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O desenho como recurso auxiliar

na investigação psicológica de crianças


portadoras de surdez*

RESUMO ABSTRACT

Durante a realização de um estágio veri- During the development of internship it


ficou-se que um grupo de crianças surdas was possible to verify that a group of deaf
vivenciava de forma conflituosa as limitações children was living with difficulty because
inerentes a essa condição. Assim sendo, com of the limitations inherent to this condition.
o intuito de fornecer subsídios para o apri- Thus, with the purpose of providing subsidies
moramento das estratégias de intervenção to enhance the intervention strategies
desenvolvidas com essa população, empre- developed with this population, it was
endeu-se uma investigação psicológica do accomplished a psychological investigation
referido grupo de crianças (6 meninas e 5 of the referred group (6 girls and 5 boys, from
meninos, dos 6 aos 12 anos de idade). O ins- 6 to 12 years old). The House-Tree-Person
trumento utilizado para tanto foi o HTP, por Test was take as instrument because is a
ser uma técnica projetiva gráfica sensível, sensitive and disclosure technique, that
reveladora e capaz de superar as dificulda- overcomes the difficulties in communication
des de comunicação impostas pela surdez. of deaf people. The analyze of collected
A análise dos desenhos coletados, baseada drawings indicates that children have
nos referenciais da literatura, indica que as feelings of non-adjustment and inferiority,
crianças são marcadas por sentimentos de tendency to isolation and bashfulness, and
inadequação e inferioridade, tendem ao iso- have severe difficulties on their relationships.
lamento e à introversão e encontram severas Thereby, the present study made possible to
dificuldades nos relacionamentos interpes- express important psychological aspects of
soais. O presente estudo, desse modo, viabi- these children.
lizou a expressão de importantes aspectos do
psiquismo das crianças pesquisadas que não
encontravam outras formas de enunciação
devido às suas restrições sensoriais.

*
O presente estudo contou com a grata colaboração de Manoel Antônio dos Santos (USP/Ribeirão
Preto), Lucinéia Francisco Batistela (UNESP/Assis) e Maria da Piedade Resende da Costa
(UFSCar).

Palavras-chave: crianças, surdez, avaliação psicológica.

Key-words: children, deafness, psychological assessment.

Endereço para correspondência: Rua Jesuíno de Arruda, 2753


CEP 13560-060 – Centro – São Carlos – SP – rodrigo_sanches_peres@hotmail.com

22 – PSIC - Revista de Psicologia da Vetor Editora, Vol. 4, nº.1, 2003, pp. 22-29
Rodrigo Sanches Peres
Graduando do curso de Psicologia da Universidade Estadual Paulista
(UNESP) – Campus de Assis

pela percepção das vibrações sonoras (la-


INTRODUÇÃO birinto, vestíbulo, canais semicirculares,
cóclea, órgão de Corti e suas conexões
A surdez ocorre em virtude de condi- neurais). Em linhas gerais, pode-se afir-
ções patológicas do órgão auditivo e im- mar que a surdez condutiva acarreta uma
plica a elevação do limiar de percepção redução da intensidade das vibrações
dos sons, ou seja, a diminuição da acui- sonoras e pode, portanto, ser atenuada
dade auditiva. Tais condições patológi- mediante a realização de intervenções
cas podem ser congênitas (decorrentes cirúrgicas ou a utilização de próteses. Na
de alterações genéticas) ou adquiridas surdez sensório-neural, em contraparti-
(produzidas a partir da ocorrência de da, a perda auditiva é mais significativa
infecções, da ação de tóxicos ou de trau- e usualmente as cirurgias e próteses pos-
matismos no ouvido). Atualmente exis- suem uma eficácia limitada (Lafon,
tem diversas formas de diagnosticar a 1989; Ballantyne, 1995).
ocorrência da surdez. A avaliação audio- Considerando-se o período evolutivo
métrica, que visa a mensurar os níveis em que ocorreu a perda auditiva, é pos-
de audição a partir do emprego de um sível diferenciar basicamente dois tipos
instrumento eletrônico, afigura-se como de surdez: a) pré-lingüística: congênita
uma das principais técnicas de diagnós- ou adquirida nos primeiros anos de vida,
tico, visto que permite diferenciar a sur- antes do desenvolvimento da linguagem
dez de outras deficiências auditivas e b) pós-lingüística: adquirida após o
menores. Segundo os critérios adotados desenvolvimento da linguagem. Usual-
pela avaliação audiométrica, um indiví- mente as repercussões psicossociais da
duo pode ser diagnosticado como porta- surdez pré e pós-lingüística possuem
dor de surdez se apresentar uma perda algumas particularidades entre si. De
auditiva superior a 90 decibéis, isto é, forma sucinta, pode-se dizer que a inca-
uma limitação profunda que impossibi- pacidade auditiva é um elemento consti-
lite a compreensão de conversações am- tutivo da identidade original do portador
plificadas (Costa, 1988; Lafon, 1989). de surdez pré-lingüística, ao passo que
Levando-se em conta a parte funcio- para o portador de surdez pós-linguísti-
nal do órgão auditivo lesionada, pode-se ca a incapacidade auditiva representa
distinguir dois tipos principais de surdez: uma perda que dificilmente poderá ser
a) condutiva: decorrente de afecções no elaborada. Assim sendo, geralmente o
aparelho condutivo, ou seja, na parte do portador de surdez pós-lingüística tende
ouvido responsável pela transmissão das a apresentar mais sinais de não-aceitação
vibrações sonoras (conduto auditivo ex- da incapacidade auditiva do que o porta-
terno, trompa de Eustáquio, ouvido mé- dor de surdez pré-lingüística (McKenna,
dio e componentes, janelas e fluidos 1995a).
labirínticos) e b) sensorioneural: decor- Cumpre assinalar, contudo, que a sur-
rente de lesões no aparelho sensório-neu- dez – seja ela pré ou pós-lingüística –
ral, isto é, na parte do ouvido responsável pode ser considerada a incapacidade fí-

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sica que produz os maiores danos ao de-
senvolvimento de um indivíduo, uma vez
MÉTODO
que a audição representa uma importan-
tíssima fonte de experiências sociocul- O conhecimento resultante do pre-
turais, auxilia na aprendizagem e é sente estudo pode fornecer elementos:
essencial para a aquisição da linguagem a) para o aprimoramento do atendimen-
e a organização sensorial do mundo to multidisciplinar oferecido às crianças
(Costa, 1988). Além de causar sérios pro- em questão e b) para a realização de es-
blemas de comunicação e expressão, a tudos posteriores, voltados mais especi-
surdez compromete a enunciação de ficamente à compreensão dos aspectos
emoções e sensações, conduz ao isola- psicológicos de crianças portadoras de
mento relacional e afetivo e contribui, surdez.
muitas vezes, para a gênese de estados
de ansiedade, sintomas depressivos e Abordagem teórico-metodológica
O presente estudo adotou a aborda-
outros distúrbios psicológicos – motiva-
gem teórico-metodológica da avaliação
dos possivelmente por sentimentos de
psicológica, priorizando um enfoque des-
desamparo, inadequação e insatisfação
critivo, exploratório e com análises majo-
com as restrições sensoriais (Costa,
ritariamente qualitativas, considerando-se
1988; Martin, 1995; McKenna, 1995b).
que esse modo de coleta e sistematiza-
Durante a realização de um estágio
ção dos dados seria capaz de subsidiar a
nas salas especiais de educação infantil
compreensão das características psico-
do ensino público de uma cidade de mé-
lógicas dos sujeitos pesquisados.
dio porte do Estado de São Paulo foi
possível notar que um grupo de crianças
Sujeitos
portadoras de surdez vivenciava de for-
Participaram do presente estudo onze
ma conflituosa e problemática essa con- crianças, sendo seis delas do sexo femi-
dição. Tal constatação, derivada da nino e cinco do sexo masculino, cuja fai-
observação participante das atividades xa etária variava dos seis aos doze anos.
desenvolvidas em sala de aula, adquiriu Os critérios de inclusão na amostra fo-
maior consistência a partir do relato in- ram os seguintes: a) apresentar perda
formal das professoras, que ressaltavam auditiva pré-lingüística superior a 90
que muitos de seus alunos demonstravam decibéis (audiometricamente diagnosti-
sinais de não-aceitação da surdez, cul- cada); b) não possuir antecedentes de
pavam os pais pela deficiência auditiva problemas emocionais e/ou comporta-
e encontravam dificuldades marcantes mentais; c) não possuir suspeita de dé-
nos relacionamentos sociais e familiares, ficit intelectual.
o que evidenciou a necessidade de exa-
minar de uma forma mais detalhada es- Caracterização da situação de estudo
sas questões. As crianças pesquisadas freqüenta-
vam, durante o período da manhã, as sa-
las de educação infantil da rede pública
OBJETIVO do município especificamente voltadas
para portadores de surdez. Tais salas são
O presente estudo teve como objeti- compostas por cerca de seis crianças e
vo efetuar uma investigação psicológica coordenadas por um professor especia-
de um grupo de crianças portadoras de lizado. Durante o período da tarde as
surdez, focalizando basicamente a per- crianças em questão participavam das
sonalidade dos sujeitos e suas relações atividades de classes regulares do ensi-
com o mundo exterior. no fundamental.

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Instrumento e materiais quisadas não executavam com precisão
Tendo em vista o objetivo do presen- a leitura labio-facial, não dominavam o
te estudo, as técnicas projetivas nos pa- alfabeto dactilológico e encontravam
receram o tipo de instrumento mais dificuldades para compreender a con-
indicado, uma vez que permitem uma versação amplificada, as instruções ne-
investigação ampla e global da persona- cessárias à coleta dos dados foram
lidade e são especialmente proveitosas transmitidas, com o auxílio das profes-
“onde houver uma carência de possíveis soras, por meio da linguagem gestual.
vias de acesso mais diretas ao conheci- Cumpre assinalar também que, devido a
mento visado” (Silva, 1981, p.11). Den- essas mesmas razões, optou-se por não
tre os inúmeros instrumentos projetivos empregar o questionário padronizado do
existentes, optou-se pela utilização do instrumento. Faz-se necessário, entretan-
House-Tree-Person (HTP), técnica sis- to, esclarecer que o fato de o inquérito
tematizada por John N. Buck em 1948 não ter sido utilizado não compromete a
nos Estados Unidos que visa a “avaliar a validade dos dados coletados, pois a mai-
personalidade do sujeito, em si mesmo e oria dos pesquisadores, em detrimento
em suas interações com o ambiente” da parte verbal, valoriza mais a parte grá-
(Kolck, 1984, p. 357). Trata-se de um fica do HTP.
instrumento gráfico, isto é, que emprega
como forma principal de comunicação Técnica de análise dos desenhos
não a fala, mas sim desenhos e grafis- A maior parte dos estudos que empre-
mos – capaz de superar as dificuldades gam o HTP como instrumento de investi-
de comunicação inerentes à surdez e que gação psicológica prioriza um exame
se destaca por ser uma técnica econômi- essencialmente intuitivo e subjetivo dos
ca, uma vez que os únicos materiais ne- desenhos. Assim sendo, para tornar a
cessários são lápis preto, folhas de papel análise do material coletado mais orde-
em branco e eventualmente borracha. nada e sistemática, elaborou-se especial-
Além disso, o HTP é de rápida aplica- mente para essa pesquisa um protocolo
ção, pois a tarefa consiste em executar, de avaliação, composto por 94 indicado-
em folhas separadas, o desenho de uma res (23 relacionados ao desenho da casa,
casa, de uma árvore e de uma figura hu- 25 relacionados ao desenho da árvore e
mana e posteriormente responder a um 46 relacionados ao desenho da figura
questionário padronizado para comple- humana), tomando-se como base para
mentar a expressão gráfica com a verbal tanto os estudos de Machover (1962),
(Buck, 1987). Portuondo (1973), Koppitz (1976), Ham-
mer (1981, 1991), Jolles (1981), Picco-
Técnica de coleta dos desenhos lo (1981), Kolck (1984), Buck (1987),
A coleta dos desenhos contou com o Loureiro e Romaro (1987), Di Leo
consentimento dos pais das crianças, foi (1991), Arzeno (1995), Méredieu (1997),
realizada individualmente em salas reser- Campos (1998), Jacob, Loureiro, Mar-
vadas nas escolas e durou, em média, 25 turano, Linhares e Machado (1999) e
minutos. Optou-se por empregar a bateria Freitas e Cunha (2000).
ampliada do HTP, considerada mais com- No que diz respeito às interpretações
pleta que a versão original, pois com- dos desenhos, priorizou-se uma aborda-
preende, além do desenho da casa, da gem qualitativa de análise, pois a maio-
árvore e da figura humana, o desenho de ria dos pesquisadores responsáveis pelos
uma figura humana do sexo oposto ao da avanços da técnica consideram esse sis-
primeira (Campos, 1998). tema mais profundo e revelador, ainda
Tendo em vista que as crianças pes- que menos objetivo e sistemático do que

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o exame quantitativo proposto por Buck pelo menos 35% das produções coleta-
(1987). Devido à inexistência de pesqui- das, ou seja, que foram verificados nos
sas voltadas à padronização e normati- desenhos de, no mínimo, quatro das onze
zação do HTP com crianças brasileiras, crianças pesquisadas. Por uma questão
as interpretações foram baseadas em uma meramente didática, os resultados serão
série de obras que, apesar de não apre- apresentados em função das hipóteses
sentarem um sistema ordenado e metó- formuladas a partir da avaliação de cada
dico de análise, fornecem subsídios para uma das figuras que constituem o HTP.
a atribuição de significados a diversos Além disso, serão comentados breve-
aspectos das produções gráficas, tais mente alguns dos indicadores gráficos
como as de Hammer (1981, 1991), Kolck mais ilustrativos e apontados entre pa-
e Jaehn (1981, 1990), Lourenção van rênteses os autores que forneceram os
Kolck (1984) e Freitas e Cunha (2000). subsídios que direcionaram a elaboração
Para a avaliação do desenho da figura das hipóteses.
humana, contudo, empregaram-se como Na avaliação dos desenhos da casa
padrão normativo os dados fornecidos coletados notou-se que uma parcela con-
por Hutz e Antoniazzi (1995) para crian- siderável de sujeitos produziu figuras
ças brasileiras. com portas e janelas de tamanho reduzi-
Vale destacar ainda que, com o intui- do (n = 6), mas com o telhado despro-
to de conferir maior precisão às interpre- porcionalmente grande (n = 5). Houve
tações, considerou-se a convergência de ainda a omissão de portas e janelas nos
indícios entre cada um dos desenhos do desenhos de outras crianças (n = 4). Con-
HTP e a avaliação global das produções, siderando-se tais indícios e suas relações
pois um aspecto destacado de uma fi- com as demais características das pro-
gura jamais possui, por si só, um único duções (tais como a desconfiguração de
significado específico e nem tampouco alguns desenhos, a ausência de comple-
reflete necessariamente traços da perso- mentos e detalhes e a aparente desinte-
nalidade do sujeito que a produziu (Hutz gração das paredes), pode-se supor que
& Antoniazzi, 1995). Ademais, as infor- os sujeitos encontram dificuldades seve-
mações adquiridas durante o contato que ras no contato com o mundo exterior,
foi mantido por aproximadamente um principalmente nos relacionamentos in-
ano com as crianças pesquisadas por oca- terpessoais, tendem à introversão e à ti-
sião do desenvolvimento do estágio tam- midez, possuem grandes ambições e
bém foram empregadas para nortear a buscam no plano da fantasia a satisfa-
elaboração de hipóteses interpretativas. ção que não conseguem obter na reali-
Além disso, obviamente, as limitações dade (Hammer, 1981, 1991; Buck, 1987;
inerentes à idade dos examinados foram Freitas & Cunha, 2000).
igualmente levadas em conta, pois sabe- Verificou-se que um número elevado
se que os fatores evolutivos, tais como a de crianças desenhou árvores de tama-
imaturidade percepto-motora e cogniti- nho reduzido (n = 7), na parte inferior
va, comprometem sobremaneira a pro- da folha (n = 9) e com copas excessiva-
dução de um desenho (Jolles, 1981). mente grandes, em comparação com
troncos de proporções pouco represen-
tativas (n = 7). Ademais, a linha do solo
RESULTADO foi omitida pela maioria dos sujeitos
(n = 6) e nenhum dos desenhos apresen-
Apresentação e Discussão ta raízes, galhos e ramos. Em síntese, tais
Foram considerados para fins de aná- características indicam que as crianças
lise os indicadores que ocorreram em sentem-se desamparadas, marginaliza-

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das, inferiores, inseguras, insatisfeitas aspectos peculiares dos desenhos de
consigo mesmas e com as relações que crianças portadoras de surdez, não se en-
estabelecem com o ambiente e possuem controu na literatura científica nenhuma
uma veemente tendência ao retraimento pesquisa voltada à investigação psicoló-
(Kolck, 1984; Koch, 1968; Di Leo, 1991; gica dessa população mediante o empre-
Hammer, 1991). go do HTP, o que dificultou o processo
A ausência dos braços da figura hu- de comparação dos dados obtidos no pre-
mana, um dos indicadores emocionais sente estudo.
propostos por Koppitz (1976), ocorreu Em terceiro lugar, é evidente a neces-
nas produções de um número considerá- sidade do desenvolvimento de pesquisas
vel de sujeitos (n = 4). Trata-se de um sistemáticas de padronização e normati-
indício significativo, pois é verificado zação com crianças brasileiras para que
apenas excepcionalmente em crianças o HTP possa ser utilizado de maneira
brasileiras dos 6 aos 12 anos (Hutz & mais confiável, uma vez que a maioria
Antoniazzi, 1995). Além disso, uma par- dos estudos que apresentam critérios de
cela elevada dos examinados conferiu a análise foi desenvolvida na década de 60
seus desenhos outras importantes caracte- com amostras americanas, e sabe-se que
rísticas, tais como desconfigurações cor- a ausência de parâmetros para compara-
porais (n = 7), boca em formato elíptico ções transculturais contribui para o em-
(n = 6) e omissão do pescoço (n = 5). prego inadequado e descontextualizado
Considerando-se estes indicadores e os da técnica (Hutz & Antoniazzi, 1995).
demais avaliados no conjunto das pro- Além disso, a validade das interpretações
duções coletadas, podem-se levantar as de produções gráficas ainda é, em últi-
hipóteses de que as crianças examinadas ma instância, questionável e controver-
são excessivamente dependentes e neces- sa, pois até os dias de hoje “as tentativas
sitam veementemente de reconhecimen- de elevar o estudo dos desenhos à cate-
to e atenção, possuem uma imagem goria de ciência (como conhecimento
corporal desfavorável, permeada por sen- sistematizado, derivado da observação,
timentos de inadequação e autodesvalo- experimentação e controle) são louvá-
rização, e encontram dificuldades nos veis, mas ainda pouco convincentes” (Di
relacionamentos sociais, possivelmente Leo, 1991, p. 202). De qualquer forma,
porque se julgam inaptas e limitadas para o HTP, a despeito de suas limitações,
estabelecer contatos interpessoais (Ma- possui uma série de vantagens em rela-
chover, 1962; Koppitz, 1976; Jolles, ção a técnicas de outros tipos, conside-
1981; Piccolo, 1981; Kolck & Jaehn, rando-se que é um instrumento econômico
1981, 1990). e de aplicação rápida e simples, capaz
Faz-se necessário reconhecer, contu- de superar dificuldades de comunicação
do, que, por uma série de razões, as aná- verbal e subsidiar um exame psicológi-
lises aqui apresentadas não possuem um co global e profundo, uma vez que sua
caráter definitivo e conclusivo. Primei- agudez clínica é incontestável.
ramente, o número de sujeitos é reduzi-
do, pois não foram encontradas durante
o período de coleta dos dados outras CONCLUSÃO
crianças portadoras de surdez da faixa
etária dos 6 aos 12 anos na rede pública A utilização do HTP no presente es-
de ensino no município pesquisado. Em tudo possibilitou a coleta de dados que
segundo lugar, com exceção dos estudos indicam que a maioria das crianças pes-
de Machover (1962) e Di Leo (1991), quisadas é marcada por sentimentos de
que apresentam superficialmente alguns inadequação e inferioridade, tende ao

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isolamento e à introversão e encontra do, uma vez que a implementação de
severas dificuldades nos relacionamen- práticas pedagógicas voltadas ao aten-
tos interpessoais. Assim sendo, a utili- dimento das necessidades emocionais,
zação do HTP viabilizou a expressão de características das crianças portadoras de
importantes aspectos do psiquismo das surdez, pode contribuir sobremaneira
crianças que, devido às limitações ine- para a atenuação do comprometimento
rentes à surdez, não encontravam uma psicológico inerente a essa condição.
forma mais direta de enunciação, eviden- Acreditamos que a valorização de ativi-
ciando, assim que a linguagem gráfica, dades lúdicas e esportivas com outras
se complementada com outras fontes de crianças, a exploração orientada de es-
informação, pode se constituir em um paços externos à escola e a realização de
recurso auxiliar valioso para a investi- encontros e passeios com os pais podem
gação psicológica. favorecer a socialização dos sujeitos pes-
Os dados obtidos também fornecem quisados, as trocas simbólicas com o
elementos profícuos para o aprimora- ambiente e o estreitamente dos vínculos
mento das estratégias educacionais de- afetivos com seus familiares e, como
senvolvidas com os sujeitos pesquisados. conseqüência, contribuir mais efetiva-
O presente estudo não tem a pretensão mente para o desenvolvimento educa-
de discutir pormenorizadamente propos- cional e psicossocial dessas crianças e
tas alternativas para a educação especial amenizar algumas das dificuldades emo-
infantil, mas nos parece relevante fazer cionais que foram projetadas nos dese-
algumas breves indicações nesse senti- nhos coletados.
Encaminhado em 21/02/03
Aceito em 05/05/03

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