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Mauricio C. Coutinho
Professor do Instituto de Economia da Unicamp
uma economia com decisões centraliza- ções, vale dizer, em uma economia de co-
das, sob o comando dos proprietários de mando central e em outra na qual existe
terra. O segundo nível explicitaria o pre- certa descentralização de decisões. Tra-
domínio do processo de mercado e das tar a analogia como se ela retratasse o
decisões descentralizadas, e nele o capita- contraste entre processos extramercado
lista – e não mais o proprietário – apare- e processos de mercado de distribuição
ceria como o principal tomador de deci- não é apropriado, quando menos porque
sões. Já o terceiro nível abrangeria ainda no modelo descentralizado preços e dis-
as trocas internacionais. O comando dos tribuição emulam os resultados do mo-
proprietários sobre o movimento econô- delo centralizado.3
mico seria então uma característica ape- Afora isso, a estrutura social des-
nas do primeiro nível, representando uma crita nos primeiros capítulos do Ensaio já
espécie de primeira aproximação, na for- é completa. Desde o início, temos, como
ma de um estado centralizado. Apenas pano de fundo da estrutura social, um
no estado centralizado, o proprietário se- processo de formação de preços que só
ria o exclusivo agente das decisões eco- adquire sentido se referido a trocas mer-
nômicas relevantes. cantis. Os mecanismos precisos de troca,
A interpretação de Murphy apóia- no entanto, ou a descrição do processo de
se na analogia estabelecida no capítulo mercado, receberão destaque bem maior
XIV do Ensaio entre as decisões de uso nos dois terços finais da obra, simples-
da terra e a distribuição do produto em mente porque aí estão as passagens em que
duas situações prototípicas. Na primeira, os mercadores e os capitalistas (os tomado-
teríamos uma “grande propriedade”, cul- res de risco) emergem como os agentes de-
tivada diretamente pelo proprietário com cisivos do processo de circulação.
o auxílio de capatazes; na segunda, a pos- Convém salientar que, mesmo quan-
se seria cedida a arrendatários capitalis- do o cultivo é feito por empresários capi-
tas, os quais se responsabilizariam pela talistas, o proprietário é quem toma as
contratação e pela supervisão dos traba- decisões relevantes. A primeira delas é a
lhadores. Cantillon pretende, porém, com opção entre deixar a terra ociosa ou ar-
3 Aliás, é essa igualdade de
essa analogia, apenas demonstrar que a rendá-la. Além disso, ainda quando as
resultados que Cantillon distribuição do produto social será apro- decisões de cultivo são mistas, envolven-
pretende destacar no exemplo. ximadamente a mesma nas duas situa- do fermiers e proprietários, os padrões de
consumo da sociedade são moldados pe- tado isolado”, von Thünen pondera os
los proprietários e pela população rica custos de transporte das mercadorias, en-
em geral. Cantillon, a exemplo dos fisio- quanto Cantillon tem em vista na locali-
cratas, considera os padrões de consumo zação das vilas o movimento das pessoas
fundamentais para a explicação do movi- (os trabalhadores agrícolas e os arrenda-
mento da economia. No fundo, a despei- tários). Em segundo lugar, o modelo de
to do avançadíssimo entendimento do von Thünen pressupõe núcleos urbanos
lucro e dos processos de mercado, o sis- já estabelecidos. No sistema de Cantillon,
tema de Cantillon apóia-se sempre na as vilas e os demais aglomerados urbanos
imagem de uma economia de base agrí- vão-se estabelecendo de acordo com as
cola, dominada pela relação social de decisões dos proprietários.4
propriedade da terra e pelos gastos da Logo acima das vilas na escala dos
“classe independente”. núcleos urbanos, encontram-se os bur-
Do ponto de vista da localização, gos, que representam os loci dos merca-
o que interessa é que os trabalhadores dos. Seu estabelecimento também decor-
e/ou fazendeiros que executam os traba- re de decisões dos proprietários,5 mas o
lhos agrícolas têm que viver nas proxi- fundamental é que eles se definem por
midades do trato de terra, sejam quais fo- características econômicas. Em primeiro
rem as decisões de cultivo. Esta é a natu- lugar, assim como as vilas, os burgos ser- 4 Sob esse aspecto, o modelo
reza das vilas: elas abrigam os arrendatá- vem de local de residência aos proprietá- espacial de Cantillon é mais
rios e trabalhadores que se ocupam da rios mais modestos. Em segundo lugar, avançado que o de von
Thünen. A analogia entre os
terra, bem como os artesãos imediata- neles residem os artesãos que necessitam sistemas de Cantillon e de von
mente envolvidos com a faina agrícola. de um mercado mais amplo do que o de Thünen, proposta por Hébert
As vilas devem situar-se, portanto, a uma vilas isoladas. Em terceiro lugar – e o (1981), talvez se sustente no
distância compatível com o exercício do principal –, nos burgos se concentra o que se refere aos círculos de
cultivo em torno das cidades
trabalho diário. comércio agrícola. (ver adiante). Sobre o modelo
Note-se que, embora o argumento No sistema de Cantillon, as trocas de von Thünen, ver Fujita,
para desenhar o tecido de vilas e tratos de produtos agrícolas dão-se em uma Krugman e Venables (2002).
5 “Há algumas vilas onde
agrícolas seja econômico, Cantillon não primeira etapa nos burgos. Os produto-
foram estabelecidos mercados,
pode nesse particular ser considerado um res levam as mercadorias aos burgos, em
pelo interesse de alguns
legítimo antecessor de von Thünen, por vez de os comerciantes mercadejarem proprietários ou nobres da Corte”
duas razões. Em primeiro lugar, no “es- pelo campo, de vila em vila. Essa pode (Cantillon, [1755] 2001, p. 8).
ser uma descrição de como se dava o co- rencial exposto no Ensaio pode ser en-
mércio no início do século XVIII, mas contrada uma pista para a adoção dessa
constitui, preponderantemente, um artifí- fórmula, no mínimo curiosa.
cio para mostrar como se formam os pre- A iniciativa dos proprietários tam-
ços, já que o processo de oferta e deman- bém é decisiva na constituição de cida-
da e o resultado final de apenas um preço des, o próximo degrau na escala dos nú-
por mercado dependem de informação. cleos urbanos. A cidade reúne os po-
O burgo é o local onde circulam as infor- derosos proprietários de muitos tratos de
mações sobre preços e onde se obtém terra, que:
economia nos custos de transação. O bur-
[...] podem se dar ao luxo de aproveitar a
go, portanto, é uma abstração econômica
agradável sociedade com outros proprietá-
do mercado de produtos agrícolas. rios e nobres da mesma condição (Cantillon,
De acordo com Cantillon, os pro- [1755] 2001, p. 10).
prietários mais modestos residem nas vi-
las e nos burgos porque não poderiam ar- Ao concentrarem os proprietários ricos,
car com o custo de transporte dos meios as cidades atraem toda a sorte de produto-
de subsistência de suas propriedades até res manufatureiros e prestadores de ser-
o local de residência, caso residissem em viços, inclusive construtores de residên-
cidades mais distantes. Temos aqui mais cias. Há economias de aglomeração –
um argumento econômico para a locali- uns produtores manufatureiros deman-
zação das pessoas – agora referido ao dam de outros – e a possibilidade de que
custo de transporte das mercadorias –, a população seja engrossada pelo estabe-
só que bastante curioso, porque o siste- lecimento de instituições governamen-
ma de circulação monetária desenvolvi- tais, das quais são mencionadas as cortes
do posteriormente tem como ponto de de justiça.
referência o fato de a renda da terra ser Mesmo reconhecendo o papel dos
paga em dinheiro. Qual a necessidade de encadeamentos proporcionados pela aglo-
6 Exceção feita aos
a subsistência dos proprietários depen- meração, para Cantillon, no fundamen-
produtores de produtos
der do transporte dos produtos cultiva- tal, todos na cidade vivem da demanda
de exportação, que “[...]
vivem na cidade às expensas dos nos seus tratos de terra, se a renda é dos nobres e proprietários.6 O modelo
do estrangeiro” (Cantillon, paga em dinheiro? Acredito (ver adiante) de Cantillon é pródigo na estipulação de
[1755] 2001, p. 10). que no embrião de teoria da renda dife- cadeias de causa última, as quais sempre
não podem ser obtidas na vila ou nas que dois fatores – os custos de transporte
imediações. É essa parcela monetizada e a maior disponibilidade de meio circu-
do produto agrícola que, ao dirigir-se às lante – contribuem para que os preços
cidades, forma a base da circulação mo- sejam maiores nas cidades do que nas
netária. A quantidade necessária de moe- províncias. Em face disso, as questões
da metálica em circulação em um país, que Cantillon passa a enfrentar são:
desse modo, pode ser calculada a partir do a. levando-se em consideração os cus-
valor da renda da terra. Rigorosamente, tos de transporte, qual a estrutu-
ela é uma fração da renda, cuja determina- ra de preços de equilíbrio?;
ção exata depende de fatores como velo- b. em que medida a “desigualdade de
cidade de circulação da moeda e difusão circulação” afeta a distribuição
dos meios de pagamento não-metálicos das atividades econômicas e o
Na visão de Cantillon, a “desigual- balanço campo/cidade?
dade de circulação” entre a província e as A primeira questão envolve dois
cidades, em especial a capital, surge da mecanismos complementares de equilí-
necessidade de efetuar as transferências brio, associados ao custo de transporte.
contínuas de renda em forma monetária Um dos mecanismos é o de arbitragem
do campo à cidade. A desigualdade ex- no sentido estrito. Para Cantillon, a es-
pressa um “débito” ou o “balanço” das trutura de preços de equilíbrio é aquela
províncias em relação a capital. O “débi- em que o diferencial de preços se explica
to” – uma assimetria nos fluxos de meio pelos custos de transporte. Fora dessa es-
circulante – é “pago”, ou contrabalançado, trutura, os comerciantes obteriam ganhos
com o dinheiro destinado à aquisição de de arbitragem levando as mercadorias de
produtos agrícolas para as cidades. Voltare- um local a outro.
mos ao tema após introduzirmos os custos O outro mecanismo amplia a di-
de transporte no esquema de circulação. mensão dos custos de transporte no mo-
Na medida em que nas cidades delo, uma vez que remete a seu papel
concentra-se metade da população, po- como elemento de reorganização da dis-
9 “A cidade consome mais
da metade do produto
de-se admitir que uma proporção similar tribuição espacial. Cantillon complemen-
do fazendeiro” (Cantillon, dos produtos agrícolas enfrenta custos de ta e qualifica os argumentos originais so-
[1755] 2001, p. 24). transporte.9 Combinam-se aqui os custos bre localização dos cultivos, ao admitir
de transporte e a circulação monetária, já que as cidades, por representarem gran-
des pólos de consumo, reorganizam a lo- exploração de minas que ficam inativas
calização dos cultivos agrícolas em fun- em razão da distância dos centros consu-
ção de fatores relacionados a custos e midores, ou seja, de minas que não pro-
à exeqüibilidade do transporte. Daí de- duzem competitivamente por causa dos
corre a conclusão de que a produção custos de transporte, Cantillon esboça
agrícola vai distribuir-se em torno dos uma idéia de renda diferencial locacional.
grandes mercados consumidores em cír- O esboço fica mais claro ainda na suges-
culos dispostos conforme a perecibilida- tão de que a descentralização das ativida-
de dos bens, a densidade de valor por des econômicas e da população possibi-
massa etc.10 Enfim, os custos de transpor- lita a valorização de propriedades cuja
te dispõem a produção agrícola no entor- renda é muito baixa, exatamente graças
no das cidades. aos custos de transporte elevados.
Vai mais longe a preocupação do Note-se que o sistema de Cantil-
Ensaio com a reorganização do espaço. lon não incorpora os diferenciais de pro-
De modo a se promover uma economia dutividade na produção agrícola. A ren-
da diferencial é estritamente locacional.
em custos de transporte e uma distribui-
Observe-se ainda que a curiosa ficção de
ção mais uniforme do meio circulante,
que os proprietários atendem a sua sub-
Cantillon propõe que as manufaturas es-
sistência com produtos das próprias gle-
tritamente dependentes de insumos mi-
bas talvez seja um expediente para realçar
nerais e que exibem uma relação eleva-
as rendas diferenciais locacionais. Dizer
da entre peso dos insumos e peso dos que o proprietário arca com os custos de
produtos instalem-se próximas às minas. transporte equivale a admitir que ele tem
Nesse caso, a economia de transporte de subtrair de sua renda uma fração cor-
abrangeria a produção direta da manufa- respondente aos custos de transporte de
tura e a subsistência dos trabalhadores, sua subsistência, proporcional à distância 10 Por exemplo, hortaliças
uma certa reserva em relação aos hábitos minou de teoria sociológica da riqueza e
das classes enriquecidas, bem como de da decadência. Enquanto o primeiro leva
ceticismo quanto ao comportamento dos ao equilíbrio entre as nações, por meio de
governos, em situações de abundância. nivelamentos de preços e de transferên-
Os ricos espalham um padrão de consu- cia de fatores, a segunda constitui um dos
mo hostil à produção de bens de subsis- componentes de uma visão pessimista e
tência e pressionam a importação de bens de longo prazo sobre a estagnação. Can-
de luxo, provocando um impacto desfa- tillon utiliza ora um, ora outro enfoque,
vorável no balanço das transações inter- sem explorar o eventual antagonismo e
nacionais. Ao absterem-se de retirar di- dele retirar conclusões.
nheiro de circulação, os governos, por Uma segunda situação em que os
sua vez, perdem a oportunidade de con- custos de transporte qualificam argu-
trabalançar a elevação de preços e a perda mentos referidos à circulação e ao equilí-
de ramos do comércio dela decorrente. brio do balanço de pagamentos transpa-
Sobrevém a pobreza.17 rece no complexo e famoso exemplo da
A conclusão pessimista contrasta troca de vinho francês por rendas produ-
com o habitual otimismo com que Can- zidas na Bélgica, do início da parte III do
tillon encara o aumento da quantidade Ensaio. Cantillon pretende mostrar que,
de moeda em circulação, dos preços e apesar de envolver um equilíbrio nos va-
da renda da terra, um processo entendi- lores e, portanto, nenhum fluxo de meio
do como manifestação de riqueza e pro- circulante de um país para outro, a troca é
gresso. No argumento sociológico da de- vantajosa aos belgas porque, no cômpu-
cadência, é como se o mecanismo de to global, eles trocam menos terras por
ajustamento automático do balanço de mais. O cômputo leva em consideração
pagamentos não fosse capaz de nivelar terras de cultivo dos insumos (uvas e li-
os fluxos de comércio e de produção no nho), terras para produção de subsistên-
tempo devido. Antes que o mecanismo cia de todos os trabalhadores envolvidos
17 É por isso que “Quando de equilíbrio restabeleça as atividades, o e terras para manutenção dos animais
um Estado chegou ao ponto mais comportamento das classes proprietárias utilizados no transporte das mercadorias.
alto da riqueza [...] ele
e do governo leva o país à decadência. Os franceses empenhariam 6.166 acres
inevitavelmente cairá na pobreza
pelo curso natural das coisas” Há um certo antagonismo entre o na produção de vinho, e os belgas 6.000
(Cantillon, [1755] 2001, p. 76). specie flow mechanism e o que aqui se deno- acres na produção da renda; porém,
Referências bibliográficas