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A R T I G O t e ó ri c o

Implicações bioéticas sobre procriação


medicamente assistida
Bioethical implications of medically-assisted reproduction

Fátima Dalina Gomes Gouveia*

Resumo Abstract
O presente trabalho teve como objectivo analisar as The aim of this study was to analyze the bioethical
implicações bioéticas envolvidas no processo de procriação implications involved in the process of medically-assisted
medicamente assistida, considerando os direitos da criança. reproduction, considering the rights of the child. Thus, a
Para tal, foi feita uma pesquisa bibliográfica em livros, literature search was conducted of books, articles published
artigos publicados em revistas e na internet e tido em conta in magazines and on the Internet and existing law on the
os decretos de lei existentes sobre a temática. topic.
A infertilidade é um problema de saúde que atinge um Infertility is a health problem that affects a significant
número significativo de casais, em idade fértil, à escala number of couples in the world in the fertile period, and
mundial, constatando-se um investimento nas técnicas de there is investment in techniques for treating infertility.
tratamento da infecundidade. Infertility may be a temporary or permanent inability to
A infertilidade é a incapacidade temporária ou permanente produce a child or carry a pregnancy to its natural end.
de gerar um filho ou de levar uma gravidez até ao seu Despite infertility, it is not ethical that, with the emergence
termo natural. of fertilisation techniques, children’s rights are ignored.
Apesar da infertilidade não é ético que com o aparecimento In the Constitution of the Portuguese Republic the
das técnicas de procriação, os direitos do novo ser sejam inviolability of human life is decreed, and this must be
ignorados. taken into account throughout the life cycle and in all
Na Constituição da República Portuguesa está decretado circumstances. Nursing acts should be based on this
a inviolabilidade da vida humana, pelo que deve ser tida assumption, and nurses should adopt an ethical attitude
em conta ao longo de todo o ciclo vital e em todas as and act by respecting the legitimate rights and interests of
circunstâncias. Como tal, baseado neste pressuposto devem citizens.
assentar os actos de enfermagem, na qual os enfermeiros In conclusion, the techniques of medically-assisted
deverão adoptar uma atitude ética e actuar respeitando os reproduction have merit, but with their emergence there
direitos e interesses legais dos cidadãos. are dilemmas in the field of bioethics and the law, since
Em suma, as técnicas de reprodução medicamente assistidas they do not safeguard the rights of the child which result
têm conquistado mérito, mas com o aparecimento destas, from artificial reproduction, such as the right to family
surgem dilemas no domínio da bioética e legal dado não identity.
salvaguardarem os direitos da criança, que resulta de uma Thus, embryos /fetuses are subjects of rights and, due
reprodução artificial como seja o direito à sua identidade to their vulnerability, need special protection, including
familiar. appropriate legal protection, before birth.
Assim, o embrião/feto são sujeitos de direitos e, devido à
sua própria fragilidade, necessitam de protecção especial,
inclusive protecção legal apropriada, antes do nascimento.

Palavras-chave: infertilidade, técnicas reprodutivas, direitos Keywords: infertility, reproductive techniques, reproductive
reprodutivos, embrião. rights, embryo.

* Enfermeira Licenciada da Escola Superior de Enfermagem de Recebido para publicação em: 26.08.09
S. José de Cluny. [fatimagomes87@sapo.pt] Aceite para publicação em: 11.02.10

II Série - n.° 12 - Mar. 2010

pp.105-111
Introdução da pesquisa; leitura dos documentos; selecção e
análise dos textos relevantes; avaliação crítica dos
Nesta revisão pretendeu-se analisar as implicações textos seleccionados e com o respeito pelos aspectos
bioéticas envolvidas no processo de procriação éticos da pesquisa.
medicamente assistida, tendo em conta o respeito Com o objectivo de enquadrar o estudo, elaborou-
pelos direitos da criança. Neste sentido, com este se a seguinte questão de investigação: Quais as
objectivo procurou-se fazer uma abordagem em implicações bioéticas envolvidas no processo de
relação ao problema de saúde com impacto de cariz procriação medicamente assistida?
sociológico – a Infertilidade e ainda de que forma
estas implicações relacionadas com as técnicas de
procriação contribuem para o exercício profissional Desejo de ter um filho e a Procriação
da enfermagem, pois as condutas devem alicerçar-se medicamente assistida
em princípios éticos e morais.
A infertilidade é definida como a incapacidade do Ao longo da existência da humanidade, a chegada
casal em gerar uma nova vida, ou seja, corresponde dos filhos foi muitas vezes vista como o resultado
à inviabilidade do produto da concepção que é natural do desejo sexual, o qual era evidenciado na
concedido ao casal em que existe fecundação (Santos sua importante função de assegurar a manutenção da
e Santos, 2001). espécie humana.
Nos últimos anos tem-se verificado um aumento No entanto, quando muitos casais querem/decidem
da infertilidade nos casais e um maior investimento ter um filho deparam-se com uma triste realidade, a
nas técnicas de tratamento da infecundidade, com o infertilidade conjugal que se trata de um problema de
contributo dos progressos tecnológicos, como sejam saúde que tem na sua origem tanto causas biológicas
as técnicas de reprodução medicamente assistida, como sociológicas.
cujo objectivo destas consiste em procriar. No entanto Como tal, o problema da infertilidade e das técnicas
deve recorrer-se a estas técnicas em última instância, de procriação medicamente assistida não são só
uma vez não são propriamente estratégias terapêuticas problemas que dizem respeito aos médicos/equipe de
isentas de risco e, por não salvaguardarem os direitos saúde e aos seus clientes, pois são também questões
da criança que resulta desses procedimentos. que atingem a sociedade em geral, logo surgem
Actualmente a sociedade incute aos casais a dilemas no domínio da bioética.
necessidade de terem filhos, havendo mesmo Segundo Archer (2004), compete à bioética
pressão social e cultural no sentido da reprodução, “a elaboração de uma profunda reflexão ética
todavia segundo Machado (2001), em nenhum país é e a apresentação de propostas devidamente
reconhecido o direito a procriar. Pois se assim fosse, fundamentadas acerca das tecnologias que convêm
afirma Biscaia (2001), que o filho seria encarado como ou não às sociedades humanas, na salvaguarda dos
um complemento para o casal, e não seria reconhecido valores que elas pretendem preservar”(p.27).
com um ser único com diferentes capacidades, alguém Neste sentido a infertilidade acaba por se comportar
que se gera para a liberdade e autonomia. a uma dimensão sócio-cultural, mas também física e
Para a realização deste trabalho optou-se por uma psicológica.
revisão da literatura, com o propósito de contribuir para Segundo Machado (2001), em nenhum país é
o aprofundamento da temática efectuando pesquisas reconhecido o direito a procriar, sendo possível
em livros das bibliotecas da Região Autónoma da confirmar na Constituição da República Portuguesa,
Madeira, revistas e em referências bibliográficas on- no número 2, do artigo 68.º que não consta o direito a
line como seja na base de dados MEDLINE, utilizando ter filhos, apesar de se reconhecer que “a maternidade
como palavras-chaves: reprodução medicamente e paternidade constituem valores sociais eminentes”
assistida, código penal, direitos da criança e diário da (p.21).
república. Se assim fosse, o direito a procriar seria visto como o
Foram seguidos os passos do percurso metodológico fim, o objecto a possuir, o único modo de concretizar
como sejam: a selecção dos recursos de pesquisa; a plena realização conjugal. Como tal, o filho não deve
selecção dos termos a utilizar na pesquisa; execução ser encarado como um complemento do casal, pelo

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contrário deve ser encarado como um ser único com Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho
diferentes capacidades, alguém que se gera para a que regula a utilização das técnicas
liberdade e autonomia (Biscaia, 2001). de RMA
O autor refere ainda que a união como acto de
verdadeiro amor entre duas pessoas, só existe se Perante a infertilidade tem acontecido extraordinários
ambos acreditarem que a grande fecundidade é essa progressos biomédicos, nas últimas décadas, que
entrega mútua que transpõe todos os riscos e assim, levaram ao aparecimento de um novo domínio
viver na esperança do filho desejado será respeitá-lo da prática médica: o da reprodução/procriação
como pessoa. medicamente assistida (RMA/PMA) e, segundo Patrão-
Desta forma, nunca poderá ser considerado o filho Neves (2004), com base nestas técnicas muitos casais
aquela criança programada ou tão desejada que faz de inférteis convertem o desejo em esperança e o sonho
toda a infertilidade, mesmo que relativa, numa grande em realidade. Todavia, para alcançarem esse desejo
doença conjugal. acaba por existir uma intromissão na intimidade do
Sendo assim, ainda o mesmo diz que “o casal só casal que se submete a essas técnicas e ao mesmo
é verdadeiramente estéril quando se refugia num tempo acarreta grande sofrimento, mas tudo é
egoísmo a dois e perde a capacidade de se dar” possível superar na presença de amor incondicional.
(p.64). Por isso, considera que a fecundidade passa Na lei n.º 32/2006, de 26 de Julho está determinado
pelo respeito da própria essência da pessoa conjugal no número 2, do Artigo 4.º que “a utilização de
como realidade relacional e que, só neste sentido técnicas de RMA só pode verificar-se mediante
ético se consegue realizar a solicitude que o filho diagnóstico de infertilidade ou ainda, sendo caso
eventualmente gerado sempre espera e torna disso, para tratamento de doença grave ou do risco
fecundantes as relações homem e mulher, mesmo de transmissão de doenças de origem genética,
quando eles são geneticamente estéreis. infecciosa ou outras” (p.5245).
Segundo o autor supra mencionado “na realidade, o Assim, os casais inférteis após já terem sido submetidos
filho deve, nos critérios ideais de paternidade, nascer a outras modalidades de tratamento menos agressivas
e crescer na cabeça dos pais antes de se desenvolver e credíveis de alguma eficácia presumível, poderão,
no útero materno” (p.67), isto é, só assim o então, recorrer às técnicas de reprodução artificial
verdadeiro amor faz da paternidade/maternidade em último recurso, uma vez que estas não são
uma experiência irrepetível, existindo primeiramente propriamente estratégias terapêuticas isentas de risco.
no pensamento e depois sentido no útero. Para a implementação da tecnologia de reprodução
De acordo com o que foi exposto, o desejo de ter artificial, na lei supracitada está disposto no Artigo
um filho não se confunde com uma necessidade que 12.º os direitos dos beneficiários, em que é dado ao
se atribui aos interesses subjectivos ou objectivados casal a opção por um dos diferentes métodos que
para a existência do próprio, mas sim uma motivação seja cientificamente justificável, dando a conhecer
intrínseca, um movimento, uma intencionalidade, previamente as implicações médicas, sociais e jurídicas
pelo que a sua interpretação não se refere a qualquer prováveis dos tratamentos propostos e os resultados
objecto ou realidade (Patrão-Neves, 2000). que presumivelmente poderão ser esperados com a
A autora referencia ainda que “o desejo é uma marca realização de cada um deles, pretendendo-se, deste
da finitude do humano e, como tal, pressuposto modo, o consentimento livre e esclarecido do casal
quer de perfectibilização, perspectiva que reúne a após a informação correcta e inequívoca do processo
interpretação clássica do desejo como função motriz em si.
da alma (Aristóteles) e a sua concepção moderna como Como tal, referente à mesma lei no Artigo 14.º, no
relação ao absolutamente outro (Lévinas)” (p.60). número 1- “os beneficiários devem prestar o seu
Faria (2001), citado por Camarneiro et al. (2004), refere consentimento livre, esclarecido, de forma expressa
que a “infertilidade torna-se um quadro impossível e por escrito, perante o médico responsável; 2 -“(...)
face ao desejo omnipotente e narcísico de ter um filho. devem os beneficiários ser previamente informados, por
Deste modo, entre o desejar ter um filho e o poder escrito, de todos os benefícios e riscos (...)” (p. 5246).
ter um filho, há um grande jogo de forças físicas e No Código Penal (2007), republicado pela Lei
psíquicas, de pulsões e de interdições” (p.60). 59/2007, de 4 de Setembro, está descrito no Artigo

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38.º, “2 -(…) o consentimento por qualquer meio no momento apropriado, mas estes são obtidos
que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do mediante a introdução de um único espermatozóide
titular do interesse juridicamente protegido, e pode considerado o mais viável no interior do ovócito,
ser livremente revogado até à execução do facto; 3 - mais precisamente no próprio citoplasma ovocitário
consentimento só é eficaz se for prestado por quem utilizando material específico.
(…) possuir discernimento necessário para avaliar o Esta técnica só é utilizada quando em casos de
seu sentido e alcance no momento em que o presta infertilidade masculina não se obtém sucesso com o
(…)” (p.11). recurso a “GIFT” ou a “FIV”.
Verifica-se então, que a FIV, ZIFT e ICSI caracterizam-
se pela a fecundação ocorrer in vitro, isto é, fora do
Técnicas de Reprodução organismo materno.
Medicamente Assistida (RMA) Todas as técnicas acima enunciadas reportam para um
conjunto de limitações intrínsecas e de condicionantes
Relativamente às técnicas de RMA que existem e que éticas aquando da sua aplicação.
geram inúmeras questões morais, segundo Pinheiro
(2004) são as seguintes:
A inseminação artificial (IA) consiste em estimular As técnicas RMA e os direitos das
com terapêutica a ovulação da mulher e introduzir crianças
artificialmente através de um cateter no útero, o
esperma do homem no momento mais próximo da Tendo em conta que o embrião humano é
ovulação. biologicamente um organismo em si mesmo, que
A “GIFT” é a técnica que consiste na transferência dos dispondo de condições intrínsecas e extrínsecas
gâmetas (óvulos e espermatozóides), previamente indispensáveis se desenvolverá. Assim, significa que
preparados em laboratório, para o interior das trompas todo o embrião “tem o valor de, por um processo
uterinas através de cirurgia Laparoscópica, depois da gradual e sem descontinuidade” (p.106) se desenvolver
mulher ter sido também submetida previamente à e dar origem a um homem ou a uma mulher, pelo
estimulação farmacológica da ovulação, de modo a que o seu destino biologicamente está determinado e
que se dê a fusão. não deverá ser desviado deliberadamente (Machado,
Sendo assim, a IA e a GIFT têm em comum o facto de 2001).
a fecundação operar dentro do organismo materno A lei n.º 32/2006 de 26 de Julho, refere no Artigo 24.º,
ou in vivo. que “(…) 1 - apenas deve haver lugar à criação dos
Na “ZIFT” consiste na transferência dos zigoto obtidos embriões em número considerado necessário para
após um determinado período de permanência em o êxito do processo (…); 2 - o número de ovócitos
laboratório ou seja são os óvulos fecundados in vitro, a inseminar em cada processo deve ter em conta
para dentro da trompa de Falópio e não para o útero a situação clínica do casal e a indicação geral de
através de uma cirurgia Laparoscópica, mas também prevenção da gravidez múltipla” (p.5248).
após a ovulação da mulher ter sido estimulada com Perante esta lei verifica-se que esta não protege
fármacos. os embriões excedentários que, apesar de
A Fecundação in vitro (FIV) consiste na inseminação criopreservados foram abandonados pelo casal
laboratorial de ovócitos recolhidos após estimulação que lhes deu origem. Nestas situações, em que os
ovárica da mulher e depois será feita a transferência embriões não são transferidos para útero no período
dos embriões obtidos através da fecundação in vitro de tempo aceitável, ou seja, são abandonados e para
para o útero. ele não se encontre solução de doação acabam por
Esta técnica esta indicada nas situações em que ser objecto de investigação e dela podem resultar
existe obstrução das trompas de Falópio, problemas violações de direitos e dignidade.
no endométrio e esterilidade de causa masculina ou Como tal, o ideal será não fecundar mais ovócitos
desconhecida. dos que são viáveis numa gravidez, de modo a não
A injecção intracitoplasmática (ICSI), consiste existirem embriões excedentários e assim respeitar a
também na transferência de embriões para o útero dignidade destes.

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Na lei n.º 32/2006 de 26 de Julho, no Artigo 9.º, no número 1, do artigo 26.º. Ainda, no número 3 do
está descrito no número 4, nas alíneas a e b, que é mesmo artigo refere que “a lei garantirá a dignidade
permitida a investigação científica em “embriões pessoal e a identidade genética do ser humano,
criopreservados, excedentários, em relação aos nomeadamente na criação, desenvolvimento e
quais não exista nenhum projecto parental (…), e utilização das tecnologias e na experimentação
embriões cujo estado não permita a transferência ou científica” (p.7).
a criopreservação com fins de procriação” (p. 5246). No artigo 8.º, da lei n.º 32/2006 de 26 de Julho, está
Como tal, verifica-se que a investigação científica tem descrito um outro aspecto que não é eticamente
a oportunidade de evoluir, pois permite avançar no admissível que é a maternidade de substituição e,
conhecimento, de que resultarão novas formas de o número 2 deste artigo refere-se a “ (…) qualquer
prevenção e tratamento da doença e a aquisição de situação em que a mulher se disponha a suportar uma
um maior bem-estar para a humanidade. Esta clausula gravidez por conta de outrem e a entregar a criança
está descrita no artigo referido anteriormente, no após o parto, renunciando aos poderes e deveres
número “3- O recurso a embriões para investigação próprios da maternidade” (p.5245). Conforme o
científica só pode ser permitido desde que seja que foi enunciado, a gravidez passa a ter um sentido
razoável esperar que daí possa resultar benefício para comercial e surge ainda uma outra questão, associada
a humanidade, dependendo cada projecto científico à quebra radical dos laços íntimos de comunicação
de apreciação e decisão (…)” (p. 5245). Todavia, que se estabeleceram entre a gestante e o feto,
toda a investigação científica rege-se por princípios, importantes a continuar e a desenvolver após o
regras e limites, muitos deles acordados pela própria nascimento.
comunidade científica, e outros, de natureza legal, Ainda relativamente à lei supra referida, irei mencionar
ética, social e cultural que protegem os direitos e a o Artigo 22.º, que refere no número 1 “(…) não
dignidade do Homem como ser individual e social. é lícito à mulher ser inseminada com sémen do
A lei supracitada, no Artigo 10.º, no número1, refere falecido, ainda que este haja consentido no acto de
que é permitido o recurso à dádiva de ovócitos, de inseminação”(p. 5247).
espermatozóides ou de embriões, desde que não seja Como tal, RMA post mortem só para satisfação
possível utilizar os gâmetas dos beneficiários para do desejo da mulher ou do homem não se pode
obter a gravidez. Ainda neste artigo está descrito, sobrepor ao direito da criança de não ser órfão
no número 2, que “os dadores não podem ser quando for concebido e, ainda, segundo Flynn (2008)
considerados como progenitores da criança que vai ter o direito a conhecer os seus pais e, de ser criada
nascer” (p.5246). por um pai e uma mãe.
Assim sendo, está descrito na mesma lei no Artigo
15.º, “2- que as pessoas nascidas de processos de
PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões O exercício profissional dos
apenas podem (…) obter as informações de natureza enfermeiros e o respeito pelos
genética que lhes digam respeito, excluindo a direitos humanos
identificação do dador” (p. 5246); porém, podem ter
acesso à identidade do dador, como está referido, “3- Apesar da infertilidade não é ético que os direitos do
(…) se este expressamente o permitir” (p. 5246). Ou, novo ser sejam ignorados ou colocados em segundo
então, “4- (…) por razões ponderosas reconhecidas plano. Por isso, antes de se satisfazer o desejo do
por sentença judicial” (p.5247). casal de ter descendência é fundamental ter em
Sendo assim, o dador tem direito ao anonimato de conta os direitos do novo ser, a criança. Assim sendo,
maneira a não ser envolvido em responsabilidades o embrião/feto são sujeitos de direitos e, devido
futuras. Mas, por outro lado, é igualmente necessário à sua própria fragilidade necessitam de protecção
reconhecer à criança os seus direitos, tais como o especial, inclusive protecção legal apropriada, antes
direito de conhecer as suas origens, que está implícito do nascimento.
ao direito à identidade, descrito na Convenção das Machado (2001), cita o preâmbulo da recomendação
Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças e sobre a fertilização in vitro e in vivo do Parlamento
também na Constituição da República Portuguesa, Europeu patente desde 16 de Março de 1989,

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que refere “o direito da mãe à autodeterminação das crianças, pois deste modo de pouco serve um
e o seu respeito pelos direitos e interesses do enunciado de direitos.
filho, que se poderão resumir ao direito à vida e Como tal, no Artigo 79.º do Código Deontológico
à integridade física, psicológica e existencial, ao do Enfermeiro, está nomeado na alínea c) que o
direito à família, ao cuidado dos progenitores e a enfermeiro tem o dever de “proteger e defender
crescer num ambiente familiar idóneo, e ao direito a pessoa humana das práticas que contrariem a lei,
a uma identidade genética e psicológica” (p.100). a ética ou o bem comum (…)”, isto significa que
Isto significa que devem prevalecer os direitos das estamos perante o dever de protecção e defesa
crianças sobre os direitos dos pais pois, estes são das práticas ilegais, ilícitas e que atentem ao bem
os responsáveis pelo desenvolvimento integral dos comum.
filhos e não são estes, gerados em prol do bem- Tendo por base, o Artigo 78.º do Código Deontológico
estar dos pais. do Enfermeiro, refere no número 1 que “as
O Artigo 24.º, no número 1, da Constituição da intervenções de enfermagem são realizadas com a
República Portuguesa afirma a inviolabilidade da vida preocupação da defesa da liberdade e da dignidade
humana, não fazendo qualquer distinção sobre a da pessoa humana e do enfermeiro”, o que remete
natureza extra e intra-uterina dessa mesma vida, pelo para o princípio da dignidade humana, em que o
que a garantia da sua inviolabilidade deve ser tida em homem é um sujeito de direito e não um objecto, por
conta ao longo de todo o ciclo vital e em todas as forma a manter a sua integridade, tanto física como
circunstâncias. psicológica e assim respeitando os direitos humanos
Neste pressuposto, devem assentar todos os actos de que estão vinculados à assunção do outro como um
enfermagem e como tal, no Artigo 8.º, do decreto-lei ser digno e sujeito de direitos e deveres.
n.º161/96 de 4 Setembro, alterado pelo decreto-lei Ainda Martins (2004), refere que “a dignidade
n.º 104/98 de 21 de Abril, do exercício profissional do homem está em si mesmo, recusando a
dos enfermeiros no número 1 “(…) os enfermeiros instrumentalização ou a utilização como um simples
deverão adoptar uma conduta responsável e ética meio”. E considera que o princípio da autonomia é
e actuar no respeito pelos direitos e interesses fundamental para todos os que se preocupam com os
legalmente protegidos dos cidadãos” (p. 383). aspectos bioéticos.
Assim, está disposto no Artigo 82.º do Código Sendo assim, o exercício da responsabilidade
Deontológico do Enfermeiro, que o enfermeiro no profissional dos enfermeiros deverá ter em conta,
respeito do direito da pessoa à vida durante todo o reconhecer e respeitar o carácter único e da dignidade
ciclo vital, assume o dever de como está descrito na de cada pessoa, tendo como alicerces os artigos
alínea a) de “atribuir à vida de qualquer pessoa igual referido anteriormente que se encontram descritos
valor, pelo que protege e defende a vida humana em no Código Deontológico do Enfermeiro e através da
todas as circunstâncias” e na alínea c) de “participar qual se rege a prática de Enfermagem com base em
nos esforços profissionais para valorizar a vida e a princípios éticos e morais.
qualidade de vida” (p.57). Como tal, o embrião deve
ter o reconhecimento de seu valor intrínseco, a sua
dignidade humana, baseada no respeito da pessoa Conclusão
pelo seu valor absoluto.
Neste sentido, do direito à vida decorrem os deveres Com os progressos ao nível científico na biologia e
dos enfermeiros, garantindo o respeito ao longo genética e, ainda com o desenvolvimento tecnológico,
do ciclo vital, pois a vida humana começa com a as técnicas de procriação medicamente assistidas têm
fecundação e desenvolve-se numa continuidade conquistado mérito, todavia com o aparecimento
permanente até à morte. Assim, de pouco ou nada destas, surgem dilemas no domínio da ética/bioética e
adiantaria a protecção dos direitos fundamentais no domínio legal (Biodireito), especialmente, no que
como sejam a igualdade, a intimidade, a liberdade, diz respeito ao estatuto legal do embrião, os casos da
o bem-estar, se não se estabelecesse a vida humana fecundação heteróloga (com doação de gâmetas por
como um desses direitos, o mesmo se verifica se os pessoas estranhas ao casal), a existência de embriões
profissionais de saúde não respeitarem os direitos excedentários entre outros.

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Como tal, a lei n.º 32/2006 de 26 de Julho, ainda é COSTA, J. (1990) - Questões actuais de ética médica: reprodução
demasiado redutora, uma vez que não permite medicamente assistida. 4ª ed. Braga : Editorial A.O.
salvaguardar os direitos ao novo ser, este que resulta DECRETO-LEI n.º 32/06. D.R. I Série.143 (06-07-26) 5245-5250.
de uma reprodução artificial, isto é, futuramente DECRETO-LEI n.º 104/98. D.R. I Série-A. 93 (98-04-01) 1739-
a criança apenas tem o direito a conhecer a sua 1757.
identidade genética, mas não lhe é dado o direito de DIÁRIO DA REPÚBLICA ELECTRÓNICO (2006). [Consult. 30
conhecer a sua identidade familiar. Set. 2008]. Disponível em WWW:<URL:http://www.dre.pt>.
Em suma, considero com esta revisão de literatura FLYNN, J. (2008) - A família e inseminação artificial. Acção Médica.
ter atingido o objectivo pretendido já enunciado Ano 72, nº 2, p. 45-47.
na introdução em relação ao fenómeno em estudo.
MACHADO, J. (2001) - Problemas éticos relativos à reprodução/
Espero contudo, que este trabalho contribua para procriação medicamente assistida. In ARCHER, L. [et al.], coord. -
adopção de atitudes no exercício da enfermagem Novos desafios à bioética. Porto : Porto Editora. p. 98-109.
baseado na responsabilidade e na ética, e que MARTINS, J. (2004) - Os enfermeiros e os direitos dos doentes à
aumente a consciência, o respeito pela dignidade informação e ao consentimento: percepções, atitudes e opiniões.
humana e preocupação na protecção e defesa das Referência. Nº 12, p.15-26.
gerações futuras, por forma a salvaguardar os seus ORDEM DOS ENFERMEIROS (2003) - Código deontológico do
direitos, e isto, provavelmente, só se conseguirá enfermeiro: anotações e comentários. 1ª ed. Lisboa : O.E.
quando a sociedade compreender este fenómeno da PATRÃO-NEVES, M. (2000) - Contributo da filosofia para a
procriação humana atendendo à vertente científica e compreensão do fenómeno da “infertilidade”. Cadernos de
técnica e aos valores simbólicos, que fazem parte da Bioética. Ano 11, nº 23, p. 57-69.
estrutura psíquica da pessoa humana. PINHEIRO, J. (2004) - Procriação medicamente assistida.
[Consult. 30 Set. 2008]. Disponível em WWW:< URL:http://
www.apdi.pt/APDI/DOUTRINA/procriação%20medicamente%20
Referência Bibliográficas assistida.pdf>.

ARCHER, L. (2004) - A genética, o desejo e o interdito. Cadernos SANTOS, A. ; SANTOS, T. (2001) - Novas questões em reprodução
de Bioética. Ano 12, nº 35, p. 25-32. medicamente assistida. In ARCHER, L. [et al.], coord. - Novos
desafios à bioética. Porto: Porto Editora. p. 93-97.
BISCAIA, J. (2001) - O casal e a fecundidade. In ARCHER, L. [et
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61-73. [Consult. 1 Out. 2008]. Disponível em WWW:<URL: http://
www.unicef.pt/docs/pdf_ publicacoes/convencao_direitos_
CAMARNEIRO, A. [et al.] (2004) - Vivências da infertilidade na criança2004.pdf>.
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Nº 10, p. 58-67.
CÓDIGO PENAL (2007). [Consult. 1 Out. 2008]. Disponível em
WWW<URL: http://www.gnr.pt/portal/internet/legislacao/pdf/
CP.pdf>.

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