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AUTORES
Edgilson Tavares de Araújo
Luisa Saad
EDIÇÃO/COORDENAÇÃO
Denise da Rocha Tourinho
Emanuelle Santos Silva
Tricia Viviane Lima Calmon
Salvador
2020
Rui Costa AUTORES
Governador do Estado da Bahia Edgilson Tavares de Araújo
Luisa Saad
Carlos Martins Marques de Santana
Secretário da SJDHDS EDIÇÃO/COORDENAÇÃO
Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Denise da Rocha Tourinho
Desenvolvimento Social do Estado da Bahia Emanuelle Santos Silva
Tricia Viviane Lima Calmon
Denise Tourinho
Superintendente de Políticas sobre Drogas PESQUISA DE CAMPO
e Acolhimento a Grupos Vulneráveis Edgilson Tavares de Araújo
(SUPRAD/SJDHDS) Jamile Carvalho
Josimeire Ferreira Andrade
Emanuelle Silva
Diretora de Prevenção e COMPILAÇÃO DE DADOS QUANTITATIVOS
Redução de Riscos e Danos Sheila R. Monte Nero
(SUPRAD/SJDHDS)
REVISÃO ORTOGRAMATICAL E ABNT
Valnei SIlva Iramaia Santana
Presidente da Comvida - Sandra Oliveira
Comunidade Cidadania e Vida
APOIO EDITORIAL
Nilton Lopes Midiã Noelle
Diretor Executivo da
CIPÓ - Comunicação Interativa PROJETO GRÁFICO
Ana Luísa Oliveira
Trícia Calmon Enio Saldanha
Coordenadora Geral do Programa Corra pro Abraço Midiã Noelle
FOTOGRAFIA
Acervo Secom/GovBA
Ascom Corra pro Abraço
Ascom SJDHDS
APRESENTAÇÃO
O Governo do Estado da Bahia tem a imensa satis- construção individual e coletiva. A partir daí, vem a
fação de oferecer aos diversos públicos interessa- escuta psicossocial, propondo uma ressignificação
dos, da forma mais sistematizada e transparente com novos sentidos, visão de futuro e projeto de
possível, os princípios estratégicos, o histórico, a vida. Diante de tudo isso, o que era apenas a devas-
metodologia e os resultados do Programa “Corra tação se apresenta como possibilidades que se
pro Abraço”. Esta tecnologia social inovadora se concretizam através do acolhimento e do abraço.
propõe a atuar com pessoas em situações de extre- O sonho renasce e a esperança surge novamente.
ma vulnerabilidade e risco social, associadas à
pobreza, à criminalização e ao uso abusivo/nocivo Depois de atender mais de 13 mil pessoas em
de drogas, promovendo a prevenção, a redução de Salvador, Feira de Santana e Lauro de Freitas, e de
riscos e danos, a garantia de direitos e a inclusão ter realizado mais de 100 mil atendimentos e enca-
social dessas pessoas. minhamentos para os diversos serviços parcei-
ros (saúde, educação, justiça, emprego e renda,
Diante do sofrimento pessoal e familiar, dos proble- assistência social, etc.), nos vemos na obrigação
mas sociais e comunitários, governos e organiza- de compartilhar essa experiência exitosa e seus
ções sociais vem desenvolvendo iniciativas que resultados. Este livro tem como ideal apresentar
visam ofertar alternativas de vida para essa parcela estes resultados a gestores públicos, profissionais,
da população. Algumas dessas iniciativas obtive- estudantes, pesquisadores e demais interessados,
ram sucesso e inspiraram o nosso “Corra”. Outras, mostrando a transformação de vidas promovida
no entanto, fracassaram, mas foram importantes pelo Corra pro Abraço.
para a compreensão de como não se deve atuar
nesses contextos, principalmente aquelas iniciati- No Programa, não existe a relação entre pesso-
vas que “exigem” demais dos públicos beneficia- as ditando o que é certo ou errado. O que há, de
dos, desconsiderando suas reais condições de exis- maneira efetiva, é uma via de mão dupla, respei-
tência; aquelas que atuam de forma repressora ou tosa e humanizada. O que há é o respeito à digni-
violenta, chegando “sem pedir licença”; aquelas dade, aos direitos, às dores e à sabedoria de cada
que, além de impor verdades morais, produzem indivíduo. Espero que esta leitura seja fértil para
mais danos que soluções. todos aqueles que, como nós, acreditam que
OUTROS CAMINHOS SÃO POSSÍVEIS!
O Corra pro Abraço é o oposto disso: ele chega com
o simples encontro, com o olhar. Depois, evoluí- Carlos Martins
mos para o teatro, a dança, a música e a poesia. Secretário de Justiça, Direitos Humanos e
Em seguida, partimos para a conscientização, a Desenvolvimeneto Social do Estado da Bahia
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
PREFÁCIO
egressas do cárcere. Estas são aquelas e aqueles rizada, feita de pessoas sem acesso pleno aos
que fazem o programa, junto com os profissio- direitos – trabalho, moradia, saúde, educa-
nais que aí trabalham,contando histórias que ção, segurança, etc. –, e tampouco ao próprio
grande parte da sociedade desconhece ou não reconhecimento como pessoas. De outras e
quer ouvir: histórias de extrema pobreza mate- novas maneiras, o modelo colonialescravagis-
rial, histórias de abusos no ambiente doméstico ta se repete através das inúmeras formas de
contra mulheres e crianças, histórias de agres- exclusão, submissão, exploração, mortifica-
sões na cidade e na periferia que vitimizaletal- ção, negação e eliminação da população negra
mente centenas de pessoas, sobretudo jovens – ainda que custe reconhecer isto aos grupos
homens negros. dominantes, essencialmente brancos.
Este é o desafio do Corra pro Abraço: se fazer O Corra pro abraço atua na contramão dessa
presente e abraçar aquelas pessoas que história, contribuindo para fazer memória.
ninguém mais quer na sociedade. Pessoas cujos
corpos – em sua maioria negros – registram, Em primeiro lugar, constitui uma presença na
sangram e resistem frente à dureza do mundo, rua para quem alí vive ou passa a maior parte de
das instituições, da história, cujos traços escra- seu tempo. Esta presença produz acolhimento,
vagistas, racistas e coloniais são tão pouco e mal reconhecimento, escuta personalizada e busca
lembrados. Assim, cada moradora e morador de respostas para os problemas vivenciados
de rua, para além de sua existência individual, pelos usuários. Sem revelar aqui seus ingredien-
transporta um pouco dessa história de múltiplas tes, vale ressaltar que, de maneira geral, a meto-
violações. O Corra é,inicialmente, um gesto de dologia do Corra se destaca por três elementos,a
ruptura diante delas. meu ver essenciais: a participação ativa dos
usuários do programa a redefinição permanen-
Uma das maiores violências que uma sociedade te dos percursos e metas a capacidade reflexiva.
pode produzir – e sofrer – é a negação do direito Desta forma, o Corra, se torna referência, para
à memória. Memória através da qual construir os usuários do programa. Não uma referência
um sentido para a própria história, individual estática, superior, intocável e sim uma referência
e coletiva. Ora, a existência de uma popula- palpável que se torna lugar onde ir, ser abraça-
ção de rua nos devolve esta memória através do, onde buscar caminhos para “dar conta dos
de suas cenas, que se reproduzem há mais de problemas”.
cem anos no Brasil: cenas de uma liberdade
efêmera e incompleta para a população negra Dar conta dos problemas significa, em primei-
nas cidades brasileiras,desde a chamada Aboli- ro lugar, reduzir os danos produzidos por estas
ção. A população de rua se repete ao longo das situações, na maior parte do tempo associadas
décadas gritando, para quem queira ver e ouvir, a situações de sofrimento, desamparo, deses-
que continua existindo uma cidadania inferio- pero. A expressão “redução de danos” foi se
Prefácio
cados pela própria inserção neste sistema. Ao As instituições, em contato com o programa,
tempo em que essas ações se dirigem às pesso- ganham a possibilidade de interagir com uma
as custodiadas, elas também pretendem resul- forma de intervenção que se constrói junto com
tar numa relação proveitosa com os próprios os usuários, que passam a ser reconhecidos como
atores do sistema penal – juízes, promotores, pessoas, autores de seus projetos, individuais
defensores públicos, policiais e demais funcio- e coletivos, negociados com a comunidade – e
nários públicos. De fato, a ação no Núcleo de não mais enxergados como cidadãos de segunda
Prisão em Flagrante constitui a possibilidade categoria temidos por sua presumida capacida-
de conhecer, discutir e prevenir práticas abusi- de de prejudicar um projeto social alheio a eles.
vas, expressões do racismo institucional, que As instituições ganham a chance de problemati-
historicamente tem caracterizado a repressão zar suas práticas opressivas e humilhantes, para
penal, fomentando assim o aumento da cons- torná-las mais respeitosas e inclusivas.
ciência nas tomadas de decisão por parte dos
atores do sistema.Em suma, o Corra pro Abraço Enfim, o que ganha a sociedade com o Progra-
se movimenta em diversas frentes para inter- ma Corra pro Abraço? Ganha a possibilidade de
romper e reverter os caminhos, historicamen- preencher sua memória vazada, com suas histó-
te consolidados, da exclusão e da violência, rias de mortes e violações de direitos humanos.
alcançando prioritariamente pessoas negras, Ganha a possibilidade de se reconectar com um
mulheres e pobres. E isto se realiza através de passado colonial que ainda não passou, com as
diversos níveis de intervenção: das pessoas, diversas expressões do racismo– ainda oculta ou
das instituições e da sociedade como um todo. ocultadas na percepção de boa parte das elites
brancas, criando as condições para que cada
As pessoas ganham não só um atendimento uma e cada um possa identificar e assumir sua
para dar conta de suas necessidades imedia- responsabilidade nesse processo histórico.
tas, mas alcançam oportunidades e forças para
sair do silêncio, para participar de processos É disso também que este livro trata. Boa leitura!
formativos, para repensar sua convivência
familiar, para se expressar através da arte, para
formular projetos, para dizer – ou gritar – seus
anseios, reivindicações e sonhos. Neste senti-
do, em novembro de 2018, por exemplo, no
Campo da Pólvora (Centro de Salvador-Ba),
as pessoas tiveram a ocasião de se expressar,
garantindo seu direito a ter memória e resistir,
através da lembrança viva de heróis do passa-
do e presente negro, como Dandara e Zumbi,
com vista para o futuro.
Prefácio
2.3 A ampliação do Corra a partir de 2016: novos públicos,territórios e ações de cuidado integral.......40
4.1 A execução e gestão compartilhada entre estado e organizações da sociedade civil ...................94
4.2 Estrutura e dinâmicas de atuação .......................................................................................................96
4.3 Perfis das equipes de trabalho..............................................................................................................101
4.4 Os processos de gestão .......................................................................................................................103
4.5 O papel da supervisão clínica..............................................................................................................104
4.6 A comunicação estratégica para redução de danos .........................................................................106
4.7 Sistema de monitoramento e indicadores de resultados ................................................................109
5.1 Os resultados apresentados pelo corra pro abraço (2016 a 2018) ..................................................119
5.2 Os desafios na execução do corra pro abraço ..................................................................................132
5.3 Aprendizagens e inovação em políticas públicas sobre drogas......................................................147
e as possibilidades do Corra pro Abraço
INTRODUÇÃO
Este livro possui os seguintes objetivos: a) siste- Assim, a escrita desta obra precedeu um amplo
matizar conceitos e aprendizagens desenvol- trabalho de pesquisa científica e tecnológica
vidos pelo Corra pro Abraço que servem como numa metodologia que privilegiou a atenção
base para a política pública; b) explicitar as do olhar e do escutar ativamente em cada uma
estratégias de atuação que podem ser aplica- das suas etapas, desenvolvidas entre outubro de
das como instrumentos de políticas públicas; 2017 e dezembro de 2018, envolvendo as seguin-
c) apresentar os instrumentos e metodologias tes atividades:
de trabalho, intervenção e gestão utilizados, de
modo que possam ser replicados, adaptados e a)ampla pesquisa documental com análise de
migrar para distintas realidades locais e escalas conteúdo de projetos, relatórios, avaliações,
territoriais; d) ilustrar casos de redução de danos publicações técnicas e acadêmicas, atas de
e cuidados. Para escrevê-lo de modo a sistema- reuniões, entre outros;
tizar e revelar a essência e as peculiaridades do
Corra pro Abraço, considerando a efervescência b) realização de observação simples em todos os
de suas dinâmicas cotidianas de trabalho, não campos/Núcleos do Corra pro Abraço, gerando
foi algo fácil. Em busca de uma construção cola- 20 diários de campo;
borativa em torno da sistematização e difusão
de conhecimentos gerados pelas tecnologias c) realização de 14 entrevistas semiestrutura-
sociais de cuidado desenvolvidas pelo Progra- das coletivas com equipes multidisciplinares
ma, foram convidados pesquisadores vincu- atuantes no Corra Rua, Sede do Programa, Corra
lados a Universidade Federal do Recôncavo Juventude e Núcleo de Prisão em Flagrantes,
da Bahia (UFRB) e da Universidade Federal da Unidade de Atendimento na Rua;
Bahia (UFBA), atuantes no campo das Políticas
Públicas e Ciências Sociais Aplicadas. Estes para d) realização de 04 entrevistas com criadores e
além dos conhecimentos teóricos, experiências empreendedores que fundaram o Corra;
práticas e militâncias relacionadas aos enfren-
tamentos de problemas públicos sociais e as e) participação com observação simples em 05
ações públicas voltadas para a proteção social eventos de capacitação ofertados pelo Corra;
de populações vulneráveis.
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Introdução
f) entrevistas com 08 assistidos pelo Programa, O conteúdo do livro está disposto em seis capítu-
que foram intencionalmente escolhidos los. No primeiro, tem-se aspectos históricos que
mostram o detalhadamente o processo de insti-
Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas tucionalização do Corra e seu crescimento de
e analisadas. Somam-se mais de 40 horas de projeto a programa. No segundo, são apresen-
áudio. tadas e sistematizadas as metodologias e instru-
Deste modo, todo o conteúdo do livro foi siste- mentos que vem sendo aplicados. No terceiro,
matizado a partir de falas e memórias ditas oral- são detalhados aspectos institucionais quando
mente ou escritas pelos atores que participaram a estrutura e gestão. O quarto capítulo trata de
e participam ativamente dessa ação pública. apresentar resultados e aponta desafios, apren-
Busca-se, assim, enfatizar detalhes históricos dizagens e possibilidades para o Programa. O
e das práticas cotidianas, como se materiali- último capítulo, traz algumas considerações
zam os conceitos e princípios defendidos pelo finais escritas pelas editoras deste livro, gestoras
Programa Corra pro Abraço. Para isso, foi preci- da SJDHDS e do Corra pro Abraço.
so o acompanhamento atendo e edição da equi-
pe de gestão da SJDHDS e do Programa Corra Desejamos uma ótima leitura e que desper-
pro Abraço. Temos um fruto de uma construção te individualmente e coletivamente atitudes
verdadeiramente coletiva e dialógica. Cada transformadoras.
frase desse texto reflete as vozes de diferentes
atores. Cada conceito ou resultado quantitativo
ou qualitativo reflete o esforço e comprometi-
mento desses atores envolvidos diretamente
com a garantia do direito ao cuidado. Edgilson Tavares de Araújo
Luiza Saad
A linguagem utilizada busca ser a mais objeti-
va e simples possível, sem academicismos, de
modo que atinja diferentes públicos: gestores
públicos governamentais, gestores de organi-
zações da sociedade civil, técnicos, imprensa e
acadêmicos.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
26
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
ASPECTOS HISTÓRICOS
SOBRE O CORRA PRO ABRAÇO
O processo de criação e desenvolvimento do novos núcleos também foram gerados: o exclusi-
Corra pro Abraço está intimamente relacionado vo para atuação junto a jovens em três bairros
a um contexto social e político favorável à sua de Salvador e em um bairro de Lauro de Freitas;
implantação, tendo início em uma conjuntura e um eixo para lidar diretamente com questões
de mudanças das diretrizes nacionais no que de acesso à justiça e seus desdobramentos,
tange à política sobre drogas. O cenário baiano com atuação no Núcleo de Prisão em Flagrante
de um governo progressista se mostrou favorável de Salvador; além da criação das Unidades de
para a inovação dessas estratégias e, em 2013, Apoio na Rua, uma estratégia que trouxe novos
o Corra pro Abraço surgiu como uma novidade contornos e significados aos espaços de cuidado
dentro da perspectiva de garantia da cidadania no contexto da rua.
e defesa dos direitos humanos das pessoas que
fazem uso e/ou abuso de drogas em contexto de A história do “Corra”, como é carinhosamente
vulnerabilidade. Durante três anos, a proposta chamado por técnicos e usuários - desde sua
foi sendo delineada e ganhando personalidade semente até o fincar das raízes mais sólidas -
a partir do encontro entre técnicos e participan- poderá ser conhecida a seguir, a partir do resga-
tes, no contexto da rua, em atuação articulada te de informações institucionais e de memórias
com as redes na direção de um cuidado integral dos tantos trabalhadores e beneficiários que
e efetivo. colaboraram com essa ação regada pelo cuida-
do e pelos afetos.
A partir de 2016, após o êxito da experiência
inicial, o projeto foi sendo ampliado, expandindo
seus territórios de atuação e agregando novos 2.1 Como o projeto começou:
públicos beneficiários a partir das necessidades contexto, motivações e objetivos
e demandas identificadas ao longo do primeiro
ciclo. Assim, os núcleos existentes foram forta-
lecidos e ampliados e passaram a contar com o Nas primeiras décadas do século XX, o governo
aparato de uma sede própria para apoio às equi- brasileiro começou a delinear sua política sobre
pes e novas perspectivas de ação. Por outro lado, drogas pelo viés proibicionista, incluindo, passo
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
a passo, drogas identificadas como perigosas – Nacional Antidrogas (SENAD), vinculada à Casa
inclusive em função do perfil de seus usuários Militar da Presidência da República.
– na já existente lista de substâncias proscritas
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária Diante da complexidade em se criarem políti-
(ANVISA).1 Em 1938, foi instalada a primeira lei cas sobre drogas voltadas para as pessoas em
que buscou consolidar ações de prevenção, situação de rua, destaca-se aqui o pioneiris-
tratamento e repressão do uso drogas no terri- mo, no contexto brasileiro, das ações públicas
tório nacional, sendo o último elemento o mais desenvolvidas no Estado da Bahia, trazendo a
fortalecido na atuação do governo brasileiro. Em compreensão e o desenvolvimento da lógica da
1980, foi criado o Sistema Nacional de Preven- redução de riscos e danos para o uso e abuso
ção, Fiscalização e Repressão de Entorpecentes de drogas no o âmbito das políticas públicas.
e, em 1986, o Fundo de Prevenção, Recuperação Em 1995, surge oficialmente o primeiro progra-
e de Combate às Drogas de Abuso. ma de Redução de Danos do país, desenvolvi-
do pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso
Somente a partir de 1998, o governo brasileiro de Drogas, ligado à Faculdade de Medicina da
deu início à discussão de uma nova política que Universidade Federal da Bahia (CETAD/UFBa) e
articulasse os temas da redução da demanda coordenado pelo Professor Antônio Nery Filho.
(prevenção, tratamento, recuperação, redu- Em 2003, também na Bahia, é criada a Aliança de
ção de danos e reinserção social) e da oferta Redução de Danos Fátima Cavalcanti (ARD-FC),
de drogas (repressão à produção e ao tráfico). um Serviço de Extensão Permanente do Depar-
Ainda nesse ano, o Brasil sediou a IX Conferência tamento de Saúde da Faculdade de Medicina da
Internacional de Redução de Danos, realizada Universidade Federal da Bahia. Sabe-se, entre-
em São Paulo, quando foram firmadas alianças tanto, que, no contexto internacional, tais estra-
entre órgãos públicos governamentais, socieda- tégias já eram adotadas e que mesmo na cidade
de civil e universidades.2 Nesse contexto, o então paulista de Santos já eram realizadas ações de
Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), distribuição de seringas para usuários de drogas
de 1980, foi transformado em Conselho Nacio- injetáveis desde 1989, devido ao crescimento
nal Antidrogas (CONAD) e foi criada a Secretaria dos casos de contaminação pelo vírus HIV.
1. O proibicionismo é uma maneira simplificada de classificar o paradigma que orienta a atuação dos Estados em relação a deter-
minadas substâncias a partir do estabelecimento de limites arbitrários na definição de drogas legais/positivas e ilegais/negativas.
Para aprofundar a questão, ver FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alter-
nativas. Novos estudos – CEBRAP. 2012, n. 92, p. 9-21. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S-
0101-33002012000100002#1a. Acesso em: 16 out. 2018. A relação de substâncias de uso proscrito no Brasil pode ser encontrada na
Lista F do Anexo I, da Portaria n° 344 do Serviço de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde.
2. MESQUITA, F. Dar oportunidade de vida ao usuário de drogas injetáveis - polêmica nacional. In: BASTOS, F. I.; MESQUITA, F.; MARQUES,
L.F. (orgs.). Troca de seringas, drogas e AIDS. Ciência, debate e saúde pública. Brasília: Ministério da Saúde, 1998. p. 101-12.
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Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Em 2002, com o intuito de articular e integrar Acompanhando o movimento nacional, foi cria-
governo e sociedade, a SENAD mobilizou diver- da na Bahia, em 04 de maio de 2011, através
sos atores envolvidos com o tema para reformu- da Lei Estadual nº 12.212, a Superintendência
lação da política de drogas nacional, instituin- de Prevenção e Acolhimento aos Usuários de
do a Política Nacional Antidrogas (PNAD) por Drogas e Apoio Familiar, atual Superintendên-
meio do Decreto Presidencial nº 4.345, de 26 de cia de Políticas Sobre Drogas e Acolhimento
agosto de 2002. Foi nesse contexto que o gover- a Grupos Vulneráveis (SUPRAD), como parte
no passou a apoiar a criação e a implementa- da estrutura da então Secretaria de Justiça,
ção de estratégias de redução de danos para Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH). A nova
o indivíduo, grupo social ou comunidade, com Superintendência surgiu com a finalidade de
enfoque na prevenção das doenças infecciosas
– ou seja, medidas ainda restritas à prevenção [...] planejar, coordenar, supervisionar, avaliar
de doenças – e na formação de redutores de e fiscalizar a execução das políticas públicas
danos. Dois anos depois, foram realizados semi- preventivas às drogas e de atendimento aos
nários e fóruns científicos para atualização da dependentes e suas famílias, promovendo a
política anterior; e, em 2006, foi aprovada a Lei nº reinserção social de usuários de drogas.4
11.343, que instituiu o Sistema Nacional de Polí-
ticas Públicas Sobre Drogas (SISNAD), suplan- A criação da SUPRAD representa um importante
tando a legislação anterior. Em 2008, a partir de marco progressista para as políticas públicas no
novas compreensões sobre o fenômeno dos usos Estado da Bahia. Isso se reforça em 2012, quando
e usuários de drogas, a expressão “Antidrogas” o Governo do Estado passa a adotar oficialmente
foi substituída na nomenclatura dos órgãos, que ações públicas baseadas nas estratégias de redu-
passaram a se chamar Secretaria Nacional de ção de danos enquanto princípio ético de atua-
Políticas sobre Drogas (SENAD) e Conselho Nacio- ção, a partir da instituição da Política Estadual
nal de Políticas sobre Drogas (CONAD). Em 2011, sobre Drogas (PED), como o documento norma-
a Secretaria foi transferida do Gabinete de Segu- tivo que estabelece os princípios estruturantes,
rança da Presidência para o Ministério da Justiça orientações gerais e diretrizes que devem susten-
com o objetivo de potencializar ações de enfren- tar as ações, projetos, planos e programas públi-
tamento ao tráfico de drogas.3 cos relativos às políticas sobre drogas na Bahia.
3. BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas.
Disponível em: https://obid.senad.gov.br/pessoas-sujeitos-drogas-e-sociedade/politicas-e-legislacoes. Acesso em: 2 out. 2018.
4. BAHIA. Governo do Estado. Lei nº 12.212 de 04 de maio de 2011. Disponível em: https://governo-ba.jusbrasil.com.br/legislacao/1027676/
lei-12212-11. Acesso em: 4 dez. 2018.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Em janeiro de 2012, foi lançado o “Plano Viver Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS). O
sem Drogas”, que se propunha a estruturar uma papel da Câmara é discutir, formular, articular e
rede de acolhimento, tratamento e reinserção acompanhar projetos ligados ao tratamento de
social de usuários de drogas e apoio às suas pessoas com problemas relacionados ao uso e
famílias no estado da Bahia, atuando de forma abuso de drogas, ressocialização e reinserção
sistêmica, além de promover e fomentar ações no mercado de trabalho, sendo coordenada pela
de prevenção ao uso de drogas, sobretudo junto SUPRAD.6
à população jovem.5 Tal plano foi desenvolvido
a partir do Programa Pacto pela Vida (PPV), no É importante lembrar que se vivia nesse momen-
âmbito do Sistema de Defesa Social (SDS) do to um contexto de efervescência e espetaculari-
governo estadual, cujo objetivo principal é a zação do uso do crack. Tal contexto acarretou
promoção da paz social. O PPV, que surge por na ampliação e difusão de ações repressivas e
meio da Lei nº 12.357, de 23 de setembro de 2011, higienistas em grandes cidades, como Rio de
está inserido no contexto da segurança pública Janeiro e São Paulo, bem como no crescimento
em um quadro social marcado por altas taxas de das pressões da opinião pública por resoluções
crimes contra a vida. O Plano envolvia uma série imediatas nos centros urbanos a fim de receber
de políticas através de uma lógica de gestão inte- grandes eventos, como a Copa do Mundo (2014)
grada, incluindo diversas Secretarias de Estado e as Olimpíadas (2016).7 A presença de usuários
e órgãos de participação e controle social, com de drogas em cenas urbanas, especialmente
objetivo de desenvolver estratégias de seguran- nas grandes metrópoles com potencial turísti-
ça pública alinhadas aos direitos humanos para co, passou a ser pautada como um problema de
a garantia da vida. O PPV é organizado e desen- ordem pública na vida dos seus residentes locais,
volvido a partir de câmaras setoriais e, dentre comerciantes e possíveis visitantes. Entretanto,
elas, está a Câmara Setorial de Enfrentamento ao o plantão judiciário que se instalou no Centro de
Crack (CSEC), composta por diversas Secretarias Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas do
de Estado, Ministério Público e Defensoria Públi- Estado de São Paulo (CRATOD), em resposta às
ca e presidida pelo Secretário de Justiça, Direitos operações de recolhimento forçado dos usuários
5. Apesar do nome, “Plano Viver sem Drogas”, denominação que remete a políticas públicas sobre drogas baseadas na abstinência
(proibicionismo), o referido plano pauta suas práticas, prioritariamente, na perspectiva da redução de danos.
6. SILVA, Emanuelle Santos. Inovação em políticas públicas sobre drogas: uma análise argumentativa sobre o projeto Corra pro
Abraço. 2016. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social) – Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas, 2016. p. 103 -106.
7. Em São Paulo, surgia a Operação Centro Legal, na qual o governo do Estado, por meio da Secretaria de Justiça, junto com o Minis-
tério Público e Defensoria Pública, criou uma lei estadual que autorizava a internação compulsória de pessoas em situação de rua.
No Rio de Janeiro, a Prefeitura, em operação com a ONG Viva Rio, também desenvolveu ações semelhantes. Ambas tiveram muita
repercussão na mídia nacional.
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Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Desenho retrata realidade das ruas. Obra do assistido Rogério Santos Santana Roza na intervenção urbana Memórias Negras, em 2018.
de drogas que viviam em situação de rua, iden- alcançar o verdadeiro cerne da questão e dar
tificou que, na realidade, todas aquelas pessoas o suporte necessário para essas pessoas que
consideradas um obstáculo para a ordenação da eram vítimas de amplas e variadas violações de
cidade demandavam atenção social, psicosso- direitos ao longo de suas trajetórias. A criação,
cial, psicológica, de saúde, emprego, acesso ao em 2012, do Centro de Atenção Psicossocial de
lazer e demais direitos sociais. Álcool e Drogas (CAPSad) Gregório de Matos, no
Pelourinho, Centro Histórico de Salvador - atra-
Propondo-se a atuar em consonância com as vés de articulação da CSEC com a Secretaria de
ações de defesa dos direitos humanos e contrá- Saúde e a Universidade Federal da Bahia - surgiu
ria a ações de repressão a pessoas em situação como uma das medidas do Governo do Estado
de rua que fazem uso de drogas, com base em para garantir assistência às pessoas vulnerabi-
dados e pesquisas que comprovavam sua inefi- lizadas que vivem ou transitam naquele terri-
cácia, a SUPRAD dedicou-se a elaborar estraté- tório. Nesse período, também foi implantado
gias alternativas que tivessem capacidade de o projeto Prevenção do Uso Abusivo de Drogas
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
8. LUIZ, C. M.; COHN, Amélia. Sociedade de risco e risco epidemiológico. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2006, v. 22, n.11, p. 2339-
2348, nov. 2006.
9. SPOSATI, A. Seguridade Cidadã: múltiplos desafios para a institucionalidade social da América Latina. In: Seminário Internacional
realizado em: Barcelona: 5 e 6 de março de 2007, Fundação CIDOB-IBEI – Centro de Investigação, Docência, Documentação e Divul-
gação de Relações Internacionais e Desenvolvimento de Barcelona do Instituto de Governo e Políticas Públicas da Universidade
Autônoma, 2007.
32
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
33
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
que é possível promover cuidado em meio aber- sociais. A participação de redutores de danos no
to, considerando as singularidades do modo de coletivo se fez fundamental, visto que é ativida-
vida dessas pessoas, com vistas a reduzir riscos de dos mesmos atuar
e danos decorrentes do uso e abuso de drogas.
[...] junto a pessoas que usam drogas, nos
locais onde estas vivem e convivem, operan-
2.2 A atuação do Corra Rua de 2013 do estratégias de promoção de saúde que tem
a 2016: à guisa do testar e do fazer como base o acolhimento, a construção de
vínculos e a busca de construção de itinerários
terapêuticos que privilegiem o sujeito.14
Desde os primeiros anos, o projeto Corra pro
Abraço teve implementação via gestão compar- Em meio às atividades para formação da equipe,
tilhada do Governo do Estado da Bahia, através iam se desenhando os princípios norteadores e
da SUPRAD, com a execução por organizações as estratégias necessárias para o trabalho, ainda
da sociedade civil. Inicialmente, a parceria foi que muito fosse planejado, pouco se sabia do
realizada com o Centro de Referência Integral que os esperava no mundo da rua e das pessoas
de Adolescentes (CRIA), organização da socie- que nela vivem. Essa realidade se apresentava
dade civil com larga experiência de atuação em como uma novidade que precisava ser conheci-
arte-educação com adolescentes em situação de da, compreendida e trabalhada juntamente com
vulnerabilidade. Naquele momento, em 2013, o os sujeitos que dela seriam parte fundamental.
projeto teve como público prioritário pessoas O real plano de trabalho seria construído com
em situação de rua que fazem uso nocivo de eles e não para eles, sem perder de vista o forte
drogas, um dos públicos prioritários no âmbito compromisso com a garantia da saúde pública e
do Pacto Pela Vida. com a defesa dos direitos humanos das pessoas
que fazem uso ou abuso de drogas, seus familia-
A primeira medida do novo projeto consistiu res e a comunidade onde estão inseridas.
na identificação e capacitação de uma equipe
multidisciplinar que deveria ter a desafiante Definida a identidade do grupo de profissionais,
atuação transdisciplinar articulando os campos chegou-se à fase de identificação dos campos
da redução de danos, atenção psicossocial e de atuação a partir da observação da dinâmi-
acesso às redes de atenção; adotando a lógica ca de locais onde havia grande concentração
da integralidade do cuidado em seus aspectos de pessoas em situação de rua em Salvador.
afetivos, emocionais, econômicos, culturais e Inicialmente, o trabalho se deu no Ponto de
14 PETUCO, D. R. S.; MEDEIROS, R. G. Redução de danos: dispositivo da reforma?. Boletim Drogas e Violência no Campo, [s.l.], mar.
2009. Disponível em: http://www.koinonia.org.br/bdv/detalhes.asp?cod_artigo=340&cod_boletim=31. Acesso em: 6 dez. 2018.
34
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Comemoração de dois anos de existência do então Projeto Corra pro Abraço, no Largo Pedro Arcanjo, Pelourinho, em Salvador, em 2015.
35
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Encontro, antigo centro de convivência para integradas, como música, artes plásticas, capo-
usuários de álcool e outras drogas gerido pelo eira e outros trabalhos corporais vinculados à
CETAD/UFBa e localizado no Santo Antônio Educação Física. O turno oposto ao campo era
Além do Carmo, bairro do Centro Histórico de dedicado ao preenchimento de instrumentos de
Salvador. A partir do contato com os frequenta- acompanhamento, reuniões, encaminhamen-
dores do espaço, o projeto foi tomando melhor tos, acompanhamento de usuários a serviços da
forma, ganhando mais corpo e incorporando rede e demais necessidades que surgissem. 15
a participação protagonista dos beneficiados.
Entre oficinas lúdicas, conversas individuais, Para além dos desafios pessoais e individuais,
rodas em grupo e muita construção coletiva, eram bastante comuns outros desafios exter-
chegava a hora de se lançar nas praças, ruas e nos, como a questão climática, a violência poli-
becos e ouvir o que esses espaços e seus habi- cial nos territórios e os conflitos entre grupos
tantes tinham a dizer. rivais. Embora as atividades tivessem um plane-
jamento, de maneira relativamente frequente
A abertura dos chamados “campos” – territórios não podiam acontecer ou precisavam ser inter-
de atuação nas ruas – deu-se em parceria com rompidas pela chuva, pela ocorrência de agres-
usuários que já haviam conhecido a proposta e sões ou mesmo morte de algum participante
a equipe ainda no Ponto de Encontro, o que foi ou conhecido, e ainda por ameaças de brigas
fundamental no processo de aceitação pelos entre sujeitos de grupos opostos, situações que
demais sujeitos que ocupam esses espaços e colocavam em risco tanto beneficiários, quan-
que, por razões óbvias, tendem a desconfiar to técnicos. Nesses casos, o grupo travava um
das intenções de estranhos que se aproximam. diálogo e tomava a decisão de forma coletiva, a
Inicialmente, em função das características de fim de proteger todos os envolvidos no trabalho.
alta concentração de usuários de drogas e da A parceria com o Centro de Referência Especiali-
diversidade do perfil dos mesmos, foram iden- zado para População de Rua em Situação de Rua
tificados os territórios do Terminal de Ônibus (Centro Pop), equipamento público do Sistema
do Aquidabã e da Praça Marechal Deodoro – Único de Assistência Social (SUAS) que oferta
conhecida como Praça das Mãos – para atua- serviços especializados para pessoas em situ-
ção. Entre 17h e 19h – horário definido a partir ação de rua, localizado no Centro Histórico de
da adequação às dinâmicas locais – a equipe Salvador, mantido pela Secretaria Municipal de
levantava demandas, fazia atendimentos, dava Promoção Social e Combate à Pobreza (SEMPS),
retornos e realizava oficinas de arte-educação. também foi uma ferramenta importante que
Para construção da metodologia do proje- garantiu, em diversos momentos, a realização
to, partiu-se da experiência de mais de duas de atividades em um espaço fechado e seguro.
décadas do CRIA com arte-educação. Embora
o teatro ocupasse a centralidade no processo, Ao observar que nem todos os indivíduos conse-
outras linguagens artísticas também foram guiam chegar à concentração dos grupos nos
36
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Participantes do Programa realizam espetáculo de encerramento das atividades, no Espaço Xisto Bahia , nos Barris, em Salvador, 2018.
campos, ou em outro espaço pré-definido, foi tório ia sinalizando onde a equipe deveria ir,
criado também o Núcleo de Extensão da Redu- quais os caminhos, as conversas, as propostas,
ção de Danos para alcançar essas pessoas que o momento de chegar e de sair. Os encontros
ficam em locais menos visíveis, muitas vezes itinerantes se tornaram uma potente estratégia
escondendo-se para fazerem uso de drogas de de fluidez nas relações com usuários que não
forma mais protegida. No entorno dos campos podiam, não conseguiam ou não queriam parti-
já estabelecidos, as equipes intensificaram cipar das rodas, ainda que muitos tenham, aos
um trabalho de extensão do circuito, andando poucos, se integrado ao coletivo.
pelas redondezas para apresentar a proposta,
convidar para as atividades, distribuir insumos e Ao fim dos ciclos de oficinas ou em datas come-
construir lentamente o vínculo. O próprio terri- morativas, foram realizadas ações de interven-
15. SALVADOR. Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social. Centro de Referência Integral de Adolescentes.
Corra pro abraço: o encontro para o cuidado na rua. Salvador: SJDHDS, 2016.
37
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
38
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Corra pro Abraço, Movimento Nacional de População de Rua e Defensoria Pública (DPE/BA) em ação conjunta no Comércio, Salvador - BA, em 2017.
do Cuidado (PAC), principal instrumento para profissionais de diferentes áreas e serviços para
acompanhamento de cada sujeito, que será o cuidado integral e extra-muro das institui-
detalhado adiante, passou a fornecer informa- ções, mobilizando os afetos, compartilhando
ções primordiais para a condução dos casos, a cuidado e assegurando direitos civis e sociais.
inserção nas redes de cuidado e o consequente
monitoramento dos quadros. A partir de tentativas, erros e acertos, as estra-
tégias desenvolvidas pela equipe, somadas às
Embora sejam conhecidos os problemas que experiências e conhecimentos individuais de
as redes de saúde, assistência social e justiça cada técnico e à conexão com as redes, resul-
enfrentam, além dos entraves colocados para taram em um trabalho extremamente diferen-
o acesso da população em situação de rua aos ciado e altamente qualificado, em um contexto
equipamentos públicos – como CAPS e CAPSad, no qual variados desafios se apresentavam. Por
CRAS e CREAS, Defensoria Pública, Consultório meio do acolhimento sem exigências, da escu-
na Rua e outros –, o Corra teve papel funda- ta sensível, do diálogo respeitoso, da garantia
mental na articulação e na movimentação e acesso aos direitos e do fortalecimento da
dessa rede para garantir os atendimentos e os autoestima, a relação entre equipe e benefici-
encaminhamentos dos acompanhados. Como ários ia se consolidando e favorecendo a cons-
um vetor da rede, o projeto passou a mobilizar trução de novos projetos de vida.
39
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Participante do Corra pro Abraço Juventude registrando exposição fotográfica na comunidade de Plataforma, em Salvador, em 2017
2.3 A ampliação do Corra a partir ausência de políticas públicas para essa popula-
de 2016: novos públicos, territórios ção, que teve o seu processo de vulnerabilidade
e ações de cuidado integral intensificado por não ter tido acesso a essas polí-
ticas ao longo das suas vidas. Sujeitos que, muitas
vezes, só eram acessados pelo poder público
Durante alguns anos de experiência, o projeto-pi- quando experimentavam os mais variados tipos
loto mostrou sua efetividade por meio de resul- de ausências e violências, passaram, a partir do
tados bastante consistentes, apesar dos poucos Corra pro Abraço, a ter acesso a direitos funda-
recursos utilizados e, assim, ganhou novas proje- mentais, como saúde, assistência social, justiça
ções, afirmando-se enquanto a principal ação e educação, além de conhecerem o conforto do
pública para lidar não só com a questão do uso acolhimento e da escuta qualificados.
abusivo e nocivo de drogas, mas, principalmen-
te, com o processo de estigmatização e crimina- A partir do final de 2016, o Corra ampliou seu
lização vivenciado por seus usuários. Tomando, leque de atuação para novas frentes, incluindo
então, um caráter programático, o Corra intensifi- a expansão do público beneficiado, bem como
cou sua atuação em redução de danos para além a incidência em outros municípios, como Lauro
do sujeito, atuando como suporte na brecha da de Freitas e Feira de Santana, e novos territórios
40
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Fonte do Gravatá
Ladeira de Santana Oficinas de Oficina de
Praça do Fórum Rui Barbosa Arte-Educação: Educomunicação
Rua da Independência Música Formação para a
São Miguel Qualificação rede de atenção
Esporte Profissional
Teatro psicossocial
Oficinas de
Oficinas de
Arte-Educação POP RUA Educomunicação
ou Arte-Educação
Redução de Danos JUVENTUDE
PÚBLICO: Redução de Danos
Acolhimento Pessoas que fazem PÚBLICO:
uso de drogas Jovens em situação Acolhimento
Escuta de risco e
e pessoas em Escuta
Encaminhamento situação de rua vulnerabilidade
Encaminhamento
Orientação
Orientação
41
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
em Salvador.17 Compreender território no âmbito das redes; e, ao mesmo tempo, o local de organi-
dos problemas públicos relacionados à temática zação política onde as pessoas agem para conse-
das drogas implica em desconstruir certos estig- guir mais autonomia e melhores condições de
mas impostos aos territórios onde homens e vida.20 Mais do que verificar que existiam alguns
mulheres vivem, constroem, percebem e sentem. usuários de drogas que viviam isolados ou em
Tratam-se de territórios fluídos (a rua, a favela, grupos em determinados espaços, foi preciso
a praça, a marquise, a fonte, o viaduto, o beco), captar as dinâmicas de interação do espaço-
que têm o poder de se (des)territorializar facil- -tempo21 que se formavam nas complexidades
mente para a pessoa que neles vivem.18 dos espaços públicos das ruas. Tal espacialida-
de, para além da dimensão física e econômica,
Assim, para além de compreender território possui questões simbólicas, ou seja, ligações
como categoria analítica geográfica, apropria- afetivas, culturais e de identidade dos indivíduos
da por determinados grupos para reproduzir e ou grupos sociais com seu espaço geográfico.22
satisfazer suas necessidades vitais, foi necessá-
rio compreender territórios e (des)territorializa- O Corra pro Abraço tornou-se extremamente
ções como instrumentos de gestão para a ação inovador ao experimentar intensas vivências
pública. Trata-se de deixar o sentido figurado nos territórios para que, a partir dos repertó-
desse termo, que conserva a ideia de espaço rios vividos pelos usuários de drogas nas dife-
físico, para entendê-lo como algo moldado rentes cenas de uso e das diferentes situações
pela combinação de diferentes formas internas e demandas existentes, fossem estabelecidos
e externas, compreendido como parte de uma nortes de atuação. Muitas vezes, mesmo sem a
totalidade espaço-temporal.19 Ou seja, refere-se certeza ou garantia do que esperava a equipe, o
a uma construção social e histórica de relações objetivo era estar nesses espaços físicos e simbó-
de poder, das desigualdades, das identidades e licos não como meros agentes de mudança que
17. A escolha dos municípios e territórios deu-se a partir do alto índice de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) nessas localida-
des. O CVLI é um indicador utilizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia e acompanhado pelo Programa Pacto
pela Vida para a definição de implantação de políticas públicas de prevenção e segurança social. Também foi relevante a existência
de Base Comunitária de Segurança nos bairros selecionados.
18. SILVA (2016) ibid.
19. FISHER, T. ; MELO, V. P. Organizações e Interorganizações na Gestão do Desenvolvimento Sócio-Territorial. Organizações & Socie-
dade (O&S), v. 11, 2004. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaoes/article/view/11816. Acesso em: 6 dez. 2018.
19. SPOSATI, Aldaíza. Territorialização e desafios à gestão pública inclusiva: o caso da assistência social no Brasil. In: Congreso Inter-
nacional del Clad sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, XIII, v. 4, n.7, 2008. Anais... Buenos Aires/Argentina, 2008.
20. SAQUET, M. A. Territorialidades, relações campo-cidade e ruralidades em processos de transformação territorial e autonomia,
Revista Campo - Território, Uberlândia, v. 9, n.18, p. 1-30, 2014.
20. DEMATTEIS, G. Progetto implicito, Il contributo della geografia umana alle scienze del territorio. Milano: Franco Angeli, 1995.
42
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
chegavam para “trazer soluções”, mas sim para 2.3.1 O Corra Rua e a Extensão
tentar compreender os campos enquanto rela- da redução de danos
ção resultante do homem com o espaço, em
constante processo de territorialização no caso
das pessoas em situação de rua e juventudes em Ainda em Salvador, a atuação da equipe se
situação de risco e vulnerabilidade. O território ampliou para outros locais identificados como
como ator e como instrumento de ação pública é territórios com alta concentração de pessoas
a base de atuação do Corra para intervir na dinâ- em situação de vulnerabilidade que fazem uso
mica de vida dos indivíduos sob uma perspecti- ou abuso de drogas, além de serem espaços que
va ética e estética, em uma constante busca de sofrem com a criminalização das drogas e com
equilíbrio de relações de poder. 23 as diversas violências atreladas a ela. Além de
campos fixos no “Aquidabã” e “Praça das Mãos”,
Assim, foi preciso compreender que o território o Corra Rua passou a ter atuação no Largo de
não significa mero perímetro de uma área física, Mares e na Baixa do Fiscal – localizados no perí-
principalmente quando se trata da rua, mas de metro conhecido como Cidade Baixa, via gestão
algo que vai além da topografia natural, e cons- compartilhada com a Comunidade Cidadania e
titui uma “topografia social” decorrente de rela- Vida (COMVIDA), uma Organização da Socieda-
ções entre os que nele vivem e relações com os de Civil de Interesse Público (OSCIP), com treze
que vivem em outros territórios. Logo, para um anos de existência.25
programa de redução de riscos e danos, “território
não é gueto, apartação, ele é mobilidade”, sendo Seguindo os princípios e diretrizes estabelecidos
um assunto complexo, que implica em considerar ao longo dos primeiros anos de experiência, o
diferentes forças e dinâmicas que nele operam.24 trabalho na rua continuou amparado nas estra-
21. Segundo Vieira, “o espaço e o tempo constituem categorias analíticas importantes nos estudos econômicos e geográficos. Há
uma indissociabilidade na noção espaço-tempo, principalmente, considerando a origem do espaço e do tempo atribuída pela física
teórica e experimental. Para a física moderna, principalmente após Einstein (1905), a matéria cria o espaço e o movimento da matéria
cria o tempo. Como ambos formam uma indissociabilidade, tem-se a configuração da unidade espaço-tempo.” VIEIRA, E. F. ; VIEIRA, M.
M. F. Geoestratégia dos espaços econômicos: o paradigma espaçotempo na gestão de territórios globais. In: FISCHER, T. (Org.) Gestão
do desenvolvimento e poderes locais: marcos teóricos e avaliação. Salvador: Casa da Qualidade, 2002. p. 47.
22. ALBAGLI, S.; BRITO, J. (Orgs.) Glossário de arranjos e sistemas produtivos e inovativos locais. Rio de Janeiro: REDESIST/IE-RJ,
2004. Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/redesist/P4/Ampli/Gloss%E1rio%20RedeSist.pdf. Acesso em: 7 dez. 2018.
23. SILVA (2016) ibid.
24. SPOSATI, Aldaíza. Territorialização e desafios à gestão pública inclusiva: o caso da assistência social no Brasil. In: Congreso Internacio-
nal del Clad sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, XIII, v. 4, n.7, 2008. Anais... Buenos Aires/Argentina, 2008., p. 10.
25. Além do gerenciamento das ações no Centro Antigo e Cidade Baixa de Salvador, a COMVIDA também é responsável pela gestão
geral do Programa, pela atuação junto ao Núcleo de Prisão em Flagrantes e pelas ações voltadas para jovens no bairro de Itinga, em
Lauro de Freitas.
43
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
44
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
45
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Acompanhamento e visita de técnico a assistido na região do Pela Porco, em Brotas. Escuta qualificada e acolhimento são norteadores.
te, o cuidado. É comum que sujeitos acessados Com relação às dificuldades encontradas no
pela equipe de Extensão comecem a frequen- atendimento, pode ser citada a intervenção
tar a sede do Programa, inserindo-se também violenta da polícia, principalmente nos territó-
nas oficinas da casa. Se, em outro momento, rios do Comércio. Muitas vezes, quando perce-
percebeu-se que os sujeitos abordados pela bem a chegada dos agentes policiais, usuários
equipe de Extensão estabeleciam uma relação e usuárias solicitam aos técnicos que fiquem
de cuidado exclusiva com esta equipe, quando um tempo maior no local da cena de uso, estra-
esses passaram a acessar o pacote de possi- tégia que inibe ações violentas por parte dos
bilidades (oficinas, cursos, rodas de arte-edu- agentes públicos. Também é comum ter de lidar
cação), foi notável sua maior vinculação com com situações de crise, quando é necessário
as várias dimensões do Programa, bem como um manejo cuidadoso para produzir conforto
com outras equipes e profissionais. e diminuir a desorganização do sujeito. Nessas
situações, a capacidade de afetar-se, enxergar
46
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
e sentir a cena e perceber o que o usuário não beber água, pois passava até dois dias sem se
consegue captar, favorece a continência e a hidratar. Aos poucos, foi se inteirando das ativi-
relação terapêutica e torna-se uma ferramen- dades e se deslocando de seu espaço afastado
ta útil, que possibilita enxergar sem perder de para participar de oficinas nos campos fixos.
vista onde, quando e como intervir. Com carinho, recorda: “Do jeito que eu tava
assim, suja, fedendo, as meninas me abraça-
No trabalho de Extensão, é utilizado como vam, beijavam. Aí onde eu via que o Corra tava,
inspiração o conceito de clínica peripatética, eu ia atrás”. E. também conta que, desde que
que define de maneira precisa a natureza da começou a participar mais ativamente das
atuação desse núcleo: “praticada em movi- ações ofertadas pelo Programa, tem se voltado
mento, no dentro fora dos consultórios, nos para o cuidado com seus pares, reconhecendo,
espaços e tempos traçados”.26 através de sua experiência, que muitas vezes “a
pessoa só precisa de outra pessoa pra dar um
O trabalho realizado na rua, em movimento, abraço mesmo e dizer que você vai conseguir,
nos espaços onde os sujeitos se encontram e que você pode, que você deve seguir”.
se sentem à vontade, permite aprofundar os
conceitos de cuidado em liberdade, princípio
da Reforma Psiquiátrica e da condução de um 2.3.2 A sede do serviço como lugar
cuidado que se direcione radicalmente pela de referência para proteção social
autonomia do sujeito. Dessa forma, muitas
vezes o trabalho de cuidado consiste em infor-
mar ao sujeito um conjunto de direitos que lhes Durante o período que funcionou como projeto,
foram violados. Ao falar sobre o Programa, o entre 2013 e início de 2016, o Corra não possuía
beneficiário H., de 50 anos, aponta: “Eles expli- sede própria e isso se mostrou um fator limitan-
cam pra gente o que a gente não sabe”. A busca te para o trabalho da equipe, que identificava
pelo acesso a esses direitos é o que conduz a a necessidade de um espaço que garantisse
ética que produz uma potente clínica vincula- maior suporte, com sala para reuniões, escri-
da aos princípios básicos da redução de danos: tório para demandas administrativas e espaço
a construção do autocuidado a partir do empo- para alimentação e descanso. Era comum que
deramento político. os técnicos conversassem entre as abordagens
na rua para tratar de casos ou acontecimentos
Segundo a participante E., de 34 anos, quan- do dia a dia, sem contar com a tranquilidade
do estava nas ruas e via “o Corra”, corria para adequada para essas ocasiões. Além disso, a
47
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
parceria já estabelecida com o Centro de Refe- ter um espaço que oferece segurança e prote-
rência Especializado para População de Rua ção favoreceu a realização de atendimentos
em Situação de Rua (Centro Pop) mostrava e orientações individuais e encaminhamen-
a importância de se ter um espaço fechado, tos de demandas que poderiam não ter sido
coberto e seguro para a realização de ativida- identificadas em um contexto de maior expo-
des com a periodicidade adequada. sição como o da rua. A existência de um lugar
fixo também proporcionou a oferta de ativi-
Assim, durante o processo de ampliação dos dades frequentes para os que quisessem e
campos, territórios e públicos, o núcleo de pudessem acessá-las. As oficinas na casa do
Coordenação Geral em Salvador passou a Corra pro Abraço são abertas e permitem a
contar com uma sede para abrigar as dinâ- participação em qualquer momento do ciclo,
micas administrativas, o trabalho operacio- tendo caráter inclusivo e colaborativo.
nal da equipe e ações com os participantes.
A casa, localizada no centro de Salvador, foi Com todas essas características, a casa
escolhida em uma região com caráter neutro passou a configurar-se enquanto um ponto
no que tange à rivalidade entre grupos opos- de referência para os beneficiários que preci-
tos, de fácil acesso e com ambientes diversi- savam de atendimento em horários distintos
ficados para acolher as variadas demandas. dos campos e também para as demais pesso-
as que ouviam falar do Programa e agora
O propósito e significado desse lugar foram tinham um local para se dirigir e buscar
tomando forma e ganhando utilidade a partir acolhimento para suas demandas. Assim,
do próprio encontro com os frequentadores a sede se transformou em um campo inde-
e as necessidades que apresentavam. A sede pendente, uma vez que passou também a
mostrou-se fundamental para a convivência acolher usuários que só são acessados pelo
entre usuários e técnicos, oferecendo espa- Programa no espaço da casa e não partici-
ços coletivos onde passaram a acontecer pam das atividades nos campos na rua, o
as atividades de arte-educação, mostra de que trouxe a necessidade de redistribuição
filmes, oficinas de letramento e outras, além da equipe e do deslocamento de técnicos
de ser comum a reunião de usuários entre as que estivessem fixos na casa para receber
atividades, intervalos de descanso, momen- os visitantes. Todas as decisões e regras de
tos de leitura de livros da biblioteca e conver- convivência foram sempre definidas com os
sas entre os participantes e técnicos que usuários em reuniões, oficinas e conversas,
acabam por contribuir para o fortalecimento o que fez com que o espaço se consolidas-
dos vínculos. Por outro lado, as salas de coor- se como uma estratégia fundamental para a
denação, reunião e equipe passaram a garan- garantia da qualidade de trabalho e fortaleci-
tir a privacidade e o sigilo para os encontros mento de vínculos para todos os envolvidos
entre os profissionais. A possibilidade de se no trabalho.
48
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Oficina de comunicação na sede, em Nazaré, Salvador, no âmbito do Programa de Extensão “Pega a Visão” com a UFRB, em 2018.
São oferecidas na sede regularmente oficinas, Oficina de Teatro e Dança (conjugadas) – utili-
como : za o teatro como ferramenta de trabalho político,
social, ético e estético, dentro da perceptiva da
Oficina de Música e Esporte (conjugadas) redução de danos, contribuindo para a transfor-
– conteúdos diversificado referentes à cultu- mação social; envolve os participantes por meio
ra musical como uma via de redução de danos dos jogos e técnicas teatrais experimentando
contribuindo para o trabalho coletivo e buscando diferentes processos criativos.
melhorar a autoestima através do conhecimen-
to da sua própria cultura e de outras ; conteúdos Oficina de Incentivo à Leitura e Escrita – tem o
diversificados referentes à cultura corporal do objetivo de estabelecer um espaço motivacional
movimento como uma via de promoção da redu- de exercício de leitura e escrita como instrumento
ção de danos, bem como para a elevação da auto- de formação para a cidadania, a partir de estraté-
estima e melhora das relações. gias lúdicas, interativas, críticas e emancipatórias.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
A oficina de leitura e escrita promovia momentos de reflexão sobre direitos, em 2017. De forma lúdica, as atividades promoviam formação.
50
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
e Direitos Humanos; e Gravação de Áudio e Direi- cuidado dos envolvidos entre si e com o espaço
tos Autorais: a composição e o manejo de instru- coletivo.
mentos musicais. Todas as atividades, realizadas
na sede ou em outros espaços parceiros, conta- Assim, dentre as funções da sede, estão:
ram com emissão de certificado, na maior parte
das vezes o primeiro da vida dos sujeitos, como Concentração de estratégias de cuidado;
no caso de H.: “O Corra pra mim, eu considero
como um projeto de grande utilidade, porque eu, Prestação de serviços e encaminhamento de
com 50 anos, não tinha nem um certificado na soluções diversas para os assistidos;
mão e hoje eu tenho”.
Escuta qualificada e um espaço de fortaleci-
Um ponto que tem facilitado a condução do mento de identidades;
cuidado pela equipe na sede é o uso de telefone,
o que possibilita a retomada de vínculos rompi- Suporte para as estratégias do Programa,
dos ou enfraquecidos com familiares e amigos. O com encaminhamento e acolhimento de
telefone mostra-se como uma importante ferra- demandas;
menta de cuidado, conduzida a partir das neces-
sidades observadas. Além de oferecer suporte Complemento à ação na rua, com atividades
material para os beneficiários – por meio do uso e oficinas;
do banheiro, cadeiras, oferta de água e insumos,
espaço de convivência aberto e arejado, aces- Local de convivência, ampliação do cuidado e
so a livros e wifi – a casa também representa a fortalecimento de vínculos;
possibilidade do encontro e do cuidado fora do
espaço das ruas e uma nova possibilidade de Articulação da rede de assistência e serviços;
convivência entre usuários e técnicos. Encontros/reuniões da equipe e troca de
experiências;
É bastante significativo o retorno positivo de
uma série de usuários e usuárias que passaram a Aplicação de práticas de redução de riscos e
acessar este espaço, relatando, inclusive, o cará- danos;
ter terapêutico de “ocupar o tempo”, antes usado
exclusivamente para o uso da droga e para as Armazenamento adequado de instrumentos
estratégias para sua obtenção. Ofertar o espaço musicais e esportivos e de outros materiais de
de convivência da casa, bem como possibilitar trabalho.
ao usuário ter um ponto fixo onde pode recorrer
à equipe quando precisar, têm sido pontos posi-
tivos do trabalho e da potencialização do acom-
panhamento de qualidade, além de estimular o
51
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
2.3.3 Corra Juventude: ações álcool e outras drogas para lidar com as amea-
preventivas para juventude ças e violências que a vida na rua pode poten-
cializar. Por esses motivos, no início de 2017, o
“Corra Juventude” surge como o braço preventi-
Ao adentrar o universo único de cada sujeito, vo do Programa, uma estratégia de atuação com
ficava cada vez mais evidente que sua chegada jovens de 15 a 29 anos28, com núcleos em bairros
à rua e ao uso nocivo de drogas estava direta- de Salvador e Lauro de Freitas.
mente relacionado a um histórico de violências e
violações diversas ainda em seu bairro de origem, O Núcleo Juventude do Programa começou sua
em seu núcleo familiar, na sua comunidade e na atuação no início de 2017, em Lauro de Frei-
amplitude de seus processos individuais e cole- tas, no bairro de Itinga – o maior do município,
tivos. A idealização de um núcleo que tivesse com cerca de 80 mil habitantes. Já em Salvador,
atuação direcionada à juventude surgiu a partir quatro bairros passaram a receber o trabalho
dessas experiências anteriores com pessoas em específico com jovens – Fazenda Coutos, Boquei-
situação de rua, quando se observou a incidência rão/Nordeste de Amaralina, Plataforma e Beiru/
migratória de bairros periféricos para o centro de Tancredo Neves – através de parceria com a CIPÓ
Salvador, em especial de homens jovens negros e – Comunicação Interativa, instituição com dezoi-
pobres com baixa escolaridade, as maiores víti- to anos de atuação na defesa dos direitos de
mas de mortes violentas no Brasil.27 crianças, adolescentes e jovens. Os cinco terri-
tórios têm em comum a alta concentração de
Assim, nasceu a ideia de ampliar e pulverizar a jovens e o elevado índice de violência associado
atuação no sentido de contribuir para o rompi- à juventude, dados que alertaram o Governo do
mento do fluxo desses jovens, que passavam a Estado para a necessidade de interrupção desse
viver em situação de rua e comumente tinham ciclo, além de serem locais altamente estigma-
como destino final o sistema prisional. Quan- tizados em função dos históricos de violência,
do não tinham suas vidas interrompidas pela repressão e guerra ao tráfico e possuírem Base
violência, tendiam a retornar para os bairros Comunitária de Segurança (BCS), eixo centraliza-
após a saída do cárcere e, então, vivencian- dor do Programa Pacto pela Vida.
do um nível de criminalização ainda maior do
que anteriormente, reiniciavam o mesmo ciclo, O processo inicial deu-se a partir da identifica-
expostos a novas formas de violência e não rara- ção dos lugares onde seriam fixadas as sedes
mente impelidos a iniciar ou intensificar o uso de dos Núcleos. Em Itinga, foi escolhida uma ampla
27. Dados disponíveis em: CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2017. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017.
28. BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 01,
06 ago. 2013.
52
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
casa na entrada do bairro, área com neutralida- familiares com passagem pelo sistema prisional
de territorial, de forma que jovens de diferen- e/ou vítimas de mortes violentas, trajetória esco-
tes origens pudessem frequentar o local sem lar atrasada, interrompida e/ou que estejam
que houvesse a possibilidade de conflitos entre fora da escola, baixa renda familiar, dificuldade
grupos rivais. Nos quatro bairros de Salvador, as de inclusão no mercado de trabalho, ter sofrido
bases foram instaladas em espaços já geridos por processo de criminalização e outras. Ainda foram
outros grupos, fossem eles comunitários – como definidos pesos diferenciados para os itens a
uma biblioteca no Beiru –, ou públicos – caso do partir da compreensão da intensidade dos riscos
Centro de Referência à Assistência Social (CRAS), e elaborado um barema que auxiliou na escolha
em Plataforma. Equipes multiprofissionais foram dos jovens em contexto de maior fragilidade.
compostas com o intuito de realizar um acompa-
nhamento ampliado, integrado e complexificado. As fichas foram distribuídas aos parceiros, que
deveriam devolvê-las preenchidas, identifican-
As primeiras atividades foram pautadas pela do jovens com perfil potencial para ingresso no
necessidade de articulação local junto às redes Programa. As equipes também se encarregaram
formal – Saúde, Assistência Social, Segurança, de fazer uma busca ativa dentro e fora das comu-
Educação, Cultura –; e informal – lideranças comu- nidades à procura desses jovens com perfil alta-
nitárias, grupos culturais, movimentos sociais –, mente vulnerabilizado, o que implica em uma
a fim de apresentar a proposta do Programa e circulação menor e inconstante pelos espaços
desenvolver estratégias conjuntas para a iden- comunitários mais formais e coletivos. Identifi-
tificação dos jovens. Surgia, então, a grande cados os jovens, começava, então, o processo de
questão: quem são esses jovens que o Programa acolhimento e construção de vínculos buscando
pretende acessar? É sabido que grande parte das novas formas de se relacionar com uma juventu-
políticas públicas voltadas à juventude adota de marginalizada, de vínculos familiares fragiliza-
requisitos que acabam por excluir uma parcela dos, sem acesso a direitos e vítima de repressão
de jovens vulnerabilizados, como as exigências de e violência vindas de todos os lados. Segundo
possuir documentação básica e/ou estar matricu- a jovem K., “o Corra me abraçou na hora que eu
lado na escola, dentre outras. O perfil a ser benefi- pensava que ninguém ia me abraçar. Praticamen-
ciado desta vez seria pensado a partir da inclusão te, o Corra me abraçou mais do que minha família”.
dos excluídos: qual o jovem que nenhuma políti-
ca acessa? Quem é o jovem por quem nenhuma O trabalho do Corra Juventude é guiado por uma
instituição quer se responsabilizar? formação cidadã composta por duas linhas que
se complementam nas metodologias e conteú-
Para isso, foi criada uma ficha de identificação que dos. No âmbito da formação sociopolítica/desen-
contém campos para preenchimento de informa- volvimento pessoal e social, os grupos conhecem
ções pessoais e uma lista com itens a serem assi- e discutem temáticas, como cidadania e direitos
nalados de acordo com as possíveis vulnerabili- humanos, políticas públicas, gênero e sexualida-
dades, como uso de drogas (lícitas e/ou ilícitas), de, relações étnico-raciais, uso de drogas e redu-
54
Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
2017: assistido que passou pelo NPF retorma como estagiário. 2018: pesquisadores discutem resultados de atuação do Corra.
30. SOUSA, Áurea Maria Ferraz de. Núcleo de prisão em flagrante: novidade que vem da BA. Disponível em: https://professorlfg.
jusbrasil.com.br/artigos/121921770/nucleo-de-prisao-em-flagrante-novidade-que-vem-da-ba. Acesso em: 28 nov. 2018.
31. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-
-custodia/perguntas-frequentes. Acesso em: 28 nov. 2018.
57
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
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Aspectos Históricos Sobre o Programa Corra pro Abraço
Oficinas de grafite com o artista plástico Marcos Costa durante a inauguração das UARs, em Brotas e no Comércio, em junho de 2018.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
CAMINHOS METODOLÓGICOS:
bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Sendo uma iniciativa inovadora no que diz dades sem abrir mão da noção de coletividade e
respeito à política pública voltada para pessoas de colaboração entre os pares. Seja nas ruas, nas
que fazem uso de drogas em situação de vulnera- sedes ou em outros espaços, as premissas éticas
bilidade social, o Corra pro Abraço elaborou sua e humanas com foco em um trabalho qualificado
metodologia amparado em orientações, inicia- e consistente foram fundamentais para a inten-
tivas, políticas e leis de fundamental relevância sificação do cuidado a partir dos atendimentos,
para o desenvolvimento ético e político a que se encaminhamentos e acompanhamentos de
propõe. A partir da contribuição de lutas históri- cada caso. A criação de instrumentos próprios e
cas de setores da sociedade civil e da conquista a adaptação de outros já existentes possibilita-
dessas reivindicações com a institucionalização ram a intensificação do cuidado em todas suas
pelo Estado, o Corra definiu seus próprios prin- nuances, desde as demandas mais básicas ou
cípios norteadores, tendo sempre como meta emergenciais até a elaboração do projeto de
principal a garantia dos direitos humanos, a vida dos participantes.
promoção da cidadania e a valorização da vida,
buscando enfrentar qualquer forma de discrimi- Parte essencial da atuação do Programa, a arti-
nação e preconceito contra segmentos sociais culação com as redes formal e informal deu-se
que vivenciam múltiplos processos de exclusão. de forma gradual e orgânica, de maneira que a
Os princípios, diretrizes, objetivos e estratégias teia do cuidado estivesse cada vez mais firme
buscam abarcar, compreender e atender às e preparada para ultrapassar as dificuldades
variadas demandas dos públicos beneficiados e superar os desafios que se apresentaram no
sempre a partir de uma perspectiva intersetorial percurso. Estimular parcerias que auxiliassem
e multidisciplinar. os sujeitos no acesso à justiça, saúde, educação,
cultura e direitos é um trabalho que vai além
A escolha da arte-educação como ferramenta da rede e que se volta também para o fortaleci-
para a aproximação e o acolhimento respeito- mento do “cardume”, munindo de informações
sos tem a proposta de nortear a ação a partir e estimulando a autonomia dos verdadeiros
da sensibilização dos sujeitos, explorando suas responsáveis pelo pleno funcionamento do fluxo
potencialidades e valorizando suas individuali- do cuidado. Articular, formar e atualizar técnicos
61
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
do Programa, trabalhadores da rede de atenção de 2009, que institui a Política Nacional para a
psicossocial, parceiros em geral e os próprios População em Situação de Rua e seu Comitê
assistidos mostraram-se práticas essenciais Intersetorial de Acompanhamento e Monitora-
para um trabalho coletivo verdadeiramente mento, reforça os princípios de respeito à digni-
emancipatório. dade da pessoa humana, direito à convivência
familiar e comunitária, valorização e respeito à
vida e à cidadania, atendimento humanizado e
3.1 Valores, marcos legais universalizado e respeito às condições sociais e
e metodologia32 diferenças de origem, raça, idade, nacionalida-
de, gênero, orientação sexual e religiosa, com
Conforme descrito anteriormente, o Programa atenção especial às pessoas com deficiência. Em
Corra pro Abraço tem como principal objetivo relação às diretrizes da Política Nacional para
a promoção da cidadania de pessoas em situa- População em Situação de Rua, destacam-se:
ção de vulnerabilidade e∕ou usuárias de drogas a promoção dos direitos civis, políticos, econô-
partir da lógica da redução de danos. Sua formu- micos, sociais, culturais e ambientais; participa-
lação ética, política e metodológica foi elaborada ção da sociedade civil, por meio de entidades,
a partir da confluência de múltiplos saberes e da fóruns e organizações da população em situação
experiência de diversos movimentos sociais que de rua; elaboração, acompanhamento e moni-
atuam na defesa dos direitos humanos. Movi- toramento das políticas públicas; implantação
mentos como a Reforma Sanitária, a Reforma e ampliação das ações educativas destinadas
Psiquiátrica e o antiproibicionismo e aspectos à superação do preconceito; capacitação dos
da Saúde Coletiva são orientações fundamen- servidores públicos para melhoria da qualidade
tais para o Programa. A proposta ainda se baseia e respeito no atendimento deste grupo popula-
em alguns marcos legais que norteiam a aborda- cional; e democratização do acesso e fruição dos
gem na perspectiva dos direitos humanos. Em se espaços e serviços públicos. Da mesma forma,
tratando de uma ação articulada intersetorial- a Lei nº 12.947, de 10 de fevereiro de 2014, que
mente, não só os documentos citados a seguir implanta a Política Estadual para a Popula-
são referência, mas todos os outros pertinentes ção em Situação de Rua, é fundamental para a
à abordagem do Programa produzidos no âmbi- implementação da política nacional menciona-
to do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema da anteriormente.
Único de Assistência Social (SUAS), bem como da
Educação, da Justiça e da Cultura. A Lei nº 13.182, de 06 de junho de 2014, que insti-
tui o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à
O Decreto Federal nº 7.053, de 23 de dezembro Intolerância Religiosa do Estado da Bahia, orienta
32. Baseado, em parte, no Projeto Político-Pedagógico desenvolvido pelo Programa Corra pro Abraço.
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
33. BRASIL. Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Diário Oficial da União,
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 24 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/
lei/l11343.htm. Acesso em: 7 dez. 2018.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Participantes do Corra pro Abraço cuidaram do jardim do GEDEM/MP-BA como atividade de formação com o Canteiros Coletivos em 2017.
O Decreto nº 4.345, de 26 de agosto de 2002, que A Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, regi-
institui a Política Nacional Antidrogas (PNAD), da pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para
tem o seu lugar de importância na atuação do a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
Corra pro Abraço. Nesse momento, o governo o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
voltou sua atenção para os indivíduos, grupos Africana, traz à tona uma questão essencial para
sociais e comunidades que fazem uso de droga a população atendida pelo Programa Corra pro
e passou a apoiar a criação de iniciativas que Abraço e para a sociedade como um todo, uma
aplicassem a redução de danos nesses contex- vez que estabelece a obrigatoriedade de inserção
tos, observando o necessário alinhamento à da disciplina História da África e Cultura Afro-bra-
Constituição no que tange aos direitos huma- sileira nos currículos escolares. Reconhece que,
nos e às liberdades fundamentais dos sujei- historicamente, a população negra no Brasil foi
tos. Tão importante quanto a Lei nacional é a marginalizada e descrita a partir de teorias racis-
Política Estadual sobre Drogas (PED), instituída tas com grande expressão no século XIX, para
em 2012, quando o governo do estado passou forjar o discurso de inferioridade da raça negra
também a adotar ações fundadas nas estraté- e para sustentar, até os dias atuais, a privação
gias de redução de danos como princípio ético de seus direitos. Diante dessas questões, o Corra
no que diz respeito à política sobre drogas na estimula alternativas políticas e sociais de enfren-
Bahia. tamento ao racismo e à desigualdade que dele se
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
65
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Intersetorialidade dos fatores correlacionados Realizar escuta qualificada das demandas dos
com o uso indevido de drogas; participantes e de seus familiares, bem como
estimular o fortalecimento desses vínculos;
Abordagem multidisciplinar que reconheça a
interdependência e a natureza complementar Atuar junto a populações vulneráveis a partir
das atividades de prevenção do uso indevido do cuidado integral, devendo ocorrer no espa-
de drogas; ço possível para os sujeitos, superando a lógi-
ca dos serviços de alta exigência e produzindo
Diversificação das estratégias de cuidado e espaços de baixa exigência;
desenvolvimento de atividades no território
que favoreçam a inclusão social com vistas Promover o acesso da população em situação
à promoção de autonomia e ao exercício da de rua, usuários/as de substâncias psicoati-
cidadania a partir das estratégias de redução vas e jovens aos programas governamentais,
de riscos e danos; ampliando e qualificando seus acessos aos
serviços públicos básicos;
Combate à violência contra a mulher;
Propiciar a experimentação de vivências volta-
Reabilitação e reinserção das pessoas com das para a prática de redução de riscos e danos,
transtorno mental e com necessidades decor- prevenção ao uso abusivo de drogas, resgate
rentes do uso de crack, álcool e outras drogas da autoestima e construção de projeto de vida;
por meio do acesso à educação, trabalho,
renda, saúde, cultura e moradia solidária; Oferecer intervenção e orientação individual e
grupal em redução de riscos e danos sociais e à
Combate à discriminação e demais formas de saúde em cenas de uso de drogas e em territó-
intolerância racial e religiosa direcionadas à rios marcados pela violência;
população negra.
Oferecer encontro, implicação, espaços de
convivência e sociabilidade, estimulando a
criação de laços e vínculos afetivos e efetivos,
66
Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Atividade Beleza na Rua, realizada na Baixa do Fiscal, em Salvador, em homenagem ao dia internacional das mulheres, em 2017.
a partir de oficinas de arte-educação e outras cuidadosa junto ao usuário, com respeito ao seu
práticas pedagógicas integrativas, fortalecen- modo de vida, suas escolhas e ao seu local de
do a convivência entre participantes e técnicos; moradia, oferecendo-lhe disponibilidade para
um encontro afetivo e efetivo.
Contribuir para o fortalecimento dos equi-
pamentos da rede de atenção e cuidado a Construção de vínculo – Aproximação que prio-
usuários/as de substâncias psicoativas, sobre- riza o investimento contínuo na relação, com
tudo população em situação de rua e jovens disponibilidade para o outro, com o objetivo
em contextos de vulnerabilidade, de forma a de criar laços de confiança entre a equipe e os
promover a construção de novas tecnologias usuários.
sociais de cuidado para essas pessoas.
Escuta qualificada – que promove reflexão dos
Princípios Estratégicos sujeitos sobre suas trajetórias de vida, estimu-
lando-os e orientando-os a buscar respostas
Acolhimento – Postura ética de aproximação para suas necessidades.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Arte-educadora durante a Intervenção Urbana Cinema na Rua: Se Inspire na Tela, realizada no Comércio, em dezembro de 2016.
partir das duas perguntas estimulantes e mági- com o sujeito de forma afetiva e efetiva, sem
cas, “quem sou eu?” e “quem somos nós?”, os imposições ou exigências, era sempre diluído
participantes passam a refletir sobre seus luga- em atividades que estimulavam o desenvol-
res, resgatam lembranças, projetam anseios e vimento pessoal, a reflexão, a sensibilidade, o
trabalham o processo de autorreconhecimen- olhar atento – para si, para o outro, para o espa-
to e identificação coletiva. Em pouco tempo, ço e para a comunidade. Ao mesmo tempo em
a equipe passou a encontrar os participantes que eram trabalhados conteúdos específicos
esperando pelo início da atividade ou mesmo a das diversas linguagens artísticas, temas volta-
roda já formada nos campos, evidenciando que dos para uma formação cidadã emergiam em
o vínculo se fortalecia a cada encontro. meio à descontração ou, como falam os técni-
cos, “é brincadeira com assunto dentro”. Gêne-
Os jogos lúdicos e corporais exigem atenção, ro e diversidade, redução de danos, direitos
disposição, concentração, raciocínio, coorde- humanos, racismo, discriminação e desigual-
nação motora e memória de forma não-mecâ- dades, dentre outros, eram temáticas aborda-
nica e foram incorporados de maneira surpre- das durante as atividades lúdicas.
endente pelos participantes. O ato de cuidado
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
saúde, poder, autonomia e independência, bem questão central nas atividades propostas,
como elemento que demanda cuidado e aten- paradigma ético-estético-político e ferramen-
ção, mostrou-se essencial durante o processo de ta eficiente de fortalecimento de vínculos que
estímulo ao autocuidado e autopreservação. permite a realização de processos educativos e
formativos voltados para o protagonismo das
A arte-educação é ação transversal, abordagem pessoas envolvidas.
metodológica, canal através do qual fluem as
emoções, potencialidades, desejos, conheci- Para executar as ações diárias de arte-educação,
mentos, ressentimentos, faltas, sonhos. Em a equipe de arte-educadores se reúne com a
todas as atividades, a arte-educação se fez coordenação pedagógica para elaborar as estra-
presente, possibilitando um atendimento huma- tégias para as atividades, baseando-se no que já
nizado, respeitoso, de aproximação, levando o foi feito e principalmente nas demandas apre-
cuidado e o acolhimento e promovendo a cons- sentadas pelos participantes. Nesse momento
trução de vínculos e a escuta qualificada, aspec- misto de avaliação e planejamento, também
tos que caracterizam a participação e vinculação são discutidos alguns casos e apresentadas
ao Programa. Seu papel foi fundamental, na inquietações da equipe no que diz respeito aos
medida em que facilita as relações, a fala, a escu- fatos cotidianos, possíveis conflitos entre alguns
ta, a compreensão e outras dimensões que auxi- participantes, desinteresse de outros e demais
liavam no rompimento do ciclo de vulnerabilida- aspectos que possam interferir na fluidez ou
des que afetam os participantes cotidianamente. consolidação da formação.
A partir dessas experiências, a arte-educação
e demais práticas pedagógicas passaram a ser De forma geral, as atividades começam com
utilizadas no Corra pro Abraço como ferramen- um acolhimento inicial, escutando e dialogan-
tas para o desenvolvimento pessoal e coletivo e do sobre o que foi pensado para aquele dia.
promoção de direitos. Por meio das linguagens Normalmente, o planejamento é colocado em
artísticas e da cultura corporal do movimento, prática, mas também pode ocorrer de uma
busca-se atingir a ludicidade, a afetividade, a demanda emergencial ser apresentada pelos
coletividade, a cooperação, o reconhecimento participantes e o conteúdo ser adequado para
da identidade, a formação política, a expressivi- a nova situação. Após o acolhimento, é comum
dade, o autocuidado. Há muito tempo, o recurso a execução de algum exercício de alongamen-
da arte-educação tem sido adotado como meio to corporal e aquecimento vocal para dar início
para promoção de direitos e desenvolvimento à movimentação dos corpos. Ao final, todos se
pessoal e coletivo. A construção do fazer artís- reúnem em roda para o fechamento e recebem
tico de maneira coletiva é um item de extrema o lanche, diretamente vinculado à sua participa-
importância para o aperfeiçoamento das múlti- ção na atividade. Essa foi uma estratégia encon-
plas habilidades e desenvolvimento social. No trada ao longo do desenvolvimento da atuação
Programa, a arte-educação é concebida como para evitar que o mesmo ganhasse os contornos
72
Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
de mais uma ação exclusivamente para forneci- corresponsáveis pelo processo e foram estimu-
mento de alimentação. lados a garantir frequência para apreender as
variadas técnicas e participar dos ensaios com
Entendida como processo de construção coleti- o grupo. Além de evidenciarem a qualidade de
va a partir da potencialização das individualida- um trabalho e cuidado contínuos e elevarem a
des, a arte-educação é trabalhada diariamente autoestima dos participantes, as apresentações
com eixos/fases que se complementam:35 finais se tornaram fortes ferramentas de estímu-
lo para os outros que não queriam, não podiam
Liberação: tem como objetivo alcançar uma ou ainda não conseguiam garantir a frequência
fluência expressiva e diminuir as barreiras e nas atividades, pois, ao verem seus semelhantes
obstáculos individuais e coletivos; em evidência por uma chave positiva, acabaram
sendo incentivados para tentar a continuidade
Sensibilização: tem como objetivo desenvolver a no próximo ciclo.
percepção sensorial, com exercícios que estimu-
lam a autoconfiança, responsabilidade, percep- Entre práticas e ensaios, diversas ações são
ção do corpo e de valores individuais e coletivos; pensadas a partir da observação de datas come-
morativas regionais ou nacionais, e também
Produção: fase em que o ato criador se poten- datas que possuem algum significado para a
cializa, quando os participantes começam a população em foco. De forma geral, as apresen-
elaborar e organizar sua expressão individual e tações são organizadas coletivamente com o
coletiva, utilizando símbolos, imagens, metáfo- protagonismo dos assistidos ocupando algum
ras e outros recursos alternativos de expressão. espaço público que, na maioria das vezes, são
as praças e teatros onde o Programa atua e
Em função do contexto de alta vulnerabilida- promove atividades de cunho político, lúdico,
de e instabilidade na dinâmica de suas vidas, esportivo e cultural. É comum a realização de
os participantes das ruas ou mesmo na sede feiras livres, exposição de produtos fabricados
apresentam maior flutuação na frequência das pelos próprios participantes – a partir dos cursos
atividades. Ainda assim, a equipe identificou profissionalizantes promovidos pelo Programa
a necessidade de manter um fluxo de constru- – oficinas de embelezamento e cuidado na rua,
ção contínua e crescente, principalmente para feira de saúde, rodas de capoeira e outras ações
valorizar os que conseguem organizar suas coletivas. Em Salvador, o grupo oriundo do Corra,
vidas aos poucos e comprometem-se com a o JAER – Juntos pela Arte-educação da Rua, apre-
assiduidade. Para garantir a apresentação de sentou os espetáculos “A contenda das fateiras”,
um produto final, os participantes se tornaram “Negro bom é negro vivo” e “Não feche a porta”.
35. Conforme Projeto Político-Pedagógico desenvolvido pelo Programa Corra pro Abraço.
73
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Também foram realizadas outras intervenções te, pareciam obstáculos intransponíveis, mas, em
públicas, como o “Sarau Poético Vozes da Rua” e algum tempo – um pouco menor ou um pouco
o “Sarau do Corra - Negritude nasce e gira arte!”, maior a depender de cada indivíduo e suas dores
além de intervenções na Câmara de Vereadores – aqueles jovens já passaram a pedir um abraço,
de Salvador, na Semana Estadual de Políticas olhavam nos olhos, distribuíam sorrisos. Segundo
sobre Drogas do Governo da Bahia, no carnaval a jovem T., “O Corra me trouxe alegria; os profes-
de Salvador e em feiras de serviços. sores são como uma família que eu nunca tive na
minha vida”.
A partir da experiência positiva com o empre-
go da arte-educação para pessoas em situação Em Lauro de Freitas (Itinga) e nos quatro bairros
de vulnerabilidade e observando a demanda atendidos de Salvador (Fazenda Coutos, Boquei-
de trabalho com jovens em bairros periféricos, rão/Nordeste de Amaralina, Plataforma e Beiru/
conforme avaliado anteriormente, decidiu-se Tancredo Neves), foi desenvolvida uma formação
por manter as estratégias da arte-educação e cidadã que mesclou temáticas de cunho políti-
do esporte e incorporando a educomunicação co-social à arte-educação e outras pedagogias
na atuação com os Núcleos do Corra Juventude. integrativas. No âmbito da formação sociopolíti-
Enganou-se quem julgava que seria mais fácil ca/desenvolvimento pessoal e social, os grupos
trabalhar com jovens de perfil vulnerabilizado do conheceram e discutiram temas como cidadania
que com adultos em situação de rua, supondo-se e direitos humanos, políticas públicas, gênero
que os primeiros estariam ainda minimamente e sexualidade, relações étnico-raciais, uso de
organizados e seriam mais facilmente sensibiliza- drogas e redução de danos, acesso à justiça e
dos para a formação. Na verdade, o trabalho com violência, planejamento familiar, organização
a juventude de idade entre 15 e 29 anos mostrou- financeira, relações interpessoais e outros. Este
-se bastante desafiador. eixo trabalhou variadas linguagens de expressão,
sendo em Itinga adotada a arte-educação através
Soma-se às peculiaridades do trabalho com de teatro, circo, música e poesia; e, nos quatro
jovens, as transformações físicas e psíquicas a bairros de Salvador, estratégias da comunicação,
inexistência ou fragilidade de vínculos familiares, com aulas de vídeo, fotografia, design gráfico e
a evasão escolar, o acúmulo de funções domésti- rádio. Toda a formação – prática e teórica – foi
cas e ingresso precoce no mercado de trabalho, pautada na fundamentação teórico-metodoló-
a violência policial sofrida cotidianamente, o gica geral adotada pelo Programa, fazendo com
descrédito perante os adultos, o uso e abuso de que cada atividade tivesse como foco a ação da
drogas sem a devida noção sobre seus riscos e reflexão, o reconhecimento da sua identidade, a
danos, a violência sexual, o status representado integração com a coletividade e a emancipação
pelo tráfico e os sonhos que parecem cada vez dos sujeitos.
mais distantes. A desconfiança e rigidez já impreg-
nada em corpos e mentes tão jovens, inicialmen- Embora tenha contemplado diferentes lingua-
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Jovem registra técnico do Corra pro Abraço Juventude durante ensaio fotográfico no Beiru-Tancredo Neves, em Salvador, em 2018.
75
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
dos módulos. As linguagens de comunicação ora infantil demais para ter responsabilidade,
escolhidas foram trabalhadas nos quatro bairros acaba por conduzir moças e rapazes a um não-lu-
atendidos de Salvador, em forma cíclica, o que gar que só traz maiores dificuldades para esse já
possibilitou a dedicação e o acompanhamento complexo contexto de transição.36
integral por parte dos educadores e beneficiá-
rios. Com participação intensa da comunidade, De acordo com as reações e depoimentos, pela
foram realizadas em todos os bairros mostras de primeira vez, os jovens se depararam com adul-
documentários, exposições fotográficas, mostras tos, graduados, de diferente estrato social, que
itinerantes de áudio/sonoplastia e mostras de ofereciam escuta e credibilidade sem julgamen-
design, ocupando espaços comunitários como tos prévios. Para além disso, encontraram educa-
escola, associação de moradores, estação de trem dores que discutiam e elaboravam com a juventu-
e praças, dentre outros. A formação com jovens de vias para alcançar a resolução dos problemas
dos quatro bairros de Salvador foi encerrada com a individuais e coletivos, sem adotar medidas
mostra final “Conexões de Quebrada” que, durante punitivas conhecidas, vividas e já ignoradas por
três dias, ocupou o Museu de Arte da Bahia, com as jovens do perfil acessado. Educandos e equi-
produções feitas pelos jovens ao longo dos cursos. pe experimentaram cotidianamente inverter os
lugares, seguindo um dinamismo e uma abertura
No que tange o trabalho específico com a juventu- que são – ou deveriam ser – comuns ao ato educa-
de, a credibilidade, importância e relevância que tivo. Ocupar o lugar do não-saber foi um exercício
eram oferecidas às ideias, opiniões e demandas diário para que fosse possível continuar a saber
dos participantes geraram muita surpresa e acaba- e seguir aprendendo nessa relação dialógica que
ram por transformar o processo formativo em uma constitui o aprendizado.37 A juventude pobre
complexa atmosfera de confiança e descobertas. frequentemente é compreendida como fonte do
Por estar constantemente associada à submissão, problema social, com potencial para o desvio
à ignorância e à inexperiência, a juventude não se e para a criminalidade. No Corra pro Abraço, a
vê capaz de ser agente de sua própria transforma- juventude pobre, negra, da periferia é compre-
ção. A sociedade adultocrata não concebe o jovem endida simplesmente como potencial – prefe-
enquanto sujeito integral que possui identidade rencialmente, para a criação, para a arte, para a
própria, portador de direitos, experiências, sabe- vida. Aqui, a juventude foi e é compreendida não
doria e conhecimento. A visão de que o jovem é como problema, mas sim como parte da solução.
um ser incompleto, em formação, “quase-adulto” Segundo N., de 16 anos, “A gente sai do Corra com
e “quase-criança”, ora responsável por seus atos, a certeza que vamos pra frente...”.
36. ABRAMOVAY, Miriam; ESTEVES, Luiz Carlos Gil. Juventude, Juventudes: pelos outros e por elas mesmas. In: ABRAMOVAY, Miriam;
ANDRADE, Eliane Ribeiro; ESTEVES, Luiz Carlos Gil. Juventudes: outros olhares sobre a diversidade. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; UNESCO, 2007.
37. Ver mais sobre o conceito de “douta ignorância”, do filósofo Nicolau de Cusa (1401-1464), que aponta o não-saber como responsável
pelo conhecimento e aprendizado do ser humano, em: GUENDELMAN, Constanza Kaliks. O conceito de douta ignorância de Nicolau
de Cusa em uma perspectiva pedagógica. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Jovens de Plataforma fizeram produção de vídeos sobre o território para apresentação em Mostra artística no bairro, em 2018.
Atividade sobre audiovisual com jovens da comunidade do Boqueirão, em Salvador, no primeiro ano de atuação com jovens, em 2017.
77
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
3.3 Atendimentos, encaminhamentos equipe. Desse modo, embora seja composta por
e acompanhamentos profissionais de diversas áreas de conhecimen-
to, os atendimentos na rua ou nas sedes não
seguem necessariamente a correlação entre a
Dentro da categoria Atendimento são compu- demanda apresentada e a área de atuação de
tadas todas as ações das equipes do Programa determinado profissional.
voltadas para a busca ativa em território ou
recepção nas sedes, acolhimento, escuta quali- Nesse sentido, é comum que os participantes
ficada, aulas/oficinas, orientações para a prática busquem dentre os integrantes da equipe aque-
de redução de danos e outras. O formato dos le(s) ou aquela(s) com quem possuem maior
Atendimentos varia de acordo com as caracterís- identificação ou vinculação para compartilhar
ticas de cada território/espaço e também com as as suas demandas, histórias de vida, solicita-
particularidades de cada indivíduo. Nos campos ções diversas e prosseguimento do acompanha-
fixos das ruas e de Extensão, esse contato pode mento. Em que pese cada profissional possuir
se dar antes ou durante as rodas de arte-edu- um tipo de formação e local de saber, o conhe-
cação e mesmo no entorno das atividades. Nas cimento técnico multidisciplinar demonstra-
sedes, o atendimento acontece à medida que -se imprescindível para o desenvolvimento das
as pessoas chegam ao espaço e buscam auxílio atividades, na discussão dos casos e na reali-
ou orientação para suas demandas. No caso do zação das intervenções qualificadas. Assim,
Corra Juventude, o atendimento pode se dar cada sujeito é acompanhado diretamente por
tanto no processo de busca ativa nas escolas uma dupla de técnicos de referência, os quais
ou demais espaços dos bairros quanto no local possuem também a responsabilidade de manter
onde acontece a formação. No Núcleo de Prisão a interlocução com as redes de cuidado, familiar,
em Flagrante, os atendimentos acontecem na cultural e educacional, a depender de cada caso.
sala de espera, no corredor ou em qualquer outro Esses primeiros contatos e demandas são regis-
espaço em que seja possível dialogar com custo- trados em instrumentos específicos, em que
diados, familiares ou demais acompanhantes. ficam as informações básicas e iniciais de cada
sujeito que serão usadas para um futuro reen-
São esses atendimentos que dão elementos contro, conversa ou busca ativa. No caso do
da vida da pessoa e possibilitam a criação de Corra Rua, esse registro é feito através do Mapa
vínculos para a continuidade do cuidado através de Campo, um instrumento de uso diário que
dos encaminhamentos necessários e acompa- é preenchido por diversos técnicos na medi-
nhamento contínuo dos casos. Os atendimen- da em que estes realizam o atendimento. Nele,
tos ofertados pelas equipes do Programa estão são registradas informações de perfil e deman-
pautados na estratégia da vinculação, a partir das das pessoas atendidas; e, a partir dele, são
da qual é possível a aproximação e o seguimen- processados os dados do projeto. Nas casas/
to do cuidado dos assistidos pelos membros da espaços onde acontecem as atividades, é utiliza-
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Programa realiza feiras de saúde e cidadania com apoio da rede de atenção psicossocial. Ação no Campo da Pólvora, em Salvador, 2017.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
80
Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Atividade de leitura e interpretação musical em roda de arte-educação no Largo dos Mares, nos Mares, Salvador - BA, em 2017.
Serviço Sócio-comunitário, Acesso a Bens cultu- o cuidado estendido, muitas vezes, a pessoas
rais e esportivos, Participação política, Fortale- que são indicadas pelos participantes, ou que
cimento de Vínculos e Visita/Intensificação do os acompanham em alguma ocasião e terminam
cuidado. A planilha e as categorias foram dispos- por solicitar apoio. No caso do Corra Juventude,
tas de acordo com as principais ocorrências ao essa ampliação se faz bastante frequente e notó-
longo da experiência do Corra pro Abraço. Todo ria, visto que o público assistido está situado
registro possui os status de Solicitado e Efetiva- dentro de um recorte etário e, também por isso,
do, de modo que a equipe possa acompanhar, a muitos jovens vão acompanhados de familiares
cada mês, o andamento das demandas e as difi- e amigos. Esses, quando não se adequam ao
culdades para determinadas resoluções, visto perfil estabelecido para serem incorporados às
que boa parte dos serviços demora algum tempo atividades frequentes da sede, solicitam infor-
na sua efetivação. mações sobre diversos serviços e, muitas vezes,
são orientados e encaminhados pela equipe
Os atendimentos, encaminhamentos e acompa- para acessarem seus direitos. O compartilha-
nhamentos não são restritos apenas aos benefi- mento das informações e o incentivo à auto-
ciários fixos ou frequentes do Programa, sendo nomia dos sujeitos tende a gerar segurança na
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
busca pela garantia dos direitos sociais, além de ciais (BPC, Bolsa Família, Passe Livre, Auxílio
possibilitarem a integração entre os assistidos e Natalidade, Primeiros Passos, ID Jovem, dentre
os serviços que compõem as redes de serviços outros).
públicos básicos.
No que tange aos encaminhamentos realizados
Uma estratégia que tem gerado efeito bastan- para os serviços de saúde, destaca-se a predo-
te positivo é o intercâmbio entre os diferentes minância daqueles referentes à atenção básica,
eixos do Programa, quando uma equipe identifi- mais especificamente para as Unidades de Saúde
ca um indivíduo como potencial participante de da Família (USF), Unidades de Pronto Atendi-
outro núcleo e realiza o encaminhamento inter- mento (UPA) e Centros de Saúde, bem como a
namente. Se um jovem é atendido em contexto articulação com as equipes de Consultório na/de
de rua e tem o perfil para ser inserido no Corra Rua. Além desses, ocorrem também encaminha-
Juventude, a rede se ativa para que isso seja mentos para outros parceiros, tais como Centro
efetivado, assim como ocorre quando sujeitos Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistên-
já acompanhados são presos em flagrante e cia e Pesquisa (CEDAP), Centro de Estudos e Tera-
o cuidado se amplia entre as equipes. Embora pia do Abuso de Drogas (CETAD), Multicentros de
esteja dividido em núcleos com características Saúde, CAPS AD das regiões, Faculdade de Odon-
próprias e específicas, em diversos momentos tologia da UFBA e outros.
os sujeitos e suas vivências ultrapassam esses
limites tênues e invisíveis e, então, o acompa- As demandas mais frequentes para encaminha-
nhamento do indivíduo se adequa às necessida- mentos se referem à documentação, quando são
des de cada caso. acionados frequentemente a Defensoria Públi-
ca do Estado (DPE), cartórios do município de
As equipes do Corra pro Abraço fazem enca- Salvador, Lauro de Freitas e Feira de Santana e
minhamentos de ordens diversas, tanto no o Instituto Pedro Mello para solicitação de certi-
trabalho de campo na rua, quanto nas sedes do dões de nascimento (primeira e segunda vias) e
Programa. Dos relativos aos serviços no âmbito Registro Civil. O encaminhamento por escrito é
da assistência social, destacam-se os encami- recorrentemente emitido como comprovação de
nhamentos para o Centro de Referência para endereço para as pessoas em situação de rua, ou
População em Situação de Rua (Centro POP) jovens que moram em áreas sem registro de CEP;
para busca de vagas em unidades de acolhi- ou seja, pessoas que não possuem endereço fixo
mento institucional, para acompanhamento para referência ou para recebimento de corres-
nos Centros de Referência da Assistência Social pondências. A equipe técnica também elabora
(CRAS), Centro de Referência Especializada da encaminhamentos declarando a hipossuficiência
Assistência Social (CREAS), agências do INSS dos assistidos em pagar as taxas pelos serviços.
para inscrição no Cadastro Único do Governo
Federal (CADúnico) e benefícios socioassisten- A partir do trabalho desenvolvido na rua nos
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
primeiros anos do Corra, a equipe percebeu que As consultas processuais fazem parte da rotina
muitos assistidos apresentavam demandas rela- da orientação jurídica e, por meio delas, pode-se
cionadas à Justiça, isto é, desde dúvidas sobre constatar se o participante apresenta mandado de
direitos e procedimentos do Poder Judiciário, prisão ou qualquer pendência processual. Nessa
até informações processuais que garantissem atuação, inicia-se o diálogo acerca da necessi-
a emissão de documentos. Nesse sentido, ao dade de acompanhar os processos como forma
longo dos anos de trabalho, a atuação jurídi- de diminuir as vulnerabilidades. Desse modo,
ca do Programa ampliou-se para além do viés a depender da escolha do indivíduo, os partici-
consultivo, bem como passou a abranger acom- pantes utilizam a informação para sua proteção
panhamentos, articulações com os principais nas ruas, para acompanhar o processo e acessar
órgãos e agentes do sistema de Justiça, com as os serviços públicos de garantia de direitos, para
ações pautadas na garantia de direitos e mitiga- acessar varas, cartórios, expedir documentos,
ção das violações institucionais. transitar com segurança por instituições públicas
de garantia de outros direitos, bem como quitar
pendências judiciais, a exemplo do cumprimento
3.4 Acesso à justiça e direitos sociais de medidas cautelares, o que costumeiramente
chamam de “ir assinar”.
Os encaminhamentos de ordem jurídica têm Fruto de uma parceria com o Tribunal de Justiça
como finalidade promover o acesso à justiça do Estado da Bahia, a atuação já mencionada da
mediante a orientação, acompanhamento e equipe do Corra pro Abraço no Núcleo de Prisão
encaminhamento das demandas apresentadas em Flagrante (NPF), assim como do Programa
pelos participantes. A atuação dos educadores como um todo, é pautada no acolhimento, orien-
jurídicos pretende ultrapassar o objetivo do tação e encaminhamento de pessoas presas em
acesso efetivo ao Judiciário pela população em flagrante em situação de vulnerabilidade social
situação de vulnerabilidade, realizado por meio para a rede de atenção e cuidado. Ao longo do
dos encaminhamentos para os órgãos públicos acompanhamento, os egressos recebem orienta-
destinados a tais finalidades, a exemplo da ção para demandas de saúde, assistência social
Defensoria Pública (Estado e União), Ministé- e acompanhamento jurídico e são convidados
rio Público (Estado e União), Varas e Juizados para participar de atividades realizadas na sede
do Poder Judiciário, delegacias e ouvidorias. do Programa, quando poderão estreitar os laços
Assim, também se pretende ajudar na concre- com técnicos e estabelecer novas relações com
tização do acesso à justiça, que está para além outros beneficiários. Um dos principais objeti-
do acesso gratuito ao judiciário e aos órgãos de vos é orientar, através de linguagem acessível e
atuação, tendo como objetivo principal fazer a acolhedora, a respeito, sobretudo, da liberdade
população conhecer a respeito de seus direitos provisória e as possíveis implicações em respon-
e as garantias destinadas a todo cidadão. der a um processo.
83
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
O vínculo então se constitui, mais uma vez, perdi essa vergonha, perdi o medo, elas me acom-
como ferramenta primordial para a condução panham, entendeu? E tão agora me ajudando a
do processo terapêutico. Dessa forma, quando fazer meus documentos, que eu com 34 anos não
alguns sujeitos entram no sistema prisional e tinha título, nem CPF”. A retirada de documentos
possuem um vínculo forte com o Programa, este básicos como RG e CPF ou mesmo certidão de
cuidado continua no ambiente prisional. É impor- nascimento é uma das principais e mais frequen-
tante frisar que não se trata de fazer o trabalho tes demandas apresentadas pelos participantes,
da equipe de atenção psicossocial do sistema sejam eles adultos em situação de rua ou jovens
prisional e nem de substituir familiares, amigos em contextos de vulnerabilidade. A emissão
ou demais pessoas de referência do indivíduo, dessa documentação é essencial para que os
mas justamente para fortalecer essas nuances. sujeitos sejam reconhecidos enquanto cidadãos
O acompanhamento ocorre com sujeitos que e, a partir daí, possam acessar outros serviços
possuem vínculos familiares e sociais rompidos das redes.
e também para pactuar com a equipe de aten-
ção psicossocial local a construção do cuidado Ao tentarem acessar os serviços e equipamentos
compartilhado, bem como fazer o acompanha- públicos os participantes do Corra, em especial os
mento processual do sujeito e prover o suporte que se encontram em situação de rua, encontra-
necessário. O acompanhamento dentro do siste- vam diversos obstáculos, sendo o principal deles
ma prisional passa pela intensificação das estra- ligado à aparência/apresentação dos mesmos. I.,
tégias de redução de danos, compreendendo 28 anos, conta que, antes de entrar para o Corra,
que o contexto de privação de liberdade, por si encontrava dificuldade para ser atendido quan-
só, produz ainda mais danos físicos e sociais para do buscava retirar a documentação e com frequ-
o sujeito. As visitas são importantes também para ência ouvia: “Ah não, você não tem condições de
o fortalecimento dos vínculos entre o sujeito e fazer, porque você não pode entrar por causa da
seu defensor público, tendo em vista que o volu- roupa”. Quando passou a ser acompanhado pela
me das demandas pode dificultar este acompa- equipe, I. pode ter acesso aos seus direitos: “Com
nhamento individualizado. Quanto àquelas em eles, a gente consegue fazer um documento, conse-
situação de prisão domiciliar, a equipe vai ao seu gue ir pro médico (...), exame de varizes, exame de
encontro para continuar o acompanhamento. sangue; na época, eu quase tava passando mal, aí
eles correram atrás”.
Segundo a participante E., esse processo de escu-
ta e orientação quanto às questões jurídicas foi As demandas de justiça, embora maciçamente
essencial para que ela vencesse alguns medos criminais, também estão relacionadas a questões
que a impediam de acessar direitos: “Me ajudou de guarda de crianças, pois estas estão sendo
muito e me ajuda, porque eu tenho problema na constantemente retiradas das mães e pais em
justiça e tinha medo de apresentar, de assinar, contexto vulnerabilidade que circulam por esses
tinha medo e tinha vergonha. Aí, através delas, eu territórios estigmatizados. Nesses casos, há um
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Assistida se caracteriza como a escritora Carolina Maria de Jesus durante intervenção urbana no Novembro Negro, em Salvador, em 2018.
encaminhamento e articulação tanto com a vara se caracteriza apenas como lazer, mas como
especializada, quanto com a Defensoria Pública produção de conhecimento e formação políti-
através do núcleo especializado para população ca, já que, em todas as visitas a equipamentos
em situação de rua. Também há uma atuação de cultura, há uma intencionalidade formativa
em equipe para saber e dar informações sobre para os indivíduos no projeto. “Eu já dormi aqui
as crianças retiradas pelo Conselho Tutelar e na frente desse cinema e nunca pude entrar. Hoje,
institucionalizadas. graças ao Corra pro Abraço, estou aqui dentro e
posso assistir”, conta um participante.
Além das oficinas de arte-educação e desporto
que são desenvolvidas nas cenas de uso e nas Funcionando como uma ponte entre os assisti-
sedes, o projeto tem desenvolvido, junto com dos e os serviços, o Programa contribui também
os usuários, o acesso aos equipamentos e bens com a formação político-cidadã dos participan-
culturais a partir da agenda cultural da cida- tes do Programa, por meio da participação em
de, estimulando o acesso aos cinemas, teatros, seminários, conferências, audiências públicas
shows musicais, museus, praias e exposições, e outras atividades do movimento social, bem
dentre outros. O acesso ao bem cultural não como debates sobre promoção de direitos, inter-
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
secções de gênero e raça, audiências públicas, o cenário da atuação para além do seu espaço
seminários e outros. A estratégia de articular o físico e limites geográficos. Visitar os serviços,
acesso aos equipamentos de cultura, educação conhecer os trabalhadores e reconhecer dificul-
e política se caracteriza como um processo dife- dades e potencialidades comuns e específicas
renciado de oferta de serviços a essa população, foram ferramentas essenciais para criar rela-
já que comumente são ofertados em projetos ções de confiabilidade e incentivar possíveis
dessa natureza apenas encaminhamentos para cuidados compartilhados, buscando sempre
atendimentos de saúde e assistência social. afastar-se do posto de iniciativa que chega para
Aqui, a concepção de saúde ultrapassa a noção solucionar problemas, mas, sim, colocando-se
de ausência de doença, sendo compreendida enquanto um novo parceiro da rede para incre-
na sua forma mais ampla e complexa: quando mentar o trabalho de minimização das lacunas
o acesso à cultura, à educação e a outros direi- e contribuição para garantir e ampliar o acesso
tos, tidos como de segunda importância, passa a das populações vulnerabilizadas aos direitos
ser compreendido também como promoção de humanos.
saúde, bem-estar social e qualidade de vida.
A articulação de redes envolve uma série de
estratégias, dentre as quais se destacam os
3.5 Articulação com as redes Grupos de Trabalho (GT), as Rodas de Conversa
de políticas públicas para socialização da experiência do Programa,
as reuniões para compartilhamento de casos
com técnicos de referência de outras secreta-
A localização do Programa Corra pro Abraço no rias e demais espaços para aprofundamento
contexto da Secretaria de Justiça, Direitos Huma- de temas pertinentes ao trabalho. As Rodas,
nos e Desenvolvimento Social já reflete política, voltadas para profissionais da Rede de Aten-
ideológica e metodologicamente a compreensão ção Psicossocial e Rede de Educação, Cultura e
do que significa a iniciativa no que tange à políti- outros serviços públicos visam à construção de
ca sobre usos e usuários de drogas. Compreender protocolos e fluxos de atendimento aos partici-
a questão enquanto fenômeno biopsicossocial, pantes do Corra pro Abraço.
cultural, econômico e político faz-se fundamen-
tal, tanto para a elaboração do plano de atuação A inserção dos técnicos do Programa em grupos,
das equipes, quanto do trabalho a ser feito no rodas, fóruns e reuniões – e até mesmo o prota-
processo de articulação com as redes. gonismo na criação desses – proporcionou
momentos para partilha dos desafios e fortale-
Partindo da noção de territórios e (des)territo- cimento conjunto para o encaminhamento de
rialização, desde sua fundação e também com a diversas demandas dos acompanhados. Dentre
criação dos novos núcleos e sedes, o Programa esses espaços para/de troca, podemos citar o
manteve o cuidado de identificar e compreender GT Saúde e Cidadania do Centro Histórico, a
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
87
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Através de uma parceria com a Secretaria de cas relevantes para a atuação, como “Sujeitos,
Educação de Salvador, o Programa desenvol- Territórios e Vulnerabilidades”, “Da infância à
veu ações de (re) inserção escolar e progressão juventude”, “Política sobre drogas e o desafio
de escolaridade, quando 35 participantes foram do desencarceramento no Brasil”, “Redução de
inseridos nas redes pública de ensino estadual e Riscos e Danos como política pública na Bahia”,
municipal para retomarem os estudos na moda- “Efeitos das drogas e manejo de crises”, dentre
lidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). outras. Os módulos contaram com aulas, pales-
A maior parte dos assistidos, sejam os sujeitos tras e conferências de especialistas das áreas
em situação de rua ou os jovens em seus bair- correlatas, técnicos do Programa, lideranças
ros, não possui Ensino Fundamental comple- de movimentos sociais e outros sujeitos com
to e muitos abandonam os estudos durante o bagagem fundamental para o aprofunda-
ciclo de rompimento dos vínculos familiares mento, totalizando 1.353 participações entre
e sociais, o que acaba se tornando um ponto técnicos do Corra e profissionais das redes. Em
crucial na busca e consequente dificuldade de algumas formações, houve a divisão do públi-
acesso a trabalhos formais. Retornar à escola é co em grupos de trabalho para estudo de caso
retornar aos sonhos e planos, como conta M.: como uma estratégia de simulação das possi-
“Esse pessoal do Corra pro Abraço me ajudou a bilidades que pudessem vir a ocorrer ou que já
renovar minha matrícula, a me matricular em haviam ocorrido entre as equipes.
Paripe, porque eu não tava conseguindo vaga”.
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Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Certificação da 2ª turma do Curso de Redução de Danos e Referência de Campo, no auditório da DPE, no Canela, em Salvador, em 2018.
to para o efetivo controle social das políticas de gênero e as redes de proteção; prevenção à
sociais de que são beneficiários. transmissão de doenças e outras temáticas de
acordo com as demandas dos participantes.
De 2015 a 2018, foram realizados quatro cursos
de formação de redutores e redutoras de danos As turmas do curso são formadas por partici-
pelo Programa, garantindo a formação e certifi- pantes do Corra pro Abraço que já se encontram
cação de 63 novos redutores. O conteúdo progra- em um estágio mais adiantado de organização,
mático do curso abordou o proibicionismo das que participam com frequência das atividades e
drogas; aspectos biopsicossociais e consumo de que já apresentam perfil de redutores de danos.
drogas; a relação do racismo e da pobreza com o Nem todos sabem ler ou escrever e não há gran-
contexto do uso de crack; sexualidade, diversida- des requisitos para participar da formação, a não
de e o uso de drogas entre a população LGBTQ+; ser a garantia de frequentar as atividades e de se
gênero e binarismo; redução de danos para o comprometer a elaborar, junto com a equipe, seu
uso de drogas; acesso ao SUS e SUAS; violência plano de cuidado, sendo a vontade e a disponi-
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
90
Caminhos metodológicos: bases, princípios, técnicas, instrumentos e desafios
Aula Inaugural da 1ª turma do Curso de Redução de Danos e Referência de Campo, com palestra do Dr. Antonio Nery Filho, em 2017.
91
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
92
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
ASPECTOS INSTITUCIONAIS
DO PROGRAMA CORRA PRO ABRAÇO
O Corra pro Abraço, enquanto ação pública de ação de rua, o Corra pro Abraço passa também
cuidados a usuários de drogas, amplia a concep- a trabalhar com jovens das periferias e pessoas
ção de redução de danos desenvolvendo ações presas em flagrante que passam pelas audiên-
transversais e intersetoriais para prevenir os cias de custódia. Criam-se novos espaços de
danos, bem como para proteger usuários que aprendizagem nos quais estão se desenvolven-
passam por processos de violação de direitos. do ferramentas, instrumentais, metodologias
Tratam-se de estratégias focadas na legitimação e estratégias de cuidados que têm forte caráter
da cidadania desses usuários, na condição de inovador, de sustentabilidade e replicabilidade.
sujeitos de direitos38, que devem ter a primazia O mesmo ocorre com relação ao atendimento
do Estado como promotor e garantidor de cuida- e ao acompanhamento das pessoas presas em
dos. Desse modo, o Programa tem atuado a partir flagrante e que possuem perfil para inclusão no
de um compromisso ético, estético e político do Corra pro Abraço, buscando mitigar os efeitos
Governo voltado para a garantia dos direitos nocivos, do contexto de violência em que vivem
humanos e para o acesso dos usuários de drogas e a falta de acesso à Justiça, ofertando também
em condições de vulnerabilidade e risco físico e apoio às famílias. Ampliam-se, assim, as ações
social a políticas públicas. Isso requer pensar em e, consequentemente, o tamanho das equipes,
estruturas eficientes e eficazes de planejamento territórios de atuação e desenvolvimento de
e gestão do Programa, atentando para aspectos metodologias do Programa.
de monitoramento e avaliação da efetividade
das ações, buscando construir e destacar novos Neste capítulo, buscaremos enfatizar alguns
indicadores que a prática e o método da redução aspectos institucionais e gerenciais do Progra-
de danos demanda. ma Corra pro Abraço, principalmente após sua
ampliação, envolvendo diferentes frentes de
Ao ampliar seu foco de atuação, a partir de 2016, ação. Trataremos sobre aspectos da execução e
indo além do trabalho com população em situ- gestão compartilhada entre a SJDHDS/SUPRAD
93
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
94
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
Fonte: Seleção Pública SUPRAD/SJDHDS nº 013/2015, publicado no Diário Oficial do Estado da Bahia (DOE), no dia 22 de dezembro de 2015.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
nos territórios de Beiru/Tancredo Neves, Nordes- Pop Rua, Unidades de Apoio na Rua (UAR), Corra
te de Amaralina e Subúrbio Ferroviário (Platafor- Juventude e Corra Acesso à Justiça no Núcleo
ma e Fazenda Coutos). de Prisão em Flagrante (TJ/BA). Estas já foram
descritas no primeiro capítulo e estão demons-
Durante todo o processo de execução do Corra, tradas na Figura 1 - Estrutura do Programa Corra
há uma Comissão de Monitoramento constituí- pro Abraço, em 2018.
da por representantes da SJDHDS/SUPRAD que
desenvolve uma metodologia de acompanha- Dada a diversidade de ações e públicos aten-
mento por meio de reuniões periódicas com as didos pelo Programa, e a coordenação geral
equipes gestoras das organizações da socieda- exercida por uma organização da sociedade
de civil, emitindo relatórios técnicos trimestrais civil em parceria com a SUPRAD, é importante
sobre os resultados alcançados. Nesse proces- destacar que cada um desses projetos possui
so, tem sido possível fazer correções de rumos e fluxos de execução e gestão próprios, estando
encaminhamentos de ações quando necessário, todos alinhados com diretrizes e princípios do
dentro de um modelo de gestão social, bastante Programa.
dialógico e fluído. Além disso, há rigorosa fisca-
lização financeira, por meio de instâncias de Em cada um desses projetos, existe uma equipe
controle interno das organizações e controle por multiprofissional específica, formada por coor-
parte do Governo do Estado. denadores locais, arte-educadores, educadores
físicos, educadores jurídicos, assistentes sociais,
O sucesso no planejamento e gestão do Progra- psicólogos, cientistas sociais e redutores de
ma vem se dando, porque, em parte, existe o danos.
acompanhamento técnico/institucional e o
monitoramento cotidiano por parte da SJDHDS/ A Coordenação Geral é centralizada na sede do
SUPRAD e não simplesmente uma relação de Programa em Salvador, exercida por uma equi-
repasse financeiro para desenvolvimento de pe de gestão que atua diretamente nos proces-
planos de ação, com prestação de contas peri- sos decisórios e no planejamento estratégico.
ódicas através de relatórios criteriosamente Esta acompanha as ações de todos os projetos
analisados. Há, na prática, um processo contí- e núcleos. Há uma Coordenação Pedagógica
nuo de monitoramento e de tomada de decisões que também atua na mesma perspectiva geral,
conjunta e colaborativa. buscando alinhar e articular todas as estraté-
gias de formação e de cuidados e redução de
danos desenvolvidas nos diferentes territó-
4.2 Estrutura e dinâmicas de atuação rios. Também dá suporte a todo o programa a
Assessoria de Comunicação, que é responsável
Em 2018, a estrutura do Corra pro Abraço dá-se pelas ações de comunicação interna e externa,
em quatro grandes estratégias, a saber: Corra como criação de produtos de comunicação,
96
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
Projeto Samba, Suor e Redução de Danos, realizado pelo Programa em Feira de Santana, em 2018; participação do músico Jeremias Gomes
(topo à esq.).
Capacitação em 2017 contou com Lumena Garcia, do De Braços Abertos (SP) e Leandro Dominguez, da Aliança de Redução de Danos (BA).
97
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
98
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
cia profissional, que ofertam assessoria para as Supervisão Clínica enquanto um dos diferenciais
equipes, tendo em vista os grandes impactos do Programa.
que estas sofrem com os mais diferentes casos
de pessoas jovens em situação de rua que aten- Em termos de estrutura organizacional, o orga-
dem e acompanham, além do público atendido nograma com cargos e equipes pode ser sinteti-
na estratégia de acesso à Justiça do NPF. Mais zado na Figura 02 – Organograma do Programa
adiante, explicaremos melhor a atuação da Corra pro Abraço.
99
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
100
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
4.3 Perfis das equipes de trabalho histórias de vida de pessoas que passam por
processos de extrema exclusão social, sem
fazer julgamentos prévios, buscando as formas
Desde o início do Corra pro Abraço, a forma- de ser e estar no mundo desses sujeitos;
ção das equipes de trabalho com perfis muitos
específicos tem sido um grande diferencial na ter vontade de cuidar e desenvolver continua-
atuação do Programa. Mais que a formação em mente atitudes de desvelo para com outro.
uma dada área ou experiência profissional em
projetos sociais e políticas públicas, por exem- Todos os profissionais do Corra pro Abraço
plo, é preciso que seus profissionais demons- passam por processo de recrutamento e sele-
trem e defendam alguns valores e características ção profissional, divulgados publicamente por
fundantes, de modo geral: meio de editais específicos. São competências
requeridas a todos os profissionais que atuam
respeito às diversidades humanas, principal- no Programa Corra pro Abraço, independente de
mente quanto a gênero, raça e classe social, qual frente estejam:
não aceitando ou praticando qualquer tipo de
preconceito ou discriminação; atuação interdisciplinar e intersetorial (capa-
cidade de atuar em processos de integração
capacidade de escutar e observar de modo recíproca entre diversas disciplinas e campos
atento e ativo em todas as situações vividas do conhecimento dos Direitos Humanos);
no Programa;
integração em equipe interdisciplinar (dispo-
amplo senso crítico sobre a garantia de direi- nibilidade para reciprocidade entre os profis-
tos dos usuários de drogas; sionais de diferentes formações que compõem
a equipe, independente de hierarquia e posi-
respeito à autonomia e independência dos ção de cargos);
usuários de drogas em seus projetos de vida;
compreensão prática sobre redução de danos,
comprometimento com a defesa da Justiça rede e territorialidade enquanto conceitos
com equidade, defesa da vida, das liberdades centrais de atuação;
e direitos civis e sociais;
compreensão e prática do conceito de cuidado
disponibilidade, flexibilidade e feeling para integral (atuação coerente com o entendimen-
saber escutar e estar com o outro afetiva- to de que as dimensões psíquica, física e social
mente, compreendendo suas necessidades e são indissociáveis e interdependentes);
demandas;
compreensão do acolhimento enquanto atitu-
compromisso ético-político para conhecer as de ética e dispositivo técnico (capacidade de
101
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
102
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
de processos e de resultados; capacidade para semanal de reuniões que ocorrem todas as sextas
surpervisão e orientação precisa das equipes; boa com cada uma das equipes dos serviços presta-
fluência verbal e capacidade de negociação para dos em todos os núcleos (Corra Rua, Sede, UAR,
articulação da rede de apoio. Corra Juventude e Acesso à Justiça (NPF). Nesses
encontros, acontece o compartilhamento sobre
Na composição apresentada, o Programa conta cuidados e são analisados casos e situações que
com cerca de 80 colaborares, trabalhando em ocorrem nos processos de atendimento e enca-
regime de contratação celetista por tempo deter- minhamento; trocam-se informações, pensam-se
minado, com carga horária que varia de 20h a 40h estratégias de diálogos com a Rede de Atenção
semanais, sendo, em sua maioria, são profissio- Psicossocial e demais serviços públicos. Há uma
nais de nível superior. forte participação dos técnicos nessas reuniões e
encaminhamentos, sendo momentos intensos de
É importante destacar que o Corra prima pela aprendizagem em serviço. São sempre enfatiza-
qualidade das condições do trabalho da equipe. A dos os erros e acertos nos processos de interven-
premissa de atenção com os cuidadores tem sido ção, sendo um constante processo de avaliação
uma prática constante no Programa, asseguran- das ações e, quando necessário, são feitas corre-
do direitos para eles em aspectos institucionais, ções de rumos, adaptações etc.
materiais e psicológicos. Isso vem contribuindo
para a qualidade do trabalho realizado direta- Além disso, há momentos de capacitação conjun-
mente com os usuários dos serviços. ta que ocorrem em algumas das sextas-feiras
destinadas às reuniões. A Coordenação Geral do
Programa realiza, pelo menos uma vez por mês,
4.4 Os processos de gestão encontros ampliados com todas as equipes e
usuários (Salvador, Feira de Santana e Lauro de
Freitas), de modo que se propiciem momentos
Os processos de planejamento e gestão do Corra de capacitação, aprendizagem e trocas de expe-
Pro Abraço podem ser caracterizados por serem riências. Geralmente, nessas formações, existe
amplamente participativos e dialógicos, preva- a presença de usuários que participam como
lecendo certa horizontalidade nas tomadas de expositores nas mesas de debate.
decisões gerenciais e técnicas.
Outro importante fluxo diz respeito às reuniões
Percebe-se um grande esforço na socialização semanais entre a Coordenação Geral e os super-
de informações sobre a gestão e as questões visores de campo e coordenadores de todos os
técnicas, incluindo as agendas dos vários técni- Núcleos para discutir assuntos estratégicos e
cos e gestores, buscando fazer com que toda a operacionais, propor ações e orientações que
equipe tenha uma visão do Programa como um são redistribuídas para as equipes em reuniões
todo. Por isso, é muito importante o espaço semanais.
103
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
É importante ressaltar que as equipes de cada Nesse sentido, o Corra adotou o instrumento
Núcleo possuem vínculos sociais e de afinidade da Supervisão Clínico-institucional, ofertada
muito grande, facilitando o compartilhamento por profissionais da área de psicologia e crimi-
de questões positivas ou negativas, de modo nologia, especialistas em diferentes temáticas
a não dificultar os processos de trabalho. Isso e perfis de público que são atendidos pelo
também facilita relações de solidariedade Corra. Trata-se de atendimento, assessora-
quanto à divisão de tarefas cotidianas, incluin- mento e acompanhamento em grupo oferta-
do as burocráticas, tais como o preenchimento dos às equipes técnicas dos diferentes núcle-
de instrumentos, como mapas de campo, enca- os, no sentido de apoiá-los psicologicamente
minhamentos de relatórios etc. e juridicamente frente aos incômodos e fragi-
lidades pessoais, limites de atuação profissio-
Desse modo, o Corra vem desenvolvendo nal e da criação de soluções viáveis para oferta
tecnologias de gestão social, desenvolvendo de cuidado integral e garantia de direitos dos
processos contínuos de aprendizagem pessoal usuários de drogas. Tal processo mantém a
e organizacional que não separam o técnico e essência da lógica de “cuidar do cuidador”,
a gestão do humano. Ou seja, o profissionalis- mas possui diferenças operacionais na sua
mo técnico e gerencial da equipe não se separa execução, nos diferentes núcleos.
do cuidado exercido entre esta e para com os
usuários. Na Supervisão Clínica do Corra Rua, a atuação
da profissional especialista em saúde mental,
dependência do uso de drogas e população em
4.5 O papel da Supervisão Clínica situação de rua ocorre muito mais quanto às
discussões referentes aos casos que aparecem
frente aos aspectos enfrentados no cotidiano
O Corra pro Abraço tem desenvolvido uma do trabalho com relação às histórias de vida
tecnologia de cuidado que permite uma diver- dos usuários, às situações problemáticas e aos
sidade de estratégias de promoção da cidada- conflitos. Busca-se compreender os limites
nia e a ampliação de campos de atuação para de atuação da equipe técnica e do Programa
o trabalho com populações que fazem uso de institucionalmente, bem como mecanismos
drogas em situações de extrema vulnerabilida- de aprimorar as relações e possíveis enca-
de e risco. Muitas são as situações complexas minhamentos que podem ser dados. Não se
que ocorrem nas ações desenvolvidas em todos trata apenas de pensar nos aspectos de saúde
os Núcleos, demandando da equipe técnica um mental, dos transtornos mentais que são mais
constante esforço de criação de vínculos com presentes entre a população em situação de
os atendidos e, ao mesmo tempo, a manuten- rua. Trata-se de apoiar a equipe na articula-
ção de um certo distanciamento, com intuito de ção dos temas de uso de drogas, saúde, redu-
garantir a qualidade nas ofertas de cuidados. ção de danos, arte-educação, cuidados e direi-
104
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
tos humanos para com os diferentes atores e No Corra Juventude, a atuação da Supervisão
redes com os quais o Programa atua. Clínica passa pelo mesmo processo de supor-
te e escuta à equipe, em muitos momentos
Desse modo, tem-se uma percepção da clínica lançando mão de estudos de casos comple-
ampliada sobre a proteção social dos usuá- xos, a partir da mediação de uma profissional
rios e o profissionalismo da equipe técnica. especialista no processo de cuidado de jovens
Cumpre-se, assim, o papel de desfazer alguns e questões relacionadas ao uso de drogas.
possíveis entraves que surgem ao longo das Além das situações que emergiam nas ofici-
intervenções, bem como discutir novas estraté- nas de arte-educação e educomunicação,
gias de atuação. Isso tem auxiliado o Programa desafiaram também as equipes situações do
na condução de possíveis soluções para ques- âmbito pessoal que se estendem aos familia-
tões problemáticas com relação aos casos e res e outros moradores dos territórios onde
situações muitos desafiadoras para a oferta de estão instalados os núcleos do Corra Juventu-
cuidados integrais para as pessoas em situação de, por vezes conectando com casos também
de rua frente às violações de direitos humanos acompanhados pela equipe do Corra nas
que enfrentam em suas distintas histórias de Audiências de Custódia. A dinâmica de atua-
vida, comportamentos e níveis de dependência ção da supervisão clínico-institucional nesses
e de necessidade de apoios de terceiros. núcleos passou um tempo de maturação para
ser compreendida pelas equipes enquanto um
No caso dos Núcleos do Corra Rua, ocorre um recurso fundamental para o desenvolvimento
encontro por mês com a equipe de cada campo do trabalho e para encontrar a melhor forma
e a Supervisão Clínica Institucional, quando são de funcionamento. A Supervisão no Corra
discutidos e analisados coletivamente casos, Juventude, inicialmente, ocorria por meio de
situações, processos de trabalho e encami- encontros mensais onde se encontravam as
nhamentos para as diferentes demandas que equipes de todos os Núcleos de Salvador e
aparecem. Estas possuem uma dinamicidade e encontros também periódicos com a equipe
variedade que vão de questões relacionadas a de Lauro de Freitas. Depois, viu-se a necessi-
processos de violência ocorridos entre pessoas dade da realização de encontros em separado
em situação de rua e a polícia, por exemplo, a com as equipes de cada território em Salvador,
problemas afetivos e de convivência entre os assim como ocorria em Lauro de Freitas.
usuários. Anteriormente, a supervisão ocorria,
com todos os núcleos, todas as sextas-feiras. A Supervisão Clínica para a equipe de Aces-
Mas percebeu-se que esse modelo não permitia so à Justiça, vinculada ao Núcleo de Prisão e
que a discussão trouxesse detalhes importan- Flagrante (NPF/ TJ-BA), se deu com a mediação
tes. Por isso, o modelo atual, com encontros de um profissional criminologista que articula
mensais com cada equipe, tem se mostrado na sua formação dimensões valiosas para o dia
mais efetivo. a dia da equipe. Busca-se, neste caso, trazer
105
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
e apoiar os profissionais a partir de uma visão de escuta ativa e qualificada, acolhimento esten-
macro sobre os problemas relacionados ao dido às famílias, encaminhamento e acompa-
sistema de justiça e como o Corra pro Abraço nhamento dos casos demandados pela Justiça.
está inserido nesse processo e como pode atuar Dessa forma, as demandas das equipes para a
frente aos limites que são impostos. Supervisão Clínica aparecem pela compreen-
são de ser o Corra um ator social funcionando
Os técnicos do Corra no NPF levam para o sob lógica diversa de um sistema social rígido,
espaço da Supervisão Clínica as inquietações e com resquícios de cultura elitista e de marcan-
angústias que vivenciam cotidianamente dian- te presença do racismo institucional, sendo
te da rigidez e burocracia da justiça penal. A necessárias orientações para criar mecanismos
atuação da equipe incide sobre contextos micro que melhorem as relações entre os diferentes
de custodiados e familiares que seguem repre- atores, além de como proceder com relação ao
sentando arquétipos de um contexto macro de grande número de atendimentos e criar uma
trajetórias de vida conduzidas desde a perife- série de desdobramentos junto ao usuário, à
ria da cidade, desprovidas de acesso a direitos família e às lógicas de exclusão e violência nos
básicos até o acesso ao sistema penal na condi- territórios em que vivem.
ção de custodiados.
Dessa maneira, a Supervisão Clínica enquanto
É importante ressaltar que a equipe do Corra elemento de suporte e apoio à gestão e à inova-
no NPF possui uma alta demanda de trabalho ção técnica dentro do Corra pro Abraço vem
emergencial ao lidar com as questões de dife- ocorrendo de modo a garantir possibilidades de
rentes pessoas que estão presas, com famílias cuidar das equipes técnicas com distintos perfis
vulnerabilizadas, que demandam por soluções e demandas.
imediatas no sentido de evitar a prisão provisó-
ria dos custodiados, bem como a continuidade
de um cuidado posterior que minore o efeito da 4.6 A Comunicação Estratégica
prisão e conduza a um processo de orientação para redução de danos
aos sujeitos que venha favorecer a organização
da vida e das demandas sociais. Desde o início do Projeto, já existia uma grande
ênfase quanto à necessidade de um trabalho de
Assim, o trabalho da equipe técnica do Corra no comunicação mais efetivo. Inicialmente, isso se
NPF enfrenta um duplo desafio: a) demonstrar e deu no sentido de promover uma comunicação
convencer o sistema de justiça que a sua presen- institucional por meio da divulgação de regis-
ça, enquanto ator na defesa de direitos huma- tros audiovisuais das atividades de arte-edu-
nos, não deve ser vista como “ameaça” frente cação, mas não dava a ênfase necessária para
a tendência de criminalização dos usuários de demonstrar toda a complexidade, amplitude e
drogas que são presos; b) ofertar atendimentos potencialidade do Corra pro Abraço. Assim, o
106
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
Programa passou a contar, a partir de 2016, com propositivas direcionadas ao público que aten-
uma Assessoria de Comunicação que é respon- de. O foco e direcionamento da comunicação é
sável por assegurar processos de comunicação voltado, portanto, para:
interna e externa fluídos entre os diferentes
atores envolvidos da rede em que atua. Tal a) a mudança na visão tradicional com relação
assessoria tem desenvolvido materiais impres- à ação do Estado para pessoas em situação de
sos e audiovisuais que vão além da divulgação vulnerabilidade; ou seja, o Estado deixar de ser
institucional do Corra pro Abraço, porém atuam visto apenas como repressor e opressor. Progra-
diretamente na disseminação e aprendizagem mas como o Corra têm a função de comunicar
sobre redução de riscos e danos voltadas para o que o Estado também está presente para garan-
cuidado integral. tir a proteção social das pessoas que fazem uso
de drogas, compreendendo a questão como um
Desse modo, busca assegurar que as ações de problema público de sua responsabilidade e
comunicação do Programa estejam em sinto- que demanda ações de cuidados para com essa
nia com as Políticas sobre Drogas, numa lógica população;
de criação e defesa de agendas, o que demanda
um esforço na ideia de mudanças de narrativas. b) enxergar a população negra, prevalecente
Acredita-se que isso só é possível ocorrer quando como público do Programa, enquanto pessoas
se dá a devida importância aos atores-usuários com histórias de vida peculiares e que devem ter
do Programa, dando nome, rosto e voz a esses seus direitos garantidos pelo Estado;
que fazem parte dos processos de Redução de
Danos. Do contrário, estar-se-ia apenas incenti- c) fortalecer a Rede de Atenção Psicossocial,
vando a invisibilidade das pessoas em situação da qual o Corra faz parte e contribui para a sua
de rua e juventude em situação de exclusão. visibilidade;
Nesse sentido, o Corra criou estratégias de d) comunicar as ações realizadas pelos próprios
comunicação organizacional que vai além da atendidos no Programa, respeitando seus luga-
assessoria de imprensa, que dialoga com dife- res de fala e garantindo voz e vez nos espaços e
rentes atores da rede e tem usado, como prin- instrumentos de comunicação.
cipal estratégia de atuação, um aprofundamen-
to quanto às histórias de vida dos usuários do A partir do momento em que se estabelecem
Corra e das aquisições e mudanças que estes as pautas das pessoas que fazem uso de drogas
vêm gradativamente adquirindo por meio das em contextos de alta vulnerabilidade, fortalece-
intervenções do Programa. A visibilidade insti- -se o trabalho da Rede de Atenção Psicossocial,
tucional, nesse caso, passa a ser consequência ganhando notoriedade no Estado da Bahia e
das ações, colocando o Corra como um impor- repercutindo nacionalmente. Logo, o trabalho
tante ator de advocacy e no fomento de agendas de comunicação estratégica tem feito com que
107
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Lançamento do CD “Outros Caminhos São Possíveis” foi realizado na sala Walter da SIlveira, nos Barris, em Salvador, em 2018.
as políticas públicas de Saúde, Assistência Social necessários e contam com um serviço público
e Justiça se fortaleçam e priorizem tais agendas. que vem buscando garantir direitos.
Assim, tem se estabelecido um processo de cria-
ção de agenda setting fundamental no campo da Quanto aos fluxos de trabalho, todas as deman-
política de drogas e direitos humanos. das por produtos e assessoria de comunicação
e imprensa, em todos os núcleos do Programa,
A partir da atuação da Comunicação Estratégica são centralizados nesta assessoria, responsável
do Corra pro Abraço, têm-se conseguido maté- por: liderar e coordenar a captura, organização
rias e pautas em meios de comunicação de gran- e sistematização de informações; produzir e
de circulação, inclusive em programas de TV, em articular a veiculação de peças de comunicação
que quase sempre pessoas usuárias de drogas (folder, cartaz, folheto, cartilha, boletim, banner,
são mostradas de modo criminalizado, apare- apresentações institucionais etc.); orientar e
cendo de uma outra forma, o que evidencia supervisionar a produção e veiculação de peças
aspectos positivos desses cidadãos com direitos de comunicação e a produção dos eventos;
violados. Tem-se investido na divulgação das gerenciar e produzir a veiculação de notícias no
histórias dos usuários do Corra enquanto pesso- site institucional e em redes sociais; monitorar a
as que têm potenciais e passam a adotar outros divulgação de notícias sobre o Corra pro Abraço
projetos de vida. Para isso, precisam de apoios na mídia (redes sociais, jornais locais e nacio-
108
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
nais, informativos do poder público e organiza- ção das ações públicas que oferta, passou a cons-
ções sociais etc.); manter cópia dos arquivos de truir um sistema de monitoramento e indicadores
fotos, vídeos e demais materiais de interesse do de resultados.
Programa que contribuam para a preservação
da sua memória; planejar e coordenar a edição e A construção de sistemas de monitoramento
distribuição de publicações institucionais; zelar para programas de cuidados e redução de riscos
pela boa imagem do Programa Corra pro Abra- e danos físicos e sociais tem sido uma tarefa
ço, orientando-se pela política de comunicação desafiadora, tendo em vista que deve superar a
institucional da SJDHDS/SUPRAD. tradicional lógica de indicadores positivistas de
resultados econômicos e sociais. A complexidade
Todas as pautas sempre passam pela SJDHDS se dá porque, mais que o interesse sobre “quan-
por meio da Assessoria de Comunicação e da tos deixam de ser usuários de drogas”, deve-se
SUPRAD. A equipe de Comunicação da SJDHDS buscar, por exemplo, indicadores que tratem
trabalha de modo integrado e ágil nos processos sobre a diminuição da frequência, intensidade e
de aprovação, revisão e divulgação de notícias, descontinuidade do uso; o acesso a direitos de
pautas e agendas de trabalho. saúde, assistência social e justiça, dentre outros.
Logo, lida-se com outros parâmetros que devem
Mesmo diante de todo o caráter inovador na ser mensurados do ponto de vista quantitativo e
comunicação organizacional, muitos são os qualitativo. Trata-se de criar indicadores que, por
desafios neste processo. Há, assim, um papel um lado, deem uma noção do custo-eficácia das
de contribuir para a quebra de estigmas, este- ações desenvolvidas, mas, por outro, consigam
reótipos e preconceitos junto à imprensa – que, retratar a efetividade das ações do Programa fren-
geralmente, tende a culpabilizar essas pessoas -, te à complexidade dos efeitos produzidos pelas
e junto aos órgãos governamentais. Em ambos desigualdades e injustiças sociais, pela violação
os casos, o desafio é mudar a percepção sobre de direitos, pela exclusão e ausência de cuidados
questões que são originárias, não apenas do uso e bases de apoio para pessoas que fazem uso de
de drogas em si, mas do racismo institucional e drogas em contextos de extrema vulnerabilidade.
dos preconceitos de gênero que ainda prevale-
cem nas estruturas atuais. Monitorar e acompanhar as ações faz parte do
processo cotidiano de gestão do Programa. Por
meio dos instrumentos de trabalho, tais como o
4.7 Sistema de monitoramento mapa de campo, plano de acompanhamento do
e indicadores de resultados cuidado, registro dos encaminhamentos, listas
de frequência nas atividades, dentre outros, são
coletadas informações que geram indicadores
A partir de 2016, o Programa Corra Pro Abraço, de processo e de resultados. A coleta é feita pelas
sempre atento à transparência e à profissionaliza- próprias equipes técnicas, que alimentam o
109
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
sistema diariamente. Os dados são tratados por Desse modo, desde o início, outubro de 2016, vem
profissional vinculado diretamente à Coordena- sendo desenvolvido e aperfeiçoado um sistema
ção Geral do programa, que gera séries históricas de monitoramento que oferta os seguintes indica-
evolutivas dos atendimentos, encaminhamentos dores mensais de atendimento, oficinas/cursos,
e ações desenvolvidas em todos os núcleos de encaminhamento e acompanhamento:
atuação.
110
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
111
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
8 - Consultório na Rua
9 - Hospitais
10 - Maternidades
11 - PSF/USF
12 - SAMU
13 - UFBA/Odonto
14 - UPA
15 - Outros serviços
Fonte: Documentos internos do Corra pro Abraço (2018).
112
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
5 - Bolsa família
6 - BPC
7 - CADÚNICO
8 - Centro POP
9 - CRAS
10 - CREAS
11 - Insc. em prog. habitacionais
12 - Passe livre
13 - Outros serviços
1 - DPE
2 - Forúm criminal/Audiências
3 - MPE
4 - MTE - Ministério do Trabalho e
JUSTIÇA
5 - Unidades prisionais
6 - Vara de violência doméstica
7 - Outros serviços
Fonte: Documentos internos do Corra pro Abraço (2018).
113
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
3 - CPF
4 - Título de eleitor
5 - Carteira de trabalho
6 - Reservista
7 - Outros serviços
1 - CRECHES - Municipal
2 - EJA (CPA, Tempo de Aprender e outros) -
Estadual
EDUCAÇÃO
114
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
2 - CREDI BAHIA
3 - Curso de Redução de Danos e Ref. de Cam-
PROFISSIONAL
po
4 - Cursos Ponto de Cidadania
5 - Qualifica Bahia
6 - SIMM
7 - SINE
8 - Outros
1 - Cinemas
Acesso a bens culturais
2 - Equipamentos esportivos
e esportivos
3 - Exposições
4 - Museus
5 - Praias
6 - Teatros
7 - Outros
Fonte: Documentos internos do Corra pro Abraço (2018).
115
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
116
Aspectos institucionais do Programa Corra pro Abraço
117
Qualidaaaade! Mostra final de Juventude, em Itinga, Lauro de Freitas, 2017.
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
RESULTADOS, DESAFIOS,
APRENDIZAGENS E POSSIBILIDADES
5.1 Os resultados apresentados pelo alguns resultados, fruto de um esforço das equi-
Corra pro Abraço (2016 a 2018) pes em registrar todo o processo de acompa-
nhamento em meio a tantas demandas urgentes
de vivências e sobrevivências. O Corra inicia em
Falar em resultados no caso de um programa 2016 a criação de uma matriz de indicadores no
cujo foco é o cuidado e a redução de danos é sentido de padronizar estes e criar séries histó-
desafiador, uma vez que é preciso atentar para ricas que permitam, inclusive, algumas análises
indicadores quantitativos, mas também para comparativas. Além dos indicadores quantitati-
dimensões qualitativas extremamente relevan- vos, são também enfatizadas algumas falas dos
tes no sentido de possibilidades que se abrem participantes do Programa, fruto da pesquisa de
para mudanças nas trajetórias de vida de muitos campo que originou esse livro.
usuários. Ao longo do livro, muitos resulta-
dos foram expostos por meio da descrição das De outubro de 2016 a agosto de 2018, o Corra
atividades, efeitos das mostras públicas, depoi- Rua de Salvador teve atuação na sede, nos
mentos de usuários, organização das rotinas campos de Extensão e nos quatro campos fixos
de trabalho, expansão de núcleos e desafios – Terminal do Aquidabã, Baixa do Fiscal, Largo
superados. A apresentação dos indicadores de dos Mares e Praça das Mãos. Entre saídas cultu-
resultados ficaram para este capítulo, não por rais, intervenções urbanas, participação em
serem menos importantes, mas porque, para oficinas e cursos, foram contabilizados um total
o Corra pro Abraço, a prioridade sempre foi – e de 33.976 atendimentos e 4.182 pessoas benefi-
continua sendo – a qualidade de vida das pesso- ciadas pelo Programa. O número total de aten-
as. Os indicadores de instrumentos de políti- dimentos da equipe técnica nos campos chegou
cas públicas são necessários uma vez que se a 14.380, sendo 4.315 nos campos da Baixa do
podem fundamentar juízos valorativos quanto Fiscal/Largo dos Mares; 5.204 na Extensão; 2.559
ao sucesso do Programa, bem como a tomada na Praça das Mãos/Aquidabã; e 2.302 na sede.
de decisões quanto à ampliação, continuidade Nos campos, as oficinas de arte-educação conta-
e mudanças necessárias. Aqui, serão expostos ram com 10.839 participações, sendo o ponto do
119
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Aquidabã o que registrou o maior número de Dos 3.249 encaminhamentos totais solicitados
presenças: 4.227 no total. Na sede, foram regis- nas ruas e na sede, 1.983 foram efetivados (62%),
tradas 3.015 participações entre as oficinas de sendo a maior parte das demandas relaciona-
Leitura e Escrita (1.310), Música e Esporte (882) e das à emissão de documentação, acesso a bens
Teatro (823). No que tange ao número de pesso- culturais/esportivos e serviços do SUS. A maior
as que tiveram acesso às oficinas de arte-educa- dificuldade encontrada para efetivação esteve
ção, registramos 1.539 no campo e 420 na sede, relacionada ao acesso à Educação, a serviços do
totalizando 1.959 pessoas. Tanto nos campos SUAS/Habitação e à emissão de documentação,
quanto na casa, a participação de homens foi sendo alcançado menos de 40% de resolução
maior, alcançando cerca de 67%. Dentre as parti- nas três categorias.
cipantes do sexo feminino, a maioria tem de 17 a
39 anos, enquanto do sexo masculino a partici- Vale frisar que os dados informados como “efeti-
pação se estende em alto percentual com idade vados” são aqueles em que o retorno chegou
até 49 anos. ao conhecimento da equipe através do próprio
assistido e/ou da rede de atenção com quem se
compartilha o cuidado, sendo que esse número
Tabela nº 01– Distribuição do número absoluto pode ser maior do que o notificado. Muitos bene-
e percentual dos assistidos que participaram ficiários sequer estão em posse de sua certidão
das oficinas na sede e no campo realizados pelo de nascimento, documento que implica maior
Corra Rua Salvador segundo o sexo, de outubro burocracia para emissão – visto que é necessário
de 2016 a agosto de 2018, Salvador/BA contato com o cartório da cidade de nascimen-
to, muitas vezes distante de Salvador – e que é
SEXO requisito para emissão da carteira de identida-
OFICINA de, sendo esta última necessária para as demais
Feminino Masculino Total
solicitações.
44 211 255
SEDE
17,3% 82,7% 100,0% Já o Corra Rua de Feira de Santana, entre
107 415 522 março de 2017 e agosto de 2018, registrou 10.981
CAMPO atendimentos entre sede e campos e beneficiou
20,5% 79,5% 100,0%
2090 pessoas. As atividades na sede contaram
151 626 777
Total com 417 participações, sendo 154 nas oficinas
19,4% 80,6% 100,0% de capoeira, 112 nas oficinas de agente civil de
Fonte: base de dados interna do Corra pro Abraço (2018). trânsito, 79 nos encontros de jogos de tabulei-
ro e 72 nas mostras de cinema. As oficinas no
campo da Cidade Nova registraram 1.384 parti-
cipações e as realizadas na Praça Céu 1.238. Dos
777 assistidos que acessaram as oficinas na sede
120
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
121
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
tual atingido pela atuação no NPF foi de 44%, o Vale lembrar que a efetivação está relacionada ao
menor índice dentre as atuações do Programa, retorno dado pelo usuário sobre a resolução de
dado que coaduna com o contexto do espaço, suas demandas, o que implica a manutenção da
onde as possibilidades de encaminhamento são relação do mesmo com a equipe técnica. No caso
restritas e reduzidas. A maior parte dos encami- da equipe que atua no NPF, boa parte dos bene-
nhamentos dado aos beneficiários que passam a ficiários recebem encaminhamentos, mas muitos
integrar o Corra a partir do NPF se dá após o dire- deles não retornam ao local. (tabela 02)
cionamento dos mesmos para a sede, quando se
estreitam os laços e se ampliam as possibilidades. Das pessoas atendidas no NPF, a maior parte foi
PERCENTUAL
ENCAMINHAMENTOS SOLICITADO EFETIVADO
ATINGIDO
SUS 183 67 37%
SUAS e Habitação 119 47 39%
Justiça 190 121 64%
Documentação 142 54 38%
Educação 46 7 15%
Inserção e Capacitação profissional 46 17 37%
Total geral 726 313 44%
Fonte: base de dados interna do Corra pro Abraço (2018).
composta por homens (52,1%), totalizando 608 e encaminhamentos, à medida que a predo-
beneficiários do sexo masculino e 560 benefici- minância de mulheres no acompanhamento
árias do sexo feminino (47,9%). Dentre as pesso- dos custodiados evidencia o caráter machis-
as atendidas, cerca de 79% eram de Salvador, ta de uma sociedade que impõe às mulheres
sendo 494 custodiados e 674 seus familiares. a responsabilidade do cuidado com a família,
Entre esses últimos, mais de 80% são do sexo sendo essas acompanhantes, na maior parte
feminino, ao passo que, dentre os custodiados, das vezes, mães, tias, companheiras ou irmãs
mais de 85% são do sexo masculino. O alto índi- dos sujeitos presos em flagrante. (tabela 3)
ce de atendimento a familiares indica uma gran-
de necessidade de suporte para orientações
122
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
PESSOAS SEXO
ATENDIDAS Feminino Masculino Total
66 428 494
Custodiado
13,4% 86,6% 100,0%
542 132 674
Familiar
80,4% 19,6% 100,0%
608 560 1168
Total
52,1% 47,9% 100,0%
Duplicatas 209
Total geral 1377
Fonte: base de dados interna do Corra pro Abraço (2018).
123
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
com a baixa oferta de trabalhos formais e/ou sendo que 30% identificaram-se como pardos
com remuneração adequada. (tabela 04) e 41,4% como pretos. Apenas 2 se autodeclara-
ram brancos (1,4%) e 24 não quiseram respon-
Durante os 16 meses em Itinga, foram atendi- der (24,3%).
dos 140 jovens, sendo 45,7% do sexo masculi-
no e 54,3% do sexo feminino. O equilíbrio nas Nos núcleos de Juventude situado nos 04
participações entre jovens do sexo masculino (quatro) bairros de Salvador, 215 jovens foram
e feminino e a leve predominância entre as beneficiados, sendo 56,3% do sexo masculino e
jovens se deu em função da opção da ação em 43,7% do sexo feminino. Buscou-se distribuir a
oportunizar espaços de formação para jovens participação de forma equilibrada entre os bair-
do sexo feminino que são vítimas de múltiplas ros e a quantidade de jovens foi sendo readequa-
violências ao longo da juventude, estratégia da e equalizada ao longo do processo de acordo
detalhada anteriormente no Capítulo 1. Mais com as demandas. As atividades do Programa
de 60% dos beneficiários tinham idades entre contaram com a participação de 48 jovens nos
14 e 17 anos, escolha justificada pela compre- bairros do Boqueirão/Nordeste de Amaralina e
ensão de que a adolescência é um estágio de Plataforma (cada), 51 em Fazenda Coutos e 68
desenvolvimento peculiar que merece devida jovens no Beiru/Tancredo Neves. Desses, cerca
atenção. No que tange à autodeclaração de cor/ de 66% tinham idade entre 18 e 25 anos.
raça, 71,4% dos jovens declararam-se negros,
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Tabela nº 05 - Distribuição do número absoluto e ção de pessoas. Durante esse período foram
percentual da faixa etária dos jovens que foram solicitados 88 encaminhamentos, referentes a
atendidos pelo Corra Juventude Salvador, de junho serviços do SUAS/Habitação, emissão de docu-
de 2017 a agosto de 2018, Salvador/BA mentos e acesso ao SUS e à justiça. Desses, 43
foram efetivados e o maior entrave foi na conso-
FAIXA ETÁRIA Nº ABSOLUTO PERCENTUAL lidação de demandas na emissão de documen-
tações e SUAS/Habitação.
De 14 a 17 anos 36 16,7%
De 18 a 21 anos 102 47,4% De outubro de 2016 a agosto de 2018, o Corra
De 22 a 25 anos 41 19,1% pro Abraço fez 61.182 atendimentos e benefi-
De 26 a 30 anos 27 12,6% ciou 6749 pessoas em Salvador, Lauro de Freitas
Não respondeu 9 4,2% e Feira de Santana. Ainda foram realizados 877
acompanhamentos e 6.248 encaminhamentos
Total 215 100%
para as redes de Educação, Saúde, Justiça, Assis-
Fonte: base de dados interna do Corra pro Abraço (2018). tência Social, inserção profissional e de acesso
a bens culturais. Alguns indicadores não pude-
Durante os 15 meses, foram beneficiadas 215 ram ser computados em números. Não se tem
pessoas, totalizando 7.342 participações dentre registro quantitativo das palavras de motivação
as oficinas de designer gráfico, fotografia, e incentivo que foram trocadas, dos abraços
produção de vídeo e rádio e nas formações de e olhares de afeto e agradecimento. As estra-
desenvolvimento pessoal e social. Dos 1.117 tégias de redução de riscos e danos se pautam
encaminhamentos solicitados, a maior parte na melhoria da qualidade de vida do sujeito, no
esteve relacionada ao acesso a bens culturais e que ele deseja e na forma como se apresenta ao
à emissão de documentos; e, dos 421 encami- mundo, independente da interrupção do uso de
nhamentos não efetivados, a maior dificuldade drogas. Os indicadores numéricos não são capa-
foi encontrada nos serviços do SUAS, emissão de zes de abarcar os dados subjetivos que se apre-
documentos e Educação. sentam quando indivíduos relatam diminuição
do uso a partir do incentivo em voltar aos estu-
O núcleo mais recente do Corra pro Abraço, as dos ou na busca por um trabalho, no exercício de
Unidades de Apoio na Rua (UAR), realizou 2.212 uma linguagem artística, no acesso a um cine-
atendimentos entre maio e agosto de 2018, ma ou museu, na compreensão do seu corpo
sendo 643 registrados no módulo localizado na enquanto instrumento de luta e sobrevivência,
região do Pela Porco e 1.569 na unidade da Praça no reconhecimento de sua identidade negra e
das Mãos. As equipes computaram 1.010 acessos valorização de seus traços, na descoberta da sua
ao banheiro, composto de sanitário e chuveiro, potência e capacidade, no encontro com o outro
sendo a maior parte deles na Praça das Mãos e com os afetos.
(637), um local de grande trânsito e concentra-
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
Equipe técnica acompanha assistidos para emissão do dcumento de título de eleitor no TRE/BA, em Salvador, em agosto de 2017.
Tabela nº 06 - Dados Gerais do Programa Corra pro Abraço, de outubro de 2016 a agosto de 2018,
Salvador/BA
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
A seguir explicamos cada um destes desafios to nas atividades etc. No entanto, o Programa
que se inter-relacionam e são apontados da entende que os públicos atendidos, num primei-
Figura 3. ro momento, são formados prioritariamente por
pessoas que não possuem acesso e garantia a
a) O equilíbrio entre a baixa exigência dos esses direitos exigidos como condicionalidades.
usuários e a compreensão disso por parte dos Cabe, assim, não exigir isso como pré-condição
atores externos e internos para ingresso ou permanência, mas como forma
de despertar nos indivíduos a importância e
Compreendendo que alguns indivíduos vivem necessidade de acessar esses direitos. O desa-
mais ameaças permanentes quanto às incertezas fio está em como conseguir a adesão dos usuá-
do presente e do futuro, por não possuírem em si rios independente das exigências formais feitas
mesmos o poder de proteger e de proteger-se, o pelas políticas públicas. Logo, reverte-se a visão
Corra tem se afirmado continuamente como um tradicional de condicionalidade, que, embo-
Programa que trabalha na perspectiva de baixa ra também exista no Corra, possui uma lógica
exigência dos assistidos, conforme já explicitado mais flexível de compreensão das possibilida-
em capítulos anteriores. Desse modo, o serviço des e limites individuais, compreendida a partir
considera as trajetórias de vida marcadas pelas das histórias de vida das pessoas, para que haja
diversas vulnerabilidades e violências, decor- total empenho na garantia de direitos que culmi-
rentes de fatores como a dependência do uso nem com os desejos por mudanças dos projetos
de drogas, a situação de rua, a falta de acesso a de vida. O fundamento é trabalhar mais com a
políticas públicas, os conflitos com a lei. A baixa criação de oportunidades que gerem conquistas
exigência está relacionada a uma nova lógica do que com condicionalidades que gerem mais
quanto às condicionalidades para que os seus frustrações.
assistidos sejam beneficiados pelas ações. Pode-
-se dizer, inclusive, que o Corra tem invertido a A baixa exigência se dá ao compreender que
lógica tradicional predominante em boa parte o aumento das vulnerabilidades, ou seja, das
das políticas públicas, que exige, por exemplo: capacidades de enfrentamento dos riscos, certa-
comprovações quanto a situações de renda; mente, é mais forte para determinados grupos
vinculação à escola, com bom aproveitamento; sociais do que para outros. Tais riscos pessoais
acompanhamentos de saúde; não passagem por e sociais afloram quando um indivíduo compro-
polícia; ter documentos em dia etc. Além disso, mete sua capacidade de assegurar por si mesmo
geralmente, cobra-se de modo intransigente sua independência social, por não estar protegi-
dos beneficiários de políticas públicas questões do de algumas contingências, vivendo em situ-
como frequência, pontualidade, aproveitamen- ação de inseguridade.39 Nesse sentido, a baixa
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
40. Termo muito usado na Bahia para designar alguma espécie de “tortura mental”, “excesso de exigências que deixa angustiado”.
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
nas atividades, de modo a motivar a participa- mas pessoas. Logo, um Programa mais flexível e
ção dos usuários por propiciar espaços de acolhi- inovador como o Corra enfrenta o desafio de não
mento, escuta, troca de afetos, possibilidades de seguir lógicas extremistas, demandando tempo
formação e aprendizagem. Desperta-se, assim, para a construção de novas compreensões,
a esperança e o desejo de mudar cursos de vida discursos e argumentos valorativos.
marcadas pela violação de direitos e vulnerabi-
lidades pessoais e sociais. Consolida-se, assim, Vários são os exemplos que podem ser citados
outra lógica de condicionalidades em políticas quanto aos dilemas enfrentados devido à baixa
públicas. No caso do Corra, não significa que exigência e à compreensão dos atores externos.
estas não existam, mas que há maior flexibilida- Um deles diz respeito a quando alguns parceiros,
de quanto às exigências para ingresso e perma- em determinados momentos, têm dificuldades
nência nas atividades. para compreender a metodologia usada e os
resultados alcançados. É complexo ultrapassar,
Para a equipe interna, a baixa exigência é uma por exemplo, a lógica de acesso ao trabalho/
premissa, porém sabe-se que, por parte de atores emprego, para aquela que não seja a do traba-
externos, mesmo por alguns que fazem parte da lho formal. Porém, deve-se perceber que em
própria Rede de Atenção Psicossocial, que deve- se tratando do público do Corra, por mais que
ria também atentar para essa lógica, existem se capacite, forme, desenvolva competências,
limites e resistências quanto a isso. Tal situação ainda existem muitos limites quanto ao aces-
se manifesta quando ainda prevalecem lógicas so ao mercado de trabalho formal para essas
punitivas e discriminatórias quanto às pessoas pessoas que carregam uma série de estigmas
dependentes do uso de drogas que necessitam (drogado, crackudo, maloqueiro, morador de
de atendimentos nos equipamentos públicos, rua, ladrão etc.), que, mesmo que sejam ultrapas-
órgãos de defesa de direitos e empresas. Mesmo sados, permanecem como marcadores em suas
perante alguns órgãos públicos, prevalece a lógi- histórias de vida. Assim, acabam, em sua maio-
ca quantofrênica e imediatista, que demanda ria, sobrevivendo dos seus “corres”41 no mercado
indicadores, como “quantas pessoas deixaram informal enquanto ambulantes, guardadores de
de usar droga x ou y”, “quantos saíram da rua”, carro, prestadores de serviços pontuais etc.
“quantos estão empregados”. Tal questão está
ligada, principalmente, à longa tradição em asso- Outro exemplo muito vivido no Corra Juventude
ciar a dependência de certas substâncias psicoa- diz respeito às dificuldades que os jovens, princi-
tivas (lícitas ou ilícitas) como questões privadas palmente os com menos de 18 anos, passam para
relacionadas a fraquezas pessoais, emocionais e abrir uma conta bancária para receber a bolsa de
espirituais, culpabilizando individualmente algu- estudo, que implica, muitas vezes, na disponibili-
41. Expressão usada para designar “procedimento ou preparação” e “trabalho para ganhar dinheiro”.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
dade de um responsável para autorizar a parti- condicionalidades são tão grandes, que esses
cipação e abertura da conta. Os bancos geral- atendimentos não ocorrem, gerando uma série
mente solicitam uma série de documentos, tais de frustrações e conflitos. Logo, é preciso revi-
como RG, CPF e comprovante de residência. sar muitas dessas condicionalidades a fim de
Muitos desses jovens não possuem comprovan- respeitar as diversas vulnerabilidades existen-
te de residência, pois moram em residências tes entre pessoas que fazem uso de substâncias
insalubres, com baixas condições de acesso a psicoativas e/ou estão em situação de rua.
serviços públicos, como água e energia elétrica,
de modo que atestem a residência, bem como, b) Limites entre o acolhimento, vínculos e a
às vezes não possuem os demais documentos disciplina
necessários. Além disso, muitos dos responsá-
veis pelos jovens trabalham em horário comer- A baixa exigência, tratada anteriormente, não
cial em regimes rígidos, que coincide com o exime da disciplina mínima necessária para que
período de funcionamento bancário. Em alguns haja o acolhimento, fortalecimento de vínculos e
casos, os jovens têm como responsáveis mulhe- criação de laços afetivos. Nesse sentido, surgem
res trabalhadoras domésticas que residem nos muitos dilemas com relação aos limites existen-
locais de trabalho, só retornando ao lar nos tes entre disciplina, afeto e compreensão. O Corra
finais de semana; em outros que já possuem possui uma programação de atividades semanais
vínculos frágeis com seus responsáveis, torna- e semestrais dinâmicas com cronogramas bem
-se ainda mais complexa a disponibilidade definidos. Assim, há regras claras de convivência
para fazer tal abertura de conta. Assim, diante em seus distintos espaços de atuação, impon-
desses impasses, como resolver uma questão do limites aos seus técnicos e assistidos. Isso,
que aparentemente parece simples: a autoriza- obviamente, gera, por vezes, algumas situações
ção para participar de um programa social e a de conflito quando se depara com questões rela-
abertura de uma conta bancária para receber cionadas à tolerância com relação a alguns atos
uma bolsa. Isso tem demandado esforços por de indisciplina. Os usuários têm perfis parecidos
parte da equipe técnica do Corra Juventude em alguns aspectos, mas com particularidades
no sentido de buscar compreender cada caso quanto ao tempo de concentração, aceitação das
e tentar solucioná-lo, demandando apoios aos atividades, boas relações sociais, comunicação,
assistidos e diálogos com atores externos, de frequência etc. Assim, toda situação que acaba
modo a garantir equilíbrio entre a baixa exigên- saindo do controle demanda formas de adminis-
cia e as relações com atores externos. trar casos individuais no coletivo. Qualquer situ-
ação que passe dos limites, que fuja das regras
Outro exemplo diz respeito a quando se faz um colocadas para as atividades, sempre é resolvida
encaminhamento de algum assistido para aces- por meio da dialogicidade com o grupo e isso
sar serviços em algum equipamento público do demanda tempo, além de, por vezes, reprogra-
SUAS ou do SUS. Muitas vezes, as exigências de mação dessas ações.
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
mas também para a equipe técnica, que deve no início deste capítulo. É preciso pensar novos
compreender que, por mais sensibilizada que critérios e dimensões avaliativas para aferir
esteja com dadas situações, existem ações que resultados das estratégias de redução de danos
não podem ocorrer de modo algum. Por exem- a curto, médio e longo prazo. Para tanto, criar e
plo, por mais que se esteja vendo a necessida- difundir novas lógicas que imperam em políticas
de de alguém que precise de dinheiro, remédio, sociais, como as de redução de danos, buscan-
moradia etc., não é papel dos técnicos do Corra do estabelecer relações entre seus resultados
prover essas necessidades, mas fazer os devidos materiais e simbólicos42 mais subjetivos, que
encaminhamentos e articulações para que tais implicam diretamente em possíveis mudanças
demandas sejam supridas da forma mais célere nas trajetórias de vida dos usuários do serviço.
possível por meio de outros serviços públicos e
redes de apoio da sociedade civil. O Corra pro Abraço trata de um problema
público extremamente complexo, que envolve
É importante ainda ressaltar que, diante dos múltiplos atores e interesses e, por isso, geram
vínculos que são criados, muitas vezes as equi- muitas incertezas e, ao mesmo tempo, expec-
pes também são colocadas em situações em tativas quanto aos seus resultados. Tal comple-
que os assistidos extrapolam as regras (mesmo xidade se dá pela integração de objetivos em
que mais flexíveis) e que têm de saber como agir políticas públicas, com uma pluralidade de
recobrando, porém sem reproduzir lógicas puniti- ações setoriais que devem dialogar, pressupon-
vas. A punição já é algo constante na vida dessas do a sinergia entre diferentes setores e níveis de
pessoas e que serve para romper vínculos. Assim, governo. A definição do público envolvido na
tem-se como estratégia de lidar com essas situa- ação pública extrapola as fronteiras clássicas
ções o não imediatismo e o caminho do diálogo, entre grupos de atores decisores, executores e
da negociação e da aprendizagem coletiva. beneficiários. Além disso, a exigência de inova-
ção de arranjos institucionais dificulta um tipo
c) Medição e validação de indicadores não de aprendizagem ligada ao aperfeiçoamento de
quantificáveis processos na implementação de ações públi-
cas. Os problemas operacionais que vão sendo
Constitui-se como grande desafio para o Corra enfrentados durante os processos de imple-
pro Abraço, dentro das inovações que produz, mentação exigem, muitas vezes, mudanças
criar, monitorar e avaliar indicadores para além nas ações e, consequentemente, nas formas de
dos tradicionais baseados numa lógica da efici- monitorar/avaliar, gerando dificuldades para
ência e eficácia gerencial, conforme já tratado o desenvolvimento de indicadores que gerem
42. ARAÚJO, E. T. Respostas contra hegemônicas para demandas governamentais hegemônicas na avaliação de políticas públicas
sociais: dilemas e desafios em cenários sombrios. In: VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas. São Luiz: UFMA, 2017.
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
Gravações do CD Outros Caminhos São Possíveis foram feitas no estúdio do Ilê Aiyê, na Senzala do Barro Preto, em Salvador, em 2018.
séries de avaliação, de modo que possa haver uma resposta de governo proposta para trans-
processos comparativos. Por fim, pelo cres- formar uma dada situação considerada proble-
cente grau de participação dos usuários nos mática numa outra considerada socialmente
processos avaliativos, geram-se dilemas de não aceitável, mesmo quando esta se dê de modo
saber se o mais importante é avaliar os efeitos consensual ou participativo44. Essa é a realida-
e resultados da participação em si ou das deci- de enfrentada pelo Corra pro Abraço. Assim, ao
sões participadas.43 mesmo tempo que se busca aferir resultados que
indicam a eficiência e a eficácia do Programa
As incertezas quanto às avaliações e à exigência (diminuição do uso de drogas, número de aten-
por dados indicadores surgem, principalmente, dimentos, número de encaminhamentos para as
ao se aferir ao possível sucesso do desenho de diferentes redes de políticas públicas, número de
43. BOULLOSA, R. F. Algumas notas de problematização para a construção de sistemas de indicadores de avaliação e monitoramento
de experiências de economia solidária. In: KRAYCHETE, G.; CARVALHO, P. (Org.). Economia Popular Solidária: indicadores para a
sustentabilidade. 1. ed. Rio de Janeiro: Tomo Editorial, 2012. v. 1, p. 85-93.
44. ARAÚJO, 2017.
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
pessoas trabalhando, número de pessoas empre- Certamente, as respostas a essas questões são
gadas, % aumento do atendimento e cobertura, difíceis e traduzi-las em indicadores de proces-
número de jovens que concluíram cursos etc.), sos e resultados é imprescindível para um
tem-se que avançar em termos de indicado- programa de redução de danos, pois implica em
res não tão convencionais, que demonstrem as aferir mudanças em projetos de vida de pesso-
mudanças de comportamento e interesses exigi- as usuárias de drogas que já não tinham, em
das para a efetividade das ações propostas. muitos casos, perspectivas. Talvez um dos resul-
tados mais importantes a ser reconhecido no
Muitos dos resultados objetivos, conforme Corra pro Abraço seja a mudança de postura dos
demonstrados no início deste capítulo, têm usuários para consigo, desenvolvendo processos
sido mensurados por meio de processos de de cuidado e autocuidado que culminam com a
monitoramento que vem sendo aperfeiçoado, identificação e comprometimento com novas
demonstrando que o serviço tem alcançado e, possibilidades de vida.
muitas vezes, ultrapassado as metas estabele-
cidas. Porém, alguns limites se impõem pelas d) Capacidade limitada de atendimento fren-
próprias condições de extrema vulnerabilidade te às altas complexidades das demandas dos
vividas pelos assistidos, conforme vem sendo usuários
ressaltado em toda esta obra. Cabe compre-
ender que existem outras dimensões e resul- O Programa Corra pro Abraço se tornou extrema-
tados (talvez mais subjetivos do ponto de vista mente inovador ao ser permitido experimentar
da burocracia estatal), mas que precisam ser intensas vivências em distintos territórios para
considerados e avaliados. Quantos abraços e que, a partir dos repertórios vividos pelos usuá-
quantas vezes muitos desses assistidos foram rios de drogas nas diferentes cenas de uso, situ-
chamados pelo nome e valorizados como ações e demandas existentes, fossem estabeleci-
são, após toda uma trajetória de invisibiliza- dos nortes de atuação. Trata-se de um exemplo
ção ao longo da vida? Quantos jovens sequer de ação pública em que o território em si é um
conseguiam olhar nos olhos de outrem e não instrumento de gestão e isso implica não apenas
conseguiam pronunciar seus nomes, seja pelo em atuar como simples agentes de mudança que
comportamento tímido ou violento? Quantas chegam para “trazer soluções”, mas como articu-
pessoas presas em flagrante nunca tiveram ladores de múltiplas demandas que vão surgin-
apoio e acolhimento com escuta ativa e sem do. Tem-se, assim, um Programa com alto grau
juízo de valor prévio que visa criminalizar e de eficiência do ponto de vista da otimização de
punir? Quantos assistidos passaram a compre- recursos, mas com uma demanda crescente por
ender e aceitar suas identidades negras? Quan- atendimentos, encaminhamentos e acompanha-
tas pessoas passaram a compreender seu papel mentos para a garantia de Direitos Humanos.
no mundo enquanto ser político com direito à
participação na vida pública? É interessante observar que os territórios de
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
2018: Roda de Conversa com Policiais Civis e Militares dos Territórios onde são desenvolvidas atividades do Programa Corra pro Abraço.
atuação foram agregando diferentes públi- Destaca-se que se passou a atender pessoas em
cos para além das pessoas em situação de rua situação de rua que, com frequência, são presas
usuárias de drogas. Ao ampliar o trabalho para e apresentam demandas específicas relaciona-
jovens em situação de vulnerabilidade e pesso- das a acesso ao Sistema de Justiça. Destaca-se
as presas em flagrante, passou-se a lidar com que estas eram presas, em sua maioria, por não
outros contextos de exclusão e fragilidade de terem residência e não por cometerem crime
vínculos familiares e comunitários que afetam que correspondesse à prisão preventiva.
diretamente a procura desses usuários por servi-
ços e programas públicos. Ao atender e acom- À medida que o Corra vem tendo ações efeti-
panhar jovens pertencentes a diferentes arran- vas nestes territórios, os próprios assistidos vão
jos familiares e condições de vulnerabilidade, atraindo e convidando novos possíveis parti-
demanda-se um trabalho mais preventivo para cipantes para as várias atividades. Obviamen-
que estes não cheguem à situação de rua. No te, isso tem gerado uma grande quantidade de
caso das pessoas presas em flagrante, em dife- trabalho, seja pelos fluxos de pessoas que vão se
rentes idades, além de buscar garantir o acesso aproximando do trabalho de campo nas ruas por
à Justiça, também traz essa lógica preventiva. meio das intervenções e das UAR, seja no Corra
141
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Juventude, pelo fluxo contínuo e intenso de casos Rede de Atenção Psicossocial, bem como do SUS
que chegam por meio das audiências de custódia. como um todo, do SUAS e dos equipamentos
No caso do Corra Rua e no NPF, a intervenção é de acesso à Justiça. Porém, ao mesmo tempo,
contínua, o cuidado pontual e imediato, pois há a a articulação com outros serviços é um desafio
possibilidade de não haver um segundo momen- cotidiano, uma vez que não existe uma uniformi-
to de encontro. Na Sede do Corra Rua, existem dade quanto à prioridade de atendimentos nos
limites quanto ao número de pessoas que se equipamentos públicos em distintos territórios.
consegue atender, dado inclusive o tamanho do A ativação da rede vem se dando não somente
espaço físico. No Corra Juventude, são ofertadas pelo serviço de fazer encaminhamentos, mas por
duas turmas de formação por ano, durando em intercambiar práticas entre os atores dos diferen-
média nove meses, havendo o acompanhamento tes serviços de Saúde, Assistência Social, Educa-
contínuo dos jovens, numa perspectiva biopsicos- ção e acesso à Justiça as formas de atendimen-
social. No caso do Corra Acesso à Justiça (NPF), to com este público específico, considerando as
percebe-se que há demandas por continuidade suas vulnerabilidades específicas e buscando
de acompanhamento dos casos, mesmo após os mitigar alguns estigmas e preconceitos. Um bom
encaminhamentos quanto às pendências legais. exemplo de parceria que cada vez mais tem se
fortalecido é com o Consultório na Rua, progra-
e) Fortalecimento das relações intersetoriais ma do SUS, que tem feito o campo em conjunto
com as equipes do Corra.
Ao compreender, de modo ético, que a ausência
de cuidados é um problema público e não priva- A intersetorialidade vem, portanto, sendo consi-
do e que o cuidado integral é um direito social, derada como uma categoria fundamental asso-
o Corra pro Abraço teve que buscar novas lógi- ciada ao cuidado prestado aos participantes
cas, linguagens e modos de intervir nas políticas do Corra. Pressupõe a articulação coordenada
sobre drogas, principalmente, nos casos do uso de um conjunto de ações setoriais em busca de
problemático em cenas urbanas por usuários resultados mais efetivos das políticas públicas.
com direitos violados. Isso implica em entender Todavia, muitas vezes, enfrentam-se alguns
a complexidade do fenômeno do uso abusivo de limites legais e estruturais, principalmente, no
drogas, que envolve diferentes expressões da âmbito local em que se esbarra com dificuldades
questão social, racial e de gênero numa perspec- técnicas e operacionais relacionadas à capacida-
tiva interseccional e intersetorial, pressupondo de de apreensão de determinadas gramáticas e
uma ampla atuação em rede. criação de institucionalidades para efetivação
dos direitos de proteção social.45 Trabalhar de
O Corra vem sendo um grande articulador da modo intersetorial vai além da “integração de
142
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
setores”. Isso também implica na noção de que com diferentes idades, o que as coloca em situ-
a intersetorialidade não é antagônica ou substi- ações de vulnerabilidade e opressão de forma
tutiva da setorialidade, mas complementar.46 O intensificada quando compreendidos e soma-
Corra pro Abraço vem trabalhando com a ideia de dos todos esses marcadores sociais. Isso gera
reconhecimento, afirmação identitária e prota- demandas residuais que, mesmo havendo a
gonismo, que geram de certo modo processos de redução de danos quanto ao uso de substâncias
conscientização não apenas dos seus assistidos, psicoativas, para que estas pessoas tenham seus
mas de todos os atores públicos que devem esta- direitos de cidadania garantidos, deve-se enfren-
belecer compromissos para fortalecer o trabalho tar todas essas situações ativando diferentes
em rede em torno da oferta de cuidados. serviços e benefícios da Rede de Atenção Psicos-
social, do SUAS e do SUS.
Existem relações mais profícuas em alguns seto-
res e equipamentos públicos do que em outros. Mesmo com todos os avanços quanto às relações
Com relação à Saúde, órgãos do sistema de Justi- intersetoriais, é preciso cada vez mais fortalecer
ça, como a Defensoria Pública, por exemplo, as os diálogos e parcerias não só com os atores da
articulações são cada vez mais fortes. Sabe-se, Saúde, Educação, Justiça e Assistência Social,
no entanto, que muito ainda há de avançar com mas com programas e projetos que desenvol-
relação às parcerias e ao matriciamento de ações vem trabalhos similares no campo da redução de
com relação a outros setores. danos. É preciso investir na criação de protocolos
que favoreçam a articulação dos serviços, dentro
A compreensão dos papéis dos diferentes atores de uma lógica de matriciamento em torno do
da Rede de Atenção Psicossocial para a oferta cuidado centrado no usuário. É preciso avançar
cuidados vem fazendo com que o Corra pro Abra- quanto ao atendimento prioritário dos usuários
ço consiga ter como horizonte a modificação do que demandem os serviços da rede de modo
quadro de injustiças sociais com relação às pesso- cada vez mais autônomo, sem que necessaria-
as que fazem uso de drogas em contextos de alta mente haja a intervenção do Corra pro Abraço.
vulnerabilidade, e que passam pelo enfrenta-
mento de diferentes preconceitos de marca e de f) Teorizar, sistematizar e difundir continua-
origem, como racismo, sexismo e LGBTfobia. Tais mente a tecnologia de cuidado que vem sendo
preconceitos e discriminações, neste caso, são desenvolvida pelas experiências dos Núcleos
acumulados e, por conseguinte, geram vulnera-
bilidades mais graves. Assim, o foco não é apenas O Corra pro Abraço vem apresentando soluções
por serem usuários de drogas, mas também por inovadoras, fugindo de lógicas punitivas e de
serem pessoas negras, mulheres, pobres, LGBTs, abstinência comumente encontradas nas políti-
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Certificação da 2ª turma do curso de agentes redutores de danos, na Escola Superior da DPE-Ba, em Salvador, 2018.
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Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
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Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
recursos não apenas financeiros, mas pessoas da ação pública, demanda-se ampliar a insti-
que possam estar aptas e disponíveis para tal. tucionalização e marcos legais desta enquanto
Isso vem ocorrendo por meio de algumas parce- uma política pública, implicando na existência
rias firmadas entre o Corra com universidades e de recursos financeiros vinculados anualmente
outras instituições de Ensino Superior. e garantidos orçamentariamente.
Muitas vezes, é preciso ter um olhar de fora, inter- A necessidade de lei de regulamente o Corra pro
rogante, que questione, valide e sistematize o que Abraço enquanto política pública pode melhor
está sendo feito e produzido no projeto, de modo garantir a sua continuidade e sustentabilida-
a conquistar novos e outros espaços institucio- de, não dependendo apenas da existência de
nais para isso, como, por exemplo, o Programa vontade política para que a estratégia de cuida-
chegar e ser implementado em novos municípios. dos e redução de danos seja prioridade no
É preciso pensar em possibilidades, de como este governo.
conhecimento sistêmico sobre cuidados integrais
para usuários de drogas pode ser incorporado ao Os recursos financeiros do Corra desde seu
SUAS e ao SUS dentro dos municípios. princípio são oriundos do Pacto Pela Vida, cria-
do em 2011, no âmbito do Sistema de Defesa
Cada Núcleo do Corra desenvolve repertórios Social. Nesse sentido, é preciso avançar quan-
e métodos de lidar com as mais distintas situ- to à vinculação orçamentária específica de
ações enfrentadas por usuários de drogas em recursos para o Corra pro Abraço, bem como
contextos de alta vulnerabilidade. A sistema- na diversificação de fontes orçamentárias para
tização e a difusão destas é fundamental para este enquanto política pública.
justificar a criação de políticas públicas que
ofertem serviços continuados e não apenas Entende-se que a sustentabilidade do progra-
programas e projetos com tempo finito. Logo, ma não se trata de um fenômeno apenas finan-
compreende-se que o Corra também pode ser ceiro, mas que envolve múltiplas dimensões:
compreendido como um método viável que técnica, política e cognitiva, sociocultural e
pode ser apresentado, adaptado e replicado em econômico-financeira.48 A dimensão técnica
diferentes contextos municipais. está relacionada à construção de metodolo-
gias inovadoras de trabalho que atendam às
g) Garantir a sustentabilidade do programa demandas com qualidade e que propiciem
aprendizagens.49 A dimensão política está
Considerando os resultados significativos do relacionada á capacidade de inserção e mobi-
Corra pro Abraço ao longo desses anos, cada lização do Corra nos espaços políticos e redes
vez mais se aumentam as expectativas quanto de políticas públicas, bem como a constante
à ampliação de sua atuação, uma vez que as afirmação da redução de danos como estra-
múltiplas demandas existem. Para a ampliação tégia viável numa lógica pragmática e demo-
146
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
crática que atende a perfis que não aderem ao Para além da questão financeira, portanto,
cuidado a partir do internamento e abstenção, fortalecer as demais dimensões da sustentabi-
assim como na oferta de cuidados a pessoas lidade no Corra é algo fundamental. Sabe-se
com perfis para acessar os serviços indepen- que os governos continuarão com a coexis-
dente de contextos de pobreza que vivenciem. tência de estratégias de cuidado baseado na
A dimensão cognitiva trata da capacidade de abstenção, punição e também na redução de
conseguir gerar constantes aprendizagens e danos no âmbito das políticas sobre drogas,
ressignificações nas intervenções com os usuá- seja por questões legais, morais ou éticas.
rios de drogas. A dimensão sociocultural diz Logo, a sustentação de uma política de cuida-
respeito ao potencial de mudanças culturais dos e redução de danos passa por uma lógica
que o Programa tem gerado na sociedade como ética e pela intencionalidade dos governantes.
um todo com relação a uma perspectiva mais
ética e menos moralista com relação ao uso de
drogas, mostrando como os diferentes marca- 5.3 Aprendizagens e inovação em
dores de vulnerabilidade social e contextos de políticas públicas sobre drogas e as
uso influenciam nas alternativas encontradas possibilidades do Corra pro Abraço
para lidar com a questão. A dimensão econô-
mico-financeira aparece aqui, propositalmen-
te como a última, sendo compreendida como A essência deste livro revela o Corra pro Abraço
consequência das demais. Garantir a existência como um contínuo processo de aprendizagem
de recursos financeiros para a implementação e inovação em políticas públicas. Entende-se,
de uma ação pública no âmbito governamental aqui, que a aprendizagem não é um objeto, um
é, sem dúvidas, um dos maiores desafios, mas produto ou um processo técnico individual a
que depende de vencer outros e apresentar ser analisado, mas sim uma prática social que
conquistas quanto aos resultados requeridos, é parte do processo de construção da realida-
alinhamento político-ideológico, legitimidade de, entrelaçada com a cultura e a política.50
nos espaços políticos e demonstrar a qualida- Tal processo tem sido progressivamente expe-
de dos serviços que são prestados. rimentado, incrementado, corrigido quando
48. SIQUEIRA SANTOS, T. C. Organizações da sociedade civil e as construções teóricas contemporâneas acerca da sustentabilidade.
Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 2, n. 1, p. 105-120, 2009.
49. ARAÚJO, E. T.; MELO, V. P.; SCHOMMER, P. C. O Desafio da Sustentabilidade Financeira e suas Implicações no Papel Social das Orga-
nizações da Sociedade Civil. In: Conferência Latinoamericana y del Caribe – Internacional Society for Third Sector Research (ISTR), 5.
2005, Lima, Peru. Anais... Lima: ISTR, 2005. (Cd-rom).
50. SCHOMMER, P. C.; BOULLOSA, R. F. Com quantas andorinhas se faz um verão? Práticas, relações e fronteiras de aprendizagem. In:
SCHOMMER, P. C.; SANTOS, I. G. Aprender se aprende aprendendo: construção de saberes na relação entre universidade e sociedade.
Salvador: CIAGS/UFBA, FAPESB, 2010. (Coleção Gestão Social).
147
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
Sessão de cinema promovido pelo Corra pro Abraço para pessoas em contexto de rua, no Terminal do Aquidabã, em Salvador, em 2016.
necessário e adaptado a novas práticas para conhecimentos técnicos, mas que é impres-
redução de danos e garantia de direitos huma- cindível criar vínculos e gerar confiança neste
nos numa lógica do cuidado integral.51 Desse público. Dessa forma, cuidar passa a ser verbo
modo, diz respeito a como o Corra tem conse- transitivo, com foco bem definido pelo caráter
guido transformar realidades pessoais e estru- ético. Essa ética do cuidado muda a decodifica-
turas sociais por meio da ampliação das estraté- ção deste e cria aprendizagens para entender
gias de redução de danos e oferta de cuidados. que os apoios que as pessoas que fazem uso de
drogas necessitam não podem eximir a presen-
As experiências desenvolvidas têm cada vez ça de terceiros como os técnicos, mas que esta
mais demonstrado que, para cuidar de pesso- não pode ser uma dependência enquanto vincu-
as que fazem uso de drogas em contextos de lação desejada. Ao contrário, aprende-se com a
alta vulnerabilidade, não basta ter vontade ou necessidade de interdependência nas relações
148
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
149
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
53. SILVA, E. S.; ARAÚJO, E. T. Inovação social em políticas públicas de redução de danos para usuários de drogas: o caso da parceria
entre Estado e Sociedade Civil no projeto Corra pro Abraço em Salvador da Bahia. In: Internacional Society for Third Sector Research,
X Conferência ISTR-LAC, Porto Rico: ISTR, 2015. p. 16.
54. Ibid.
150
Resultados, desafios, aprendizagens e possibilidades
151
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
152
Considerações Finais
Imagine se você, por alguma razão imponderá- Imagine se você tivesse um corpo de mulher e
vel, não pudesse nunca mais ser chamado pelo esse corpo tivesse sido tão e tantas vezes viola-
nome, passando a ser chamado apenas por do por estupros sucessivos e abortos desassis-
um “apelido”, um “vulgo”, que fizesse referên- tidos que as dores encontraram lugar silencia-
cia a uma marca de profunda dor no seu corpo! do em feridas nas camadas mais profundas do
seu espírito!
Imagine se a sua expectativa de vida fosse
viver, no máximo, até os vinte anos de idade! O convite pra você se imaginar nessas situações
Imagine se você, na sua adolescência, já tives- extremas é um convite ao exercício da EMPA-
se passado por tanta coisa, desde a infância, TIA. Os profissionais do Programa Corra pro
que saltou a fase dos sonhos, aqueles sonhos Abraço se deparam todos os dias com pesso-
que lhe dariam aspirações de longevidade! as que, de fato, vivem essas e outras situações
extremas. Essa é a realidade dos/as nossos/as
Imagine se você, na sua maturidade, de repen- beneficiários/as. E o exercício da empatia é a
te e da pior maneira possível, descobrisse essência da proposta desse Programa.
que não há hierarquia entre a fome de afeto
e a fome nutricional! Imagine você lembrar, No plano de fundo em que ele atua, converge
já com uma certa idade, quando a sua mãe, uma gama de questões das mais sensíveis e
por amor, o deixou numa instituição que lhe sofisticadas impostas à sociedade contempo-
daria as refeições que ela não poderia dar, mal rânea: a pobreza extrema, a criminalização
sabendo que a fome que você passaria junto desta pobreza, a violência urbana, o encarce-
com ela seria um dia superada, mas a fome de ramento em massa, a política de drogas e o
afeto, essa jamais seria transposta! (des) investimento na promoção dos direitos
153
Programa Corra pro Abraço: Outros Caminhos são Possíveis
humanos, em um nível que reverta efetiva- vel de vida e esperança oriundas das potencia-
mente esse cenário. Como o Corra atua nos lidades inerentes a cada ser humano que passa
territórios mais empobrecidos, acaba situado pelo Programa. E como é que se produz isso?
na zona nevrálgica de todas essas questões. Chamando pelo nome e olhando nos olhos;
criando espaços de sonhos e aspirações que
Para lidar com isso, o Programa se constituiu ampliem a longevidade; batalhando pela possi-
como uma iniciativa efetivamente intersec- bilidade do cuidado às mães para evitar a fome
cional, flexível na metodologia, que inverte de afeto, muitas vezes irreparável, que tende a
condicionalidades e que rompe com mora- restar para si e para as crianças - futuros adultos;
lismos para pôr foco na origem de tudo isso. e fazendo o enfrentamento e ao mesmo tempo
A ação retorna à peça mater de todo esse a colaboração diária junto com os técnicos dos
processo: o ser humano. Este que, na sua diversos serviços públicos para que essas pesso-
vulnerabilidade inerente e apesar das suas as sejam vistas e cuidadas levando em conside-
potencialidades, também inerentes, sucum- ração os seus desejos, necessidades e sonhos.
bem destituídos de quase tudo.
Vale, portanto, o exercício da empatia... Eis
O território urbano empobrecido produz o maior desafio: realizar coletivamente esse
desesperança e indiferença não sobre a vida exercício de empatia, quando vivemos em uma
dos outros, mas sobre as suas próprias vidas. sociedade assentada sob bases racistas, homo-
Nos parece que para cada trajetória trágica, fóbicas, transfóbicas, sexistas e de um compor-
tais como aquelas acima descritas, deveria tamento moral que se impõe restringindo as
ter havido uma ação de cuidado, assistência possibilidades de ser e existir na diversidade da
e afeto que interrompesse a generalização da sua composição. Não há como estabelecer rela-
tragédia, mas essa ação não chegou. ção de empatia com aquele que eu não reconhe-
ço como humano! Mas conseguir se reconhecer
A intersecção entre essas quatro situações no outro é fundamental para contribuir no exer-
acima mencionadas é a ruptura, esta que se cício coletivo de mudança. É necessário enfren-
dá ora com a própria identidade, ora com o tar a lógica que institui cidadãos de 1ª e de 2ª
sentido da vida, ora com os laços de afetivi- categoria, delineando, em prejuízo das pesso-
dade e ora com o próprio corpo que, de tão as negras e demais sujeitos ditos “desviantes”,
violado, deixa de guardar dignidade. Mas tipos diferenciados de julgamento e qualidades
persiste nessa intersecção a dimensão da distintas de investimentos.
humanidade, onde todos se reconhecem (ou
ao menos deveriam), que grita e se manifesta Embora pareça óbvio, trata-se de um exercício
de diferentes formas, reagindo e resistindo, absolutamente difícil e que só surtirá efeitos
seja com violência, seja com inércia. coletivos satisfatórios, na medida em que haja
Assim, a ação do Corra é de produção responsá- um forte engajamento das diversas institui-
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Considerações Finais
ções em enfrentar essas questões, incorporan- redução de riscos e danos, dando centralidade
do o paradigma de mais investimento social e ao sujeito e não às drogas; colaborando para
geração de oportunidades e menos punição e o fortalecimento da rede de atenção psicosso-
controle de corpos. cial; provocando as escolas para sejam cada vez
mais acolhedoras; fomentando os laços comu-
Desse modo, é necessário colocar o sujeito, nitários; debatendo a construção de masculi-
suas identidades e história de vida no centro nidades saudáveis; afirmando a existência da
do processo de cuidado e assim interferir para juventude; e apostando em mulheres negras
a contenção da tragédia social vigente. O Corra vivas e orgulhosas!
pro Abraço está nesse caminho: promovendo a
Participante do Programa no Beiru, em 2017, se tornou redutora de danos em 2018 e jovem aprendiz do Corra pro Abraço em 2019.
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