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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO


CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM MÚSICA, NEUROCIÊNCIAS E INCLUSÃO
DISCIPLINA: COGNIÇÃO E EMOÇÃO
ALUNOS: CLARA NATUREZA DOS SANTOS DOURADO
MIGUEL IAGO BATISTA NEVES CAVALCANTI

PRÁTICA DE CONJUNTO COMO FERRAMENTA INCLUSIVA: UM


RELATO DE EXPERIÊNCIA

INTRODUÇÃO

A prática de conjunto é uma atividade musical de cunho pedagógico na qual


grupos de pessoas são formados para a experimentação do fazer musical de forma
coletiva. Sob a orientação de alguém (professor, mediador, regente), um conjunto é
organizado definindo quantidade de alunos participantes e quais instrumentos serão
utilizados em cada grupo (OLIVEIRA, 2014). Esta atividade é normalmente vivenciada em
escolas de música e abrange várias habilidades diretamente musicais e, em um nível
mais profundo, cognitivas.

No tocante à música, a prática de conjunto desenvolve a interação entre alunos


e instrumentos diferentes. Morais (1995) afirma que, de todos os benefícios que a
prática musical conjunta pode trazer para quem a pratica, o mais importante é o
aumento da compreensão musical dos alunos, devido às diversas situações
proporcionadas pelo conjunto, bem como a motivação e a competição de forma
saudável. Enfatizando seu aspecto pedagógico, Cruvinel (2005) observa esta atividade
como uma grande ferramenta de aprendizagem musical quando afirma que:

“o aluno percebe que as suas dificuldades são compartilhadas pelos colegas, evitando
desestímulos; o aluno se sente, logo no início dos estudos, participante de uma orquestra ou de
um coral e, ao conseguir executar uma peça, sua motivação aumenta; o aspeto lúdico do ensino
coletivo (desde que bem direcionado pelo professor) torna-se uma poderosa força, auxiliando
um aprendizado seguro e estimulante; e por fim, a qualidade musical no estudo em grupo é
muitas vezes superior se comparado ao individual, contribuindo para que o processo de
aprendizagem seja acelerado (Cruvinel, 2005, p. 78)”
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Nota-se, no pensamento de Cruvinel, o aspecto estimulante e socializador da


prática de conjunto quando acoplada ao processo de aprendizagem musical. No que
tange à cognição, um olhar mais profundo se debruçará sobre estes aspectos.

Relacionando aprendizagem e grupo, percebe-se o quanto estes termos são


intimamente conectados ao longo de nossa filogênese. Como mamíferos e animais
linguajantes, aprendemos a coordenar o fluxo de nossas emoções e comportamentos
ao vivermos em grupo (MATURANA, 2001). Em uma escala maior, essas coordenações
se tornam ações, comportamentos e, em último nível, cultura. Perpassando por todos
estes níveis, nota-se o exercício da linguagem como grande recurso para interações
recorrentes e consensuais entre seres humanos. A cognição seria, assim, a capacidade
que temos de coordenar nossas ações e relações interpessoais ao gerarmos nossas
afirmações cognitivas.

Correlacionando ao tema da pesquisa deste relato de experiência, a prática de


conjunto se torna, portanto, uma metáfora precisa de todo este processo utilizando em
seu fazer a linguagem musical. Ainda em relação ao tema, o notável psicólogo social
russo Vygotsky (apud DA FONSECA, 2011) afirma que o desenvolvimento humano
emerge do contraste entre o externo e o interno sendo o externo fatores socioculturais
e o interno fatores psicobiológicos. Em outras palavras, seria da dialética e da tensão
entre o interindividual (origem social) e o intraindividual (origem psicológica) que o ser
humano materializaria uma internalização dos processos culturais e históricos (DA
FONSECA, 2011).

Em relação ao aspecto estimulante da prática de conjunto, sabe-se que o


emocional desempenha uma função basilar na consolidação de memórias. A emoção
aumenta a memória em relação a informações centrais para nossos objetivos atuais,
mas a reduz para informações pouco importantes (LEVELING e EDELSTEIN apud
EYESENCK et al, 2017) funcionando, assim, como uma grande reforçadora da atenção.

Os efeitos da emoção na aprendizagem se encontram presentes em várias


regiões cerebrais. Uma das áreas importantes que participam no processo de
aprendizagem é a amigdala. Fortemente associada à emoção, o motivo de sua
importância se dá pelo fato da amígdala funcionar como uma espécie de “central
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telefônica”, apresentando numerosas conexões com 90% das áreas corticais (EYESENCK
et al,2017). Um estudo publicado em 2010 concluiu que boa memória de longo prazo
está associada a uma maior ativação durante a aprendizagem de uma rede de conexões
cerebrais incluindo regiões da amígdala e lobo temporal.

Ainda dentro do que concerne ao cérebro e aprendizagem, Alexander Luria


esquematiza o cérebro humano em três grandes unidades básicas conhecidas como
Blocos de Luria. Em uma relação com a teoria do cérebro Trino (cérebro reptiliana ligada
ao instintivo, mamífera ligada ao emocional e neocortical ligada ao ato de pensar), o
primeiro bloco estaria associado a funções de atenção, o segundo à percepção e
processamentos e o terceiro à planificação e tomada de decisões. De forma sequencial,
cada uma destas unidades está envolvida em todos os tipos de comportamento e
aprendizagem (DA FONSECA, 2011). Observa-se, no esquema cerebral de Luria, que o
ato consciente de tomar decisões surge depois que complexos blocos fortemente
ligados ao aspecto emocional e de atenção foram previamente acionados.

Diante do exposto, a prática de conjunto é um excelente recurso pedagógico e


socializador. Dotada de forte aspecto emocional motivador e agregador, pode funcionar
também como um eficaz recurso inclusivo para pessoa com deficiência. De acordo com
o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146 de 6 de julho de 2015), considera-se
pessoa com deficiência “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com
as demais pessoas”. A prática de conjunto surge, portanto, como uma rica ferramenta
inclusiva para garantir não apenas a eficácia do texto normativo, mas também para
trazer dignidade à pessoa humana como um ser além de sua deficiência.

No grupo em que ocorrerá a intervenção musical, temos deficiências múltiplas e


em graus diversos. Tais deficiências se dividem em autismo, síndrome de Down e
cegueira e baixa visão. Em todas elas, a música atua como instrumento de construção
do conhecimento em geral e do autoconhecimento (desenvolvimento cognitivo e
linguístico), desenvolvimento do esquema corporal (psicomotor) e incentivo da
comunicação com o outro (sócio afetivo) (CHIARELLI; BARRETO, 2005).
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Em relação a criança ou adolescente com síndrome de Down ou com o espectro


autista, o processo de aprendizagem não pode ser visto como mais complicado ou cheio
de impedimentos, mas deve-se adequá-lo ao grau da síndrome e da situação vivida pelo
indivíduo. Na educação musical, através de técnicas de escuta ativa e da reprodução e
exploração sonora com apelo à espontaneidade e criatividade interpretativa, tem-se um
meio de reabilitação e de bem-estar. A música funciona como uma ponte de
comunicação possível para os portadores de síndromes congênitas.

A saúde física e mental constitui um expressivo fator de influência no


neurodesenvolvimento. Desnutrição, enfermidades, deficiências e doenças congênitas
e traumas físicos são alguns exemplos de como a saúde pode afetar o desenvolvimento
do cérebro humano durante o período escolar. Crianças portadoras de síndrome de
Down ou autismo, por exemplo, apresentam algumas dificuldades características na
aprendizagem, e necessitam de uma educação adequada. As emoções também
influenciam o neurodesenvolvimento infantil e podem prejudicar seu desenvolvimento,
trazendo consequências sérias na formação de seu perfil mental (ILARI, 2014).

Segundo estudos, nos autistas, a música não verbalizada é decodificada no


hemisfério direito do cérebro (parte que integra a subjetividade e a emoção). A partir
daqui, passa para o centro de respostas emotivas, que se localiza no hipotálamo
movendo-se para o córtex (responsável pelos estímulos motores e pela parte
intelectual). Os sons verbais, pelo contrário, são registados no hemisfério esquerdo, na
região cortical (analítica e lógica) diretamente do aparelho auditivo (SILVA, 2012).

Nos portadores da síndrome de Down a estimulação precoce tem o objetivo


claro de aproveitar a neuroplasticidade cerebral para ativar e promover as estruturas
cerebrais. Diez ressalta que a intervenção é feita visando conseguir o máximo de
desenvolvimento possível das capacidades da criança, que a permita adquirir autonomia
como pessoa (DIEZ, 2008 apud RAVAGNANI, 2009).

De uma forma geral, nos autistas e nas pessoas com síndrome de Down, a música
atinge primeiramente a emoção e depois as reações físicas, como a marcação do ritmo
e assim o portador de autismo poderá interagir com o mundo que o rodeia. As atividades
desenvolvidas com a música permitem a nível da comunicação, cognição e linguagem
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um maior desenvolvimento intelectual a partir da quantidade e riqueza de estímulos e


experiências diárias tendo a repetição como agente fortalecedor da consolidação da
memória. As experiências rítmicas permitem à criança ou adolescente um
aprimoramento dos seus sentidos, coordenação e atenção a partir da forma como ele
vê, ouve e toca. No que concerne à socialização, o portador de uma síndrome congênita
vai formando a sua identidade, tomando consciência de si e dos outros, favorecendo a
interação, participação e cooperação e desenvolvendo a autoestima.

No tocante aos cegos, implica em adquirir habilidades musicais mais aguçadas


com o desenvolvimento da memória auditiva e do ouvido musical. As evidências
fornecidas pelo campo neurológico incluem investigações sobre a sinestesia audiovisual,
percepção de objetos pela audição musical, manifestação da linguagem e percepção de
emoções pela visualização da performance musical (RODRIGUES; DOS SANTOS;
GATTINO, 2014).

É importante destacar a diferença entre Sinestesia, Cinestesia e Cenestesia, em


que o primeiro é a troca de um sentido pelo outro, já a Cinestesia que é a consciência
da qual percebemos a movimentação espacial de nosso corpo e movimentos musculares
(quando ao escutar uma música, ficamos batendo pés e mãos, por exemplo) e ainda a
Cenestesia que é a consciência de suas funções orgânicas (ao ouvir uma determinada
música, a pessoa começa a transpirar exacerbadamente) (ORTEGA, 2009 apud
RODRIGUES et al, 2014).

As imagens auditivas/visuais ao atingirem os centros da imaginação ou da


ideação no cérebro, se tornam uma só sensação. A principal região do cérebro envolvida
no reconhecimento de formas é o complexo lateral occipital (CLO). O CLO é uma região
superior da região visual ventral e está associada a respostas de formas complexas,
independentemente das propriedades visuais. Estas funções incluem tamanho, posição,
luminosidade, movimento, contorno ou profundidade (RODRIGUES et al, 2014).

Portanto, a presença da música na educação e principalmente a prática de


conjunto auxilia a percepção, estimula a memória e a inteligência, relacionando-se ainda
com habilidades linguísticas e lógico-matemáticas favorecendo procedimentos que
ajudam o indivíduo se reconhecer e a se orientar melhor no mundo. Também pelo
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caráter lúdico e de livre expressão, promove a inclusão e o bem-estar trazendo


envolvimento social e despertando emoções positivas que melhoram a aprendizagem.

REFERÊNCIAS

CHIARELLI, Lígia Karina Meneghetti; BARRETO, S. d. A música como meio de desenvolver


a inteligência e a integração do ser. Revista Recre@ rte, v. 3, p. 1699-1834, 2005.
CRUVINEL, Flávia Maria. Educação musical e transformação social: uma experiência
com ensino coletivo de cordas. Instituto Centro-Brasileiro de Cultura, 2005.
EYSENCK, Michael W., and Mark T. Keane. Manual de Psicologia Cognitiva-7. Artmed
Editora, 2017.
DA FONSECA, Vitor. Cognição, neuropsicologia e aprendizagem: abordagem
neuropsicológica e psicopedagógica. Vozes, 2007.
ILARI, Beatriz. A música e o cérebro: algumas implicações do neurodesenvolvimento
para a educação musical. Revista da ABEM, v. 11, n. 9, 2014.
MATURANA, Humberto R. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.
OLIVEIRA, Edson Barbosa de. O processo pedagógico da disciplina prática de conjunto
do curso de licenciatura em música da Universidade de Brasília. 2014.
RAVAGNANI, Anahi. A educação musical de crianças com Síndrome de Down em um
contexto de interação social. 2009.
RODRIGUES, Igor Ortega; DOS SANTOS, Regina Antunes Teixeira; GATTINO, Gustavo
Schulz. Audiovisualidade em música: processos perceptivos e cognitivos. Revista
Educação, Artes e Inclusão, v. 9, n. 1, p. 95-122, 2014.
SILVA, Cármen Campos Ramos da. Música: um auxílio no desenvolvimento e
aprendizagem de crianças com a perturbação do espectro do autismo. 2012.
Dissertação de Mestrado.

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