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Cinegnose
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CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
São Paulo
2009
WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
São Paulo
2009
WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
Aprovado em 14/09/2009
___________________________________________
___________________________________________
__________________________________________
Dedico esse trabalho à minha esposa Tati pelos lindos filhos que me deu e pela inspiração e
incentivo à retomada da carreira acadêmica.
AGRADECIMENTOS
A Professora Dra. Bernadete Lyra e ao Prof. Dr. Gelson Santana por terem
concedido a possibilidade da realização de trabalhos de compensação de falta em
decorrência do meu acidente e cirurgia em meio ao semestre letivo das disciplinas
no primeiro semestre de 2008.
The North American film production recent (1995 to 2005) has several films where
the striking recurrence of thematic elements inspired by the mythical narratives
Gnosticism (set of syncretic sects and schools of iniciatic religions of knowledge in
the first centuries of the Christian era). The topics include, often, cosmic
conspiracies, parallel universes, paranoia and amnesia. Demonstrates an interest in
an ambivalent relationship between the subject and reality, consciousness
(particularly altered states of consciousness by illuminated) and rebellion against
authoritarian systems of control. Films such as City of Shadows (Dark City 1998), Life
in Black and White (Pleasantville, 1998), Truman Show (Truman Show, 1998),
Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), among others, have a general idea that the world we
perceive is an illusion created by someone who does not love us and that the key to
reveal the illusions and discover the reality is a form of consciousness or
enlightenment. A clue to discover the connection between gnosticism and film is the
discussion between mysticism and imagery technology. Strongly connected with the
social imaginary of the end and beginning of new century, the North American film
production current reflect an imaginary technology that some authors define as
"gnosticism technology" or "techgnosis”. The dissertation film analyzes will find
general features that point to a specific gnostic movie in the film camp.
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9
1.1. Gnosticismo e Gnose .......................................................................................... 9
1.2. Tecnognose: o “gnosticismo tecnológico” ................................................... 13
1.3. Cinegnose: o “filme gnóstico” ......................................................................... 16
1.4. O Método ............................................................................................................... 19
PARTE I – Gnosticismo e Modernidade ................................................................... 26
1. O Ressurgimento Gnóstico na Modernidade: o Romantismo .................. 26
2. A ironia no filme: o Gnóstico e o Gótico .......................................................... 30
3. Filme gnóstico: o gnosticismo como forma cultural ..................................... 37
PARTE II - Elementos Gnósticos em filme .............................................................. 42
1. Os Protagonistas .................................................................................................... 42
1.1. O Viajante - Grupo “Suspensão” ......................................................... 47
1.2. O Detetive - Grupo “Paranóia”.............................................................. 50
1.3. O Estrangeiro - Grupo “Melancolia” .................................................... 53
2. A Narrativa ................................................................................................................ 56
3. Os Personagens ..................................................................................................... 78
3.1. O Demiurgo ................................................................................................ 79
3.2. Os Arcontes................................................................................................ 85
3.3. Sophia .......................................................................................................... 88
4. Temas ........................................................................................................................ 92
4.1. Grupo “O Viajante” ................................................................................... 92
4.2. Grupo “O Detetive” ................................................................................... 99
4.3. Grupo “O Estrangeiro”........................................................................... 107
5. Simbolismo e Iconografia................................................................................... 115
5.1. Acordar/Despertar .................................................................................. 115
5.2. Olho ............................................................................................................ 120
5.3. Marionetes e Avatares .......................................................................... 122
5.4. Água ........................................................................................................... 127
5.5. Iconografia Noir ....................................................................................... 129
5.6. Símbolos de Teorias Conspiratórias ................................................ 133
5.7. Iconografia religiosa............................................................................... 134
5.8. Simbolismos recursivos ........................................................................ 139
PARTE III – Análises Fílmicas ....................................................................................144
Filme: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças................................... 144
Filme: A Passagem................................................................................................... 165
Filme: Show de Truman .......................................................................................... 178
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................199
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 2099
FILMOGRAFIA .............................................................................................................. 2133
1. INTRODUÇÃO
Mas como estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses,
roteiros e nas mesas de produtores dessas produções cinematográficas norte-
americanas? Ou melhor, como explicar que nesse momento de final e princípio de
novo século, marcado pelo predomínio de um imaginário tecnocientífico triunfal em
todas as áreas (computação, comunicação, biologia etc.), temos a ascensão dessa
mitologia do início da era cristã em plena cultura de massas?
Para abordarmos essa questão, em primeiro lugar temos que definir o termo
“Gnosticismo”. É um termo usado para designar todo um conjunto de seitas
9
sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos
da era cristã. É também aplicado a renascimentos atuais desses grupos e, por
analogia, a todos os movimentos que se baseiam no conhecimento secreto da
“gnose”. Essa generalização pode levar a uma confusão, tornando a noção de
“gnóstico” ou “gnosticismo” vaga e escorregadia. Pela natureza oculta do
ensinamento gnóstico e pelo fato de muito material a respeito ser proveniente das
críticas da ortodoxia cristã torna-se difícil uma descrição precisa dos antigos
sistemas gnósticos. A descoberta, em 1945, dos textos gnósticos do século IV em
Nag Hammadi (Egito) trouxe uma maior clarificação sobre a natureza do gnosticismo
na Antiguidade, embora muitos concordem que o tema continue com muitos pontos
dúbios.
Por isso o termo “gnosticismo” tem sido aplicada a muitas seitas modernas
que têm acesso aos arcanos iniciáticos. Longe de trazer uma clarificação torna ainda
mais impreciso o conceito, obstruindo a verdadeira compreensão histórica.
1
FAVROD, Charles-Henri. O Ocultismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.
10
budismo, antigas religiões semiticas e cristianismo)2. Stephan Hoeller, por exemplo,
prefere falar em “atitude gnóstica” para explicar os sucessivos renascimentos ao
longo da história:
2
Cf. HUTIN, Serge. Los Gnósticos, EUDEBA: Buenos Aires, 1963.
3
HOELLER, Stephan A., Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005, p. 155-156.
4
“budistas estiveram em contato com os cristão de Tomé (ou seja, cristãos que conheceram e
usaram tais escritos – Evangelho de Tomé) no Sul da Índia”. CONZE, E. “Buddhism and Gnosis”
Apud: PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. R. de Janeiro: Objetiva, 2006, p. xxii.
5
WISSE, Frederik.(tradução) “O Apócrifo de João” IN: ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag
Hammadi. São Paulo: Madras, 2007. Um dos vários textos escritos nos primeiros anos da era cristã
que comprova que o cristianismo original tinha pensamentos muito mais diversificados do que hoje. A
fé só foi unificada, quando a corrente cristã romana, adotada pelo imperador, baniu todos os outros
grupos cristãos. Após a morte de Jesus, os cristãos compartilharam relatos da vida e das lições de
Cristo. Dezenas deles foram escritos, mas os próceres da igreja elegeram só quatro para o Novo
Testamento. No século 20, evangelhos rejeitados foram redescobertos. Alguns, como o de Pedro,
assemelham-se aos quatro escolhidos. Outros, como o de Judas, têm diferenças drásticas e
valorizam a gnose – o conhecimento de Deus pela percepção da centelha divina que existe no
indivíduo.
11
harmoniosa e espiritual plenitude. Um desses aeons, Sophia, rompeu o equilíbrio ao
criar um novo ser sem a aprovação do grande Espírito ou de sua consorte. Esta
turbulência produziu um ser ignorante, Ialdabaoth. Este, imediatamente, foi exilado
no reino material fora do Pleroma. Sozinho no reino da matéria, estupidamente
passou a acreditar ser o deus único e produziu um cosmos imperfeitamente baseado
no Pleroma. Imediatamente cria anjos (archons) para governar o mundo e ajudar na
criação do homem dando origem a um universo onde a matéria dividida está no
lugar do espírito unificado e a desilusão substitui a verdade original. O próprio
homem é moldado através da imagem perfeita do Pai e aprisionado neste universo
imperfeito. A esperança está em que a Eternidade secretamente sempre alcança os
homens e planta a partícula divina (pneuma) nas almas doentes e sofredoras.
Temos o início de uma luta contínua entre os poderes da luz e da escuridão pela
possessão dessas partículas. Elas somente serão ativadas no homem no momento
de iluminação (gnose) onde tomamos consciência de sermos exilados das nossas
origens, o Pleroma. A partir daí, rejeitamos as formas e convenções do plano físico
como fantasmas de um pesadelo, como ilusões perpetradas por um deus que
conspira contra nós.
Do mesmo modo, a mãe também enviou para baixo o seu espírito, que
é nela a semelhança e a cópia daqueles que estão no pleroma, pois é
ela que preparará a moradia para os aeons que descerão. E ele os fez
beber a água do esquecimento do chefe archon, para que não
soubessem do lugar de onde eles tinham vindo. Conseqüentemente, a
semente permaneceu por algum tempo (lhe) atendendo, para que,
quando o Espírito vier dos aeons sagrados, ele possa se elevar e ser
curado da sua imperfeição, e para que assim todo o pleroma possa
novamente se tornar um lugar perfeito e sagrado”6
6
Ibidem, p. 110.
12
Veremos que essa cosmogonia e sistema moral será o ponto de partida das
reflexões dos três principais filósofos do gnosticismo dos princípios da era cristã:
Valentim, Basilides e Mani. Cada um deles vai oferecer um método diferente de
resgate (gnose) desta partícula divina interior, criando uma espécie de mitologia que
será recorrente no grupo de filmes gnósticos que analisaremos na Parte II desta
dissertação.
7
DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information. London: Serpents
Tail, 2004.
8
MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social. Lisboa: Edições Século XXI,
1996.
13
tecnologia computacional) apontam para a superação dos limites do orgânico. Victor
Ferkiss vai caracterizar esta nova perspectiva com um conceito aparentemente
paradoxal: “gnosticismo tecnológico”9. O gnosticismo histórico caracterizava-se pelo
horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do
espírito na sua busca por iluminação. Ora, a tecnociência atual aproxima-se de tal
filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana:
finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação
existencial. Ferkiss, assim como Martins, apontam para esse surpreendente
cruzamento entre as aspirações tecnológicas contemporâneas e as utopias
gnósticas por transcendência.
14
Aqui, suspeito, ser a razão pela qual Buckminster Fuller, Marshall MacLuhan,
e outros tecnófilos utópicos deram uma resposta de acordo com a jovem
contracultura. O acid rock já havia preparado as audiências para suas
mensagens. Combinado com música e luzes, num ataque total aos sentidos,
puderam fazer tudo parecer possível. Induziram um sentimento de grandeza e
euforia, fazendo as realidades políticas parecerem tigres de papel. (...) Ao
mesmo tempo esta experiência conectou com poderes místicos primordiais
da mente (...). Estas experiências provenientes dos laboratórios da indústria
cultural de alguma forma conectou seus discípulos com o antigo, o primitivo e
o tribal. (...) Aqui, então, encontramos a mesma surpreendente mistura entre
o sofisticado/científico e o natural tal como Buckminster Fuller reivindicava
para a geometria geodésica, e que o Vale do Silício associou ao computador
pessoal. ‘Esta geração, absolutamente, engoliu computadores inteiros, tal
como droga’, observou Stewart Brand em uma entrevista em fevereiro de
1985 para a San Francisco Focus Magazine. Pode haver mais literalidade
nessa metáfora do que ele pretendia.12
12
Ibid., p. 36.
15
habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o
cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da
carne mortal... Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é
seu corpo, ele é a mente da máquina... Esta parece ser para mim a forma
mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e
não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um
organismo biológico. Tal espécie de ser viverá para sempre.13
Criador da realidade virtual, Jaron Lernier acredita que tal motivação mística
torna-se o principal atrativo do ciberespaço. Para ele, muitos hackers têm a
esperança de um dia viverem para sempre após um upload final para o interior de
um computador. Lernier caracteriza essa fantasia como o início de uma “cultura de
zumbis” dominado por ex-humanos que “estão preparados para deixar tudo para trás
imaginando viverem em um disco rígido, interagindo unicamente com outras mentes
e demais elementos de um ambiente que existe somente em um software”14
Portanto, a essência do ser, a mente (ou a partícula de luz que nos liga à nossa
casa originária, a Pleroma), pode ser digitalizada como informação. Este é o atalho
para a gnose: a tecnologia como a via mais rápida para a realização do projeto de
redimir a humanidade exilada e aprisionada nos círculos materiais.
13
JASTROW, Robert. The Enchanted Loom: Mind in the Universe, New York, Simon and Schuster,
1984, pp. 166-67.
14
LANIER, Jaron. "Agents of Alienation," Journal of Consciousness Studies, volume 2, no. 1, 1995,
pp. 76-81.
16
correspondem tanto às narrativas míticas cosmogônicas e morais dos principais
pensadores do gnosticismo histórico (Basilides, Valentim e Mani) como a diversos
simbolismos místicos ou esotéricos associados ao sincretismo do chamado
Gnosticismo Hermético. Ou seja, o filme gnóstico reduziria o Gnosticismo a um
sentido mais geral como uma atitude filosófica ou religiosa que englobaria ou
inspiraria a maior parte das doutrinas esotéricas ou ocultistas. A partir disso, a
análise fílmica, cujos resultados são apresentados na Parte II desse trabalho,
procurou encontrar características gerais que apontassem para uma especificidade
do filme gnóstico dentro do campo cinematográfico.
15
FERRO, Marc. Cinema e História.São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12.
16
NOVÓA, Jorge, e NOVA, Cristiane (Org.). Interfaces da história: caderno de
textos. v. 1, n. 1. Salvador: Bahia, 1998, p.10.
17
Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a
produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana, refletiria não
apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também, questões
existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.
Segundo Wilson, o “filme gnóstico” irá refletir esse atual colapso nas
distinções entre aparência e realidade. Nas suas palavras, o “filme gnóstico”:
17
WILSON, Eric. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006, p. vii.
18
relações entre superfície e profundidade com plots sedutores e cenas
surpreendentes18
1.4. O Método
18
Ibid., p. viii.
19
religiões alternativas19. Já na primeira recepção desses filmes podemos perceber o
enorme sincretismo entre elementos do gnosticismo histórico e toda uma gama de
referências místicas e esotéricas. Como estabelecer um primeiro recorte dentro
desse grupo para organizar nossas análises fílmicas?
O primeiro recorte foi temporal. A escolha do período de análise (1995 a
2005) está fundamentada neste a priori epistemológico de o cinema poder ser
considerado um documento representativo do imaginário social de um determinado
período histórico. O que temos nesse período de tempo? A partir do bombástico
lançamento do Windows 95, tivemos o crescimento especulativo das potencialidades
da Internet e das tecnologias computacionais. Paralelo a isso, o crescimento das
técnicas motivacionais e de auto-ajuda explicitamente inspirados em modelos de
programação de computadores. Em 2.000 temos a quebra das empresas “ponto
com” e da bolsa Nasdaq e, com isso, a desaceleração de toda uma ciberutopia. Por
isso, a curiosidade da pesquisa em saber se há alguma alteração na forma como os
elementos gnósticos são dispostos nos filmes. Se a recorrência de elementos
gnósticos na produção cinematográfica norte-americana entra em cena neste
período aonde as ciberutopias tecnológicas chegam ao auge, haveria alguma
transformação ou a inclusão de novos elementos temáticos após o divisor de águas
do ano 2.000?
19
“Gnostic Film Festival” disponível em <http://egina2.blogspot.com/2006/08/gnostic-film-
festival.html> (acessado em 07/05/20008). EMICK, Jennifer, “Hollywood Goes Gnostic?” In:
<http://altreligion.about.com/library/weekly/aa072302a.htm> (acessado em 03/12/2007).; ”Gnosticism
- Heresiologists and Detractors”disponível em <http://www.experiencefestival.com/gnosticism_-
_heresiologists_and_gnostic_detractors> (acessado em 02/03/2008). “X-Men, Emerson,
Gnosticism”disponível em <http://reconstruction.eserver.org/043/Klock/Klock.html >(acessado em
15/03/2007).
20
que é realidade ou, pelo menos, a percepção de realidade torna-se
progressivamente instável. Assistindo a esses filmes percebe-se que os percursos
que conduzem o protagonista à descoberta da verdade são variáveis, porém,
podemos perceber padrões: a busca da verdade realiza-se por meio de uma
verdadeira reforma íntima favorecida ou por uma cadeia de eventos ou por um
sentimento vago de mal estar que impulsiona o protagonista a mudanças de
atitudes. A primeira hipótese é a de que estaríamos, então, diante da recorrência de
arquétipos, isto é, elementos recorrentes de um imaginário social.
20
Cf. HOELLER, Stephen. Jung e os Evangelhos Perdidos: uma apreciação junguiana sobre os
Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.
JUNG, C.G.. Símbolos da Transformação, Petrópolis: Vozes, 1995 e JUNG, C.G. Sete Sermões aos
Mortos.
21
PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
21
personagens iniciáticos caracterizados pelos pensadores gnósticos citados. Claro
que a analogia se resume apenas na caracterização inicial dos protagonistas em
relação ao seu mal-estar no mundo. Brissac não imagina nenhuma saída ou
caminho espiritual para esses personagens, a não ser “telões eletrônicos e fachadas
decoradas, ao redor dos quais tudo cai em abandono e decrepitude. (...) recomeçar
tudo outra vez, retomando estas imagens e estórias banalizadas, estes locais de
fantasia agora em escombros. (...) Tudo neste mundo desde logo é simulacro”22 As
narrativas gnósticas pretendem ir além desse simulacro do mundo a partir de três
estados alterados de consciência que propiciam a gnose. Portanto, a descrição
desses estados gnósticos orientou a divisão do corpus de análise em três grupos
(tabela 3).
22
Ibid., p. 7.
22
1999 Ed TV Ed TV
1999 Fight Club Clube da Luta
2000 Memento Amnésia
2000 X-Men X-Men
2001 Vanilla Sky Vanilla Sky
2001 Donnie Darko Donnie Darko
2002 Minority Report Minority Report - A Nova Lei
2003 Identity Identidade
2006 Inland Empire Império dos Sonhos
2006 Click Click
2006 A Scanner Darkly O Homem Duplo
2007 The Number 23 Número 23
23
Tabela 3 – Corpus de análise dividido por grupos de protagonistas
24
Tendo em vista a escassa bibliografia sobre Gnosticismo e cinema (apenas o
livro de Eric Wilson), o propósito desse trabalho é o de início de uma discussão
sobre o tema. Além disso, essa discussão oferece uma contribuição não só para os
estudos das sobre religião e cinema, mas também como esforço para compreender
a natureza do imaginário tecnológico e social atuais.
25
PARTE I – Gnosticismo e Modernidade
Mas não devemos ver nisso uma simples curiosidade de erudito. Nerval
– que era franco-maçom, não nos esqueçamos – quis conhecer por
conta própria os mistérios da iniciação, da teogonia e do destino. O
ocultismo nervaliano reúne elementos de origem muita diversa, mas
esta ‘gnosis’ sincrética se orienta ao redor de um símbolo central: a da
Mãe Divina2
1
PETREMENT, S. Le Dualisme Ches Platon, lês gnostiques et lês manichéens. Paris: PUF, 1974, p.
129.
2
HUTIN, Serge. Los Gnósticos, EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 71.
26
nas limitações objetivas da linguagem: como a linguagem poderia representar o
incognoscível? O caminho que o Romantismo percorrerá entre a transcendência e a
linguagem, o incognoscível e a representação é a ironia. Veremos na Parte II dessa
dissertação como os elementos desse tipo de ironia reaparecerão no plano narrativo
dos filmes gnósticos. Primeiramente, vamos entender as motivações místicas e
filosóficas que estiveram por trás desse importante elemento literário do
Romantismo.
A Ironia romântica
... A ironia romântica (...) não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo
com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se
destina a fomentar uma constante discussão e reflexão sobre literatura – um
3
Foi muito importante na eclosão do Romantismo o movimentado círculo de Iena (Berlim de 1798 a
1800), onde se distinguiram os irmãos Schlegel, ao lado de Novalis e Tieck, além de Karoline
Michaelis (1769-1809) - nome de solteira - casada com August e, mais tarde, em segundas núpcias,
com o filósofo alemão Friedrich Schelling (1775-1854). Novalis,foi o maior poeta do grupo. Seguiram-
se muitos outros, entre os quais os irmãos Grimm - Wilhelm (1786-1859) e Jakob (1785-1863);e
Heinrich Heine (1797-1856), certamente o último romântico alemão, como poeta.
27
processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é
alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e
desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para
como o texto foi construído.4
Mas o alcance da noção de ironia pode ser estendido para além da literatura
como afirma Arthur Nestrovski. Ele situa a ironia no âmbito da linguagem em geral e
aponta a filosofia crítica como marco fundamental na crise de confiança na
linguagem:
4
VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São
Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.99.
5
NESTROVSKY, A. Ironias da Modernidade, São Paulo: Ática, 1996, p. 8.
28
O romântico tem um olhar extremamente crítico em relação ao presente: toma
distância da realidade em que vive, tenta objetivá-la e a si mesmo em um movimento
reflexivo e auto-reflexivo. Mas esta crítica se faz acompanhar por uma espécie de
nostalgia da unidade perdida, de uma época onde todos os hiatos e lacunas
estavam preenchidos ou preenchíveis, aspira à unificação daquilo que está
fragmentado, a restauração da plenitude e da harmonia perdidas.
29
conferindo a ele qualidades positivas. Aproxima-se do Romantismo ao utilizar a
ironia como um método de questionamento religioso:
6
WILSON, Eric G. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006, p. 21.
30
imitação de algum evento verossímil (como um realístico retrato da sofredora
condição humana) ou como uma paródia de qualquer idéia de autenticidade, como
uma espécie de ataque formal à construção do senso comum.
Esta parece ser a chave desse tipo de ironia: nunca está claro se a ironia está
presente ou não. Isso distingue a ironia derivada do Romantismo – uma séria
procura filosófica, poética e religiosa – da ironia instrumental – uma técnica aplicada
especialmente para a sátira. Vamos tentar entender a diferença entre essas duas
espécies de ironia.
7
Ibid., 24.
32
Se esta ambigüidade do filme gnóstico derivada da ironia romântica poderia
provocar “vazios cognitivos” e através disso, propiciar o “numinoso” na experiência
cinematográfica é algo que foge às pretensões das análises fílmicas deste presente
trabalho. Porém, as colocações de Wilson a respeito da ambigüidade narrativa
desse grupo de filmes são pertinentes e verificadas nos resultados das análises
fílmicas que veremos adiante.
O Gótico gnóstico
Não é surpreendente que a ironia dos filmes gnósticos tenha um sabor gótico.
Apesar das importantes diferenças entre os gêneros fílmicos ficção científica, filme
noir, horror e fantasia, todos eles partilham dos mesmos elementos góticos: o
obscurecimento das fronteiras entre a descrição realista de mundos familiares e
experimentos formais ou descrever terras de estranhos sonhos; a mistura ambígua
entre percepção e projeção; o conflito entre razão e inconsciência.
8
COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria, Volume II, Princeton: Princeton University Press,
1983, p.5-6.
33
que, de outra forma, normalmente não aceitaríamos. Este nível de dissolução das
fronteiras entre credulidade e incredulidade é irônico. Leva o leitor a acreditar no
inacreditável. Encoraja-o a questionar a realidade empírica. Colocando abaixo
dicotomias inadequadas como crença/descrença, verdade/mentira, etc.,
testemunhando a dissolução das formas, o leitor desse conto gótico deverá alcançar
um terceiro caminho para além das certezas dadas.
9
Cf. FREUD,S. “O estranho” in História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Edição standard
brasileira das obras completas de S. Freud. Vol XVII (1917-1919). Tradução de Eudoro Augusto
Maciera de Souza. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1976.
34
Em seu trabalho sobre o fantástico, Tzvetan Todorov enfatiza a conexão entre
o inconsciente e a ambigüidade. Embora Todorov faça uma distinção entre o
fantástico e o estranho, sua definição de fantástico pode estender a noção freudiana
de inconsciente.
10
TODOROV, Tzvetan, Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 39.
35
E como o gótico está conectado com o gnóstico? Se Freud demonstra como o
estranho que aflora do inconsciente produz neurose e psicose, Heidegger vai nos
mostrar, sob o ponto de vista filosófico, como o estranho vai inspirar conhecimento e
energia. Tal como Freud, Heidegger vai encarar o estranho como um modo de
abertura onde o familiar torna-se desconhecido e o desconhecido torna-se íntimo.
11
SILVA, Antônio Almeida R. da, “Relação entre Espaço e Lugar no pensamento de Martin
Heidegger” Correlatio, n. 11, Universidade Metodista de São Paulo. Disponível em
<http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio11/relacao-entre-espaco-e-lugar-no-pensamento-de-
martin-heidegger/> (acessado em 09/01/2009).
36
3. Filme gnóstico: o gnosticismo como forma cultural
12
NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001. p. viii.
13
Ibid. p. 14.
37
expressões marginais alcança sua força total na literatura popular do século XX: o
fantástico mundo de estranhos contos, histórias em quadrinhos e filmes góticos.
14
CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa (org.), O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São
Paulo: Cosac & Naif, 2001, p. 21.
38
presente pode ser reconhecido somente depois de ter se tornado passado.
Não podemos nunca estar presentes em um presente15
15
CHARNEY, Leo, “Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade”, In: CHARNEY, Leo &
SCHWARTZ, Vanessa (org.), Ibid., p. 389.
16
HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo Apud CHARNEY, Leo. Ibid, p.389.
39
budista e islâmica, incluindo vistosos domos e brilhantes estátuas de Buda. Ou,
ainda, o Mayan Theater de Los Angeles, completado em 1926, que era uma
reminiscência dos antigos templos Maias, povoado por intrincadas esculturas vividas
pinturas.
17
WILSON, Eric G. Op. Cit., p .x.
40
Excetuando-se as considerações apologéticas de Wilson de que a
experiência cinematográfica do filme gnóstico pode “libertar os espectadores da
hermenêutica do status quo”, vamos perceber, de qualquer forma, nesse grupo de
filmes, essa dualidade entre as convenções tradicionais do gênero e os conteúdos
mitológicos e arquetípicos. Como mitologias ou narrativas gnósticas que denunciam
o mundo como uma ilusão podem ser representadas por um veículo essencialmente
ilusório: de um lado, como dispositivo (com toda a carga ilusória de identificação e
voyeurismo) e, do outro, como indústria cultural?
41
PARTE II - Elementos Gnósticos em filme
1. Os Protagonistas
A teoria de Basilides1 sobre o verdadeiro Deus, tal qual descrita por Hipólito2,
pode ser resumida na idéia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus está além
do conhecimento humano, a negação do conhecimento é o sagrado caminho. O
homem acolhe os objetos do saber e as palavras como fossem veículos do
conhecimento na esperança de que possam revelar a verdade das coisas. Em um
1
Basílides (117-138 DC). Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia.
Admitiu um princípio incriado, o Pai, cinco hipóteses emanadas dele e trezentos e sessenta e cinco
céus, um dos quais é o nosso mundo comandado pelo Demiurgo (Yahweh, Jeová ou Javé).
2
HIPPOLYTUS., Refutation of All Heresies. Book X, Chapter X. Disponível em <http://www.mb-
soft.com/believe/txu/hippoly9.htm >(acessado em 25/02/2009).
42
mundo de ilusões o conhecimento dele só poderá ser também ilusão. Por isso
Basilides recomenda ao iniciado aos mistérios o silêncio. Ou seja, incapaz de
discernir a diferença entre aparência e realidade Basilides sugere a suspensão, um
estado de silêncio melancólico3. A linguagem induz ao erro porque Deus é o Nada,
está além daquilo que é possível ser nomeado. As coisas devem ser apreendidas
sem a linguagem (arretos). Mais adiante, veremos como esta mitologia gnóstica
marcará um conjunto de ícones e símbolos do cinema gnóstico. Chamaremos o
personagem fílmico que vive neste estado de suspensão basilidiana como o
Viajante.
3
Os alunos que decidiam seguir a escola de Basilides eram obrigados a observar um silêncio de
cinco anos com o propósito de criar condições para o cultivo da gnose sem dissipar suas intenções
em conversas.
4
Professor gnóstico, aluno de São Paulo, quase se tornou papa. Nascido em Cartago em torno de
100 DC, fez uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo. Para ele, Cristo não foi um
“salvador”, mas um “curador” já que nada há para ser salvo pois o mundo é imperfeito não pelo
pecado mas pela obra falha de um deus criador inautêntico.
43
seres nascidos nesse universo re-encenam este erro ao confundir ignorância com
conhecimento.
5
Viveu no Irã no século III DC. Depois de uma viagem à Índia, Mani retornou ao Irã para desenvolver
sua doutrina. Cruelmente executado por um traiçoeiro monarca instigado pelo clero zoroastriano, sua
religião floresceu por vários séculos tornando-se a principal fonte de transmissão da tradição
gnóstica.
44
forma conseguiu retornar, deixando para trás os cinco elementos que compunham a
sua alma. Para libertar essas partículas, Deus criou o cosmos com Adão e seus
filhos. A cada momento, a criatura humana, um anthropos decadente, ouve o
chamado da luz para que, ao cultivar o espírito, emancipe partes da alma até que
todas as almas sejam libertadas e a matéria seja aniquilada. É claro que as forças
das Trevas procuram impedir esse intento por meio de uma dramática luta cósmica.
6
WILSON, Eric G. “The Dark Art”, disponível em <http://www.uga.edu/garev/spring07/wilson.pdf>
acessado em 19/01/2008.
7
IDEM, Secret Cinema: Gnostic Vision in Film, Nova York: Continuum: 2006, p. 40.
45
Show de Truman desenvolvem essa dramática narrativa dualista. À personagem
que vai incorporar esta filosofia maniqueísta daremos o nome de o Estrangeiro.
Esses são os três estados alterados de consciência que criam condições para
a irrupção da gnose, um conhecimento que brota do coração de forma misteriosa e
intuitiva. Dentro do filme gnóstico, estes três estados vão orientar os protagonistas
na busca pela Verdade. São verdadeiras transformações íntimas, salvações
individuais.
Em Vidas em Jogo (The Game, 1997) o rico banqueiro Nicholas Van Orton
(Michel Douglas) vive uma vida rotineira e solitária. Até que no seu 48º aniversário (o
ano em que seu pai cometeu suicídio) ganha um estranho presente do seu irmão
Conrad (Sean Pen): um cartão de entrada para um jogo oferecido pela empresa
Consumer Recreation Service (CRS). A princípio a natureza do jogo não está clara,
mas, aos poucos, demonstra ser uma espécie de role-playing game que se integra
totalmente na vida real das pessoas. O Jogo toma o controle da sua vida e Nicholas
torna-se vítima de uma fraude financeira que rapidamente desintegra seu império.
Nicholas é seqüestrado, largado só e sem dinheiro no México enquanto suas contas
bancárias são drenadas. O clímax chega ao momento em que Nicholas, na
cobertura do prédio da empresa CRS dispara sua arma contra as supostas pessoas
que lhe aplicaram o golpe. Inadvertidamente atinge mortalmente seu irmão Conrad
que estava com o grupo de amigos e funcionários da CRS que iriam revelar-lhe que
tudo fazia parte do Jogo. Desesperado, Nicholas joga-se da cobertura, estraçalha
um telhado envidraçado e cai em segurança em um imenso airbag. Lá embaixo
estão Conrad e amigos revelando a falsidade de tudo que aconteceu. O Jogo, na
verdade, foi um arranjo para chacoalhar o irmão e trazê-lo de volta para a realidade,
para entender a lição de que a vida deve ser mais bem aproveitada.
47
O tema Jogo aparece de forma indireta em Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001). No
filme encontramos David Aames (Tom Cruise) um rico e bem sucedido editor que
tem tudo o que quer. Charmoso e sedutor, David sente que sua vida está
incompleta. Em uma festa encontra a mulher de seus sonhos, Sofia (Penélope
Cruz). Desesperado por ter mais informações dessa mulher misteriosa não percebe
que está sendo observado pela ciumenta namorada Julie (Cameron Diaz). A
narrativa salta para frente. Encontramos David preso em uma penitenciária e usando
uma máscara prostética. Um psicólogo conversa com ele à procura da verdade por
trás de um assassinato. Ao retornar ao presente vemos David sobreviver a um
acidente de carro provocado por uma discussão com a ciumenta Julie. Seu rosto fica
irremediavelmente deformado, obrigando-o a usar esta máscara. Já se passaram
meses e nenhum cirurgião conseguiu restaurar a fisionomia de David. Sofía não
quer nem olhá-lo. Num momento de desespero, ele toma um porre e acaba
dormindo na sarjeta. Ao acordar, tudo parece sofrer uma transformação. Sofía o
ama, os cirurgiões reconstroem seu rosto, mas algo há algo estranho no ar. De uma
hora para outra Sofía desaparece e, em seu lugar, aparece o rosto de Julie, que
afirma ser Sofía, com um documento de identidade em seu nome. É nesse
momento que David cai num abismo de seu pior pesadelo, não entendendo nada do
que se passa, não conseguindo compreender se perdeu o juízo ou se há uma trama
para enganá-lo. Ao final descobrimos que David é um homem em estado criogênico
que sonha imagens que lhe foram artificialmente implantadas por uma empresa. A
única forma de escapar desta realidade virtual criada é saltando do alto do arranha-
céu para retornar à própria realidade: a vida em estado de suspensão.
Em Vanilla Sky temos o Jogo como um sonho lúcido (e lúdico) criado por uma
empresa (a LE – Life Extension), dentro do qual o controle é perdido tornando-se
tudo um pesadelo. O Jogo é uma obra do Demiurgo/companhia (em Vidas em Jogo
a companhia CRS). Como obra de um Demiurgo, é uma cópia imperfeita da
realidade. O Jogo reduz os personagens à ignorância e ao silêncio. São incapazes
de discernir as fronteiras entre mentira e verdade. Tal como proposto por Basilides,
esta situação cria o estado de suspensão, o tertium quid, a terceira alternativa entre
a ilusão e a realidade.
48
A suspensão encontra o clímax numa situação altamente simbólica nesse
grupo de filmes: o salto/morte. Em Vidas em Jogo e Vanilla Sky os protagonistas
saltam num abismo, o simbolismo da suspensão, o salto para o vazio, o silêncio, o
grau zero de sentido.
Essa Viagem pode ser tanto literal (como a jornada espiritual empreendida
pelo protagonista no Oeste norte-americano acompanhado de um guia espiritual
indígena em Homem Morto – Dead Man, 1995), uma jornada através do interior da
mente (Clube da Luta – Fight Club, 1999; Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças – Eternal Sunshine Of The Spotless Mind – 2004; Vanilla Sky), ou
através de um jogo propriamente dito (a maratona Pleasantville em A Vida em Preto
e Branco – Pleasantville, 1998 ou o jogo da CRS em Vidas em Jogo).
49
1.2. O Detetive - Grupo “Paranóia”
Na ficção científica noir Cidade das Sombras (Dark City, 1998) temos uma
nova dimensão da paranóia. John Murdock (Rufus Sewell) acorda num estranho
quarto de hotel e descobre-se sem memória e caçado por brutais e bizarros
assassinos. Enquanto tenta juntar os pedaços do passado, descobre que está numa
cidade controlada por seres conhecidos por “Os Estranhos”. A cidade na verdade é
um imenso laboratório que reproduz os aspectos de uma grande metrópole. Os
Estranhos têm o poder de colocar cada habitante em estado de sonolência enquanto
suas identidades são trocadas e todo o ambiente ao redor é alterado. Chamam isso
de “sintonizar”. Na verdade os Estranhos são alienígenas em extinção que precisam
migrar para o corpo de uma nova raça. Por isso, pretendem estudar os seres
humanos descobrindo neles o que torna o espírito durável e vital apesar das
sucessivas trocas diárias de identidades. John Murdock é mais uma dessas
identidades “sintonizadas” pelos Estranhos, com memórias pré-fabricadas
implantadas através de uma injeção aplicada entre os olhos (simbolismo esotérico
do “terceiro olho”).
A cena inicial revela o simbolismo gnóstico que o filme vai abordar: John
acorda (“nasce”) em uma banheira cheia d’água e completamente nu. Por algum
motivo passa a ter uma sensação de estranhamento e suspeita com os objetos
pessoais das memórias pré-fabricadas (chaves, as iniciais numa maleta, um cartão
postal de um lugar chamado Shell Beach). É a paranóia que criará o estado
50
incomum de consciência que resultará no renascimento para a verdade sobre a
ilusão criada por um Demiurgo. Seu poder de “sintonizar” que ele acidentalmente
descobre tem forte simbolismo: ele possui a mesma habilidade de mentalmente
alterar a realidade que o Demiurgo. O homem tem faculdades semelhantes ao Deus
imperfeito que o criou.
Onde está você? Em algum quarto de motel. Você apenas acordou num
quarto de motel. Essas são as chaves. Você sente como estivesse pela
primeira vez nesse quarto, mas talvez você esteja aqui há uma semana,
três meses. É difícil de dizer. Eu não sei. É apenas um quarto qualquer.8
Eu tenho que crer num mundo fora da minha mente. Tenho que crer
que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não consiga
lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham
o mundo permanece lá. O mundo ainda está lá? Está lá fora? Sim.
Todos nós precisamos de espelhos para relembrar a nós mesmos quem
somos. Eu não sou diferente.9
8
“Memorable Quotes for Memento” in: IMDB (Internet Movies Database) Disponível em
<http://www.imdb.com/title/tt0209144/quotes> (acessado em 24/01/2008)
9
Idem.
51
Buscar os assassinos da sua esposa implica em buscar sua própria
identidade. A paranóia o faz crer em fatos e não em memórias, certeza
epistemológica na qual baseia o sistema de anotações que fará Leonard encontrar a
verdade: “memórias podem mudar a forma de um quarto, a cor de um carro. Podem
distorcer. São apenas interpretações, não uma gravação. Memórias tornam-se
irrelevantes se tenho os fatos”10.
10
Idem.
52
pistas, objetos, verdadeiros rastros, escombros da uma identidade que se perdeu ao
longo do caminho. Em O Pagamento (Paycheck, 2003), o protagonista Michel
Jennings (Ben Affleck) é um engenheiro reverso que prestava serviços sigilosos de
espionagem industrial para grandes empresas. Faz parte do seu trabalho o
apagamento voluntário das memórias para proteção da propriedade intelectual dos
seus clientes. Em troca, recebe grandes pagamentos que lhe garante uma vida
confortável do ponto de vista financeiro e superficial do ponto de vista existencial.
Porém, Jennings propõe um enigma para si mesmo: ao receber o pagamento do
último e mais demorado serviço (três anos) descobre que renunciou ao pagamento
de 90 milhões de dólares em ações em troca de um envelope com prosaicos
objetos: óculos de sol, chave, maço de cigarros, uma bala de revólver etc. São
rastros da memória de uma vida perdida. O detetive tem que buscar a si mesmo por
meio das ruínas do passado, recuperar o que a vida lhe subtraiu.
O que Christof pretende com o seu gigantesco reality show? Tal qual o
Demiurgo de Mani, quer aprisionar o anthropos (criar um ser humano puro, original e
espontâneo, “uma estrela que inspira milhões”) para roubar dele a partícula de Luz,
tal como é descrita na gnóstica mitologia maniqueísta da batalha contra as Trevas.
Truman é um homem comum vivendo uma vida comum. Tem uma esposa
normal, vizinhos normais e um amigo normal. Mas não está feliz. Há um vazio.
Melancólico, tem fantasias escapistas com as Ilhas Fiji. Quer conhecer o mundo.
Romper com o habitual, com o papel pré-determinado de um agente de companhia
de seguros. Até que um acidente misterioso acontece: do céu azul cai, na sua frente,
11
Na mitologia gnóstica Eva não era a personagem estúpida persuadida pela serpente do mal a
tentar Adão, mas sim uma mulher sábia, uma verdadeira filha de Sophia, a Sabedoria Celestial. Foi
ela que despertou o Adão adormecido em sua prisão, segundo o Apócrifo de João. “Eu tenho o
conhecimento anterior da pura Luz; dou o pensamento do espírito imaculado ... Levanta-te e lembre-
se ... e siga a origem que sou eu ... e cuidado com o sono profundo” (WISSE, Frederick (tradução) “O
Apócrifo de João” IN: ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras,
2007. p. 109-110.
54
um spot de estúdio. Esse spot trará a suspeita de que há um mistério por trás da
rotina. Sua melancolia torna-se febril. Decide então pular para o abismo, desafiar a
morte para fugir daquela vida. À noite rouba um barco e decide rumar para o
horizonte do mar de Seaheaven. Começa o confronto final com o Demiurgo. Assim
como o Deus vingativo do Velho Testamento12, Christoff tenta matar Truman pela
desobediência criando violentas tormentas no mar cenográfico. “Isso é o melhor que
pode fazer?”, desafia Truman.
12
Para o Gnosticismo a descrição feita de Deus pelo Velho Testamento na Bíblia Sagrada
corresponderia a todas as características de Yaldabaoth, o Deus-Demiurgo imperfeito. Cf. HOELLER,
Stephen, Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005.
55
em sacrificar-se por todos. O conflito final o faz despertar desse mundo (“estou
voltando para casa”, diz Donnie).
2. A Narrativa
Igual ao mundo físico, o tempo – que subjaz, por outro lado, em todas
as manifestações do cosmos visível – é ‘mescla’ e ‘mancha’: O ciclo do
tempo não é outra coisa que a Fatalidade; o tempo pertence ao mundo
material, enquanto que o mundo superior é atemporal (e se diz
separado do primeiro por um limite que em princípio é absoluto). O
tempo é mal e constitui-se numa fonte de angústia; a gnose se opõe
tanto à doutrina estóica do tempo cíclico, circular, como à doutrina cristã
de um tempo linear que se estende irreversivelmente desde a criação O
tempo, que em si mesmo é insuficiência, nasceu de um desastre, de
uma ‘deficiência’, do desmoronamento e a dispersão no vazio, no
kenoma, em uma realidade que existia antes, uma e integral, o sonho
56
do Pleroma, da ‘plenitude’, do Aión, da Eternidade O gnóstico não
aspira mais do que ser liberado do tempo, estabelecer-se ou
restabelecer-se fora de todo devir, de volta ao estado que se supõem
existia no princípio: a estabilidade, a verdade do Pleroma, do Aión, do
ser eterno, do ser completo.13
Por isso, o filme gnóstico vai explorar formas narrativas opostas às formas
clássicas e lineares (introdução ambiental; apresentação das personagens;
nascimento do conflito; conseqüências do conflito; golpe de teatro resolutório). As
narrativas gnósticas tentarão sempre destacar a instabilidade temporal da realidade,
isto é, como por trás do aparente encadeamento linear dos eventos, escondem-se
abismos temporais e espaciais, os múltiplos universos contínuos e descontínuos e a
própria ontologia do real (ou a verossimilhança) confundida com possíveis projeções
psíquicas do protagonista.
Na seqüência inicial um trem conduz Blake (Johnny Depp) para a cidade dos
homens brancos e, no final, uma canoa leva-o para o mar a partir de uma aldeia
indígena Kwakiutl; A caminhada inicial de Blake pelas ruas da cidade observando,
assustado, as atividades urbanas (um caixão recém construído sendo carregado, um
cavalo urinando, uma prostituta fazendo sexo oral em um beco) se combinam ao
olhar desorientado de Blake, próximo da morte, quando passa pela aldeia dos
13
HUTIN, Serge. Los Gnósticos. EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 14.
57
Kwakiutl; O estranho monólogo do maquinista do trem na seqüência inicial (“olha
para a janela... isso não te lembra quando você estava no barco? E mais tarde
naquela noite você estava deitado olhando para o teto, e a água batendo na sua
cabeça, não era diferente da paisagem e você pensou: ‘por que a paisagem está se
movendo, mas o barco está parado’”) prefigura a seqüência final do filme quando
Blake ruma para o mar num bote para “atravessar o espelho” onde o mar e o céu
encontram-se.
Por exemplo, nos créditos iniciais temos imagens como fossem de uma
melancólica montagem de filmes caseiros acompanhada por uma pungente música
instrumental de piano. Uma sucessão de imagens da abastada infância de Nicholas
e do seu irmão Conrad, sempre diante do pai apático, desinteressado e desatento
com um cigarro no canto da boca. Esse conjunto de imagens sugere que Nicholas é
ríspido, frio e solitário devido à indiferença paterna e posterior suicídio cometido no
58
mesmo casarão onde mora. Fragmentos dessas filmagens caseiras surgem como
flashs em várias seqüências da narrativa sugerindo a relação direta entre os fatos
atuais e os eventos traumáticos do passado.
Nas cenas onde Nicholas está mergulhando na paranóia (por desconfiar que
qualquer coisa ou qualquer um possa estar fazendo parte do Jogo), o som ambiente
torna-se um amálgama de vozes distorcidas e ecos, reforçando que o que vemos é
a percepção da realidade pelo ponto de vista psicológico do personagem. Ou, ainda,
a seqüência onde Nicholas tenta retirar uma chave da boca de um palhaço de
madeira (que havia encontrado diante da porta do casarão na seqüência anterior)
enquanto assiste na TV um telejornal de economia, é mais um exemplo do tempo
psicológico que confunde o espectador. A transmissão é interferida pelo Jogo da
CRS e o âncora do telejornal começa a falar com Nicholas sobre as regras do Jogo
que se inicia. A seqüência chega ao inverossímil: como uma empresa capaz de tal
proeza tecnológica, é capaz de cometer erros primários ao longo da estória como,
por exemplo, esquecer uma etiqueta de preço em um lustre (o que acabou
denunciando a falsidade do interior de uma casa armada cenograficamente para
enganar o protagonista)? Ou seja, Nicholas realmente conversa com a transmissão
de TV ou tudo não passa de fruto do delírio originado por uma condição paranóica?
Desarticulações Narrativas
O filme Clube da Luta começa com uma narrativa off de Jack (Edward Norton)
onde a estória é contada pelo seu ponto de vista. Através da credibilidade que o
narrador tem na narrativa clássica (acreditamos que ele tenha a visão do todo,
diferente do espectador que está apenas começado a tomar conhecimento da
59
estória) somos levados a acreditar que ele e Tyler Durden (Brad Pitt) não são a
mesma pessoa. Supomos que o narrador já tenha um conhecimento do todo e que
introduzirá o espectador, didaticamente, à seqüência de encadeamentos dos fatos.
Mas, ao longo do filme, a narrativa oferece evidências descontextualizadas de que
Durden e Jack são a mesma pessoa. Temos uma descontinuidade espaço-temporal
que leva à fragmentação da narrativa. Esta fragmentação vai expor a própria
condição do narrador: no momento em que ele confronta-se com Tyler próximo do
final, para surpresa do espectador e do próprio narrador, descobrimos que, na
verdade, os dois personagens são uma só pessoa. Isso é, ao longo da narrativa,
acompanhamos as impressões de um narrador que tem a sua visão limitada por
uma divisão esquizofrênica da personalidade.
Figura 1
60
durante a troca dos rolos. Temos um triplo exercício de metalinguagem. Primeiro, ao
explicar ao espectador o processo de projeção que está ocorrendo no exato instante
em que vê o filme na tela. Segundo, ao explicar o processo de inserção dos frames
pornográficos subliminares em filmes familiares e, terceiro, ao surgir frames
subliminares (pornográficos e das imagens de Tyler) em vários momentos do filme a
que assistimos (figuras 2 a 4).
Figura 2 Figura 3
Figura 4
Múltiplos Universos
Temos também os déjà vus de Douglas Hall com a suposta filha do Sr. Fuller.
Ele tem a constante sensação de já tê-la conhecido em outro lugar. A certa altura, a
Srta. Fuller responde: “talvez em outra vida”. Uma resposta que se constitui em mais
uma pista sobre algo errado com aquele nível de representação.
63
Figura 7
64
Figura 8 Figura 9
Figura 10 Figura 11
Mas por que todos os mundos simulados são da cidade de Los Angeles em
diferentes épocas (1937, 1998 e 2024)? A narrativa faz uma simbólica referência a
um dos princípios do Gnosticismo Hermético de Hermes Trimegisto14: “O que está
em cima é como está embaixo, e o que está em baixo é como está em cima”15. É o
princípio da Correspondência aplicado tanto na Astronomia na antiguidade como na
Alquimia. Na verdade, um princípio hermético influenciado pela metafísica platônica
(para Platão, o mundo percebido pelos sentidos é uma reprodução distorcida das
formas puras existentes no mundo das Idéias). É marcante a evolução das cores e
texturas desde o Simulacro Um ao Três. Na primeira Los Angeles a tonalidade sépia
14
Hermes Trimesgisto, “sábio três vezes”, foi quem primeiro transmitiu o conhecimento divino e
celeste por escrito: Filosofia, Química e Cabala. Alguns afirmam que ele teria sido faraó egípcio.
Outros que ele teria escrito seus ensinamentos em hebraico, o que faz com que se suponha que
fosse hebreu. Viveu durante a época de Moisés, e sendo faraó, foi iniciado nos mistérios do
sacerdócio, preparado para exercer as funções de rei. Também Hermes é associado à Thot, deus
egípcio que era representado por um íbis. Thot simbolizava a escrita, o dom da fala e tinha também o
dom de vivificar, pois teria curado o olho do deus Horus.
15
TRÊS INICIADOS, O Caibalion. São Paulo, Editora Pensamento: 2006, p. 28.
65
denota uma insuficiência do mundo simulado. No Simulacro Dois as cores estão
mais aprimoradas, mas ainda tudo é escuro e os contornos imprecisos (como em um
filme noir). Chegando ao Simulacro Um, as cores são suaves, naturais. É a idéia
platônica do mundo perceptivo como uma pálida imagem das formas puras
presentes em um plano superior do Ser. Mas, além disso, essa pluralidade de
mundos simulados e concêntricos (“milhares”, tal como afirma o personagem Jane
Fuller) aponta para essa arquitetura cosmológica hermética do Princípio da
Correspondência. Esse princípio está também presente na cosmologia proposta por
Basilides, sobre um universo composto por 365 mundos, onde um plano desconhece
a existência do outro16.
Simulacro Três (Los Angeles de 1937) – Plano Físico. Aqui tudo é mais
grosseiro. A tonalidade sépia, as texturas. É lá que Hannon Fuller vai para fazer
sexo com mulheres mais jovens, dançarinas de um cabaré em um luxuoso hotel.
Nesse nível ocorrem as seqüências mais violentas do filme. É um mundo analógico
e sensível. Quando Ashton transcende para o Simulacro Dois, caminha pelo
16
“O sistema basilidiano concebe Criação, Poderes e Princípios sem fim, os 365 céus governados
por Abrasax, de onde originam-se os 365 dias do ano.” BUNSEN, Christian Carl J. Hippolytus and His
Age or the Beginnings and Prospects of Christianit (1852). Kessinger Publishing Rares Reprints,
2009, p. 115.
17
TRÊS INICIADOS, Op. Cit., p. 29.
66
laboratório entre os vários mainframes que compõem o hardware do sistema de
simulação. “Foi aqui que eu nasci!”, exclama maravilhado, numa espécie de êxtase
espiritual. Aproxima-se com o rosto da superfície dos mainframes e tenta sentir,
cheirar a presença do seu mundo contida ali. Não consegue compreender a
natureza da arquitetura digital dos mundos.
67
da instabilidade das identidades e da própria realidade até o encontro final entre o
psiquiatra e Henry, na ponte em que tentará o suicídio. Tudo se revela ter como
ilusões de um homem entre a vida e a morte, agonizando após um acidente
automobilístico naquela mesma ponte, dessa vez no mundo físico. Temendo morrer
e tomado pelo sentimento de culpa por achar ser o responsável pelo acidente que
matou seus pais e namorada, insiste em manter-se naquela realidade transitória.
Como vimos no filme O Décimo terceiro Andar, as cores têm uma função
indiciadora e metalingüística, isto é, ao mesmo tempo caracteriza para o espectador
a mudança dos níveis de simulação e faz referência cinematográfica dos antigos
filmes em coloração sépia. A Los Angeles de 1937 baseia-se nas memórias
cinematográficas do seu criador, adotando uma coloração correspondente aos filmes
dessa época. Dessa forma, a narrativa dos filmes gnósticos cria um subtexto: a
natureza artificial da realidade, das memórias da realidade e da própria linguagem
cinematográfica.
Um filme que apresenta essa dupla utilização narrativa das cores é A Vida em
Preto e Branco. O filme conta a estória do adolescente David (Tobey Maguire) que
tem um obsessivo interesse pela série de TV dos anos 50 Pleasantville. Vivendo
com sua mãe divorciada (Jane Kaczmarek) tem algumas brigas com sua irmã
gêmea Jennifer (Reese Whitherspoon). Numa delas, ela quer assistir a MTV com
seu namorado, justamente quando está para começar a Maratona Pleasantville. Eles
brigam pelo controle remoto até quebrá-lo. Um estranho técnico de TV (Don Knotts)
surge com um novo controle remoto, um poderoso equipamento de alta tecnologia
68
que os teletransportam para dentro da série Pleasantville, como filhos do vendedor
George Parker (William H. Macy) e sua esposa Betty (Joan Allen). Como "Bud" e
"Mary Sue," eles passam a viver numa residência em preto-e-branco em uma cidade
onde não existe sexo e a temperatura está sempre nos 22 graus. Lá a vida é sempre
prazerosa, os livros não têm palavras, os banheiros não têm vasos sanitários,
marido e mulher dormem em camas separadas, o time de basquete da escola
sempre ganha e ninguém jamais questiona nada. Mas como personagens
provenientes do mundo dos anos 90, quebram o equilíbrio daquele universo que,
aos poucos, vai assumindo um colorido tecnicolor. Desejos reprimidos vêm à
superfície e buracos vão aparecendo no estilo de vida dos anos 50. Os habitantes
de Plesantville vão mudando suas vidas por meio de estranhas e fascinantes
formas.
O surgimento das cores pontua uma meta-narrativa que o filme cria: uma
desconstrução ou uma crítica à narrativa clássica de Hollywood. Por exemplo, os
personagens esquemáticos são desconstruídos diante de acontecimentos
69
inesperados. Eles simplesmente não sabem como se comportar. Por exemplo,
sempre as bolas lançadas pelo time de basquete de Pleasantville caem na cesta.
Até o momento que David dá uma resposta inadequada ao capitão do time que
queria convidar sua irmã Mary Sue para sair. David recorda desse diálogo de um
episódio da série, mas, temeroso do comportamento da irmã ao sair com um
personagem ficcional, aconselha não ser uma boa idéia. Transtornado e catatônico,
o capitão do time lança a bola com raiva e ela não cai na cesta. Evento novo e
inexplicável. O treino pára e todos olham, perplexos, para a bola e afastam-se dela
como se pudessem ser contagiados por algum tipo de doença. A fala do
personagem (“não sei o que faria se ela não saísse comigo”) é ambígua e irônica:
não se refere apenas ao vazio emocional (o coração partido do jovem apaixonado
diante da rejeição), mas, também, a perplexidade meta-narrativa do personagem
que não sabe como dar continuidade ao plot.
Show de Truman apresenta uma sutil utilização das cores. O céu da cidade
de Seaheaven sempre está azul, as cores são saturadas, hiperreais. As texturas e
cores de Seaheaven são “cenográficas”, isto é, o filme exagera nas cores e texturas
para ficar evidente que a construção da cidade não foi baseada nas cidades reais do
lado de fora do estúdio, mas cópia da cópia de filmes publicitários.
Narrativas em abismo
O ápice dessa narrativa em abismo pode ser encontrado no filme Quero Ser
John Malkovich (Being John Malkovich, 1999). Vemos um filme cujo ator interpreta a
si mesmo como personagem que cita elementos autobiográficos (referências a sua
trajetória como ator, companhias teatrais em que atuou, fotos da sua juventude etc.).
A narrativa chega ao paroxismo de ironizar a própria condição esquizofrênica do
ator: no final, não apenas um indivíduo, mas um grupo de pessoas migra
definitivamente para a cabeça de John Malkovich. E qual o destino final da
identidade dele, hospedeiro de dezenas de pessoas ao longo da narrativa? Não é
revelado. Parece que o ator não possui mesmo identidade, é um esquizofrênico
ocupacional, decorrência da própria natureza do seu trabalho. O limite dessa
metalinguagem chega ao momento em que ele próprio atravessa o portal e entra na
sua própria cabeça. O que encontra é “o que ninguém deve jamais ver”: o
narcisismo. Todos na seqüência do restaurante (não importando o sexo) são como
cópias dele mesmo, repetindo compulsivamente seu nome (figura 12 e 13).
Narcisismo e esquizofrenia, a condição do ator. Este recurso metalingüístico serve,
mais uma vez, como alegoria dentro de um tema abstrato: a discussão da
identidade.
71
Figura 12 Figura 13
Elementos Irônicos
Ou, ainda, no filme Amnésia onde a narrativa a que assistimos é limitada pela
condição do protagonista sofrer de perda da memória de curto prazo.
73
enviadas para si mesmo para recuperar as memórias apagadas, voltar ao seu amor
e denunciar a perigosa e ilegal pesquisa na qual a Allcom está envolvida.
75
O paradoxo do futuro no filme gnóstico
Voltamos agora ao tema que abriu esse capítulo: tempo e narrativa. Se para o
Gnosticismo o tempo é ilusão, fonte de engano e alienação, como o futuro pode ser
representado nesse grupo de filmes? Ou seja, se o encadeamento linear dos
eventos, como uma seta que aponta do passado para o futuro, é uma ilusão que
aprisiona o espírito, de que maneira ficções-científicas como O Pagamento e Matrix
podem representar os episódios das previsões e profecias? Resposta: através de
paradoxais previsões e profecias “sem futuros”.
Em O Pagamento, Jennings descobre que as pesquisas que a Allcom estava
envolvida tinham a ver com uma máquina que faria previsões do futuro a partir de
uma lente curva que simularia a própria curvatura do Universo. Seu inventor foi
assassinado a mando da Allcom e ele, Jennings, como um engenheiro reverso, foi
encarregado de recriar a máquina a partir de um protótipo. A certa altura da
narrativa, perplexo, Jennings descobre que a máquina que construíra, na verdade,
era uma irônica forma de prever o futuro. Através de um mecanismo de profecia
auto-realizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas por que a sua
divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato. O futuro como profecia auto-
realizadora é a própria configuração de um evento circular, tautológico: o futuro não
é previsto como um fato objetivo que está em algum lugar à frente no tempo, mas
porque a sua divulgação evoca um novo comportamento que acaba confirmando a
“profecia”, na verdade, uma falsa premissa que se torna verdade.
18
BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis: Vozes,
1992, p. 235-240.
77
salvará a ambos numa seqüência que terminará no duelo final com o Agente Smith.
Embora não confirme ser ele, Neo, o Salvador, de forma indireta cria circunstâncias
para que ele se torne como tal. Ou seja, o Oráculo nada fala sobre o futuro, mas
apenas insere na previsibilidade dos códigos da Matrix o elemento do acaso através
da profecia que se auto-realiza.
Além disso, o Oráculo não quis admitir que Neo era o Salvador porque,
curiosamente, as profecias auto-realizadoras parecem não funcionar com anúncios
de natureza positiva ou promissora19. Mais um motivo para conseguir, de forma
indireta, que Neo assumisse o papel de O Escolhido na estória. Certamente, se o
Oráculo dissesse para Neo que ele era, de fato, O Escolhido a profecia não se
realizaria.
Concluindo, a partir destes dois exemplos (os únicos filmes que tratam o tema
do futuro dentro do nosso corpus de análise) podemos lançar a hipótese de que os
filmes gnósticos privilegiam muito mais o tema do passado do que do futuro. Na
verdade, o Gnosticismo procura libertar-se do devir e retornar ao estado do princípio
de tudo: a estabilidade e a verdade do Pleroma, do ser eterno, do ser completo. Por
isso, parece que o tema do passado é muito mais confortável do que tratar sobre o
futuro. Muitos filmes com temáticas gnósticas abordam o retorno ao passado como
uma tentativa de alterar o presente, como, por exemplo, o filme O Efeito Borboleta
(The Butterfly Effect, 2004). Dessa maneira, quando o futuro é tratado, somente
pode ser subordinado ao tempo do presente, isto é, o futuro como desdobramento
de expectativas já contidas no tempo presente.
3. Os Personagens
19
Cf. Idem.
78
3.1. O Demiurgo
20
HOELLER, Stephan. Op. Cit., p. 205.
79
Na seqüência inicial o foguista da locomotiva, após ouvir o motivo de Blake ir
Machine City e apresentar a carta de garantia de emprego adverte:
21
“A Hipóstase dos Arcontes”, In: ROBINSON, James M., Op. Cit., p. 146.
80
É a segunda característica do Demiurgo: ela está à procura do elemento que
anima o cosmos material, a Luz que está mesclada com a escuridão. Originada nos
reinos das alturas (o Pleroma), esta luz mescla-se na escuridão porque o ser
humano, inconscientemente, a detém. Por isso, o Demiurgo tenta aprisioná-lo para
extrair dele esse elemento que, organizado pelos princípios corrompidos do cosmos
físico, completará a lacuna da sua criação. Podemos citar três filmes que descrevem
simbolicamente este desejo do Demiurgo: Cidade das Sombras, Matrix e O Quarto
Poder (Mad City,1997) .
Em Cidade das Sombras, tal qual como nas mitologias gnósticas narradas por
Mani, o Demiurgo aprisiona os seres humanos no cosmos material para extrair dele
as partículas de luz que descende do Anthropos original, o ancestral de todos os
seres humanos. Anteriormente, Anthropos foi enviado a este mundo para derrotar o
demiurgo, porém ao ser derrotado é mantido como prisioneiro. No filme esta
narrativa mítica é representada na busca dos Estranhos pelo segredo da alma
humana. Toda a cidade constituiu-se num experimento para descobrir, a partir de
sucessivas trocas de papéis e identidades dos seus habitantes, o elemento
duradouro na alma humana: o espírito. Como uma raça em extinção, eles precisam
encontrar uma nova raça cuja essência seja eterna para que possam migrar suas
consciências para esse novo receptor. Seus rostos pálidos, frios, em longos
sobretudos negros sugerindo uma referência imagética com Nosferatus, sugerem
uma raça em decadência pela apatia e depressão, necessitando de uma nova
energia que os anime, algo vital.
Já olhou para tudo isso de cima? Maravilhado com sua beleza, sua
genialidade? Bilhões de pessoas, vivendo suas vidas, distraídas. Você
sabia que a primeira Matrix foi criada para ser um mundo humano
perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes? Foi um
desastre. Ninguém aceitou o programa. Perdemos safras inteiras.
Alguns acham que não tínhamos a linguagem de programação para
descrever o seu mundo perfeito. Mas eu acho que, os seres humanos
definem a realidade a partir da desgraça e do sofrimento. Então o
mundo perfeito era um sonho do qual o seu cérebro primitivo tentava
acordar.
82
demitido do seu trabalho como segurança, retorna ao local do seu emprego (Museu
de História Natural) para tentar entrar em um acordo com sua patroa (a curadora do
museu Mrs. Banks – Blythe Danner). Intencionando intimidá-la, Sam chega armado
e com uma sacola repleta de dinamites. Max Breckett (Dustin Hoffman – um
jornalista em baixa após ser punido pela rede de TV onde trabalha com o
rebaixamento a uma emissora regional) está no museu quando, acidentalmente,
Sam dispara sua arma atingindo outro segurança que sai para a rua cambaleando.
Em reação, Sam toma a todos no museu como reféns (crianças que visitavam o
museu naquele momento e Mrs Banks). Max tem em mãos um furo de reportagem
que poderá fazê-lo novamente retornar ao jornalismo nacional da emissora. A partir
daí, Max fará de tudo para conduzir a história à repercussão nacional, criando um
circo midiático em torno do museu. Sam, um ingênuo e comum morador de uma
típica cidade do interior, vê-se enredado numa teia de interesses que tem a mídia
como o centro de tudo.
Por que a mídia interessa-se pelo drama pessoal de Sam Bailey? Aos 35
anos e sem emprego sente-se acabado e sem perspectiva. Esconde da esposa a
perda do trabalho, tentando resolver tudo por conta própria. Melancólico e impotente
diante dos fatos da vida (não tem estudo e não se acha inteligente ou esperto), vê
na mídia (personificada pelo “rapaz das notícias”, Max Breckett) o único caminho
para uma saída. Max fala que ele é popular e simpático para a opinião pública. Para
Sam, Max torna-se seu agente pessoal. Pensa em um livro sobre a história, um
telefilme e até um programa sobre pesca, o “Cantinho de Pesca do Sam”. Tal qual
Max, Sam é traído pelo jogo midiático. Sam é ingênuo e espontâneo, matéria-prima
necessária em qualquer show midiático para, em seguida, esta essência íntima ser
corrompida pelo script e protocolos do roteiro ficcional.
83
Sam: nesse caso poderia animar um programa de televisão?
Max: por que não? Já é até famoso!
Sam: sim, mas famoso no mal sentido
Max: Não tem importância em televisão. Sabem quem é.
22
HOELLER, Stephan A., Op. Cit., p. 52
84
no Simulacro Três (sua esposa desconfia que ele tenha uma amante). David, o
artífice do Simulacro Dois (a Los Angeles de 1998), igualmente perde o controle de
si mesmo inebriado com o poder, como descreve sua esposa Jane:
Jane: Ele era um cara decente, mas algo aconteceu. Ele começou a
usar a simulação como seu brinquedo pessoal.
Douglas: Como Fuller com as garotas.
Jane: Ele se tornou um deus e isso o corrompeu. Ele começou a gostar
de matar. Começou a abusar.
3.2. Os Arcontes
Figura 14
Figura 15 Figura 16
86
Em o Décimo Terceiro Andar, dois personagens procuram manter o status
quo do nível de simulação da Los Angeles de 1998: Whitney (programador de
computadores) e o detetive McBain. A posição deles em momentos cruciais da
narrativa é a da manutenção do status quo ou, simplesmente, a de ignorar a
Verdade, preferindo a manutenção da ilusão em seu nível de mundo simulado.
Whitney, programador de computadores da empresa de pesquisas de Fuller,
simplesmente ignora o horror moral demonstrado por Douglas Hall ao retornar do
Simulacro Três:
Para Whitney, tudo não passa de “um monte de circuitos eletrônicos”. Sem
compreender a dimensão moral e existencial do que fazem, acredita que Douglas
teve apenas uma “viagem ruim” (na verdade, a consciência de Douglas quase morre
nas mãos da unidade correspondente de Whitney - Ashton). É o princípio do delírio
de poder científico: sem perceber as limitações existenciais, reduz a realidade a
“circuitos eletrônicos”. Já o personagem do detetive McBain opta pela ilusão. A
investigação sobre Jane Fuller conduz à descoberta da Verdade, mas apesar disso,
prefere que Jane vá embora para o seu mundo e deixe todos em paz na Los
Angeles de 1998. Por quê? Pragmatismo? Para manter sua posição de poder e
autoridade em Los Angeles? Uma coisa é certa: McBain prefere o aparente realismo
da simulação a qualquer reflexão metafísica ou espiritual a cerca da sua condição.
Com isso, ajuda a manter o status quo.
Mas o filme que mais apresenta todas as dimensões dos arcontes é o Show
de Truman. Os personagens arcontes reúnem as características tal qual descritas
pela mitologia gnóstica: ilusão, sedução e inebriamento pelo poder. Os técnicos da
sala de controle localizada na lua artificial do céu de Seaheaven demonstram um
evidente inebriamento pelo poder de manipular e controlar como demonstrado em
seqüências como, por exemplo, quando observam o comportamento excêntrico de
Truman diante do espelho do banheiro (um lugar íntimo para um indivíduo no mundo
“real”) fazendo ironias e piadas. Meryl, a esposa de Truman, o seduz com a vida
conjugal e o objetivo de terem um filho. A cada desejo de Truman de sair de
Seaheaven, viajar e conhecer o mundo, Meryl joga-se em Truman e fala em ter um
filho.
3.3. Sophia
88
e desceu aos reinos do caos e da alienação. Tendo ficada afastada da Luz do Pai
Primordial, a viu refletida na profundeza do Abismo. À distância, pensou que fosse a
Luz primordial do Pai. Para lá viajou, afastando-se cada vez mais nas profundezas
até que foi finalmente interceptada pelo Limite (Horos). A partir desse ponto ocorre
uma profunda divisão na natureza de Sophia que corresponderá, segundo Hoeller, a
um importante arquétipo da personalidade humana, bastante explorada no tema da
busca da gnose pelos protagonistas dos filmes gnósticos:
23
HOELLER, Stephan A. Op. Cit., PP-50-51.
89
enlouquecida. Jane rebela-se contra David, o Demiurgo que torna o sistema de
simulação num brinquedo pessoal. Jane apaixona-se por Douglas:
Jane apaixona-se por Douglas antes mesmo dele existir. Na sua concepção,
as partículas de luz (bondade, integridade) já estão nele (já estavam
algoritmicamente programadas nas características da unidade para aquele mundo
simulado). Tal qual o homem, (originado de um Anthropos proveniente do Pleroma,
derrotado e aprisionado nesse cosmos) que possui partículas de luzes que anseiam
pela libertação da tirania do Demiurgo, é ajudado por Sophia que o ama e o auxilia
na busca pela gnose. Assim como Jane observa Douglas desde que a simulação foi
criada, igualmente Sophia observa o caminho traçado pelo homem dentro do
cosmos material desde o início dos tempos.
90
mortalmente pelo tiro. Blake, também atingido seriamente, foge para a sua jornada e
purgatório que conduz a sua ascensão espiritual.
91
Dentro dos filmes analisados é marcante a relação inicial do protagonista com
Sophia: déjà vus, uma estranha ou inexplicável atração, relação de amor e ódio. O
protagonista sempre sente uma atração ou um interesse inexplicável pela
protagonista que representa Sophia na narrativa.
Figura 17
4. Temas
92
protagonista a procura de um centro espiritual. Jogo e Viagem estão cercados de
toda uma simbologia arquetípica, explorada pelos filmes gnósticos.
No western Homem Morto o Jogo é representado pela caça que move toda a
estória: os caçadores de recompensa no encalço de Blake por supostamente ter
assassinado a sangue frio o filho do poderoso Demiurgo Dickinson. A não ser pelo
alerta dado pelo seu companheiro de jornada, o índio Nobody, de que estavam
sendo seguidos pelo fato de “o cheiro do homem branco preceder a sua presença”,
Blake não tem consciência disso e nem do destino ou propósito da sua jornada com
o guia indígena.
24
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 2009, p. 518.
25
Ibid, p. 951.
93
O estado de suspensão é a gnose final do personagem. Num salto de fé,
entrega-se aos propósitos de Nobody (através de uma barca, encaminhá-lo para o
“espelho das águas” para que faça a transição para o “lugar de onde todos os
espíritos vieram e para onde todos retornam” – o simbolismo do Pleroma) deixa-se
ser levado pelo barco para o seu destino. Depois do estado de confusão mental na
chegada à aldeia Kwakiutl representado numa seqüência que se espelha com a
primeira seqüência do filme, temos um longo fade-out para vermos Blake, já com
roupas rituais, deitado na areia da praia ao lado do barco. Um take longo de mais de
meio minuto, em silêncio, apenas ouvindo-se o barulho do mar. O grau zero dos
pensamentos, o estado de suspensão, como se o ritmo hipnótico, tal qual um mantra
ao longo do filme inteiro,\ culminasse com o vazio total de pensamentos e o estado
de suspensão desejada para o protagonista ser conduzido pela corrente das águas.
O salto final vem por meio de uma decisão que Neo tem que tomar entre a
sua vida e a de Morpheus. Neo decide salvar Morpheus, aprisionado em um prédio
fortemente guardado na Matrix para interrogatório, apesar de todas as evidências de
que é impossível retirá-lo de lá. Nunca os humanos lutaram contra um agente. Numa
seqüência marcada por saltos do alto de prédios e a quase queda do helicóptero,
temos a preparação para o duelo final de Neo com o agente Smith. Ao perceberem
que Neo não está fugindo e que fica para enfrentar o Agente, Morpheus fala: “ele
está começando a acreditar”. Entendemos que se refere à autoconfiança, fé em si
mesmo, necessária para Neo considerar-se o Salvador. Mas, é muito mais do que
isso. O que Morpheus chama de “acreditar” é buscar o silêncio interior, mesmo na
maior seqüência de ação. Isso é representado após o “salto” final (para a morte).
Após Neo ressuscitar (simbolicamente retornar do silêncio, do vazio mental), ele
finalmente vê o que é a Matrix: uma seqüência de códigos fonte. Deixa de ser mero
usuário, ou seja, deixa de manipular uma mera interface chamada realidade para
entrar no domínio dos códigos-fonte. No filme, é o domínio do sagrado, da gnose. As
seqüências em bullet time ao longo do filme durante as lutas de Neo, são simbólicas
por representarem esses breves momentos de grau zero do pensamento que ele
consegue alcançar ainda de forma efêmera.
95
“O quanto conhece a si mesmo se nunca entrou numa luta?”. Esta questão
formulada por Tyler no filme Clube da Luta dá a dimensão simbólica do jogo da Luta
para a narrativa. O Clube da Luta é o tema central em torno do qual todos os
caminhos de busca da gnose partem. De forma basilidiana, o caminho para
encontrar a verdade está dentro de si mesmo, na procura do silêncio interior pela
negação da linguagem, do pensamento, pela procura do silêncio e do grau zero de
sentido. A Luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os
pensamentos e a racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se
convertam no oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da
consciência. Faz parte dessa emancipação o descarte de todo que é externo ao ser:
“Você não é a sua conta bancária. Nem as roupas que usa. Você não é o conteúdo
da sua carteira. (...)”. A partir do momento em que o apartamento de Jack é
misteriosamente destruído por um incêndio, acaba a sua vida consumista. Muda-se
para o casarão de Tyler, caindo aos pedaços, e, em pouco tempo, estão se
esmurrando na frente de um bar. Jack vai perdendo tudo, do apartamento ao seu
próprio corpo. “Isso é liberdade. Quando perde todas as esperanças, então você
está livre”. A dor impingida a si mesmo no Clube da Luta é o último descarte para
alcançar a gnose: o distanciamento da dor do próprio corpo, a disciplina e
concentração necessária para alcançar o silêncio interior. Este parece ser o caráter
marcial do Clube da Luta, um jogo onde nem a individualidade mais interessa
porque “todos fazemos parte de um mísero composto universal”, como anuncia
Tyler.
96
“Siga o coelho branco”
Chame a Alice
Quando ela estiver apenas pequena.
Quando os homens no tabuleiro de xadrez
Levantarem e lhe disserem onde ir,
E você consumira há pouco um tipo de cogumelo
E sua mente estiver movendo-se lentamente,
Pergunte à Alice;
Eu acho que ela saberá.
Quando lógica e proporção
Tiverem caído por terra
E o Cavaleiro Branco estiver falando ao contrário
E a rainha vermelha "corte a cabeça dela!"
Lembre-se o que o rato silvestre disse:
"Alimente sua cabeça. Alimente sua cabeça.
97
alusão da necessidade de Neo despertar do próprio sono no qual os habitantes da
Matrix estão. Em seguida vem outra linha de mensagem: “siga o coelho branco”.
São as palavras que conduzirão Neo a uma viagem sem volta para a verdadeira
realidade. Um grupo de amigos chega ao apartamento de Neo e observa que um
deles, a garota, tem uma tatuagem de um coelho branco. Prontamente aceita seu
convite para se divertirem em uma boate. Lá encontrará Trinity que alertará sobre os
perigos que irá correr se quiser descobrir, afinal, o que é a Matrix.
26
Ibid. p. 541.
98
e monstros dos tempos antigos27, o avião nessa seqüência do Clube da Luta tem
evidente significado simbólico.
27
“Referimo-nos a aves selvagens como símbolos de independência ou de libertação. Mas hoje
poderíamos, do mesmo modo, falar em aviões a jato ou em foguetes espaciais, pois são encarnações
físicas do mesmo princípio de transcendência quando nos libertam, ao menos temporariamente, da
gravidade.” HENDERSON, Joseph L. “Os Mitos Antigos e o Homem Moderno” in: JUNG, Carl Gustav.
O Homem e seus Símbolos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 157 e Passim JUNG, Carl
Gustav. “Um Mito Moderno Sobre As Coisas Vistas no Céu” in : Obras Completas, V. X/4,. Petrópolis:
Vozes, 1991.
28
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Op. Cit., p. 105.
99
No filme O Pagamento o tema principal do filme é a memória. Como
engenheiro reverso que prestava serviços sigilosos de espionagem industrial para
grandes empresas, fazia parte do seu trabalho o apagamento voluntário das
memórias para proteção da propriedade intelectual dos seus clientes. Em troca,
recebia grandes pagamentos que lhe garantia uma vida confortável do ponto de
vista financeiro e superficial do ponto de vista existencial. Porém, Jennings propõe
um enigma para si mesmo: ao receber o pagamento do último e mais demorado
serviço (três anos) descobre que renunciou ao pagamento de 90 milhões de dólares
em ações em troca de um envelope com prosaicos objetos. Sem lembrar-se do que
fez, se vê perseguido pelo FBI e por capangas de Allcom que pretendem matá-lo. Ao
aparentemente renunciar ao pagamento em nome do amor por Rachel que, sabia,
seria esquecido, o filme tematiza a efemeridade/fragilidade das memórias diante do
devir temporal. Para a tradição gnóstica o homem é prisioneiro do tempo. O tempo é
fonte de angústia porque resultante de um cosmos imperfeito, deficiente, resultante
do desastre que foi a criação do cosmos material pelo demiurgo, aprisionando o
homem no esquecimento quanto a sua verdadeira origem. Tempo é esquecimento.
É o tema da memória que se associa ao esquecimento que é imposto por um
demiurgo. No filme, simbolizado por Hethrick, CEO da Allcom.
Assim como no filme Blade Runner, baseado em obra de Philip K. Dick, onde
o replicante lamenta o seu desligamento definitivo perguntando-se para onde iriam
suas memórias (“Se perderão no tempo... como lágrimas na chuva”), aqui os
personagens tentam reter as experiências para evitar o esquecimento. Isso pode ser
observado no diálogo entre Jennings e Rachel em que ela relembra que ele lhe
fizera uma estranha pergunta: “Se eu soubesse que não daríamos certo nós dois
juntos ainda assim ficaria com você?”
100
Rachel: “Não trocaria nossos momentos por nada. É isso o que somos; a
soma das nossas experiências. Além disso... as melhores coisas na vida são erros
enormes”
101
Hethreck observa Jennings retirando do envelope o cartão para entrada
no campus da Allcom
Maya: esse é o cartão do campus. Tem que dar para mim. Se não
confiar em mim estaremos perdidos
Close no rosto de Jennings que olha para ela e para o envelope
pensativo e desconfiado. Titubeante, Jennings entrega o cartão para
Maya
Maya coloca o cartão na sua bolsa sob o olhar desconfiado e, agora,
perplexo de Jennings: Não se preocupe, ficaremos juntos.
Maya se levanta, inclina-se sobre Jennings e beija-o na boca. Corte
seco num plano em cores desbotado (representando memórias
passadas que persistiram ao apagamento,) com um beijo na verdadeira
Rachel.
Maya: Michael, eu te amo
Jennings olha atentamente para os olhos de Maya/Rachel. Num fade-
out mescla-se com os olhos da verdadeira Rachel. Jennings tem um
insight e pergunta; “Qual o meu time de beisebol favorito?” (figuras. 20 a
23)
Maya: isso não importa. (Resposta que vai desmascará-la).
105
Em seguida Dr. Foster convence Athena a encontrar-se com Henry. Ambos
começam a descer uma escada estreita em espiral (figura 26). A descida acelera-se,
os degraus não acabam e a escada parece não ter fim. De repente Athena
desaparece numa das curvas. A escada parece não ter fim. Grita, chamando-a. A
atmosfera é claustrofóbica. Dr. Foster tropeça, cai e perde os sentidos. Após
acordar, sobe as escadas para encontrar Athena no palco, ensaiando a mesma fala
da peça de Hamlet ouvida anteriormente como se nada tivesse acontecido. Mais
tarde há outra seqüência com escada em espiral: após Lila (namorada do Dr. Foster)
descobrir que todos os quadros que pintara tinham a assinatura de Henry, desce
aterrorizada as escadas: a paranóia crescente de seu namorado parece contaminá-
la também (figura 27). A seqüência vem após uma fala do Dr. Leon: “O budista
estava certo. O mundo é uma ilusão”.
Figura 24 Figura 25
Figura 26 Figura 27
29
Ibid., p. 398.
30
“Os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento
integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que
há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas)
corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão
pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto
107
uma melancolia espiritual ou metafísica, a de uma pessoa que acha que não
pertence àquele mundo, de ser um estranho no meio de rostos familiares. Mas,
Cristof, o diretor do reality show, tenta racionalizar a melancolia de Truman
procurando enquadrá-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa pela morte
do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma forma histérica
(a fobia em passar sobre superfícies aquáticas e paranóia), diminuição da auto-
estima e cessação de interesse pelo mundo. Truman luta para entender que sua
melancolia é muito além do que a natureza narcísica que Marlon tenta explicar,
ditado por Cristof através de um aparelho de ponto em seu ouvido. “Acho que estou
envolvido em alguma coisa grande”, tenta explicar a Marlon. “Talvez algo esteja para
acontecer comigo. Já pensou nisso Marlon, como se sua vida fosse construída para
algo?”, sente Truman que, passo a passo vai convertendo a melancolia em um
estado ativo e febril de paranóia.
uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como melancolia) ou punir-se numa forma
histérica (por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles
tiveram. A identificação que aí ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de
pensar, e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.” FREUD, S. “Carta Datada de 31 de
maio de 1897”, In: Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 275.
108
religiosos. Donnie também descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser
revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal
através de um vórtice e mover-se livremente por outros planos alterando destinos
pré-determinados. Após a morte de sua namorada e, mais tarde, da sua mãe na
queda de um avião sugado por outra dimensão temporal, Donnie retorna no tempo
para a noite em que viu Frank pela primeira vez. Dessa vez Donnie fica no seu
quarto e morre na queda da turbina. Um grande sacrifício que Donnie assume para
que desperte desse de mundo e altere o fluxo temporal – sua namorada e sua mãe
irão escapar da morte.
A realidade multifacetada
31
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Petrópolis: Arara Azul, 2002, tradução: Clélia
Regina Ramos, p. 3.
32
Idem.
110
situações metalingüísticas que irão acirrar ainda mais essa sensação de irrealidade
ou de estar sonhando acordado.
112
real (paradoxalmente, vai encontrar isso na supra-realidade de uma sitcom). O
Demiurgo vê que a inocência que quer ter sob seu poder está saindo do controle e
tenta, desesperadamente, convencer David a retornar ao mundo real (“você não
merece estar nesse paraíso”, grita o Sr. Técnico de TV – figura 21).
113
perigoso efeito exponencial, já iniciado por Hannon Fuller ao entregar a carta ao
barman Ashley no Simulacro Três: um efeito exponencial de tomada de consciência
sobre a irrealidade dos sucessivos mundos causando um perigoso desequilíbrio ao
universo. Todos os mundos são programados para não adquirirem consciência
sobre suas próprias naturezas. Mas, como na epígrafe da famosa frase de
Descartes colocada na abertura do filme (“Penso, logo existo”), a ciência leva os
nativos do Simulacro Dois à autoconsciência (tornam-se autônomos e autodidatas
como os nativos do Simulacro Três). A ciência, paradoxalmente, conduz a uma
experiência que podemos interpretar como espiritual ou gnóstica: a percepção de
uma realidade além da atual. No caso, mais do que isso: a natureza de simulação de
qualquer realidade desse universo. Uma simulação produzida por um artífice que
tenta programar a todos para não perceberem essa natureza corrompida do
universo.
114
pessoas são reais”. Com a descoberta da dimensão da supra-realidade, seu
questionamento torna-se metafísico e espiritual.
Figura 28 Figura 29
5. Simbolismo e Iconografia
5.1. Acordar/Despertar
116
deformação em lente grande angular reforça este estado do protagonista. Na
verdade Dr. Foster faz parte do sonho de Henry, ou melhor, é o próprio Henry em
busca da superação do sentimento de culpa que o impede de aceitar a morte como
passagem.
117
plano em close com Nicholas levantando a cabeça ao lavar o rosto ao acordar pela
manhã. O plano é altamente simbólico: após as cenas de filme caseiro iniciais, rosto
entre as mãos e erguendo a cabeça é como se estivesse ressurgindo da uma falta
de ar, sufocamento ou afogamento. É como se necessitasse renascer das cenas
traumáticas de um pai ausente mostradas na abertura dos créditos (figuras 30 e 31)
Figura 30 Figura 31
Quando Nicholas pega um taxi para retornar para sua casa, o motorista, mais
um personagem do Jogo, acelera e salta do carro que cai nas águas da baia de São
Francisco. Graças à manivela que lembra estar no bolso de seu paletó consegue
baixar o vidro da porta. Consegue sair do táxi e, quase sem fôlego, vem à tona. Mais
um simbolismo de renascimento (figura 32).
Figura 32
118
Figura 33 Figura 34
No filme O Pagamento o primeiro plano começa com um zoom out que inicia
num plano em close nos olhos de uma personagem virtual em uma tela
tridimensional que, em seguida, fala: “hora de acordar” (figuras 35 a 37). Uma
palavra de ordem gnóstica, uma variação de “abra os olhos” como em Vanilla Sky.
Aparentemente mero detalhe em uma exposição de tecnologia. Jennings observa a
tela e a exortação. Mas este apelo ao personagem ganha sentido ao longo da
narrativa ao vermos que a vida de Jennings é fútil e materialista: em troca do
apagamento da memória de grandes períodos da sua vida, ele recebe grandes
gratificações financeiras. Na verdade, o apelo é para ele. “Percebeu que nunca me
perguntou o que vejo quando apago suas memórias?” Pergunta Shorty (técnico
responsável em apagar suas memórias) a Jennings. “Minha vida se constitui
basicamente de memórias dos melhores momentos. É uma vida boa. O que você
apagou não importa.” Para Jennings, o que importa é receber o pagamento e
aproveitar as benesses da vida.
119
Figura 35 Figura 36
Figura 37
5.2. Olho
Oh Deus de luz, alma querida! Quem foi que obscureceu teu olho
luminoso? Cai sem cessar de uma miséria para outra, e nem sequer o
advertem... Quem te conduziu ao exílio, da tua magnífica terra divina, e
te mantém nesta sombria prisão 34
Figura 38 Figura 39
Figura 40 Figura 41
O olho deve ser aberto para revelar o “homem interior”, a centelha de Luz, a
parte da alma que mantém contato com o mundo superior. Faz parte do dualismo
33
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1974, p. 421.
34
Texto maniqueo citado por PETREMENT, S. Le Dualisme Ches Platon, lês gnostiques et lês
manichéens. Paris: PUF, 1974 , p. 185.
121
platônico que vê a alma dividida em duas partes: a que mantém contato com os
reinos das Idéias e a parte que contata o mundo físico35. Da mesma maneira, o
simbolismo do olho seria dotado da mesma dualidade. Para o Gnosticismo, os olhos
podem simbolizar, de um lado, a visão interior, a iluminação; do outro, a ilusão: os
olhos enganam, criam ilusões, aceita o mundo como um dado perceptivo. Essa
dualidade manifesta-se no filme O Décimo Terceiro Andar. Os olhos são os índices
de que está ocorrendo, em dado momento, a transferência de consciência dos
personagens entre os níveis de simulação. Nos olhos surge o túnel (em forma de
wormhole) que representa o percurso traçado pela consciência de um nível para
outro (figuras 42 e 43). Nos olhos vemos a transcendência entre mundos. Por outro
lado, o olho pode ser fonte de engano como, por exemplo, no fato de os habitantes
da Los Angeles de 1937 não perceberem a coloração sépia e texturas imperfeitas.
Aceitam como um dado perceptivo natural as limitações e imperfeições da
simulação.
Figura 42 Figura 43
35
Cf. HUTIN, Serge. Op. Cit.
122
A marionete é o símbolo principal em Quero Ser John Malkovich. Além do
simbolismo óbvio presente na narrativa (Craig - John Cusack - utiliza-se da sua
habilidade de titereiro para manipular identidades e a marionete como paralelo à
condição manipulada de John Malkovich), há um significado mais profundo: as
marionetes são descendentes diretos dos antigos ídolos divinos, adorados e
animados pelos seus sacerdotes. Victoria Nelson demonstrou como na cultura
popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com
o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de
uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus36.
Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema
simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou
seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as
marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs,
ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano. Só
que, agora, com um ingrediente a mais: a criação de uma mediação para a qual a
consciência humana se transfira e transcenda a prisão da carne. O anseio humano
em migrar para mediações idealmente modeladas. O filme simboliza esse anseio
pelas mediações em diversos momentos. Podemos observar isso em dois diálogos.
Após Maxine transar com Malkovich sabendo que Lotte estava na sua cabeça,
provocativamente comenta com Craig:
36
NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001.
123
em Maxine. Ou a aspiração pelas mediações decorre da negação da condição física
atual:
Primeiro cliente da JM Inc.: Quando dizem que posso ser outro o que
querem dizer?
Craig: É exatamente o que dissemos. Podemos colocá-lo no corpo de
outra pessoa por 15 minutos.
Primeiro cliente da JM Inc.: Posso ser quem eu quiser?
Craig: Bem, você pode ser John Malkovich.
Primeiro cliente da JM Inc.: Perfeito! É minha segunda escolha, mas é
maravilhoso. Sou um homem gordo. Sou triste e gordo.”
124
Como afirma Bauman37, as profundas mudanças econômicas e gerenciais do
mundo contemporâneo nos força a viver como jogadores que devem experimentar a
identidade como “novos começos”, ou seja, trocar identidades como trocamos de
roupas. Portanto, no filme, Craig passa de titereiro talentoso a arquivista na
Lestercorp (por ter mãos rápidas) e, após o trabalho, explora o “bico” de ganhar
dinheiro com o portal que conduz à cabeça de John Malkovich. Mas, nessas três
situações, há uma coisa que as une: a busca de uma mediação que o faça
transcender a sua vida frustrada e melancólica: no começo, as marionetes e, no
final, a cabeça de John Malkovich. No primeiro caso, a transferência é simbólica, no
segundo é literal: transferir sua consciência para a Mediação. A narrativa associa
esta transferência a um aspecto religioso ou místico: a reencarnação. Esta
aproximação que o filme estabelece entre Identidade, Mediação e Reencarnação
lembra algumas considerações de Erik Davis sobre as transformações do
Gnosticismo na passagem para o século XXI:
37
Cf. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
38
DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information London: Serpent Tail,
2004, p. 406.
125
Demiurgo para nos manter presos nesse mundo através do esquecimento.
Condenados a recomeçar sempre do zero, não somamos conhecimentos,
esquecemos por subtração. O grupo de Lester alcança a imortalidade não mais
reencarnando, mas transferindo a consciência para um “corpo recipiente” na sua
fase mais madura em termos de consciência e formação mental. Eles têm até a
meia-noite do dia designado para transferirem-se, pois, caso contrário, “seriam
absorvidos, presos, enjaulados no cérebro do anfitrião, impossibilitado de controlar
qualquer coisa, sentenciados a ver o mundo através dos olhos de outra pessoa”,
como afirma Dr. Lester. Ou seja, a prisão da Reencarnação, tal qual denunciada
pelo Gnosticismo. Enquanto Craig, Maxine e Lotte querem transferir-se para a
mediação pelo desejo de ver o mundo através dos olhos de outras pessoas, o grupo
de Lester quer mais do que isso: mantendo intacto o núcleo da consciência, pular de
um corpo para o outro alcançando a imortalidade e mantendo a identidade.
39
Cf. “Tecnognose: o ‘gnosticismo tecnológico’” intertítulo da Introdução dessa dissertação.
126
5.4. Água
40
CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Op. Cit., p. 15.
127
mundo desconhecido e espiritual, conduzido pelos ensinamentos enigmáticos de
Nobody.
128
limpeza, como um dilúvio que leva tudo embora. Representativo o final da
seqüência: um plano geral de Pleasantville, do alto, com um arco-íris sobre a cidade.
Como vimos anteriormente o sabor gótico dos filmes gnósticos faz esses
aproximarem-se do gênero noir. Podemos perceber esta aproximação
principalmente em aspectos simbólicos e iconográficos.
129
Por exemplo, no filme O Décimo Terceiro Andar a iconografia do filme faz
diversas referências ao filme noir. O aspecto simbólico principal dessa aproximação
está na representação da inconsistência, incerteza ou imprecisão da realidade ou
daquilo que percebemos como uma realidade dada. A seqüência inicial do filme,
com trilha em jazz pungente e melancólico, com a voz do pensamento do
personagem enquanto escreve uma carta. Plano geral do teto do quarto mostrando
a mesa onde o personagem redige a carta. Típico plano dos filmes noir (figura 44).
Figura 44
Figura 45
130
Figura 46
Figura 47
131
Figura 48 Figura 49
São simbolismos que parecem ter uma dupla função: de um lado ampliar a
atmosfera conspiratória na qual está inserido o protagonista e reforçar a metáfora da
realidade material como uma prisão. Por outro, é um simbolismo que faz a delícia
daqueles espectadores aficionados em teorias conspiratórias. Dá um aspecto cult ao
filme. São simbolismos sutis, feitos apenas para um público restrito.
Outra pista é o próprio logotipo da CRS. O triângulo do logo da CRS faz uma
sutil referência ao simbolismo maçônico do olho sobre o triângulo, numa associação
a uma sociedade secreta. Essa é a opinião inicial de Nicholas a respeito da CRS, o
que aumenta ainda mais o clima paranóico do Jogo.
41
O jornal Newsweek na sua edição de 2 de agosto de 1982 fez uma reportagem sobre o Bohemian
Club. Sua aparência é a de um clube de campo fechado somente para homens, mas, na verdade, é
uma sociedade secreta onde são reunidos, a cada verão, grandes personalidades no campo político
e econômico: "O mais prestigioso clube de verão - o Bohemian Club - está agora reunido a 75 milhas
ao norte de São Francisco. Fortemente guardado, lá reúnem-se todos os presidentes republicanos
desde Herbert Hoover . Com uma poderosa clientela, invejável privacidade e rituais cabalísticos, o
Bohemian Grove tem levantado suspeitas. Seu mais importante eventos é a ‘palestra à beira do lago’.
Esse ano, o orador será Henry Kissinger que falará sobre as "Mudanças dos anos '80". Outras
personalidades atuais como Bill Gates, George Bush e George Bush Jr. são freqüentadores
confirmados”.
133
No filme O Pagamento, a Allcom é a grande corporação que desenvolve,
secretamente, uma máquina capaz de prever o futuro. Como vimos acima, fica claro
na estória que a máquina, na verdade, cria profecias auto-realizadoras. É conhecida
a teoria conspiratória de que as grandes corporações têm não só a capacidade de
prever o futuro, mas de fazê-lo, de fato, acontecer. Allcom é uma sutil referência a
uma conhecida teoria conspiratória ligada à GBN (Global Business Network),
empresa de consultoria de análises de cenários futuros sediada em São Francisco
(EUA). Segundo essa teoria, a GBN (famosa por criar o método de “análise de
cenários”) na verdade é formada por uma grande rede de notáveis em diversas
áreas (GBNers). Na verdade o futuro seria mais do que previsto, mas produzido e
acelerado a partir dessa rede mundial de GBNers. Governos e grandes corporações
pagam, na verdade, para saber o quê essa rede vai criar. Como relata a revista
Wired em artigo escrito por um próprio GBNer, Joel Garreau, lembra o conceito de
“psicohistória” proposto pelo escritor de ficção científica Isaac Asimov nos anos 40
em uma série de histórias conhecidas como A Trilogia da Fundação onde pessoas
criam a ciência da Psicohistória onde o futuro poderia ser previsto confiavelmente.
De posse dessas informações, uma elite aceleraria os acontecimentos para o futuro
previsto de fato acontecer42. Ou seja, uma espécie de profecia auto-realizadora.
Philip K. Dick parece inspirar-se nessa idéia de Asimov no conto Paycheck da
década de 50.
42
GARREAU, Joel, “Conspiracy of Heretics”, In: Wired, Issue 2.11, Nov. 1994.
134
formando o aspecto de um ícone religioso como auréola em torno da cabeça (figura
50). “Parece um maldito ícone religioso”, diz Wilson. Em seguida pisa na sua
cabeça, esmagando-a, sob o olhar de desprezo do pistoleiro. Na segunda
seqüência, em um posto de trocas de um missionário religioso e repleto de citações
da Bíblia afixadas nas paredes, a visão religiosa cristã se contrapõe à visão
espiritual e gnóstica de Nobody: “Sua visão que você diz ter de Cristo é a maior
inimiga de minha visão.” O catolicismo como o grande inimigo do Gnosticismo. A
crítica da religião como instrumento de consolação que nos prende ainda mais ao
cosmos manufaturado pelo Demiurgo.
Figura 50
135
Figura 51 Figura 52
Figura 53 Figura 54
136
Figura 55
137
Figura 56 Figura 57
Figura 58 Figura 59
Figura 60 Figura 61
43
BOUGNOUX, Daniel. Op. Cit., p. 233-4.
139
plano do eixo das hélices de um helicóptero, sobreponde-se às formas circulares
(figura 64); bola de cristal no primeiro encontro entre Hethrick e Jennings, uma
referência irônica à capacidade de ver o futuro buscado pela Allcom (figura 65);
reflexo numa superfície curva da chegada de Maya simulando ser Rachel no Café
Michel numa referência a uma obra de Escher (figuras 66 e 69); ainda no Café
Michel, plano em close da xícara de café com formas turbulentas circulares, numa
referência simbólica à Teoria do Caos (figura 67); uma lente curva, um dos objetos
no envelope, que amplia os diversos selos de Einstein na parte externa.
Figura 63 Figura 64
Figura 65 Figura 66
140
Figura 67 Figura 68
Figura 70
Figura 69
141
*******
143
PARTE III – Análises Fílmicas
1. Sinopse:
Grande parte da narrativa ocorre dentro das memórias de Joel onde tenta
encontrar uma maneira de preservar suas memórias de Clementine enquanto os
dois técnicos da Lacuna Inc., Patrick (Elijah Wood) e Stan (Mark Ruffalo), tentam
apagar as memórias. Assistimos as memórias sobre a história de Joel e Clementine
sendo contadas em sentido inverso. As memórias são lentamente apagadas
enquanto Joel tenta de tudo para resistir ao processo e esconder-se no interior de
sua mente. Os técnicos da Lacuna Inc. revelam-se mais do que personagens
periféricos: seus relacionamentos demonstram os danos potenciais que podem ser
causados pelo procedimento de apagamento das memórias. Mary (Kirsten Dunst),
recepcionista da empresa, teve um caso com o médico, o Dr. Howard Mierzwiak
(Tom Wilkinson), inventor do procedimento e dono da Lacuna Inc. Ela concordou em
ter as memórias desse relacionamento apagadas depois que a esposa de Mierzwiak
descobriu o relacionamento. Patrick, que é solitário e socialmente inepto, torna-se
obcecado por Clementine e usa os arquivos das memórias apagadas de Joel com a
finalidade de seduzir Clementine. Estas disputas românticas acabam tendo um efeito
crítico sobre a história principal do relacionamento entre Joel e Clementine.
2. Narrativa:
Como todo filme que trabalha com elementos gnósticos, a narrativa provoca
um entrelaçamento temporal que esvazia a noção de tempo cronológico em favor do
conceito de duração. Temos diversas instâncias narrativas:
c) Após elipse, memórias que Joel começa a reviver como se estivessem realmente
acontecendo. Metáforas começam a ser inseridas para caracterizar que se iniciou a
intervenção técnica de desmemorização: em muitos momentos a qualidade da
imagem e do som se deteriora (por exemplo, quando Joel conversa com o seu
vizinho Frank no lobby da entrada do prédio onde reside). Ou quando subitamente
detalhes diluem-se à vista como, por exemplo, na cena em que o nome de
Clementine vai embaçando até desaparecer em um cartão da Lacuna Inc. que Joel
estava lendo, ou quando os livros na Bernes and Noble (livraria onde Clementine
trabalhava) vão tornando-se brancos até desaparecerem. (figura 71)
146
e) Resultante de uma variação na voltagem dos equipamentos dos técnicos que
estão apagando a memória, Joel torna-se consciente em sua própria memória.
Observa a si mesmo, podendo interagir com os participantes (figura 72). Joel
experimenta isso como um déjà vu, inclusive antecipando a fala dos personagens.
g) Memórias nas quais Joel é um participante, mas ele pode mudar as ações do seu
personagem e mudar a conclusão dos eventos (por exemplo, na seqüência da
estação de trem onde segura a mão de Clementine para buscarem um lugar seguro
para escapar do processo de apagamento das memórias). Esse poder de Joel se
inicia a partir de um estado paranóico ao ouvir continuamente vozes externas à
diegése, vozes provenientes dos técnicos que estão na sua casa manipulando os
equipamentos da Lacuna Inc. Aos poucos, Joel vai compreendendo o intuito e a
procedência dessas vozes, iniciando a fuga de Joel e Clementine pelo labirinto das
memórias (figura 74).
h) Memórias nas quais Joel revisita vários momentos da sua infância. Nesse
momento, é como se Joel perdesse a concentração e você absorvido pelo Joel
criança, perdendo momentaneamente a consciência da situação. Metaforicamente
são alternados planos com Jim Carrey em trompe-l’oeil como Joel criança e planos
com um ator infantil como Joel, para representar este processo de absorção
momentânea (Figuras 75 e 76).
j) Memórias (ou Meta-memórias) onde Joel revisita lugares da memória que não
foram corretamente apagadas pelos técnicos. Por isso, Joel interage com
participantes degradados ou não totalmente apagados. (figura 77).
147
Figura 71 Figura 72
Figura 73 Figura 74
Figura 75 Figura 76
148
Figura 77
149
em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine
(Figuras 81 e 82).
Figura 78 Figura 79
Figura 80
Figura 81 Figura 82
150
3. Temas:
Por fim, o jogo. Joel resista ao processo de apagamento das suas memórias
ao tentar fugir, com Clementine, através dos seus labirintos mentais. Temos um jogo
de esconde-esconde entre os técnicos da Lacuna Inc. que, através das telas de
seus computadores e notebooks, rastreiam e caçam o casal em fuga. Mesmo as
interações de Joel com os participantes das suas memórias têm um quê de lúdico e
game eletrônico. Sintomaticamente, podemos encontrar no site do próprio filme um
game interativo a partir dessas passagens do filme (figura 84).
Figura 83 Figura 84
151
4. Personagens:
Clementine trabalha em uma livraria, a Bernes & Nobles numa alusiva associação
entre o conhecimento e a consciência que ela quer trazer para Joel (figura 85).
Figura 85
153
Figura 86 Figura 87
Figura 88 Figura 89
5. Simbolismos e Iconografia
5.1. Água
No segundo encontro no lago, desta vez no interior das suas memórias, Joel
arrepende-se de contratar os serviços da Lacuna Inc., principalmente depois de
154
entender que as vozes extra-diegéticas eram dos técnicos em seu apartamento e
tomar consciência do complô de Patrick para seduzir Clementine.
Desesperadamente tentar fazer contato com o mundo exterior. E o que é curioso,
apelando para os céus (uma metáfora religiosa ou mística – figuras. 91 e 92).
Figura 90 Figura 91
Figura 92 Figura 93
155
Figura 94 Figura 95
Figura 96 Figura 97
Figura 98
No terceiro encontro no lago congelado. Dessa vez Patrick tenta reviver como
farsa o encontro das memórias apagadas de Clementine. Patrick diz as mesmas
falas ditas no passado por Joel, provocando um déjà vu em Clementine, deixando-a
paranóica e, desesperada, quer voltar para casa (figura 93).
156
uma lembrança da infância, na chuva, pulando nas poças e correndo na lama
(figuras 94 e 95).
5.2. Acordar/despertar:
157
a) Enquanto os “arcontes” Patrick, Stan e Mary demonstram o inebriamento do
poder ao dançar, beber e fumar dentro do apartamento do adormecido Joel, Mary
demonstra preocupação diante da algazarra: “Vocês podem acordá-lo?”
(figura 101)
c) Nesta mesma seqüência, Joel força abrir seus olhos com os dedos, num gesto
caricato para demonstrar a Clementine seu desespero por querer despertar. Mas,
surpreendentemente começa a dar certo. Ele abre os olhos no mundo exterior, vê o
teto do seu apartamento e ouve as vozes dos técnicos fazendo uma abusiva
pequena festa, mas não consegue se mexer. Clementine ainda está cética com a
teoria conspiratória de Joel e toma como uma experiência mística qualquer. “Não
será mais uma profecia de Joel?”, diz Clementine (figura 104).
d) “Os olhos dele estão abertos”, diz os técnicos para o Dr. Mierzwieck. “Isso não é
bom”, responde ele. Em seguida aplica mais uma injeção com drogas para induzi-lo
ao sono. Planos e seqüências com o olhar/acordar são constantes na narrativa
(figura 105).
158
Figura 101 Figura 102
Figura 105
Figura 106
160
6. Análise e Comentário
1
Cf. DICK, Philip K. Confessions of a Crap Artist. New York: Pocket Books, 1982.
2
LUND, Roger D. Orthodoxy and Heresy in Eighteenth‐Century Society. Edited by Regina Hewitt and
Pat Rogers. Lewisburg, Pa.: Bucknell University Press, 2002.
161
Truman onde para escapar do mundo simulado Truman cria outra simulação para as
câmeras.
Figura 109
162
Joel (riso sem graça): “Não sei. Me senti como um garotinho assustado,
foi além da minha vontade. Eu não sei” (caem pedaços da parede).
Clementine: você estava com medo?
Joel (pensativo, olhando para baixo, câmera acompanha mostrando o
nível da água ainda mais alto): Sim. Pensei que soubesse isso de mim.
Joel senta no sofá e fala em off (plano plongé): Voltei para a fogueira,
tentando fugir da minha humilhação, eu acho.
Clementine fora do plano: Foi algo que eu disse?
Joel olhando através da janela com ondas arrebentando ao largo da
casa: sim. Você disse ‘então vá’ com tanto desdém, sabe?
Clementine de fora do plano: Oh, sinto muito
Joel (conformado e baixando a cabeça): Tudo bem.
Joel abre a porta da sala e sai correndo em direção à praia.
Percebemos que agora o mar está na verdade distante da casa, ao
contrário das cenas anteriores.
Clementine de fora do plano chama: Joely!
Clementine (plano a mostra no alto da escada): E se você ficasse dessa
vez? (mais pedaços das paredes caem)
Joel (retornando): Eu saí pela porta. Não restou nenhuma memória.
Clementine: Volte e invente uma despedida, pelo menos. Vamos fingir
que tivemos uma.
Clementine desce as escadas. Num plano mais alto que Joel, ela
aproxima-se: Adeus, Joel. Eu te amo. Me encontre em Montauk.
Fade out”
É amarga, com efeito – nos diz Simão - a água que encontramos depois do
Mar Vermelho (Simão interpreta um versículo do Êxodo): porque ela é o
caminho que conduz ao conhecimento da vida, caminho que passa através
das dificuldades e amarguras. Mas transformada por Moisés, ou seja, pelo
Verbo, esta água amarga se converte em doce3
3
Hipólito, Philosophoumena, VI, 1, 15, citado por HUTIN, Serge. Los Gnósticos
164
faz uma mea culpa do ocorrido naquela noite no passado. A água é a limpeza, voltar
às origens (a gnose como reminiscência, lembrarmos das nossas origens da qual
emanamos). Água como meio condutor e de transmissão de energias psíquicas e
espirituais. A água também é um dos símbolos do inconsciente. Entrar na água e
nela sair possui uma analogia com o ato de mergulhar no inconsciente.
GRUPO 2 – O Detetive
Filme: A Passagem
(Stay)
Ano de produção: 2005
Diretor: Marc Forster
Estória e Roteiro: David Benioff
1. Sinopse
Um homem luta para salvar a vida de outro sem saber que se encontra num
universo paralelo. Sam Foster (Ewan McGregor é um psiquiatra que vive na cidade
de Nova York com a namorada, Lila (Naomi Watts), que foi no passado sua
paciente. No entanto, é um de seus pacientes que passa a ser o foco da sua
obsessão, Letham (Ryan Gosling), um jovem estudante de artes plásticas
perturbado que, durante uma sessão, anuncia que cometerá suicídio em três dias,
em seu 21º aniversário. Sam leva a sério a ameaça e tenta rastrear Henry, que
parece ter desaparecido. Sam começa a contatar uma série de amigos e parentes
165
de Henry – a sua mãe (Kate Burton), o homem que Henry alegou ser seu pai, o Dr.
Leon Patterson (Bob Hoskins), uma garçonete que regularmente servia café a Henry
(Elizabeth Reaser) e sua ex-terapeuta Dra. Beth Levy (Janeane Garofalo). Quanto
mais Sam fala com as pessoas do círculo de Henry mais ela vai aprendendo sobre si
mesmo e questionando a realidade ao seu redor. Ele começa a entrar em uma
deriva emocional.
2. Narrativa
c) Na visita de Henry ao consultório do Dr. Sam Foster, diz ouvir vozes cada
vez mais insistentes. Ele confunde as vozes reais (por exemplo, a conversa
do Dr. Foster ao telefone diante de Henry) com as vozes irreais que dizem
“não consigo mais ver isso”, “fique comigo, Henry”.
166
d) Apesar do dia ensolarado, Henry diz que tem que se apressar, pois vai
chover granizo. Mais tarde, a previsão de Henry acontece, para perplexidade
do psiquiatra.
e) Após o mentor de Sam, o Dr. Leon, falar sobre uma famosa interpretação
de Freud sobre o sonho do menino que queimava (há a inserção de um
plano rápido de um segundo com a imagem de Henry diante do carro
incendiando, trecho da seqüência inicial), surge Henry que afirma,
aterrorizado, ser ele o seu pai. Henry havia dito anteriormente que seus pais
estavam mortos.
g) Sam vai ao casarão onde mora a mãe de Henry. Ela está em estado
catatônico, confunde-o constantemente com o seu filho Henry. De repente
começa a escorrer sangue da sua testa, sob o lenço enrolado na cabeça.
Ela fala: “estou morando nessa casa há 1.000 anos”. A casa está sem
móveis. Ela fala em preparar uma refeição para ele, mas as prateleiras da
cozinha e a geladeira estão vazias. A atmosfera é surreal.
167
i) Voltando da conversa com a mãe de Henry, Sam defronta-se com a
mesma cena de uma seqüência anterior: operários levantam um piano de
cauda para a janela de um apartamento enquanto uma criança deixa soltar
um balão. É o início da vertigem de Sam: quanto mais ele aprofunda-se nas
pistas sobre a vida de Henry, mas a realidade começa a perder a
consistência.
k) Sam põe Henry contra a parede exigindo explicações sobre tudo o que
está ocorrendo (pais que não estão mortos, capacidade de prever o futuro).
Todas as perguntas que Sam faz, Henry repete em cima, como se já
soubesse o que ele fosse perguntar. Ambos parecem ser a mesma pessoa.
168
m) Após um encontro com Henry, Leon volta a enxergar. Ao encontrar-se
com Sam fala para ele: “o budista estava certo o tempo todo, o mundo é
uma ilusão”. Esta seqüência é intercalada com outra seqüência: a
descoberta de Lila que todos os quadros que estão no seu apartamento não
são seus, mas têm a assinatura de Henry Letham. Entre perplexa e
aterrorizada corre para tentar encontrar Sam.
170
vezes a repetição de um mesmo ato (como abrir a porta e entrar num
apartamento) parece deformar plasticamente os objetos ao redor.
Figura 116
171
exemplo, as calças do psiquiatra Sam Foster são estranhamente curtas. Em uma
entrevista com o diretor Marc Foster ele revelou que o motivo pelo qual o psiquiatra
ter calças tão curtas para suas pernas é que assim Henry vê Sam, pela primeira vez,
curvado sobre ele para ajudá-lo. Ao fazer isso, a barra da calça é puxada para
cima4. Contrariando a narrativa clássica, acompanhamos uma estória a partir de um
ponto de vista de uma voz narrativa limitada e distorcida pela linguagem onírica.
Henry cita não apenas a voz de Sam, mas, inclusive, a voz do interior do
telefone. Ele ouve não apenas a voz dos personagens, mas as vozes da própria
diegése. Ou seja, toda a realidade apresentada pela narrativa é uma ilusão
projetada do seu psiquismo.
3. Personagens
173
Lila é uma professora de arte, ex-paciente de Sam com marcas de tentativa
de suicídio nos pulsos. Tal como em muitos dos filmes analisados nesse presente
trabalho, o personagem feminino principal (no papel gnóstico de Sophia) é o de uma
mulher que decaiu, mas que vai, apesar disso, criar condições para que o
protagonista alcance a gnose como nesse diálogo-chave de Lila questionando a
racionalidade de Sam que tenta, a todo custo, apegar-se à metodologia científica da
psiquiatria:
Lila: Ele vai encontrá-lo. Ele sabe que você pode ajudá-lo. É por isso
que ele volta para você.
Sam: bem, mesmo que volte não poderia deixá-lo falar com ele. Eu
violaria todas as regras da psiquiatria.
Lila: então viole! Você tem alguma coisa, Sam. Esse garoto confia em
você. Mas você nunca passou pelo que ele está passando e ele sabe
disso.
Lila: sabe no dia que fiz aquilo... levei duas lâminas de barbear para a
banheira. Sabe por quê? Porque sabia que ficaria fraca assim que
começasse a sangrar e não queria deixar uma lâmina cair, deixando o
serviço pela metade. Consegue imaginar isso? Consegue imaginar o
que é odiar tanto a própria vida a ponto de querer levar uma lâmina de
reserva?
174
3. Temas
4. SIMBOLOGIA E ICONOGRAFIA
175
Figura 117 Figura 118
Figura 121
Figura 122
5
CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Op. Cit., p.897.
177
Figura 123 Figura 124
GRUPO 3 – O Estrangeiro
6
Sobre o esotérico conceito de “Princípio da Correspondência” veja nas páginas 65 a 68.
178
1. Sinopse
2. Narrativa
O filme trabalha com uma narrativa de inserção. Temos ao longo do filme uma
justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes. A
estória vai transcorrendo através de uma espécie de representação simultânea de
pontos de vista diferentes, criando uma espécie de multifacetamento da realidade de
Truman:
179
a) Temos vídeos de making offs do programa Truman Show, com entrevistas
com o diretor Christof na abertura do filme, e vídeos documentais com a
história da produção do reality show (figura 125).
Figura 125
180
Figura 128
181
Figura 131 Figura 132
Temos ainda um irônico final de filme, um final ambíguo que permite dupla
interpretação. Por um lado é um happy end com Truman escapando da prisão do
Demiurgo/Christof e encontrando a amada Sofia/Sylvia no “mundo real”. Vence o
confronto final ao desafiar a morte numa luta suicida com o Demiurgo. Mas, o
chamado “mundo real” que espera Truman é tão potencialmente decepcionante
quanto à realidade virtual de Seaheaven. Como o filme evidencia diversas vezes
durante a narrativa, os telespectadores são tão medíocres e estereotipados como os
personagens de Seaheaven. A heróica luta de Truman para escapar da ilusão da
realidade não consegue sensibilizar os telespectadores e fazê-los questionar a
relação com a ilusão midiática. Truman atravessará a porta para o mundo exterior
“real”, onde apenas encontrará espectadores com o guia da TV na mão em busca do
próximo programa para substituir o reality show que termina.
183
dado. Isso é exemplarmente mostrado na seqüência em que Truman rouba um
veleiro e cruza o mar cenográfico de Seaheaven. Nas tomadas em que Truman está
no leme do veleiro, o horizonte do mar é apresentado com uma exagerada anomalia
ótica: é um horizonte muito próximo, sem curvatura, talvez o horizonte de um mundo
plano. Truman não percebe essa evidente anomalia, pois, afinal, ali nasceu e
cresceu, tornando tudo naturalmente como dado e evidente (figura 133).
Figura 133
3. Personagens
Figura 134
185
Truman (olhando para o céu): quem é você?
Christof: Sou o criador de um programa de televisão, que dá esperança,
alegria e inspiração para milhões de pessoas.
Truman: Então, quem sou eu?
Christof: Você é a estrela.
Truman: Nada era real?
Christof: Você era real. Foi o que fez ser ótimo assistir a você. Escute,
Truman. Não existe mais verdade lá fora do que no mundo que criei
para você. Onde há mentira, há falsidade. Mas no meu mundo não há
nada a temer. Conheço você melhor do que você mesmo.
Truman: Você nunca pôs uma câmera na minha cabeça.
Christof: Você tem medo. É por isso que não consegue fugir. Tudo bem,
eu entendo. Tenho observado você durante toda sua vida. Vi seu
nascimento. Quando deu o primeiro passo. Seu primeiro dia na escola
4. Temas Básicos
4.1. Paranóia.
A paranóia crescente em Truman ao longo da narrativa não é de natureza
narcísica, mas essencialmente espiritual, metafísica. Ele não desconfia
simplesmente de um complô contra ele, mas desconfia da própria natureza
ontológica da realidade. “Não sei o que pensar Marlon. Talvez esteja perdendo o
juízo, mas parece que o mundo gira à minha volta, de algum modo.” Truman aos
poucos vai paradoxalmente descobrindo eventos aleatórios ou acidentais em um
mundo estranhamente previsível e conformista (um spot de luz com nome de estrela
– Sirius – cai do céu, o rádio do carro que capta uma transmissão que narra por
186
onde Truman está passando etc.) e, ao mesmo tempo, estranhos padrões das
pessoas anônimas ao seu redor (carros e pessoas parecem dar volta ao seu redor
em um padrão reconhecível após um tempo de observação). Marlon tenta
racionalizar essa paranóia espiritual ao tentar reduzi-la a uma mera fantasia
narcísica. “É muito mundo para apenas um homem, Truman”, responde Marlon à
desconfiança ontológica de Truman de que o mundo parece girar ao seu redor.
4.2. Melancolia.
Sua Melancolia é mais do que narcísica, tal qual descrita por Freud em “Luto
e Melancolia”8. Assim como a paranóia, temos uma melancolia espiritual ou
metafísica, a de uma pessoa que acha que não pertence àquele mundo, é um
estranho no meio de rostos familiares. Mas, Christof tenta racionalizar a melancolia
de Truman tentando construí-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa
pela morte do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma
forma histérica (a fobia em passar sobre superfícies aquáticas e paranóia),
diminuição da auto-estima e cessação de interesse pelo mundo. Truman luta para
entender que sua melancolia é muito além do que a natureza narcísica que Marlon
tenta explicar, ditado por Cristof através de um aparelho de ponto em seu ouvido.
“Acho que estou envolvido em alguma coisa grande”, tenta explicar a Marlon.
“Talvez algo esteja para acontecer comigo. Já pensou nisso Marlon, como se sua
vida fosse construída para algo?”, sente Truman que, passo a passo vai
convertendo a melancolia em um estado ativo e febril de paranóia.
8
“Os impulsos hostis contra os pais ( desejo de que eles morram ) também são um elemento
integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que
há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas)
corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão
pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto
uma pessoa acusar-se da morte deles ( o que se conhece como melancolia ) ou punir-se numa forma
histérica ( por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles
tiveram. A identificação que aí ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de
pensar, e não nos exime da necessidade de procurar o motivo.” FREUD, S. “Carta Datada de 31 de
maio de 1897”, In: Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 275.
187
4.3. Meta-realidade
4.4. Supra-realidade
4.5.Para-Realidade
Figura 137
190
4.6. Crítica Metafísica.
5. Simbolismo e Iconografia
5.1. Mar/água:
9
Cf. Verbete “Mar” e “Oceano” em CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos
Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2009
191
Figura 138 Figura 139
5.2. Sophia
Figura 144
Figura 145
193
5.4. Lua
5.5. Olhos.
Truman busca em recortes de revistas olhos que correspondam ao das suas
memórias de Lauren. O olhar dela no primeiro encontro (em big close-up) na
biblioteca fascina e desperta Truman para a urgência do encontro naquele momento,
mesmo que significasse abandonar os estudos por algumas horas, às vésperas das
provas finais (figura 148). Truman tenta montar um “retrato imaginado” de Lauren a
partir de fragmentos de fotos de modelos em revistas (figura 149). Os olhos como a
simbologia do despertar, acordar para a Verdade.
10
Cf. ARCHELAUS, Herod. “Acts of Disputation with Manes” In: SALMOND, S. Ante-Nicene Fathers,
Vol. 6. Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1886. Revisado and editado por New Advent
by Kevin Knight. Disponível em <http://www.newadvent.org/fathers/0616.htm> (acessado em
12/07/2009).
194
5.6. Memórias falsas
Além de desvendar a ilusão da realidade, Truman deve se confrontar com a
falsidade das memórias porque elas, também, foram fabricadas pelo Demiurgo.
Enquanto Truman tenta construir memórias verdadeiras, ele deve distinguir das
memórias falsas. Por exemplo, folheando o álbum de recordações da família,
descobre, na foto de casamento, através de uma lente, Meryl fazendo figa com os
dedos enquanto posa (figura 150). A seqüência das fotos do álbum revela fotos com
poses e situações exageradamente estereotipadas. Normalmente, um álbum de
recordações familiares tem um caráter clichê ou kitsch, mas, aqui, como Seaheaven
é uma segunda natureza da própria imagerie publicitária, o caráter kitsch é ainda
mais saturado (figuras 151 e 152). A mesma característica encontramos na
seqüência onde Truman e Marlon conversam na praia diante de um por de sol
exageradamente kitsch (figura 153).
Figura 150
Figura 151
195
5.7. Demiurgo como um asceta.
196
Figura 154 Figura 155
5.8. O espelho
197
entorno com gestos imprevisíveis) leva à desconfiança em relação ao espelho e
responde como falasse com um público virtual que o observasse.
198
CONSIDERAÇÕES FINAIS
1
O Projeto Oracle consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área cm
Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais
e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados
por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes
199
dos anos 50, um microcosmo de simulação da realidade perfeita de adãos e evas
midiáticos. Indiretamente, Vidas em Jogo vai tocar nesse mesmo tema ao
apresentar uma empresa com tal onipotência e onisciência tecnológica que é capaz
de interferir nas transmissões de TV abertas (fazendo a programação interagir com o
protagonista) e produzir uma espécie de jogo que também interage com a vida real.
200
modelo utópico de uma internet com potencial socializante dentro do capitalismo
estava com seus dias contados2. Segundo Erik Davis, temos uma perda da euforia
tecnocultural:
2
Em 1999, no auge da euforia e à beira do crash da Nasdaq o historiador inglês Richard Barbrook
lança na Internet o manifesto “Cibercomunismo: Como os Americanos Estão Superando o
Capitalismo no Ciberespaço” onde defende que a Internet está produzindo a superação do
capitalismo: “Um espectro assombra a Internet: o espectro do comunismo. Refletindo a extravagância
da nova mídia, esse espectro assume duas formas distintas: apropriação teórica do comunismo
stalinista e a prática cotidiana do cibercomunismo”.
Disponível em <http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/17/cyber-communism-how-the-americans-
are-superseding-capitalism-in-cyberspace/> (acessado em 18/07/2009).
3
DAVIS, Erik p.400.
201
transformação íntima. Toda a narrativa mítica gnóstica (Queda e Ascensão) é
transposta para o interior do protagonista na procura do eu oculto aprisionado que
foi e que ainda é parte da Plenitude. Embora em todos os filmes analisados esteja
presente o tema da fé em si mesmo (o que se opõe ao catolicismo onde a fé
somente pode ser em Deus), somente após o ano 2000 temos um aprofundamento
desse aspecto da gnose. No modelo Matrix a “fé em si mesmo” é tratada de forma
rápida, próxima à filosofia de auto-ajuda (libertar-se dos medos ou das limitações
pessoais). Embora os mundos simulados tecnologicamente sejam a prisão do
protagonista, a tecnologia assume um papel importante para essa libertação: a
tecnologia da simulação que produz consciência e transcendência em O Décimo
Terceiro Andar ou os jogos de simulação de lutas em Matrix que ajudam Neo a
superar seus medos e libertar a consciência.
203
Se como vimos na Parte I, o Gótico vai expressar a emergência do Estranho
no cotidiano, a dissolução das fronteiras entre realidade e fantasia, projeção
psíquica e percepção, o filme gnóstico vai incorporar esses traços da ironia
romântica para acrescentar a simbologia gnóstica e a autoconsciência. Como vimos,
o filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico,
isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial
determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio
caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente
dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que
explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero. Ao discutirmos
essas expectativas, quer dizer que estamos discutindo as formas de identificação do
espectador com o filme: as expectativas do espectador por personagens, desfechos
de narrativas, temas, enfim, pelos aspectos de conteúdos contados pela estória do
filme.
204
serial ou se, de fato, são os relatos dos próprios crimes já cometidos por ele. A
identificação primária é instável. De qual é o ponto de vista presenciado na tela? O
filme inicia com uma narrativa clássica para reverter, ao final num limbo de
identificação. É o típico filme que, ao final, o espectador se pergunta com um ar de
desapontamento e decepção: já acabou? Como assim? A quebra da ordem
encontra-se tanto na estória narrada como na linguagem narrativa irônica. Isto é,
tanto na forma como no conteúdo.
205
câmera. O filme gnóstico parece ter a consciência de lidar com temas complexos,
místicos ou, até, heréticos, dentro da roupagem comercial das convenções de
gênero. Filmes, como Donnie Darko, onde temos atores comercialmente conhecidos
e consagrados (Patrick Swayze e Drew Barrymore) dentro de uma estória bizarra
(uma casa ao lado de um vórtice de tempo/espaço sobre a qual cai uma turbina de
avião), expõem essa tensão entre dois pólos opostos: o comercial e o experimental,
a mercadoria e a transcendência.
**********
5
Aqui destacamos a associação com a epígrafe que abre essa dissertação: “Tudo o que você precisa
já está dentro da sua mente” (Pinky Dink Doo – Discovery Kids). Pinky é a protagonista de uma série
infantil de animação do canal Discovery Kids. Por meio da imaginação ela cria mundos e desafios
para ela e seu irmão. Coincidentemente (ou não) o símbolo estampado em seu vestido é o de uma
espiral, cuja simbologia esotérica é discutida no tema da paranóia dentro do capítulo sobre os temas
do grupo fílmico “O Detetive” nessa dissertação. Essa frase de Pinky levanta uma discussão sobre
como a mitologia gnóstica pode estar presente não apenas no cinema, mas em diversos produtos da
cultura de massas.
206
partir de um conhecimento racional ou sistematizado. A jornada gnóstica deve
conduzir à revelação, ao inesperado e, às vezes, a um violento insight que conduz o
protagonista à percepção do todo. Muitas vezes a gnose não é uma experiência que
o sujeito alcance intencionalmente. Ele é tomado por ela. Isso é que difere os filmes
gnósticos de filmes como O Último Portal (The Ninth Gate, 1999) em que o
protagonista percorre o caminho em direção à revelação através de conhecimentos
ocultistas sistematizados em livros.
6
Este clichê de "quebra-da-ordem-e-retomo-a-ordem" é a confirmação do desejo secreto do público
de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo tempo liquidar com idéias provocativas que
possam incomodar a necessidade por harmonia. Pode parecer estranho, mas felicidade demais
incomoda o público. As pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do
clichê. Mas, por quê? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a TV, não seja
tão traumática. Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop. São Paulo: Ática, 1985 e
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo, São Paulo: Moderna, 1988.
207
há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral
ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade
material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise
(Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o
processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido
pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do
protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo
de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda,
a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor
temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista
(workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que
restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.
208
BIBLIOGRAFIA
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of Christianit (1852). Kessinger Publishing Rares Reprints, 2009.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
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DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information.
London: Serpents Tail, 2004.
DICK, Philip K. Confessions of a Crap Artist. New York: Pocket Books, 1982.
209
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cibercultura. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.
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210
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no. 1, 1995.
MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Dieter Prokop. São Paulo: Ática, 1985.
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ROSZAK, Theodore, From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American
Counterculture, Lagunitas: Lexikos Publishing, 1986.
WILSON, Eric. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006.
212
FILMOGRAFIA
213
Katharine Ross, Drew Barrymore e outros. Roteiro: Richard Kelly. Flashstar
Home Video, 2001. DVD (113 min).
8. IDENTIDADE (Identity). Direção: James Mangold. Produção: Columbia Pictures
Corporation (EUA). Intérpretes: John Cusack, Ray Liotta, Amanda Peet, Alfred
Molina, John Hawkes. Roteiro: Michael Cooney. Columbia TriStar Home Video,
2003. DVD (90 min).
9. MATRIX (The Matrix). Direção: Andy e Larry Wachowski. Produção:Warner
Bros. Pictures (EUA/Austrália). Intérpretes: Keanu Reeves, Laurence
Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Joe Pantoliano e outros. Roteiro:
Andy e Larry Wachowski. Warner Home Video, 1999. DVD
(136 min).
10. PAGAMENTO, O (Paycheck). Direção: John Woo. Produção: DreamWorks
SKG (EUA/Canadá). Intérpretes: Ben Affleck, Aaron Eckhart, Uma Thurman,
Paul Giamatti, Colm Feore e outros. Roteiro: Philip K. Dick (conto) e Dean
Georgaris. Paramount Home Entertainment, 2003. DVD (119 min).
11. PASSAGEM, A (Stay). Direção: Marc Forster. Produção: New Regency
Pictures (EUA). Intérpretes: Ewan McGregor, Ryan Gosling, Naomi Watts,
Elizabeth Raser, Bob Hoskins, Kate Burton e outros. Roteiro: David Benioff.
Twentieth Century Fox Home Entertainment , 2005. DVD (99 min).
12. QUARTO Poder, O (Mad City). Direção: Costa-Gavras. Produção: Arnold
Kopelson Productions (EUA). Intérpretes: John Travolta, Dustin Hoffman, Alan
Alda, Blythe Danner, Mia Kirshner e outros. Roteiro: Tom Matthews e Eric
Williams. Warner Home Video, 1997, DVD (114 min).
13. QUERO Ser John Malkovich (Being John Malkovich). Direção: Spike Jonze.
Produção: Gramercy Pictures (EUA). Intérpretes: John Cusack, Cameron Diaz,
Ned Bellamy, John Malkovich, Orson Bean e outros. Roteiro: Charlie Kaufman.
Columbia TriStar, 1999. DVD (112 min).
14. SHOW de Truman, O: O Show da Vida. (The Truman Show). Direção: Peter
Weir. Produção: Paramount Pictures (EUA). Intérpretes: Jim Carrey, Laura
Linney, Noah Emmerich, Ed Harris e outros. Roteiro: Andrew Niccol.Paramount
Home Entertainment, 1998. DVD (103 min).
214
15. VANILLA Sky (Vanilla Sky). Direção: Cameron Crowe. Produção: Paramount
Pictures (EUA). Intérpretes: Tom Cruise. Cameron Diaz, Penélope Cruz, Kurt
Russell, Jason Lee e outros. Roteiro: Alejandro Amenábar (filme Abre Los
Ojos) e Mateo Gil. Paramount Filmes do Brasil, 2001. DVD (136 min).
16. VIDAS Em Jogo (The Game). Direção: David Fincher. Produção: Polygram
Filmed Entertainment (EUA). Intérpretes: Michael Douglas, Sean Penn,
Deborah Kara Unger, James Rebhorn, Peter Donat e outros. Roteiro: John
Brancato e Michael Ferris. Universal Home Entertainment, 1997, DVD
(128 min).
17. VIDA em Preto e Branco, A (Pleasantville). Direção: Gary Ross. Produção: New
Line Cinema (EUA). Intérpretes: Tobey Maguire, Reese Witherspoon, William
Macy, Joan Allen, Jeff Daniels e outros. Roteiro: Gary Ross. Warner Home
Video, 1998. DVD (124 min).
215