou

seja, a liberdade é constituinte de uma vida boa que quando exercida de


forma ética e justa fomenta processos de mudança social (Sen, 1997).
Portanto, a agência é a habilidade que torna possível à pessoa buscar
e realizar objetivos importantes e justos para si ou que tenham razões de
sê-lo (Alkire & Deneulin, 2009). Uma sociedade que está balizada na
perspectiva do desenvolvimento humano ampara-se por valores éticos
que possibilitem a refl exão do processo de escolha e da razão pública
voltada para a justiça social (Comim & Amaral, 2013). Também é
constituinte desse processo o exercício da liberdade de escolha, ou seja,
o exercício da agência. Assim, os atos opressivos ou coercitivos, como a
humilhação ou preconceito, não seriam exercícios de agenciamento, pois
não teriam razões sólidas para existirem.
Dessa maneira, compreende-se que a capacidade de exercício da
agência pode enfraquecer-se com as práticas de discriminação voltadas
ao público pobre. O preconceito é concebido como um conjunto
de informações negativas constituídas de aspectos cognitivos, afetivos e
comportamentais impetrados a um determinado grupo social (Paluck &
Green, 2009). Portanto, o preconceito é uma crença pré-concebida sobre
algum grupo ou temática, a qual se baseia em uma forma de reconhecimento
depreciativo do outro. Entende-se que essas crenças estão amparadas
por um âmbito social. Há diversas representações de preconceito
na sociedade brasileira que funcionam como ferramenta de depreciação
das pessoas em situação de pobreza (Moura Jr., 2015).
Os preconceitos são constituídos de estigmas. De acordo com
Gooffman (2008), os estigmas são marcas ou símbolos portadores de
valores depreciativos e negativos. Por exemplo, no Brasil, identifi ca-se
que há historicamente uma identidade social estigmatizada da pessoa
pobre, ou seja, é uma identidade constituída por um conjunto de
valores e de representações, atribuídos de forma perversa e depreciativa
a quem se encontra em situação de pobreza (Rego & Pinzani, 2013).
Portanto, à pobreza agrega-se um conjunto de representações negativas relacionadas
a um estado de fracasso e degradação (Accorsi, Scarparo &
Guareschi, 2012).
Essa identidade estigmatizada pode desenvolver os estereótipos,
que são generalizações dos julgamentos subjetivos feitos em relação
a um determinado grupo, impondo-lhe o lugar de inferior e de incapaz
(Montagner et al., 2010). Vázquez e Panadero (2009), por exemplo,
concebem que há uma série de estereótipos sociais relacionados às
atribuições causais da pobreza. Geralmente, reconhece-se socialmente o
indivíduo em situação de pobreza como o único culpado pela sua situação,
sendo esvaziado o contexto social e o poder estatal para explicação
dessas concepções. Compreende-se que há, então, uma série de papéis
sociais ligados a essa identidade social estigmatizada de pobre, como
vagabundo, sujo, criminoso, culpado pela sua situação, conformado, religioso
e causador de mazelas sociais (Moura Jr., 2012).
Dessa maneira, o preconceito embasado por essas formas de reconhecimento
estigmatizadas das pessoas em situação de pobreza pode
gerar situações de violência, desigualdade de poderes e discriminação
(Paluck & Green, 2009). A discriminação igualmente pode ser concebida
como a base dos atos de humilhação que posicionam o indivíduo
em um patamar inferior ao do sujeito que o humilha. Há a exposição
pública vexatória do indivíduo humilhado (Schick, 1997). Assim, essa
atitude discriminatória é concebida como uma ação violenta que pode
ser desenvolvida por gestos, atitudes e palavras de rebaixamento moral
de outrem (La Taille, 2002). Além disso, a humilhação, junto com esse
conjunto de aspectos depreciativos da pobreza presentes na sociedade e
nas produções midiáticas, pode fomentar sentimentos de vergonha.
De acordo com Zavaleta (2007), a vergonha constitui uma avaliação
pessoal de fracasso. Concebe-se que os processos discriminatórios
macrossociais são, então, transladados para o nível psíquico, sendo
o indivíduo pobre seu próprio juiz quando se autodeprecia (Prilletensky,
2008). Na vergonha, o indivíduo envergonhado percebe-se como portando
um juízo depreciativo reproduzido socialmente (La Taille, 2002).

Os autores Moura Jr., Ximenes e Sarriera (2013), por exemplo, ao estudarem


pessoas em situação de rua, mostraram que elas tendem a se
sentir fracassadas somente por estarem nessa condição de vida, envergonhando-
se pelo seu estado. Além disso, os autores acrescentam que
indivíduos com vergonha tendem a reconhecer-se como inferiores aos
outros seres humanos.
Os atos de humilhação e os sentimentos de vergonha podem gerar
uma série de consequências negativas para o indivíduo em situação de
pobreza, como isolamento social e comunitário (Salles & Barros, 2013).
Com isso, o acesso às políticas públicas torna-se mais distante porque
os usuários não se sentem capazes de buscá-las. No entanto, embora se
conceba que a realidade constituída por aspectos depreciativos da pobreza
pode cercear a constituição do indivíduo, também se identifi ca
que há um espaço para o desenvolvimento de uma postura crítica e de
agência nesse processo.
Concebem-se os seres humanos como tendo a capacidade de expansão
de suas potencialidades. Existe um processo de ser mais que está
relacionado a uma possibilidade não experimentada nas pessoas mais
pobres, alvos de práticas de dominação. No entanto, essas pessoas oprimidas
têm consciência parcial de que são oprimidas por uma realidade
de desigualdade social (Freire, 1979). Por conta desse processo, a capacidade
crítica oferece a possibilidade de serem questionadas as artimanhas
de dominação presentes na realidade social. O próprio movimento de
consciência – chamado de tomada de consciência – refere-se a essa possibilidade
de compreensão da ordem vigente (Vieira & Ximenes, 2008).
Dessa maneira, fundamenta-se o processo de transformação social que
somente se inicia quando o oprimido compreende seu lugar nas relações
de dominação constituintes de uma sociedade desigual. A partir dessa
compreensão, ele pode passar a atuar frente a essa realidade adversa.
Há atos de questionamento que não reproduzem atitudes fatalistas,
porque as posições de conformismo somente são perpetradas quando a
realidade de privação é aceita em sua ordem e totalidade. O próprio ato de signifi car
deve ser entendido como uma ação de construção ativa da
realidade e do próprio indivíduo (Sawaia, 2007). Dessa maneira, esses
atos críticos são igualmente entendidos como atos de agência e de resistência
dos mais pobres frente a essas práticas de estigmatização. O
ato de questionar as visões estigmatizadas e depreciativas presentes na
sociedade pode ser entendido também como o processo de tomada de
consciência e, posteriormente, de conscientização.
Dessa maneira, compreende-se que a pobreza, em sua perspectiva
multidimensional, pode estar relacionada à promoção de atos de humilhação
contra as pessoas nessa situação. Esses atos poderiam igualmente
desenvolver os sentimentos de vergonha, provocando isolamento social,
passividade e resignação frente a essa realidade adversa. Com base nas
considerações acima acerca da coexistência das práticas de dominação
que fomentam o enfraquecimento e das práticas de resistência a essas
ordens dominantes, este capítulo tem como objetivo analisar práticas de
resistência desenvolvidas pelas pessoas em situação de pobreza contra
os processos de estigmatização de indivíduos pobres em Fortaleza e em
Porto Alegre.
2 MÉTODO
A perspectiva qualitativa tem o foco na compreensão histórica e
particular dos participantes, expandindo o entendimento sobre o fenômeno
pesquisado (Chizzoti, 2006; Creswell, 1994; Minayo & Sanches,
1993). Foi utilizado, então, o estudo de caso coletivo com a realização de
entrevistas episódicas. Primeiramente, o caso pode ser entendido como
uma situação, indivíduo, grupo ou organização (Robson, 1993). Nesse
sentido, o caso em estudo neste capítulo são as práticas de resistência
desenvolvidas contra a estigmatização da pobreza pelas pessoas pobres.

2.1 Técnica utilizada


Utilizou-se, neste trabalho, a Entrevista Episódica, que se baseia
na investigação do conhecimento cotidiano de determinada temática
pesquisada, baseada na experiência do entrevistado (Flick, 2002). Primeiramente,
há a fase de preparação do roteiro da entrevista. Indica-
-se que o roteiro de questões deve estar baseado na seguinte estrutura:
avaliações subjetivas gerais dos entrevistados sobre os temas abordados;
situações primevas vivenciadas pelos participantes relacionadas às temáticas
investigadas; situações mais intensas dos participantes também
relacionadas às temáticas abordadas; avaliação, pelo participante, se as
situações vividas podem ser generalizadas; explicações para a existência
dessas situações no cotidiano (Flick, 2002).
2.2 Local e procedimentos de realização da pesquisa
Os locais de realização deste estudo foram Fortaleza e Porto Alegre.
As informações presentes neste capítulo advêm da pesquisa “Implicações
Psicossociais da Pobreza”, desenvolvida no Estado do Ceará pelo
Núcleo de Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Ceará
(UFC) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a qual originou
a tese de Doutorado “Pobreza Multidimensional e Bem Estar
Pessoal: um estudo acerca da vergonha e da humilhação”. Assim, para
realizar este estudo, primeiro foi desenvolvido um levantamento de caráter
quantitativo sobre diversas dimensões psicossociais da pobreza nos
Estados do Rio Grande do Sul e do Ceará. Esses dados quantitativos
foram analisados. Com as informações adquiridas, foram convidados a
participar da fase qualitativa aqueles e aquelas participantes que se sentiam
envergonhados por conta da situação de pobreza.
Como critérios utilizados, o participante da fase quantitativa da
pesquisa deveria: ter respondido “Sim” à pergunta “Você se sente envergonhado
por ser pobre?”; ter fornecido seu contato telefônico no
questionário quantitativo da pesquisa, com o assentimento de que essa informação
estaria relacionada à disponibilidade em participar da fase
qualitativa; aceitar o convite realizado por telefone para realizar a entrevista
episódica; e, ser adulto. Esses tipos de critérios de amostragem são
concebidos como de julgamento, segundo Marshall (1996), pois estão
amparados por considerações teóricas e hipotéticas prévias baseadas nas
indicações da existência de sentimentos de vergonha e humilhação.
Dessa maneira, foram contatadas por telefone aproximadamente
20 pessoas em cada cidade, tendo aceitado participar cinco pessoas por
região. Foi escolhido, junto com os participantes, um local que seria mais
cômodo para eles, tendo sido elencados o próprio bairro de moradia,
ambientes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade
Federal do Ceará, além de shopping centers e equipamentos
culturais das cidades de Fortaleza e Porto Alegre.
2.3 Participantes
É importante salientar que foram utilizados nomes fi ctícios para
preservar os entrevistados. A escolha dos nomes foi realizada a partir da
seleção de fi guras importantes de movimentos de resistência contra-hegemônicos
e de cunho popular no Brasil. Dessa maneira, os participantes
e as participantes da pesquisa foram:
• Aqualtune: solteira, 19 anos, parda. Completou o Ensino
Médio. Mora de aluguel com a família em Fortaleza
e não tem fi lhos. Possui renda pessoal aproximada de
339 reais por mês e está empregada.
• Tia Simoa: casada, 43 anos, parda. Não completou o
Ensino Médio. Mora de aluguel com a família em Fortaleza
e tem três fi lhos. Possui renda pessoal aproximada
de 85 reais por mês e está desempregada.
• Teresa de Benguela: casada, 34 anos, parda. Completou
o Ensino Médio. Mora de aluguel com a família em Fortaleza e tem um fi lho. Possui
renda pessoal aproximada
de 154 reais por mês e está desempregada.
• Estamira: casada, 28 anos, parda. Completou o Ensino
Médio. Mora de aluguel com a família em Fortaleza e
tem dois fi lhos. Possui renda pessoal aproximada de 85
reais por mês e está desempregada.
• Chico da Matilde: solteiro, 20 anos, pardo. Completou
o Ensino Médio. Mora de aluguel com a família em
Fortaleza e não tem fi lhos. Possui renda pessoal aproximada
de 154 reais por mês e está desempregado.
• Carolina de Jesus: solteira, 21 anos, negra. Completou
o Ensino Médio. Mora de aluguel com a família em
Porto Alegre e não tem fi lhos. Possui uma renda pessoal
aproximada de 154 reais por mês e está desempregada.
• Olga: solteira 21 anos, branca. Completou o Ensino
Médio. Mora de aluguel com a família em Porto Alegre
e não tem fi lhos. Possui uma renda pessoal aproximada
de 339 reais por mês e está empregada.
• Chico Mendes: solteiro, 22 anos, branco. Completou o
Ensino Médio. Mora de aluguel com a família em Porto
Alegre e não tem fi lhos. Possui uma renda pessoal
aproximada de 85 reais por mês e está desempregado.
• Luísa Mahin: casada, 45 anos, parda. Completou o Ensino
Superior. Mora de aluguel com a família em Porto
Alegre e tem cinco fi lhos. Possui uma renda pessoal
aproximada de 154 reais por mês e está desempregada.
• Dandara: casada, 31 anos, negra. Não completou o Ensino
Médio. É mora de aluguel com a família em Porto Alegre. Tem quatro fi lhos, possui
uma renda pessoal
aproximada de 154 reais por mês e está desempregada.
2.4 Plano de análise de dados
Inicialmente, procedeu-se à transcrição do material produzido na
fase qualitativa. Sobre o processo de análise, a Entrevista Episódica é
analisada pela perspectiva temática ( Jovchelovitch & Bauer, 2002). A
análise temática se constitui como um processo de redução gradual da
narrativa em unidades de sentido. Essa redução gradual das narrativas
dos entrevistados constitui o processo de codifi cação. A codifi cação se
refere ao trabalho de identifi cação de trechos do material empírico em
determinadas categorias relativas às temáticas estudadas, assim como a
elaboração de possíveis trajetórias coletivas dos grupamentos pesquisados
(Gibbs, 2009).
Para a facilitação desse processo analítico, utilizou-se o software de
análise de dados qualitativos Atlas.ti. O uso dessa ferramenta facilitou
a realização da análise, pois permitiu os registros do processo de construção
da análise e o acesso fácil e prático dos sentidos elaborados na
pesquisa (Gibbs, 2009). Também, é importante salientar que os procedimentos
éticos foram contemplados, sendo desenvolvido um termo de
consentimento esclarecido próprio para a fase da qualitativa. O projeto
de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética da UFRGS.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1 Práticas de estigmatização das pessoas em situação de pobreza
Entende-se que a sociedade brasileira é constituída por práticas de
estigmatização da pobreza. O local de moradia também pode representar
esse estigma vinculado à pobreza. Guareschi et al. (2003) concebe
que há representações negativas vinculadas a comunidades consideradas
em situação de pobreza, impactando nos modos de vida das pessoas residentes
nesses espaços. Cria-se um estereótipo negativo sobre determinadas
comunidades consideradas pobres. Por exemplo, uma das
participantes explana sobre sua cidade de moradia (localizada na região
metropolitana de Porto Alegre) e como essa localidade é reconhecida
pelas pessoas:
E, claro, às vezes a gente ouve piadinha por morar em Alvorada: ‘É
de Alvorada!’. As pessoas fazem piadinha. Às vezes, acontece de as
pessoas, dependendo do lugar, olhar meio estranho. [...] Agora, eu
não sei como é que tá, mas tinha uma época que saía no jornal quase
todo dia morte no Alvorada, que era uma cidade violenta, uma cidade
de pobre. Então, as pessoas têm essa imagem, né? (Olga).
Outra participante também fala da estigmatização da sua comunidade,
considerada uma das regiões mais pobres e com as mais diversas
problemáticas sociais:
Vergonha é mais por causa do preconceito das pessoas por a gente
morar no Bom Jardim, né? Nosso bairro, aí a gente diz que é daqui, a
pessoa fi ca ‘vixe, logo Bom Jardim!’. A gente sente até vergonha assim
de dizer que mora aqui (Teresa de Benguela).
A vestimenta também se torna um dos principais símbolos desse
processo de estigmatização da pobreza, porque, de acordo com o Goffman
(2008), o estigma torna-se um símbolo representativo de um determinado
grupamento marginalizado. Estamira afi rma que:
Muita gente olha para você com olhar de diferente, porque você
não anda bem vestida, né? Vamos supor numa recepção, num banco,
numa loja que você entra. Os vendedor, às vezes, nem liga pra você,
porque você não tá bem vestido.
Portanto, identifi ca-se que há políticas de identidade que estabelecem
formas de reconhecimento em determinados valores e crenças
depreciativos, limitando as simbolizações de determinados grupamentos
sociais em preceitos discriminatórios e estereotipados (Hall, 2006).
Averigua-se a existência de processos de estigmatização de determina dos grupos
sociais em suas formas de vestir-se, em seus locais de residência
e em suas maneiras de falar e de comportar-se. Os estigmas são
concebidos como marcas e símbolos relacionados a uma determinada
identidade social estigmatizada (Goff mann, 2008), sedimentando-se
em comportamentos e posturas que passam a ser criminalizados por
conta de sua vinculação com uma realidade de pobreza.
Assim, estigmatiza-se a própria pessoa em situação de pobreza por
conta de sua aparência, como é comentado por Luísa Mahin: “Já eu já
fui em entrevistas e seleções de emprego que eu senti que foi por causa
da minha aparência, porque era pra trabalhar com o público. E eu tinha
todas as chances, capacidade, e não consegui.” Outra participante atesta:
“As pessoas lhe julgam pelo que você usa, o que você tem, e não pelo
que você é.” (Teresa de Benguela). Esse processo de estigmatização pode
ser entendido a partir da lógica de produção capitalista. De acordo com
Ciampa (1984), o capital objetifi ca o indivíduo, posicionando-o como
um mero agente passivo frente à estrutura social dominante. Chico da
Matilde contribui para essa explicação afi rmando: “Infelizmente, no capitalismo
é assim: uns têm, e outros não têm. Uns mandam, outros são
mandados. Infelizmente, é assim”.
Dessa maneira, entende-se que há na sociedade uma série de representações
negativas das pessoas em situação de pobreza. No Brasil, essas
representações são utilizadas para culpar os indivíduos pobres pela situação
econômica do país (Moura Jr., Ximenes & Sarriera, 2014). Igualmente,
há o esvaziamento do debate público acerca da origem da pobreza
e da desigualdade social como uma construção histórica desenvolvida
para manter as estruturas de poder presentes na sociedade (Góis, 2005).
Assim, concebemos que o próprio processo de compreensão dessas artimanhas
de estigmatização da pobreza pelo público alvo dessas práticas
constitui-se como um ato de resistência e de agência, pois a compreensão
crítica da sociedade é entendida como um ato de signifi cação e de
inovação da existência. Observamos esse movimento de críticas a essas
representações estigmatizadas, constituindo-se como parte da dinâmica da tomada de
consciência e da conscientização. Assim, nos próximos
tópicos, iremos desvelar essas situações em que as pessoas em situação
de pobreza põem em xeque práticas sociais que balizam o preconceito e
os atos de discriminação.
3.2 Práticas de resistência e o poder das oportunidades
O ser humano não está determinado a desenvolver-se a um fi m
pré-estabelecido apesar da relevância dos aspectos sociais, históricos e
culturais imbricados no seu desenvolvimento (Ciampa, 1987). O indivíduo
é portador de potencialidades que são inerentes a sua constituição
humana e ativo no processo de transformação de si e da realidade (Cidade,
Moura Jr. & Ximenes, 2012). Igualmente, segundo Alkire e Deneulin
(2009), o desenvolvimento humano a partir da Abordagem das
Capacitações fomenta atuação do indivíduo como agente de sua vida e
de sua comunidade. A agência se refere à capacidade da identidade humana
de se transformar e de modifi car a realidade balizada por valores
de justiça social.
A agência também pode ser entendida como uma vida com liberdade,
sendo esta a capacidade de pronunciar uma cosmovisão pessoal
de mundo. As pessoas em situação de pobreza podem ter difi culdade de
serem ativas na emissão de suas vozes (Rego & Pinzani, 2013). Uma das
formas de emissão dessas vozes pode ser compreendida como o processo
de resistência balizado pela criticidade frente a uma realidade estigmatizante
do pobre. Uma das participantes diz: “Pra mim o que seria vida
com liberdade? Pra mim, signifi ca, é uma vida com liberdade... É você
fazer, poder fazer aquilo que você quer sem ter discriminação” (Estamira).
Igualmente, é importante salientar que a agência é um processo. Alkire
(2007) afi rma que a pessoa sem agência é um ser humano oprimido,
coagido ou passivo. Continuando com essa autora, ela diz que o fortalecimento1 é a
expansão do agenciamento. A agência também representa
a autonomia da pessoa, pois essa autonomia refere-se à compreensão
crítica da realidade na qual o indivíduo está inserido. Por exemplo, uma
das participantes questiona o sentimento de vergonha relacionado à pobreza,
apresentando um ponto de vista crítico sobre o consumo:
Porque não tem uma casa boa; porque dentro de casa não tem um
sofá; não tem uma televisão com LCD. Aí se sente envergonhado?
Eu acho que isso não é motivo de você ter vergonha. ‘Ah, porque a
casa do vizinho tem aquilo, e a minha não tem. Ah, porque o vizinho
ganha bem, e eu não ganho.’ Isso não é motivo de você ter vergonha,
não (Estamira).
Dessa maneira, a agência está ligada à capacidade do indivíduo de
expressar sem cerceamentos sua visão de mundo, agindo de maneira autônoma
e criticando o poder vigente. No caso dessa última participante,
ela questiona a valorização dos bens de consumo como uma estratégia
de diferenciação social. Compreende-se que a autonomia está relacionada
à capacidade de o indivíduo autolegislar-se frente às leis morais e
éticas presentes na sociedade. As ações humanas têm como fi m a dignidade,
o respeito e a consideração (Pereira, 2007). É também importante
salientar que a autonomia somente é exercida em sua forma efetiva
quando a pessoa não tem suas intenções, crenças e atitudes baseadas em
preferências adaptativas (Teschl & Comim, 2005).
As preferências adaptativas constituem-se um mecanismo psicológico
de conformação a uma realidade de privação proporcionada
pela pobreza. São preferências modeladas pela realidade de desigualdade
social e desenvolvidas para anular o sofrimento e as dissonâncias
cognitivas baseadas nos desejos e vontades efetivas de indivíduos que
são impossibilitados por sua situação de pobreza. Dessa maneira, a ação
consciente plena constitui-se um contraponto às preferências adaptativas, podendo
esse processo ser entendido como a tomada de consciência
em que o indivíduo desvela a sua posição nas artimanhas das práticas
de dominação. Passa-se, então, a compreender criticamente a realidade
e sua relação com o cotidiano vivido (Freire, 1974).
É importante salientar também que a realidade social, por mais que
esteja constituída de práticas de opressão vinculadas a um processo de
estigmatização da pobreza, também está estruturada por valores embasados
por uma perspectiva ética. Em uma pesquisa para o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil, foi indagado aproximadamente
meio milhão de pessoas acerca de quais valores seriam
importantes para estarem presentes nos relatórios das Nações Unidas
como representando uma vida com dignidade. Assim, foram identifi cados
valores como respeito, responsabilidade, tolerância e compreensão
como imprescindíveis para o estabelecimento de uma vida boa (Comim
& Amaral, 2013).
Freire (1979) aclara que essa capacidade do indivíduo de ser mais
está estritamente relacionada à compreensão crítica da realidade, fomentada
pelo processo de conscientização. Há o entendimento pelo ser
humano de que ele está situado em uma realidade de dominação que o
oprime, iniciando o processo de tomada de consciência. Esse movimento
crítico pode ser identifi cado no discurso de uma das participantes:
Eu acho isso um desrespeito contra essas pessoa. Eu acho que deveria
olhar tudo pro mesmo nível, não ter diferença. ‘Ah porque eu tenho
muito, eu vou humilhar quem tem pouco.’ Eu acho que eles não devia
fazer isso, porque eles tão lá em cima... mas um dia eles pode cair.
(Estamira)
Freire (1974) comenta que o ser humano tem uma vocação ontológica
de expandir-se, ampliando suas potencialidades de vida. Luísa
traz a possibilidade de ter melhores condições de vida, ampliando sua
capacidade de agência
Eu sempre tive vontade de estudar, de crescer. Nunca gostei de... já
trabalhei de doméstica, de faxineira, mas eu não me sentia bem. Não
que eu ache que isso é feio. É ruim, mas eu, eu não me sentia bem
com aquilo. Além de eu não me sentir bem, eu achava que poderia ter
mais que aquilo, né? (Luísa Mahin)
Esse desvelamento da compreensão do processo crítico facilita
ações em prol da transformação da realidade e do próprio indivíduo.
Entende-se que o posicionamento de questionamento está relacionado
também a um sentimento de frustração, porque o processo de libertação
constitui-se um ato de desvelamento e de indignação acerca da realidade
de opressão que é abusiva e promotora de sofrimento (Góis, 2008). No
entanto, compreende-se que essa frustração igualmente está relacionada
à autonomia, porque, caso o indivíduo não esteja incomodado com
a situação, ele possivelmente está resignado perante a sua realidade e,
portanto, com uma postura menos autônoma (Teschl & Comim, 2005).
Dessa maneira, pode ocorrer um processo de questionamento e indignação
pelas situações de vergonha e de humilhação causadas pela pobreza
com ações concretas. Uma participante sintetiza essa dinâmica: “Essa
raiva me faz querer crescer mais ainda” (Dandara).
Identifi ca-se que a conscientização está ligada a uma postura crítica
e ativa perante a realidade, sendo ação concreta basal para processos
mais abrangentes de transformação social (Lane, 1996). Uma das participantes,
que tinha sofrido várias práticas de humilhação no seu trabalho
como empregada doméstica, afi rma que agiu contra essa situação,
buscando um novo emprego em que se sentia valorizada. Ela diz:
Dolorida, incapaz, um lixo, né? No caso. Mas depois eu fi quei repensando.
Bem, eu não merecia tá passando por isso. Eu também abri
ela [patroa] de mão. Deixei ela sozinha e fui para esse hotel onde eu
trabalhei, onde fui valorizada, de carteira assinada (Dandara).
Obviamente, para o desenvolvimento de processos de mudança social,
é necessário o fomento da capacidade coletiva de atuação, baseada
inclusive na participação social e política. Observa-se que as pessoas entrevistadas
ainda não chegaram a esse nível de participação, mas se
entende que o processo de conscientização pode iniciar em ações em
nível individual, funcionando como base para empreendimentos coletivos
e críticos mais abrangentes. Assim, Martín Baró (1986) reafi rma a
necessidade de valorização da memória coletiva e das virtudes populares
como uma das estratégias de enfrentamento da dominação e do depreciamento
do oprimido. Compreende-se o reconhecimento positivo da
identidade comunitária como essa possibilidade de enfrentar a realidade
de estigmatização da pobreza. Outra participante fala sobre o orgulho
de morar em seu bairro, ainda que ele seja reconhecido depreciativamente.
Ela comenta:
Nosso bairro, aí a gente diz que é daqui a pessoa fi ca ‘vixe, logo Bom
Jardim!’. A gente sente até vergonha assim de dizer que mora aqui,
mas em alguns casos, mas agora a gente tem orgulho de morar mesmo!
(Teresa de Benguela).
No entanto, segundo Alkire (2007), esse processo de fortalecimento
e de agenciamento pode ser também facilitado por aspectos estruturais
e sociais. Há a necessidade de estrutura material e não material
para as pessoas exercerem suas liberdades e, consequentemente, seus
agenciamentos. Com isso, concebe-se que as oportunidades são importantes
ferramentas de facilitação dos agenciamentos. Assim, uma das
participantes, que geralmente sentia vergonha de falar, comenta sobre a
participação nas atividades de uma ONG:
Não, não falava. Só vim começar a falar mais um pouco quando eu
entrei aqui como voluntária, como pró-chefe. Aí eu comecei a me
entrosar, né? Falar, né? Porque eles respeitava o meu limite, né? Se eu
quisesse falar, eu falava. Se eu não quisesse falar, eles respeitava. Aí
foi aí que fui botando na minha cabeça... sabe de uma coisa? Eu tou
sendo é besta! Esse negócio de eu tá com vergonha e medo de falar
tá me prejudicando. Eu vou é falar falando certo ou errado. Eu vou
falar (Estamira).

Observa-se, então, que, quando há oportunidades e apoio social,


pode ocorrer o desenvolvimento de um contexto frutífero para a realização
da capacidade de agenciamento. Luísa sintetiza a importância das
oportunidades ligadas à Educação. Ela fala:
E a gente, assim, que tem um poder aquisitivo menor, hoje em dia,
tá mais fácil, né? Pra tu estudar, tem mais possibilidades. A minha
fi lha, por exemplo, estuda numa escola técnica federal. Faz um curso
profi ssionalizante. [...] Aí eu fi z o EJA2 do ensino fundamental. Fiz
o EJA no ensino médio. Fiz o Enem 3. Na primeira vez que fi z o
Enem, eu passei com média acima da média nacional e consegui a
vaga na PUC pra Serviço Social. Assim, quando a gente quer, basta
ter a oportunidade. Que faltava é a oportunidade (Luísa Mahin)
Analisa-se, assim, que as oportunidades são consideradas para alcance
de determinados fi ns estipulados como valiosos pelos indivíduos.
As políticas públicas de Educação voltadas para o público mais pobre,
como o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Programa Nacional
de Ensino Técnico (Pronatec) e as políticas de cotas sociais e
raciais nas universidades públicas federais, fornecem um novo leque de
oportunidades para as pessoas manifestarem suas agências. As agências
são consideradas as ações desempenhadas pelos indivíduos de forma
refl exiva e comprometida. São atos constituintes da autonomia, fomentando
mais dignidade, respeito, reconhecimento positivo e autoconsideração
(Pereira, 2007). Analisa-se que esses atos mais autônomos podem
funcionar como sedimentação de uma nova trajetória de resistência e de
libertação. Esses aspectos mais positivos são apresentados por Dandara,
ao dizer:
Eu gosto de números, né? Por isso, tô fazendo auxiliar administrativo
pelo Pronatec, que dá para trabalhar em outras coisas, que pra mim é
técnico. Eles vão valorizar você. E já tava me sentindo meio com raiva
da cozinha já, porque parecia que não acreditavam no meu potencial.

Daí eu comecei a estudar e querer mudar meu caminho fora da cozinha


para gastronomia. Daí, como eu gosto de números, fui fazer
auxiliar administrativo. Também, fi z aquele outro de recepcionista de
evento que eu tava (Dandara).
Evidencia-se que é necessária a existência de políticas públicas efi -
cientes e concretas, pois a realidade passa a ser reconhecida de maneira
diferente pela pessoa em situação de pobreza a partir dessas oportunidades.
Quando não havia ações voltadas para esse público, o caminho
mais comum seria a instalação da síndrome fatalista ou de preferências
adaptativas promotoras de atos de resignação e de uma esperança ilusória.
O ato de desvelamento da realidade e do lugar do próprio sujeito no
contexto social tem que estar amparado por uma realidade diferenciada,
como as fornecidas pelos programas sociais já mencionados.
Essas mudanças na realidade social brasileira também estão presentes
nos discursos das pessoas entrevistadas. Outro participante comenta
que seu pai melhorou por conta da educação. Ela diz:
Meu pai só ganhava o sufi ciente para sustentar a família. Hoje, está
bem melhor. Evoluiu muito. Ele passou quinze anos trabalhando
como pedreiro, vendedor. Ele fazia de tudo. Então, agora, de 10 anos
para cá, que ele teve uma vida melhor, porque ele estudou para isso
(Chico da Matilde).
Outra participante concebe que há uma diferença extrema na área
educacional, relacionada com o passado:
É, principalmente, estudar, porque eu tive meu primeiro fi lho com
18 anos, né? E aí eu não consegui mais estudar, porque ai tem que
trabalhar. Daí logo em seguida eu tive outro. E daí a gente precisa
trabalhar pra sustentar os fi lhos. E eu sempre, sempre achei que eu
poderia ser mais que aquilo, que eu queria ser mais, mas as oportunidades
eram mais difíceis. Eu não tinha tempo pra estudar e também
não tinha espaço pra isso, né? É... não tinha essas oportunidades,
não tinha oportunidade. A gente, antigamente... ou tu fazia o ensino
médio, ou se tu quisesse fazer um outro curso, tu tinha que pagar. E
eu tinha um monte de fi lhos, né? (Luísa Mahin).

Igualmente, percebe-se que há uma melhora nos serviços de saúde


e na qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras. A mesma participante
comenta:
Sim, várias vezes, queria melhorar alguma coisa. Por exemplo, os
meus dentes. Isso é uma coisa que me incomoda e eu nunca tive
dinheiro pra arrumar, né? Agora, eu consegui aqui na UFRGS, né?
Um tratamento, mas eu queria ter feito isso, antes, né? Então, não fi z
por que eu tenho 45 anos, e, quando eu era pequena, dentista era uma
coisa que... os pais nem ensinavam a gente a escovar os dentes. O
dentista servia pra arrancar o dente. É, servia pra isso, né? Só pra isso,
se tu ia no dentista, era pra arrancar o dente. Hoje em dia, usar aparelho
tá na moda, né? Antigamente, era só quem tinha dinheiro e tal.
Então, foram coisas que me impediram de fi car melhor comigo, com
minha aparência até pra oportunidades melhores (Luísa Mahin).
Também, foi salientada a oportunidade de acessar um trabalho
formalizado como via de combate à discriminação. Outra participante
comenta:
Depois, eu comecei a trabalhar de carteira assinada. Quando assinei
minha carteira, eu tinha 24 anos. É, 24 anos foi minha primeira assinatura.
Não, foi mais, foi em 2009. Eu tinha 27 ou era 28, não me
lembro. Daí, eu não sofri mais tanta humilhação. Daí, eu fui para uma
empresa boa, onde fui valorizada. Comecei lavando louça. Daí, depois
fui para auxiliar de cozinha. Depois, eu sei cozinhar bem. Eu fui
crescendo. Daí quando vi estava quase chefe de cozinha (Dandara).
Apesar desses avanços, é premente evidenciar que, caso ocorresse
uma maior capacidade de agenciamento e de criticidade do indivíduo,
mas não houvesse uma mudança na realidade social de oportunidades,
poderia haver um aumento da frustração. Esta fomentaria novos atos
de resignação e de adaptação frente a uma realidade adversa (Pereira,
2007). Dessa maneira, apesar dessas estratégias de resistência, há a necessidade
de os indivíduos e grupos sociais serem “reconhecidos como
agentes, eles podem defi nir suas prioridades tanto quanto escolher as
melhores maneiras de alcançá-las” (Alkire & Deneulin, 2009, p. 27-28, traduzido4).
Assim, constrói-se uma nova espiral positiva e de resistência
frente à dinâmica de dominação existente.
Entende-se, desse modo, que as práticas de resistência funcionam
como estratégias de enfrentamento à realidade de desigualdade social
e à estigmatização da pobreza. Essas práticas são fomentadas pela indignação
perante a refl exão crítica sobre o lugar do indivíduo inserido
nessa realidade de dominação. E também estão relacionadas com o fortalecimento
da capacidade de agência dos indivíduos. São desenvolvidas
ações concretas de superação da situação de pobreza. No entanto, para
essas atividades existirem de forma permanente é necessário o apoio
social e um contexto formado por oportunidades concretas. Com isso,
há fatores para o fomento de um ciclo positivo e de enfrentamento da
pobreza.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concebe-se a pobreza como constituída de práticas de opressão
que têm como objetivo enfraquecer os mais pobres, estigmatizando-os,
humilhando-os e cultivando sentimentos de vergonha por sua situação.
Dessa maneira, entende-se que essas práticas sociais opressoras de discriminação
da pobreza têm uma base social, mas atuam em um nível
psicológico, aprisionando o indivíduo em situação de pobreza em uma
espiral de autodepreciamento e enfraquecimento.
De outra forma, também é surpreendente analisar que os sentimentos
de vergonha e de humilhação também podem ser eliciadores desses
processos de resistência, porque eles demonstram que o indivíduo pode
estar em um movimento de incômodo e de questionamento desses valores
opressores. Portanto, pode haver centelhas de enfrentamento por
meio da indignação e do exercício de atitudes de agenciamento com
foco na superação da situação de pobreza. Aponta-se que é necessário haver um
contexto minimamente propício para apoio a esses
processos de enfrentamento, porque são imprescindíveis a existência
constante e concreta das oportunidades e o apoio social de outros indivíduos
e das políticas públicas para uma canalização efetiva desses atos
de libertação.
Por isso, as políticas públicas voltadas ao público em situação de pobreza
são imprescindíveis ferramentas de fornecimento de novas possibilidades
de existência. Elas funcionam em uma perspectiva simbólica e
pragmática. Esta última ocorre porque há o surgimento de oportunidades
reais de mudança de vida com programas de transferência de renda,
de acesso ao ensino técnico e superior e melhora nos serviços de saúde.
A dimensão simbólica está baseada na possibilidade de compreensão
diferenciada da realidade como sendo constituída de oportunidades que
antes não eram encontradas de maneira usual. Assim, a pessoa em situação
de pobreza tem um novo paradigma de realidade que está fi ncado
em oportunidades possíveis e reais para o enfrentamento de sua situação
e para fomento de sua capacidade de agência e de questionamento à
realidade de dominação.
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PSICOLOGIA ARGUMENTO ARTIGO
ISSN 0103-7013
Psicol. Argum., Curitiba, v. 30, n. 71, p. 679-689, out./dez. 2012

[T]

Mapeamento psicossocial participativo: Metodologia de facilitação


comunitária
[I]
Psychosocial participatory mapping: Community facilitation methodology
[A]
Deyseane Maria Araújo Lima , Zulmira Áurea Cruz Bomfim[b]
[a]

[R]

Resumo
[a]
Psicóloga, mestre em Psicologia O artigo a visa a análise da percepção dos jovens sobre a comunidade a partir da metodologia
pela Universidade Federal do
de facilitação comunitária denominada de Mapeamento Psicossocial Participativo com alunos
Ceará (UFC), especialista em
Educação Inclusiva (UECE) e do ProJovem Urbano, com base no referencial teórico da psicologia comunitária. Essa meto-
Educação a Distância (Senac), dologia promove o conhecimento da comunidade, sensibilização com o meio, interação com
Integrante do Nucepec,
os moradores e a participação em atividades, bem como o reconhecimento das dificuldades
Fortaleza, CE - Brasil, e-mail:
deyseanelima@yahoo.com.br vivenciadas e os potenciais a serem desenvolvidos. A pesquisa desenvolveu-se com natureza
qualitativa pautada no método dialógico vivencial. Teve como amostra dez alunos do ProJovem
[b]
Doutora em Psicologia Social
Urbano da Escola Papa João XXIII, no Bairro Vila União, em Fortaleza. Utilizamos a observação
pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), participante e a realização do mapeamento psicossocial participativo e de círculos de cultura.
professora do Departamento Para a análise, recorremos à construção de sentidos. Observamos, portanto, que os jovens par-
de Psicologia da Universidade
ticipantes tendiam geralmente a se afastar da comunidade, não participando das atividades
Federal do Ceará (UFC) e
do mestrado em Psicologia comunitárias e nem se sentiam pertercentes àquele meio social, necessitando de metodologias
da mesma Universidade, participativas para realizar a reinserção social com a comunidade. Concluímos que o mapea-
coordenadora do Laboratório de
Psicologia Ambiental (Locus),
mento psicossocial participativo propicia uma reflexão sobre a reinserção e ressocialização
Fortaleza, CE - Brasil, e-mail: dos jovens na sua comunidade, pois consistiu em uma forma de diálogo e de problematização
zulaurea@uol.com.br da realidade, por meio do conhecimento e da sensibilização em relação ao contexto social. [#]
[P]

Palavras-chave: Comunidade. Reinserção. Sociedade. Subjetividade. Facilitação comunitária.


Recebido: 11/02/2011
[#]
Received: 02/11/2011
[A]
Aprovado: 05/04/2011 Abstract
Approved: 04/05/2011
The article analyzes the perception of young people about the community from the community
facilitation methodology named participatory psychosocial mapping with “ProJovem Urbano” pro-
gram students, based on the theory of community psychology. This methodology promotes com-
munity’s knowledge, awareness with the environment, interaction with residents and participation
in activities, as well as recognition of the difficulties experienced and the potential to be developed.
The survey was developed with qualitative nature based on the dialogic experiential method. It had
a sample size of ten students from “Escola Papa João XXIII” of the “ProJovem Urbano” program in
Vila União, in Fortaleza. We used participant observation and participatory map and the psychoso-
cial and cultural circles. We used the construction of meaning for the analysis. We observed, how-
ever, that the participants generally tended to move away from the community, not participating
in community activities and not feeling belonging to that social environment, requiring participa-
tory methodologies to accomplish the social reinsertion in the community. We conclude that the

Psicol. Argum. 2012 out./dez., 30(71), 679-689


680 Lima, D. M. A., & Bomfim, Z. Á. C.

psychosocial participatory mapping provides a reflection on the reinsertion and reintegration of


young people into their communities because it consisted of a form of dialogue and problematiza-
tion of reality, through knowledge and awareness of the social context. #]
[K]

Keywords: Community. Re-insertion. Society. Subjectivity. Community facilitation. #]

Introdução sociais. O processo é denominado por Góis (2005)


de saúde mental comunitária.
As metodologias de facilitação na psicologia co- Assim, é necessário “compreender a saúde men-
munitária podem “... dar ênfase à atuação do profis- tal, como um processo dinâmico que se desenvolve
sional no sentido da construção do conhecimento na relação interativa do indivíduo com os aspectos
crítico e do cuidado ambiental, tendo como lócus da socioambientais, implica na utilização de outra me-
ação a comunidade em seu dia a dia e em seu poten- todologia de intervenção para o sofrimento mental”
cial de vida comunitária” (Góis, 2008, p. 143). (Castro & Cavalcante, 2007, p. 65).
Possibilitam a troca entre o saber popular e o A construção da psicologia comunitária ocorreu
científico, a autonomia, a compreensão das ativida- a partir da crise da psicologia social tradicional, que
des comunitárias, a transitividade da consciência, o estudava: conduta, ajustamento social, atitudes sem
reconhecimento das problemáticas e dos potenciais relação com a realidade social, que legitimavam o
a serem desenvolvidos. fortalecimento das desigualdades sociais.
O mapeamento psicossocial participativo é uma A psicologia comunitária, com influência da psi-
metodologia de facilitação comunitária que tem o cologia social crítica, volta-se para os conhecimentos
objetivo de conhecer a realidade a partir da cami- científicos e os saberes populares e preconiza na prá-
nhada, em que proporcionam o reconhecimento da xis o diálogo (Freire, 1983) como forma de tensionar a
história da comunidade, das atividades, dos signifi- opressão e a exclusão existentes nas classes populares.
cados e dos sentimentos dos moradores em relação O diálogo é possível a partir de uma práxis que
ao lugar em que vivem. parta do contexto dos sujeitos comunitários, da re-
Esta pesquisa se constituiu como uma parte da flexão de suas problemáticas, da implicação pelas
dissertação de mestrado intitulada “ProJovem Urba- questões sociais.
no da Escola Papa João XXIII do Bairro Vila União: Sig- Martín-Baró (1996) propõe uma postura polí-
nificados atribuídos pelos jovens na perspectiva da tica de transformação da realidade social, uma prá-
Psicologia Comunitária e da Psicologia Ambiental” e xis historicizada e contextualizada com a realidade,
investiga a percepção dos jovens sobre a comunidade além da análise do homem e da sociedade. Ao man-
a partir do mapeamento psicossocial participativo. ter essa postura, entendemos que a neutralidade
científica é ilusória, pois o psicólogo se implica criti-
camente na comunidade.
Psicologia comunitária e inserção social Diante disto, há a construção na América Latina
de uma psicologia social crítica comprometida com
A psicologia comunitária, na América Latina, ini- as questões sociais no seu contexto histórico-cultu-
ciou-se pela luta popular, nos movimentos sociais, ral (Ximenes, Nepomucemo & Moreira, 2008).
ressaltando-se o movimento de saúde mental, em Para Ximenes, Nepomucemo e Moreira (2008,
que se destaca a mudança da concepção de saúde e p. 65), “a psicologia comunitária e as teorias apresen-
a participação da comunidade. tadas possuem conceitos e concepções que visam à
Essa modificação da perspectiva de saúde de libertação do homem e da sociedade em que ele está
curativa para uma ação preventiva e promotora de inserido”. Tal libertação ressalta o compromisso do
qualidade de vida ocorreu a partir da luta antima- psicólogo na luta contra as desigualdades sociais e
nicomial e a ênfase na comunidade como constru- manutenção do sistema por meio da desnaturaliza-
tora de sua saúde mental, facilitada pelas relações ção da realidade. Então, demonstra a relevância do

Psicol. Argum. 2012 out./dez., 30(71), 679-689


Mapeamento psicossocial participativo 681

tripé: teoria, prática e compromisso social. A psicolo- afirmação no mundo com os outros. Possibilita o
gia comunitária, para Góis (2008, p. 82), anúncio das insatisfações pela situação de opressão
e exclusão social (Freire, 1983).
... se orienta por uma práxis libertadora, a partir das Esta concepção é similar a psicologia comunitária,
próprias condições (atuais e potenciais) de desen- pois, ao partir da atividade desenvolvida pelos mora-
volvimento da comunidade e de seus moradores. O dores da comunidade, é possível promover a transi-
fundamental é a compreensão do modo de vida da co- tividade da consciência em relação ao seu modo de
munidade e a realização de seus potenciais de desen- vida, à cooperação e à participação social.
volvimento pessoal e social.
Ao assumir a conscientização como horizonte do que-
fazer psicológico, reconhece-se a necessária centra-
Neste sentido, essa psicologia preocupa-se com a
lização da psicologia no âmbito do pessoal, mas não
realidade local, a articulação entre morador-comu-
como terreno oposto ou alheio ao social, mas como
nidade-municipalidade, com a participação social, as
seu correlato dialético e, portanto, incompreensível
mudanças sociopolíticas, a co-construção de sujeitos sem a sua referência constitutiva. Não há pessoa sem
comunitários, a vivência e a análise da atividade comu- família, aprendizagem sem cultura, loucura sem or-
nitária, o desenvolvimento comunitário dentre outros. dem social; portanto, não pode tampouco haver um
A atividade comunitária é considerada um pro- eu sem um nós, um saber sem um sistema simbólico,
cesso interativo (Leontiev, 1978; Vygotsky, 2004), uma desordem que não se remeta a normas morais e
dialógico e cooperativo (Freire, 1983) realizado pe- a uma normalidade social (Martín-Baró, 1996, p. 17).
los moradores como sujeitos comunitários, em prol
da satisfação das necessidades e o desenvolvimento A comunidade, para Góis (2005), é um espa-
comunitário. Relaciona-se com as ações condizen- ço físico, social e ambiental em que seus morado-
tes com o modo de vida dos moradores, propiciando res estabelecem laços afetivos e um sentimento
mudanças pessoais e sociais (Góis, 2005). de pertencimento. Estes vivenciam dificuldades,
Além de visar ao diálogo sobre as problemáticas necessidades, problemas e representações sociais
da comunidade, proporciona uma ação transfor- semelhantes, num território que é compartilhado e
madora na realidade. É “orientada por ela mesma e delimitado geograficamente.
pelo significado (sentido coletivo) e sentido (signi- Propicia interações sociais entre os moradores, a
ficado pessoal) que a própria atividade e a vida co- realização de atividades e a reivindicação dos direi-
munitária têm para os moradores da comunidade” tos. Para os jovens, é um espaço fora do meio fami-
(Góis, 2005, p. 89). liar de desenvolvimento pessoal e coletivo. A partir
Por sua vez, a consciência relaciona-se ao mundo de atividades comunitárias, os jovens conhecem o
de forma dialética, histórica, social e crítica a par- modo de vida local e estabelecem o vínculo com o
tir da atividade. Neste sentido, observamos que a lugar e moradores.
atividade e a consciência estão vinculadas, pois se O aprofundamento da consciência dos moradores
baseia na ação e no diálogo dos sujeitos, que possi- em relação ao seu modo de vida deflagra o desenvol-
bilita o processo de conscientização. vimento do sujeito comunitário e da comunidade.

... compreendemos a consciência como a propriedade O que distingue o sujeito da comunidade do indivíduo
da mente que dá sentido, tanto à vida psíquica, como dependente, rebelde ou submisso que ali vive, é que
à própria atividade externa dos indivíduos, e que esta o primeiro tem uma consciência transitiva que lhe
atividade, por sua vez, orienta e dá a substância da permite compreender o modo de vida de sua comu-
própria consciência. Portanto, esta é formada, sob de- nidade e de si mesma, além de reconhecer seu valor
terminadas condições da atividade prática social e da e poder para desenvolvê-la e desenvolver-se numa
própria mente ... (Góis, 2005, p. 318). perspectiva dialógica e solidária ... (Góis, 2005, p. 53).

A conscientização é um processo dialético de Os sujeitos comunitários são protagonistas do


historicização, um método de aprendizagem: o ho- contexto em que estão inseridos, são atores de cons-
mem exerce e efetiva a sua liberdade, luta para “ser trução do processo, à medida que se percebem como
mais”, insere no seu contexto histórico e busca sua transformadores da sua realidade, promovendo o

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crescimento pessoal e social. É corresponsável pela Freitas (1998) nos alerta sobre o desafio e as in-
realidade histórico-social em que vive (participante) certezas do processo de inserção, pois há um mo-
e possui potencial para desenvolvê-la e transformá- mento de aceitação, de entrada e de permanência
-la à medida em que se transforma, como sujeito da na comunidade. É essencial saber como atuar, como
realidade (Góis, 2008). superar as dificuldades e minimizar os preconceitos.
Ao realizarmos uma facilitação com a comunida-
de, é fundamental a inserção social do psicólogo co- El lengaje esterotipado, o formal y cauteloso, los ro-
munitário. Segundo Montero (2006), ao entrar em deos y, peor aún, las expresiones inadecuadas, usadas
contato com ela o profissional como agente externo por desconocimiento de la cultura y de los modos es-
conhece a realidade e realiza seu trabalho. O profis- pecíficos de una comunidad, son productos de la au-
sional é reconhecido pela comunidade, isso promo- sencia de familirización y tienen consecuencias que
ve a sensibilização e o estabelecimento da confiança dificultan lo que introducen desviaciones en el traba-
e do respeito mútuo. jo psicológico comunitario (Montero, 2006, p. 83).
Quando o psicólogo insere-se na comunidade
gera curiosidade, questionamentos e estranhamen- A aceitação do profissional no âmbito comunitá-
to pelos moradores, pois o profissional é inicial- rio possibilita a realização do seu trabalho e promove
mente alheio à realidade. reflexões sobre a comunidade. Esta pode identificar
Com base nisto, Freitas (1998) afirma que a rela- os problemas, buscar ações para resolver as dificul-
ção deve acontecer dos dois lados, o psicólogo tem dades e promover mudanças sociais significativas.
seus conhecimentos científicos, seus estudos, sua Freitas (1998) cita instrumentos utilizados na
práxis; e a comunidade tem sua dinâmica que é ine- inserção com a comunidade, como entrevistas (in-
rente, complexidade, valores e concepções. dividuais ou coletivas), registros em diários de cam-
O mútuo reconhecimento propicia a relação ho- po, pesquisa documental, recuperação da história
rizontal e a relevância do saber popular e científi- do lugar, conversas informais (bares, calçada, mer-
co. Góis (2005, p. 66), ressalta a postura do psicó- cados, padarias...), caminhadas pela rua, participa-
logo comunitário: ção em reuniões comunitárias, visitas a casa, a festa
ou a um evento da comunidade.
O importante, a nosso ver, é que haja uma integração e Na psicologia comunitária, a presença de me-
relação pedagógica entre agente externo e comunidade, todologias participativas potencializa a atuação do
na qual se reconheça o papel e a importância de cada profissional da área por meio de instrumentos cons-
interlocutor na definição do rumo e do modo de desen-
truídos de acordo com a necessidade do local e dos
volvimento apropriados à realidade sócio ambiental
fatores políticos, históricos, pessoais e ambientais.
do lugar. O sentido do desenvolvimento e o controle da
Neste estudo, enfocamos uma das metodologias de
ação devem ser da comunidade ... ou, pelo menos, defi-
nidos e compartilhados de comum acordo. Isso implica facilitação comunitária, o mapeamento psicossocial
um desenvolvimento participativo, autossustentável, de participativo, que facilita a compreensão dos sabe-
busca de autonomia local, de interdependência, e não de res e assuntos da comunidade e as influências nos
dependência ao exterior da comunidade. processos sociais.

Montero (2006) considera que o processo de fa-


miliarização é contínuo, que ocorre do início até o tér- Mapeamento psicossocial participativo
mino das facilitações, pois sempre estamos nos fami-
liarizando com a comunidade e conhecendo-a; assim, O que seriam mapas, o mapear? O que significa
como a comunidade em relação aos profissionais. o mapeamento?
É imprescindível a inserção do psicólogo no modo “Mapear é representar a realidade de modo a
de vida para desvelar a realidade, apropriar e levan- organizar as informações que tornem possível o reco-
tar as necessidades e possibilidades com a comuni- nhecimento e a orientação de quem venha a utilizar este
dade (Ximenes, Nepomucemo & Moreira, 2008). instrumento, o mapa, que é uma das mais antigas for-
Promove relações solidárias e éticas entre o pro- mas de comunicação ...” (Oliveira & Diogo, 2002, p. 190).
fissional e a comunidade, demonstrando a práxis do Neste sentido, ao realizar o mapeamento no con-
psicólogo comunitário. texto comunitário, tenta-se utilizar um instrumento

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Mapeamento psicossocial participativo 683

que traga o máximo possível de elementos relacio- de dados pelo psicólogo no contexto comunitário
nados ao lugar, suas pessoas, como vivenciam, como de forma cooperativa e dialógica. É a vivência da
é seu modo de vida. comunidade, conhecimento das atividades comuni-
É psicossocial por envolver aspectos subjetivos tárias, percepção dos significados, os sentidos e os
e sociais. Isto não acontece de maneira dicotômi- sentimentos dos moradores em relação ao lugar em
ca, mas percebendo os aspectos na sua totalidade, que vivem. Isso ocorre a partir da caminhada pela
como, por exemplo, a afetividade, as desigualdades comunidade e por conversas com os moradores e
sociais e a exclusão. Rodrigues (2007, p. 13) afirma os líderes comunitários. O mapeamento, ao ser re-
que o “mapeamento ... deve enfatizar a dimensão alizado com a comunidade, conforme Góis (2008),
sociopsicológica do lugar e não apenas quantitativa, promove a análise dos aspectos sociais, psicológicos
demográfica e econômica”. e ambientais da comunidade, tanto pelo psicólogo
Neste sentido, acrescentamos a perspectiva da par- comunitário quanto pela comunidade, facilitando a
ticipação, pois o mapeamento deve ser realizado coo- interação entre estes.
perativamente com ênfase no social, psicológico e am-
biental. Para Bordenave (2002, p. 16) a participação “é O processo de mapeamento se divide em dois: o ma-
uma necessidade fundamental do ser humano”, que se peamento interno e o externo. O mapeamento interno
refere a uma intervenção na construção da sociedade, consiste na investigação e organização dos dados for-
necidos pela documentação de segmentos fundamen-
na interação com os outros, na expressão de sentimen-
tais da administração municipal, a saber, as Secreta-
tos e o desenvolvimento pessoal e social.
rias de Infraestrutura, Educação, Cultura e Desporto
A participação não deve ser atribuída apenas a
e Saúde e Ação Social. Esta ação resulta [grifo nosso]
fazer parte do consumo, dos bens materiais, mas numa maior valorização da sistematização do conhe-
reivindicar os seus direitos, o desenvolvimento das cimento que estes setores possuem sobre o município
políticas públicas, constitui e transforma o homem (Oliveira & Diogo, 2002, p. 190).
e a sociedade (Bodernave, 2002). Em resumo, a
participação não é algo em que o estado autoriza a Sobre o mapeamento interno, Montero (2006,
sociedade, não é a recepção passiva dos direitos e, p. 79) complementa que
portanto, não deve ter uma óptica assistencialista
nem compensatória. Antes de entrar a una comunidad es necessario infor-
marse de la manera más completa posible sobre ella.
É relevante a presença de espaços públicos per-
Si existen registros públicos en los cuales se puedan
meados pelos interesses individuais e coletivos; e
obtener datos demográficos, ellos deben ser consul-
pelos trabalhos conjuntos e cooperativos, que são
tados, al igual que su historia a través de crônicas y
presenciados na participação comunitária (Góis, noticias de prensa. Otros datos de interés también
2005). É uma luta pela cidadania dos atores locais, puden encontrarse em los archivos de instituiciones
sujeitos de direitos e da sua história e não apenas públicas que hayan tenido que ver con la comunidad
usuários do serviço público. objeto de estudio.
A participação comunitária remete a manifesta-
ção e mobilização dos moradores da comunidade a Já, o mapeamento externo, segundo Oliveira e
partir da realidade, compreendendo-a como inte- Diogo (2002, p. 190), “é realizado através de visitas
grante da sociedade. às localidades, onde se procura conhecer a realida-
É possível, para Bodernave (2002), que a par- de local através dos moradores”. Além disto, é possí-
ticipação, no âmbito comunitário, promova o en- vel reconhecer as atividades de produção e de lazer,
gajamento dos seus moradores na sociedade como os estilos de vida, os hábitos, os potenciais e os pro-
cidadãos participativos. blemas do cotidiano pelos moradores que convivem
Esta breve discussão sobre a participação nos faz em uma comunidade.
refletir sobre o a papel do psicólogo na inserção da Destacamos, então, que o mapeamento não é só
comunidade, pois é fundamental que a comunidade uma visita à comunidade na busca de seus equipa-
se responsabilize, aproprie-se do processo e possa mentos, monumentos, estruturas e as organizações
construir com o profissional. sociais. Mas, sim, uma forma de apreensão da rea-
Efetuamos, na pesquisa, o mapeamento psicos- lidade, a forma como os moradores estão inseri-
social participativo, que se refere ao levantamento dos, como pensam, sentem e vivenciam. Pode-se

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observar a maneira como os moradores vinculam- A mediação é presente no estudo de Sánchez Vidal
-se ao lugar e às pessoas, o fortalecimento dos laços (1991) sobre a comunidade, em que é caracterizada
afetivos, dentre outros. pela interação entre os moradores e a sociedade, é a
Para a comunidade, é o reconhecimento de seu expressão das instituições sociais que a compõe, po-
próprio contexto e de efetivação de mudanças a dendo satisfazer as necessidades mútuas.
partir de momentos de definição conjunta entre
profissional e moradores, pois o objetivo não seria
a transmissão de informações, nem a palestra, mas Procedimentos metodológicos
a problematização da realidade, sua reconstrução a
partir do diálogo e ação coletiva. A pesquisa foi de natureza qualitativa, com base
Então, ressaltamos, que, para Montero (2006), no método dialógico vivencial (MDV), cuja análise
não é interessante que as pessoas digam só o que do material coletado foi feito com base na constru-
o pesquisador/profissional quer escutar, pois apre- ção de sentidos (Moreira, 2004).
senta as aparências e referem-se às expectativas Foram investigados dez alunos da Escola Papa
dos moradores em relação a estes. João XXIII do ProJovem Urbano, com idade entre 18
É essencial que os moradores possam verbalizar a 29 anos. O lócus do estudo foi a comunidade Vila
o que realmente acontece na sua comunidade. E o União, situada nas proximidades da Avenida Borges
psicólogo possa entrar em contato por meio da ca- de Melo, na Regional IV, em Fortaleza.
minhada comunitária e por conversas com os mora- Apresenta dificuldades referentes ao saneamen-
dores e os líderes comunitários. Essas visitas devem to básico, à segurança pública e à existência de um
ser orientadas por pessoas que morem no lugar, canal na região. Os moradores são envolvidos em lu-
para torná-las proveitosas e agregar informações, tas sociais e participação comunitária, propiciando
além de possibilitar parcerias. reivindicações à prefeitura.
Segundo Góis (2008), “andar pela comunidade O pesquisador, ao vivenciar a comunidade, deve-
é muito mais do que simplesmente passar pelos rá introduzir-se nas relações cotidianas e conhecer
lugares, é olhar para cada ponto, cada lugar, cada o modo de vida comunitário. Essa compreensão en-
morador, cada situação que se apresenta no local de fatiza-se na dinâmica e no impacto psicossocial na
andança, com um olhar sensível e perceptivo ...”. comunidade.
Portanto é uma metodologia participativa que pro-
move a inserção e a reinserção com a comunidade. A partir da necessidade desse processo de trans-
O mapeamento inclui levantamento de dados de ordem formação sujeito-comunidade, a psicologia comunitá-
documental (dados já escritos sobre a comunidade), ca- ria utiliza o método dialógico-vivencial (Góis, 2008)
para conhecer e aprofundar a leitura dessa realidade
minhada comunitária e problematização da comunida-
concreta da comunidade. Como o nome indica, esse
de pelos moradores. Para Castro (2009, p. 38),
método tem como premissas básicas a vivência da
comunidade e o diálogo com seus atores, seus gru-
Falar em convivência significa um compromisso e en-
pos e suas instituições. ... Vivenciar o modo de vida
volvimento ético e amoroso do psicólogo comunitário
comunitário significa compartilhar junto a pessoas
com a comunidade com a qual trabalha. Não se pode
da comunidade sentimentos, sentidos, significados
falar em atuação comunitária sem que esta seja pre-
que surgem a partir do seu dia a dia naquele lugar ...
cedida de inserção, ou seja, de um mergulho profundo
(Ximenes, Amaral, Rebouças & Barros, 2008, p. 92).
no modo de vida da comunidade, suas histórias, an-
gústias, cultura, significados, equipamentos sociais,
relações, lideranças, entre muitos outros aspectos Permite, assim, a transformação da realidade,
que a realização do mapeamento psicossocial partici- demonstra a práxis do psicólogo comunitário e a
pativo permite compreender e vivenciar. interação com a comunidade. Possibilita deflagrar
processos nos moradores referentes ao lugar, uma
A comunidade é um espaço mediado pela socie- releitura da realidade e ações transformadoras a
dade, os laços familiares, o município, a sociedade e partir do facilitar-pesquisando.
as relações interpessoais, que permite a construção Utiliza-se o método facilitar-pesquisando (Góis,
da identidade dos seus moradores e reconhecimen- 2008), que envolve facilitação e pesquisa em um
to de si, do outro e do contexto. processo contínuo de construção de conhecimento,

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Mapeamento psicossocial participativo 685

interação socioambiental e desenvolvimento pessoal O diário de campo foi usado durante o estudo,
e coletivo dos profissionais e da comunidade. que consiste, para Montero (2006), em descrições
Na pesquisa, realizamos a observação parti- do que aconteceu no campo, suas observações,
cipante e os círculos de cultura com os jovens do dúvidas, questionamentos, acertos, a superação e
programa na sala de aula. Inicialmente explicamos aprendizagem com seus erros.
os objetivos e desenvolvimento da pesquisa e os
estudantes interessados assinaram o termo de con-
sentimento. Depois, fizemos atividades pautadas na Percepções dos jovens sobre a comunidade
discussão das questões ambientais vivenciadas na
comunidade, efetuando um momento de sensibi- O mapeamento psicossocial participativo é uma
lização para as trilhas urbanas pautado na relação forma de conhecer a comunidade sob a perspectiva
que têm com o ambiente e o compromisso com o dos seus moradores. Assim, o psicólogo insere-se no
contexto. No segundo dia, realizamos uma trilha na contexto, familiariza-se, conhece as necessidades e
escola e, após a sua efetuação, facilitamos um círcu- percebe os potenciais. À medida que a comunida-
lo de cultura sobre o que pensaram e sentiram na- de conhece o profissional, conhece seus objetivos
quele momento, além de relacionar com o ProJovem e interage, gerando uma confiança mútua entre os
Urbano. Passamos uma atividade de casa sobre a sujeitos (Montero, 2006).
comunidade Vila União, em que deveriam fazer uma Permite a visão ampla da realidade, pois concebe
pesquisa sobre o bairro. No terceiro dia, falaram so- os aspectos demográficos, sociais, culturais, econô-
bre a história da comunidade a partir das matérias micos, históricos e afetivos, buscando os conheci-
sobre o Vila União. No quarto dia, para finalizar, fi- mentos objetivos e s subjetivos da comunidade.
zemos uma trilha pela comunidade e efetuamos um O mapeamento psicossocial participativo com-
círculo de cultura para que pudessem verbalizar so- preende a pesquisa documental, o levantamento
bre o que perceberam no encontro. de dados, a reflexão sobre a comunidade e a cami-
O círculo de cultura, por meio do diálogo proble- nhada comunitária. Não seria somente conhecer
matizador, deflagra a vivência dos jovens em rela- a comunidade sem perceber a realidade dos seus
ção às metodologias por meio de trocas simbólicas moradores, o seu modo de vida comunitário e a sua
e do processo grupal, gerando questionamentos e subjetividade. Diante disto, podemos conhecer a co-
reflexões, além da construção de novos sentidos, co- munidade da Vila União sob a óptica dos estudantes
nhecimentos e leituras da realidade. Segundo Góis do ProJovem Urbano e observar a percepção sobre
(2008, p. 188), a metodologia de facilitação, como no caso do alu-
no: “a comunidade Vila União é calma e tranquila, te-
O círculo de cultura faz parte do eixo metodológico mos praças, hospital de criança que é o Albert Sabin”
que parte de uma educação como prática de liberta- (aluno 1, 26 anos, estudante).
ção. Círculo quer dizer a forma como as pessoas estão A partir da discussão e da problematização da
sentadas fazendo a palavra ‘circular’ por entre todas,
comunidade, percebemos aspectos relevantes da
estando cada uma em pé de igualdade para falar e
realidade, pois o aluno comenta que onde mora é
ouvir atentamente. Cultura, por que todos ali têm um
conhecimento e uma experiência de vida, fazem parte
tranquilo. Há opiniões diferenciadas sobre a segu-
daquele lugar; pensam, agem, criam e têm algo a dizer rança, pois alguns participantes do grupo acreditam
para os outros, contribuindo para o conhecimento co- que é um bairro perigoso, já que presenciaram fatos
letivo e transformação da realidade. de violência, assaltos em suas casas, ou na vizinhan-
ça. Esse diálogo possibilita uma reflexão e acolhi-
Neste estudo, realizamos as trilhas guiadas. Seria mento do comentário do colega, respeitando o seu
relevante perceber a trilha com os jovens, promoven- posicionamento, propiciando novas significações
do a apreensão da realidade pelo público-alvo, per- sobre o lugar. Assim, segundo a estudante: “não
mitindo a interação entre o grupo e o pesquisador. acho que o Vila União seja um bairro calmo” (aluna
Na coleta de dados utilizamos a gravação e a 2, 20 anos, estudante).
transcrição dos diálogos para assegurar o registro Comparam a sua comunidade com outros luga-
preciso. Não utilizamos fotografias, pois os jovens res, para que, a partir disto, consigam perceber o
não aceitaram. lugar onde moram pacificamente, afirmando que

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podem andar pela rua, pedir informação, sem que uma vez, mas foi complicado, sabia. É muito caro, né e
ocorra violência. Refletem os estereótipos que são ainda tem o material, o lanche, que é por minha conta
apresentados na televisão e nos jornais sobre a ou- (aluna 6, 18 anos, estudante).
tra comunidade. Então, uma jovem comenta que:
“o Lagamar é muito mais violento e perigoso” (aluna 4, Na perspectiva da educação, os jovens percebem
24 anos, estudante). as diferenças sociais e verbalizam os seus sonhos
Retratam as dificuldades na comunidade e de- para os seus filhos. Em referência à religião, nota-
monstram uma postura individualista, sem se preo- mos que a maior parte é católica, mas há pessoas
cupar com o contexto comunitário e o grupo social, evangélicas e que praticam religiões africanas, como
como é relatado pela estudante: “problema no Vila é relatado: “a maioria é católica, né, mas tem mui-
União tem, mas ninguém pode resolver o problema de ta gente evangélica. Há preconceito com as pessoas
todo mundo. Cada um tenta resolver o seu problema, evangélicas aqui, o povo não gosta muito, mas é claro
a sua dificuldade ...” (aluna 4, 24 anos, estudante). que tem gente que é muito exagerado ...” (aluno 1, 26
Essa reflexão sobre a comunidade faz parte do ma- anos, estudante).
peamento psicossocial participativo, pois consiste em O lugar que chama atenção dos jovens é a praça.
levantamento de dados sobre o contexto e um reco- É o lugar mais frequentado, pois encontram os co-
nhecimento da realidade comunitária sob a óptica dos legas, namoram e dançam. Associa-se ao passeio e
seus moradores, além de observar a percepção que à diversão com os grupos sociais, pois na juventude
apresentam em relação ao lugar e a sua transformação. há construção de novos interesses além da família,
A comunidade é um lugar de aprendizado e so- como afirma: �nós desenhamos a praça, que é um lu-
cialização entre os moradores. Possui a dimensão gar que nós frequentamos bastante, é bem animado
física, o território, o lugar, que a retrata geografica- todos os dia” (aluno 1, 26 anos, estudante).
mente, além de um viés sociopsicológico, uma inte- Apreendemos a relevância atribuída aos serviços,
ração das pessoas com o lugar (Góis, 2005). aos equipamentos sociais e aos transportes, como,
Vila União é um lugar bom de morar, há uma por exemplo, os colégios, os postos de saúde, o hos-
apropriação dos moradores em relação ao lugar, bem pital, as praças, além de compreender a questão da
como o sentimento de pertença e a afetividade em saúde, da religião, da educação, do lazer e esporte.
relação às pessoas e à comunidade, como podemos Conhecemos a localização da Vila União, ou seja,
perceber no comentário: “acho que é um lugar que onde começa e termina o bairro sob a perspectiva dos
tudo que nós queremos nós conseguimos, é um lugar jovens. Além disto, retrataram a história do bairro.
que tudo é perto” (aluna 6, 18 anos, estudante).
No item sobre a saúde na comunidade Vila União, Começa lá na Borges de Melo, passa pela escola, e ter-
como comenta a aluna: “percebi que a praça é muito mina lá na lagoa perto do aeroporto velho, onde tem a
bem localizada, mas se envolvem com coisas estra- praça do boi (que não lembro o nome certo, mas todo
nhas, como drogas, não fazem sexo com camisinha, mundo aqui chama desse modo), tem uma delegacia
aí pode pegar alguma doença, alguma coisa ruim ...” (aluno 1, 26 anos, estudante).
(aluna 6, 18 anos, estudante).
Diante disto, percebemos que os jovens, geral- A atividade propiciou o interesse para procurar
mente, não se protegem contra as doenças e a gra- os dados, que finalizou com a atividade de casa, que
videz de forma consciente e que usam drogas. No seria procurar matérias sobre o bairro, tais como a
decorrer da vida do jovem, os comportamentos de percepção do lugar que moram, presentificando-se
risco podem incluir a atividade sexual arriscada, o um sentimento de comunidade, de pertencimento
uso de álcool, a violência, o abandono da escola, a àquele contexto social, pois seria a realidade maior,
pouca interação social e o desemprego. que reflete a comunidade em que vivem, mostran-
Em relação à saúde, sobre os hospitais do bairro, do valores e condições sociais, presente no trecho
o aluno comenta a sua percepção: “o hospital é maior do diálogo a seguir: “Achei massa este texto, por que
do que imaginava” (aluno 10, 27 anos, estudante). relembro as histórias do meu avô sobre a nossa co-
munidade. Apesar de não em lembrar direito” (aluna 6).
Tem o colégio dos ricos da região bem perto, dava pra “Não conhecia esta história. Que legal! Massa! ...”
ver direito. Sonho em colocar meus filhos lá, até liguei (aluna 2).

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Mapeamento psicossocial participativo 687

Assim, os jovens leram o que pesquisaram em casa estórias, saber da história do lugar, dar-se a conhecer
sobre a comunidade, conheceram um pouco da his- e estabelecer laços de convivência, estar mais dentro e
tória do seu bairro, surgindo momentos de surpresa, por dentro do cotidiano do lugar. A caminhada comuni-
lembranças das histórias dos avôs, entre outros. As- tária quer dizer um andar coletivo, visando a olhar junto,
sim, a aluna comenta: “eu vi esta matéria na televisão, compreender junto e atuar junto (Góis, 2008, p. 197).
é muito bom ter o nosso bairro valorizado e divulgado
para a cidade” (aluna 6, 18 anos, estudante). Quando caminham juntos, fica mais fácil a inte-
Neste sentido, jovens reconheceram e sentiram ração entre os jovens ou outros participantes, que se
valorizados em relação ao seu bairro, quando foi surpreendem com o lugar, com as pessoas que estão
apresentado na televisão na cidade. Concordaram presentes, podem perguntar, conversar com os outros
com o material coletado, pois havia identificação moradores e trocar impressões. É na comunidade que
com o conteúdo proposto e mostraram lugares que ocorre a formação de grupos, o estabelecimento de
já comentaram e relataram a história do bairro, que vínculos, a expressão de sentimentos e a convivência.
até esta pesquisa não conheciam bem. Assim, de acordo com Castro (2009, p. 38),
Compreendemos que o mapeamento psicosso-
cial participativo não se resume somente à cami- Falar em convivência significa um compromisso e en-
nhada comunitária, mas ao material e ao conteúdo volvimento ético e amoroso do psicólogo comunitário
já produzido sobre o local. É importante realizar a com a comunidade com a qual trabalha. Não se pode
falar em atuação comunitária sem que esta seja pre-
pesquisa documental, como por exemplo, buscar re-
cedida de inserção, ou seja, de um mergulho profundo
latórios, documentos, matérias de jornais, escritos
no modo de vida da comunidade, suas histórias, an-
da comunidade, que devem ser lidos pela comuni-
gústias, cultura, significados, equipamentos sociais,
dade e pelos profissionais, gerando um posiciona- relações, lideranças, entre muitos outros aspectos
mento crítico. que a realização do mapeamento psicossocial partici-
Além de discutir, levantar os dados e pesquisar em pativo permite compreender e vivenciar.
documentos é relevante a caminhada comunitária,
pois possibilita vivenciar a realidade pelos moradores Portanto, enfatizamos a participação dos jovens
e pelo psicólogo, propiciando um conhecimento do na caminhada comunitária, bem como na tomada
contexto social em sua práxis. A partir da caminhada, de decisões e a responsabilidade pelo processo.
discutimos sobre os lugares a partir de um elemento
diferencial: a vivência. Demonstravam então a sensibi- A tomada de atitude que me refiro representa a par-
lidade, a afetividade e a mudança da percepção. ticipação na construção e melhoria do seu lugar de
vida. Entendo que esta só acontece, de fato, quando
Andar pela comunidade é muito mais do que simples- existem sentimentos de implicação entre os indivídu-
mente passar pelos lugares, é olhar para cada ponto, os e destes com seu lugar. A participação comunitária
cada lugar, cada morador, cada situação que se apre- fornece a base para o fenômeno do aprofundamento
senta no local de andança, com olhar sensível e per- da consciência (Rodrigues, 2007, p. 62-63).
ceptivo. Um olhar que une o etnográfico ao psicológi-
co, um olhar etnopsicológico alicerçado no compro-
misso social, um olhar amigo que busca compreender Além disto, notamos as pessoas que frequentam
a comunidade do ponto de vista científico, vivencial e o lugar, a identificação com as casas, as diferenças
solidário (Góis, 2008, p. 197). entre um lugar do bairro e de outro, o movimento
e o silêncio nas ruas, ou a opção por não observar,
Podemos experienciar o cotidiano dos morado- sendo consciente ou não. Sentiram diferença das
res, os lugares que gostam de ir, os idosos na cal- ruas perto da escola, em comparação ao lugar onde
çada, os casais namorando, constituindo-se a convi- vivem e habitam.
vência comunitária. Quando realizavam caminhadas no ProJovem
Urbano com os professores, estes não caminhavam,
A caminhada comunitária é um andar realizado em pegavam seus carros e chegavam no ponto marcado.
grupo, no qual se juntam para caminhar pelas ruas da
comunidade profissionais de saúde e moradores, com o Foi boa a caminhada, vocês foram com a gente, é di-
fim de conhecer os locais, as pessoas, as situações, ouvir ferente das que acontecem no ProJovem, que vamos

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688 Lima, D. M. A., & Bomfim, Z. Á. C.

caminhando e os professores vão de carro, eles não sobre o ProJovem Urbano. Foi um instrumento que
acompanham a gente, podemos ir brincando, conver- permitiu a verbalização sobre o programa, sendo um
sando, tem gente que vai embora depois da presença e campo fértil para a facilitação e a realização de pes-
pronto. Isto desmotiva os alunos, sabe. Vocês foram com quisas na área da psicologia, da educação e da saúde.
a gente, conversando com a gente, perguntando algu- Sobre a participação no grupo, os jovens comen-
mas coisas... (aluno 1, 26 anos, estudante). taram que propiciou o desvelamento da realidade:
“... caminhamos, conhecemos mais a nossa comunida-
Acreditamos que a postura de distanciamento de, o nosso bairro, e também pudemos falar algumas
do professor/educador pode deixar os jovens dis- coisas que estavam engasgados sobre o ProJovem”
persos, podem ir para a casa (sem participar da ati- (aluno 1, 26 anos, estudante). Assim, observamos
vidade) e não permite a vinculação, a troca de in- que a pesquisa, com o uso do mapeamento psicos-
formações, a construção do processo, dentre outros. social participativo, promoveu a aproximação dos
Em relação aos estudantes do ProJovem Urbano, jovens à realidade, iniciando o processo de perten-
já conhecem a comunidade, mas geralmente não há cimento, sensibilização e interesse em referência à
interação com os seus moradores e a realização de comunidade.
atividades comunitárias. Os relatos dos estudantes
confirmam que são essenciais atividades que per-
mitam a sua aproximação, a reinserção, a vincula- Considerações finais
ção dos jovens com a comunidade.
A realização do mapeamento psicossocial par-
Quando caminhamos é que realmente conhecemos o ticipativo foi importante tanto para o pesquisador
lugar, quando ando de ônibus pelos cantos é tão rápi- quanto para os jovens, pois possibilitou refletir e
do que não dá para notar nada, né. Mas, caminhando é sentir a comunidade. Promoveu o reconhecimento
diferente, você passa por cada lugar e ele fica marcado
da comunidade e as possibilidades de transforma-
em você de alguma forma. Eu já havia passado diversas
ção, fortalecendo o trabalho comunitário e desvin-
vezes por esta praça, desta foi diferente, consegui pas-
culando as situações de opressão. Propiciou a iden-
sar com calma e perceber a importância para a nossa
comunidade e sua boa localização, num precisa andar tificação e pertencimento ao grupo, bem como o
muito para ir ao médico, comprar alguma coisa, ir ao resgate das redes sociais e o exercício da cidadania,
colégio... (aluno 1, 26 anos, estudante). pela diminuição dos preconceitos e a superação dos
sentimentos de rejeição, de insegurança, de vergo-
Para o mapeamento psicossocial participativo, nha e de culpa.
é importante que a caminhada aconteça em vários Tem um viés de facilitação comunitária, de pes-
momentos (fins de semana e na semana) e horários quisa, de inserção e reinserção com a comunidade,
(manhã, tarde e noite), para compreender o cotidia- de conhecimento e reconhecimento dos participan-
no da comunidade e os modos de experienciar cada tes. É possível trabalhar várias temáticas com a co-
momento. À noite, a realidade pode se apresentar de munidade a partir de suas demandas.
forma diversificada, com a presença de elementos Para a psicologia comunitária, essa metodologia
para mudar a percepção sobre o lugar (Góis, 2008). possibilita o conhecimento de equipamentos so-
Nesta pesquisa, realizamos uma caminhada co- ciais, que poderia efetivar uma parceria de trabalho,
munitária com os jovens à noite. É necessário para o buscando, entre outros processos, a potencialização
processo de mapeamento que ocorra encontros com a das atividades comunitárias presentes, a discussão
comunidade, com duração de quatro a seis meses, ou das problemáticas encontradas e a busca de solu-
mais tempo de acordo com a necessidade, como pre- ções. Assim, diante da realidade vivenciada, reco-
coniza o aluno: “eu gostei porque a caminhada fez com nhecemos os objetivos em comuns com os parcei-
que a conversa toda chegasse na nossa discussão sobre ros e a comunidade, que levem ao desenvolvimento
o ProJovem daqui mesmo, nem sei como isto aconteceu, comunitário e atuação comprometida.
né. Foi assim que foi...” (aluno 10, 27 anos, estudante). Tanto para o profissional de saúde como para o
Ao realizarmos o diálogo sobre a comunidade, o morador que participa da caminhada comunitária,
levantamento de dados, a pesquisa documental e a esta gera um pertencer e um sentido maior da vida
caminhada, percebemos que os jovens comentaram da comunidade, um conhecimento impossível de se

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Mapeamento psicossocial participativo 689

obter ficando dentro de um posto de saúde, de casa, Montero, M. (2006). Hacer para Transformar: El método
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