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Espaço e economia no Sistema de Cantillon

Mauricio C. Coutinho
Professor do Instituto de Economia da Unicamp

Palavras-chave Resumo Abstract


Cantillon, localização, espaço, O artigo se propõe a apresentar a geografia The paper outlines the economic geography
geografia econômica. econômica do Ensaio sobre a natureza do comércio underlying the Essay on the nature
Classificação JEL B11. em geral e a discutir em que medida ela qualifi- of commerce in general, and discusses
ca e/ou se entrelaça ao sistema teórico de the extent to which it relates to the theoretical
Cantillon. As conclusões são de que: arguments within Cantillon’s system.
a) na própria apresentação de sua visão de es- The main conclusions are:
trutura social, Cantillon efetua uma primei- a) Cantillon’s social structure scheme presents
ra aproximação à noção de redes urbanas, a first draft of urban networks, ranked
hierarquizadas conforme decisões econô- according to the economic and non-economic
micas e não-econômicas dos proprietários; decisions of the property owners;
b) os custos de transporte são um elemento b) transportation costs are a central element
central da teoria da circulação monetária e of the Essay’s monetary theory and of its
do modelo de formação de preços; price making model;
c) os custos de transporte qualificam o mo- c) transportation costs affect the specie flow
delo de equilíbrio do balanço de paga- mechanism, which governs international trade.
mentos. In spite of the Essay’s advanced approach
Não obstante as concepções avançadas de to the market and money circulation processes,
Key words
processo de mercado e de circulação monetá- Cantillon’s locational analysis is in many
Cantillon, location, space,
ria no sistema de Cantillon, a análise locacio- aspects limited by an agricultural and naturalist
economic geography.
nal é muitas vezes limitada pela concepção vision of the economic system.
JEL Classification B11. agrícola e naturalista de economia.

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1_ Introdução Cantillon a despeito dos esforços pionei-


Desde que Stanley Jevons, em seu pre- ros de Jevons ([1881] 2001) e de Higgs
cursor estudo de 1881, considerou o En- ([1931] 2001), contribuiu para consolidar
saio sobre a natureza do comércio em geral entre os estudiosos a impressão de que o
o “verdadeiro berço da Economia Política” (Je- Ensaio sobre a natureza do comércio em geral
vons, [1881] 2001), vem se disseminan- foi o primeiro tratado sistemático, abran-
do entre os historiadores do pensamento gente e moderno de economia política.
econômico a opinião de que a obra de O reconhecimento da envergadu-
Cantillon representa um ponto alto no ra do sistema somou-se a um número
pensamento econômico do século XVIII. crescente de estudos que, com foco mais
Schumpeter ([1954] 1986), para quem restrito, encontraram no Ensaio sinais de
“poucas seqüências na história da análise econô- pioneirismo em domínios específicos da
mica são tão importantes [...] como a seqüência: teoria econômica. Se poucos discordam
Petty – Cantillon – Quesnay”, deixou de la- que Cantillon antecedeu a Hume no enun-
do sua habitual concisão para nos ofe- ciado do mecanismo de ajustamento au-
recer um quadro bastante detalhado do tomático do balanço de pagamentos (spe-
sistema de Cantillon. Blaug (1985) conside- cie flow mechanism), sua primazia é hoje es-
ra o Ensaio sobre a natureza do comércio em geral tendida a áreas tão distintas quanto à
[...] o mais sistemático, o mais lúcido e ao teoria do valor e do capital (Brems, 1978),
mesmo tempo a mais original de todas as à economia monetária (Bordo, 1983), à
exposições de princípios econômicos antes geografia econômica (Hébert, 1981).
da Riqueza das nações. É a este último domínio – geogra-
fia econômica – que o presente artigo se
Robbins (1998) chega a ver no Ensaio
dirige. Toma-se como ponto de referên-
um tratado científico [...] superior a qual- cia um aparente paradoxo, presente na li-
quer coisa que os fisiocratas produziram e teratura sobre Cantillon, e que pode ser
que realmente, em muitos aspectos, supor- traduzido por duas interrogações. Para
ta uma comparação com a própria Rique- começar, a reivindicação do pioneirismo
za das nações.
na teoria da localização não entra em
Finalmente, o magistral estudo de Murphy conflito com a admitida primazia – quase
(1986), ao esclarecer diversos pontos que exclusividade! – dos autores alemães na
permaneciam obscuros na biografia de área (Blaug, 1979)? Ademais, como ex-

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plicar que a abordagem erudita e minu- sistema teórico de Cantillon. As influên-


ciosa dos grandes historiadores do pen- cias entre teoria econômica e análise es-
samento tenha deixado de destacar aqui- pacial são recíprocas e evidenciam-se nos
lo que não passa despercebido ao mais aspectos a seguir, os quais também si-
desatento dos leitores, qual seja, a ubíqua tuam as seções que compõem o trabalho:
presença da temática espacial no sistema i. a análise espacial da Parte I do
econômico de Cantillon? Ensaio é complementar à descri-
Nesse aspecto, cabe no mínimo ção da estrutura social;
reconhecer que o Ensaio sobre a natureza do ii. na discussão sobre circulação mo-
comércio em geral é uma obra única, ao dedi- netária, existe uma relevante di-
car os seis capítulos iniciais ao tema da mensão locacional;
localização das pessoas e das atividades iii. a doutrina sobre intercâmbio in-
agrícolas, bem como à constituição do ternacional também contém uma
espaço urbano. Adicionando-se à evidên- dimensão locacional, que se mes-
cia dos capítulos iniciais as abundantes cla à visão naturalista e agrícola
referências a custo de transporte, sempre de economia.
mescladas às proposições sobre a circula-
ção e espalhadas nas três partes da obra,
torna-se quase obrigatório indagar se o 2_ A estrutura social
peso da geografia econômica não se deve e a configuração do espaço
fazer sentir nos diversos segmentos do econômico
sistema teórico de Cantillon, inclusive em
Na Parte I do Ensaio sobre a natureza do co-
seus pontos altos, quais sejam:
mércio em geral, Cantillon apresenta sua teo-
_ a teoria do valor e do capital; ria agrícola (natural) do excedente eco-
_ a análise da circulação monetária; nômico, sua visão de estrutura social, e
_ a visão de estrutura social. efetua uma primeira aproximação à análi-
Este artigo é uma tentativa de co- se dos problemas monetários e da circu-
locar par a par os argumentos teóricos e lação. Após o curtíssimo primeiro capí-
locacionais de Cantillon. O propósito é tulo, composto por três parágrafos sobre
1 O que foi feito menos o de reivindicar pioneirismo na as riquezas naturais, Cantillon inicia uma
convincentemente por Hébert análise espacial,1 do que o de sugerir que digressão sobre a natureza da proprieda-
(1981) e Dockès (1969). a geografia econômica se entrelaça ao de privada e sobre a distribuição espacial

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da população e das atividades econômi- arrendatários capitalistas – e contempla


cas, que se alça do senso comum filosófi- ainda diversas variações, ao reconhecer
co da época a uma percepção bastante as figuras dos trabalhadores manufatu-
original de sociedade econômica. reiros, do artesão urbano independente,
O senso comum reside na con- do comerciante, do artesão na constru-
cepção de propriedade privada da terra. ção civil. Ao trocarem o produto social
Nas sociedades estabelecidas, diz Cantil- que emana da agricultura, essas classes
lon, qualquer que seja a origem dos títu- são protagonistas de um modelo de circu-
los de propriedade – mérito, conquista, lação, que é o núcleo do Ensaio e abrange
herança –, o resultado final será a con- proposições sobre dinheiro, meio circu-
centração da propriedade fundiária. Os lante e preços.
argumentos são bastante similares àqueles No sistema de Cantillon, as deci-
que Malthus viria a consagrar no Ensaio so- sões (de consumo e de como utilizar a
bre a população (Malthus, [1803]1982), e que, terra) do proprietário rural é que deter-
no fundo, reafirmam a idéia conservadora minam a capacidade de sustentação da
sobre o caráter natural da desigualdade, população e o progresso da nação. Em
bastante difundida no século XVIII.2 todos os sentidos, os proprietários, ou a
Já a originalidade decorre da asso- classe cujos direitos são primários e natu-
ciação dessa filosofia política, delimitada rais, detêm um poder efetivo de decisão,
pela discussão das origens e da justificati- que flui de sua posição privilegiada na
va da propriedade privada, a uma con- percepção de um segmento do produto
cepção sofisticada de ordem social, ba- nacional. Nessa exata medida, os propri-
seada na economia. De fato, a visão de etários de terra constituem a “classe in-
estrutura social de Cantillon ultrapassa a dependente”. As demais classes sociais –
moldura da filosofia política do arco de trabalhadores agrícolas, produtores ma-
2 “Mesmo se o Príncipe distribuir
autores que vai de Locke a Rousseau, nufatureiros, arrendatários capitalistas –
a terra igualmente entre todos os
projetando-se em uma concepção de so- são, por contraste, “dependentes”. habitantes, ela será afinal dividida
ciedade econômica que envolve estru- Murphy (1986) considera que a entre um pequeno número”
tura social, produção e circulação. análise econômica do Ensaio estrutura-se (Cantillon, [1755] 2001, p. 6).
Todas as citações de Cantillon
O sistema de Cantillon compreen- por meio de uma escala de abstrações
acompanham a edição de 2001
de três classes sociais básicas – proprietá- de sistema econômico, de complexidade do Ensaio, referida na
rios fundiários, trabalhadores agrícolas, crescente. No primeiro nível, teríamos bibliografia.

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uma economia com decisões centraliza- ções, vale dizer, em uma economia de co-
das, sob o comando dos proprietários de mando central e em outra na qual existe
terra. O segundo nível explicitaria o pre- certa descentralização de decisões. Tra-
domínio do processo de mercado e das tar a analogia como se ela retratasse o
decisões descentralizadas, e nele o capita- contraste entre processos extramercado
lista – e não mais o proprietário – apare- e processos de mercado de distribuição
ceria como o principal tomador de deci- não é apropriado, quando menos porque
sões. Já o terceiro nível abrangeria ainda no modelo descentralizado preços e dis-
as trocas internacionais. O comando dos tribuição emulam os resultados do mo-
proprietários sobre o movimento econô- delo centralizado.3
mico seria então uma característica ape- Afora isso, a estrutura social des-
nas do primeiro nível, representando uma crita nos primeiros capítulos do Ensaio já
espécie de primeira aproximação, na for- é completa. Desde o início, temos, como
ma de um estado centralizado. Apenas pano de fundo da estrutura social, um
no estado centralizado, o proprietário se- processo de formação de preços que só
ria o exclusivo agente das decisões eco- adquire sentido se referido a trocas mer-
nômicas relevantes. cantis. Os mecanismos precisos de troca,
A interpretação de Murphy apóia- no entanto, ou a descrição do processo de
se na analogia estabelecida no capítulo mercado, receberão destaque bem maior
XIV do Ensaio entre as decisões de uso nos dois terços finais da obra, simples-
da terra e a distribuição do produto em mente porque aí estão as passagens em que
duas situações prototípicas. Na primeira, os mercadores e os capitalistas (os tomado-
teríamos uma “grande propriedade”, cul- res de risco) emergem como os agentes de-
tivada diretamente pelo proprietário com cisivos do processo de circulação.
o auxílio de capatazes; na segunda, a pos- Convém salientar que, mesmo quan-
se seria cedida a arrendatários capitalis- do o cultivo é feito por empresários capi-
tas, os quais se responsabilizariam pela talistas, o proprietário é quem toma as
contratação e pela supervisão dos traba- decisões relevantes. A primeira delas é a
lhadores. Cantillon pretende, porém, com opção entre deixar a terra ociosa ou ar-
3 Aliás, é essa igualdade de
essa analogia, apenas demonstrar que a rendá-la. Além disso, ainda quando as
resultados que Cantillon distribuição do produto social será apro- decisões de cultivo são mistas, envolven-
pretende destacar no exemplo. ximadamente a mesma nas duas situa- do fermiers e proprietários, os padrões de

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consumo da sociedade são moldados pe- tado isolado”, von Thünen pondera os
los proprietários e pela população rica custos de transporte das mercadorias, en-
em geral. Cantillon, a exemplo dos fisio- quanto Cantillon tem em vista na locali-
cratas, considera os padrões de consumo zação das vilas o movimento das pessoas
fundamentais para a explicação do movi- (os trabalhadores agrícolas e os arrenda-
mento da economia. No fundo, a despei- tários). Em segundo lugar, o modelo de
to do avançadíssimo entendimento do von Thünen pressupõe núcleos urbanos
lucro e dos processos de mercado, o sis- já estabelecidos. No sistema de Cantillon,
tema de Cantillon apóia-se sempre na as vilas e os demais aglomerados urbanos
imagem de uma economia de base agrí- vão-se estabelecendo de acordo com as
cola, dominada pela relação social de decisões dos proprietários.4
propriedade da terra e pelos gastos da Logo acima das vilas na escala dos
“classe independente”. núcleos urbanos, encontram-se os bur-
Do ponto de vista da localização, gos, que representam os loci dos merca-
o que interessa é que os trabalhadores dos. Seu estabelecimento também decor-
e/ou fazendeiros que executam os traba- re de decisões dos proprietários,5 mas o
lhos agrícolas têm que viver nas proxi- fundamental é que eles se definem por
midades do trato de terra, sejam quais fo- características econômicas. Em primeiro
rem as decisões de cultivo. Esta é a natu- lugar, assim como as vilas, os burgos ser- 4 Sob esse aspecto, o modelo

reza das vilas: elas abrigam os arrendatá- vem de local de residência aos proprietá- espacial de Cantillon é mais
rios e trabalhadores que se ocupam da rios mais modestos. Em segundo lugar, avançado que o de von
Thünen. A analogia entre os
terra, bem como os artesãos imediata- neles residem os artesãos que necessitam sistemas de Cantillon e de von
mente envolvidos com a faina agrícola. de um mercado mais amplo do que o de Thünen, proposta por Hébert
As vilas devem situar-se, portanto, a uma vilas isoladas. Em terceiro lugar – e o (1981), talvez se sustente no
distância compatível com o exercício do principal –, nos burgos se concentra o que se refere aos círculos de
cultivo em torno das cidades
trabalho diário. comércio agrícola. (ver adiante). Sobre o modelo
Note-se que, embora o argumento No sistema de Cantillon, as trocas de von Thünen, ver Fujita,
para desenhar o tecido de vilas e tratos de produtos agrícolas dão-se em uma Krugman e Venables (2002).
5 “Há algumas vilas onde
agrícolas seja econômico, Cantillon não primeira etapa nos burgos. Os produto-
foram estabelecidos mercados,
pode nesse particular ser considerado um res levam as mercadorias aos burgos, em
pelo interesse de alguns
legítimo antecessor de von Thünen, por vez de os comerciantes mercadejarem proprietários ou nobres da Corte”
duas razões. Em primeiro lugar, no “es- pelo campo, de vila em vila. Essa pode (Cantillon, [1755] 2001, p. 8).

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ser uma descrição de como se dava o co- rencial exposto no Ensaio pode ser en-
mércio no início do século XVIII, mas contrada uma pista para a adoção dessa
constitui, preponderantemente, um artifí- fórmula, no mínimo curiosa.
cio para mostrar como se formam os pre- A iniciativa dos proprietários tam-
ços, já que o processo de oferta e deman- bém é decisiva na constituição de cida-
da e o resultado final de apenas um preço des, o próximo degrau na escala dos nú-
por mercado dependem de informação. cleos urbanos. A cidade reúne os po-
O burgo é o local onde circulam as infor- derosos proprietários de muitos tratos de
mações sobre preços e onde se obtém terra, que:
economia nos custos de transação. O bur-
[...] podem se dar ao luxo de aproveitar a
go, portanto, é uma abstração econômica
agradável sociedade com outros proprietá-
do mercado de produtos agrícolas. rios e nobres da mesma condição (Cantillon,
De acordo com Cantillon, os pro- [1755] 2001, p. 10).
prietários mais modestos residem nas vi-
las e nos burgos porque não poderiam ar- Ao concentrarem os proprietários ricos,
car com o custo de transporte dos meios as cidades atraem toda a sorte de produto-
de subsistência de suas propriedades até res manufatureiros e prestadores de ser-
o local de residência, caso residissem em viços, inclusive construtores de residên-
cidades mais distantes. Temos aqui mais cias. Há economias de aglomeração –
um argumento econômico para a locali- uns produtores manufatureiros deman-
zação das pessoas – agora referido ao dam de outros – e a possibilidade de que
custo de transporte das mercadorias –, a população seja engrossada pelo estabe-
só que bastante curioso, porque o siste- lecimento de instituições governamen-
ma de circulação monetária desenvolvi- tais, das quais são mencionadas as cortes
do posteriormente tem como ponto de de justiça.
referência o fato de a renda da terra ser Mesmo reconhecendo o papel dos
paga em dinheiro. Qual a necessidade de encadeamentos proporcionados pela aglo-
6 Exceção feita aos
a subsistência dos proprietários depen- meração, para Cantillon, no fundamen-
produtores de produtos
der do transporte dos produtos cultiva- tal, todos na cidade vivem da demanda
de exportação, que “[...]
vivem na cidade às expensas dos nos seus tratos de terra, se a renda é dos nobres e proprietários.6 O modelo
do estrangeiro” (Cantillon, paga em dinheiro? Acredito (ver adiante) de Cantillon é pródigo na estipulação de
[1755] 2001, p. 10). que no embrião de teoria da renda dife- cadeias de causa última, as quais sempre

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acabam nos gastos dos proprietários de tam serviços. No tratamento da econo-


terra. Desse modo, por maior que seja a mia das cidades e da capital, é conferido
atenção concedida às externalidades de um destaque especial aos artesãos dedi-
aglomeração, o tamanho das cidades é, cados à construção civil. Convém insistir
em última análise, proporcional ao nú- que estamos diante de um tratamento
mero dos proprietários de terra que nela econômico da aglomeração bastante li-
decidirem morar, ou melhor, ao valor da mitado porque, apesar das externalidades
renda da terra líquida de despesas de urbanas, a renda nunca é gerada na cida-
transporte e de tributos. Cantillon consi- de. A concepção natural e agrícola de
dera os valores líquidos, e não brutos, economia é inteiramente dominante.
por um lado, porque os tributos são car- Adicionalmente, a despeito da pre-
reados às capitais, e, por outro, porque as sença de elementos econômicos na ex-
despesas de transporte, ao não represen- plicação de como se constituem as redes
tarem demanda na cidade, não sustentam urbanas, não é lícito concluir que a cons-
prestadores de serviços e produtores ma- tituição dos núcleos urbanos represente
nufatureiros. Note-se que por despesas um elemento endógeno do modelo espa-
de transporte Cantillon parece, mais uma cial de Cantillon. Afinal, nem sempre cri-
vez, entender, nesse contexto estrito, as térios econômicos (rentabilidade) são pre-
despesas necessárias à transferência da ponderantes nas escolhas. Embora sejam
subsistência dos proprietários do campo as decisões de cultivo que determinam os
às cidades. requisitos de mão-de-obra, a densidade
A capital, finalmente, que se situa populacional e a distribuição das vilas,
no topo da escala dos aglomerados urba- apenas os fermiers se orientam por uma
nos, é simplesmente a cidade em que o racionalidade econômica mais estrita –
soberano decidiu estabelecer-se. A pre- seguem os sinais dos preços e ajustam a
sença do soberano atrai a nobreza e os oferta à demanda. Os proprietários não
proprietários mais ricos, determina a fi- pautam suas decisões somente por crité-
xação das principais cortes de justiça e rios de rentabilidade. Sua autonomia dá
estimula o estabelecimento de produto- margem a atitudes que têm natureza não-
res de manufaturas e de serviços. A capi- econômica; por exemplo, os mais ricos
tal é o foco em torno do qual gravitam os podem dar-se ao luxo de deixar as terras
homens de dinheiro e os que lhes pres- incultas, mantê-las como território de

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caça, dedicá-las à criação de cavalos e a No Ensaio, a distribuição espacial


outros gastos suntuários que absorvem da população e da produção resulta da
pouca população. Cultivos pouco inten- interação entre uma estrutura social for-
sivos em mão-de-obra diminuem a capa- temente determinada pela relação básica
cidade de absorção populacional e rare- de propriedade da terra, que gera o poder
fazem a teia de burgos e cidades. de decisão dos proprietários fundiários,
Em suma, no que se refere à orga- e os processos de mercado, que levam
nização do espaço econômico – e no âm- em consideração os custos de transporte,
bito de sua descrição da estrutura social entre outros fatores.
–, Cantillon lança mão de argumentos
econômicos e não-econômicos. Os argu-
mentos econômicos são custo de trans- 3_ Circulação
porte de mercadorias e pessoas, aos quais e custos de transporte
voltaremos adiante, e capacidade de ab- Como foi visto na seção anterior, a popu-
sorção de mão-de-obra dos diversos cul- lação espalha-se pelo território nacional
tivos. As decisões de cultivo provêm dos conforme as decisões de cultivo. Mais
proprietários e, em certa medida, dos ar- ainda, dessas decisões depende o próprio
rendatários capitalistas. As que provêm tamanho da população, que é função da
dos proprietários são ambivalentes quanto disponibilidade de meios de subsistên-
à racionalidade, a qual pode ser estrita- cia.7 De acordo com Cantillon, as evidên-
mente econômica (rentabilidade) ou bas- cias são de que metade da população de
tante influenciada pelo gosto por des- uma nação vive no campo (o que inclui
pesas suntuárias. Em tese, quanto mais as vilas e, talvez, os burgos) e a outra me-
elevada a concentração da propriedade, tade, nas cidades. Há, portanto, um con-
maior a possibilidade de que adquiram sumo significativo de alimentos e de
relevância os “gastos de representação”, matérias-primas nas cidades, e os custos
em geral adversos ao emprego agrícola. de transporte desses bens têm que ser
Acrescente-se que os proprietários ricos levados em consideração na formação
7 No modelo de Cantillon, também favorecem a importação de bens dos preços.
a população é endógena
de luxo, o que, na visão de Cantillon, Cantillon foi o primeiro autor a in-
(Brewer, 1992), mais um
ponto de proximidade deprime a capacidade de sustentação trojetar, em caráter sistemático, os custos
com Malthus. da população. de transporte na estrutura de preços e

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nos processos de mercado. Esse pionei- custos de transporte e preços. Conforme


rismo não recebeu a devida atenção na Cantillon, as evidências indicam que os
historiografia do pensamento econômi- fazendeiros entregam aos proprietários,
co, possivelmente porque as considera- a título de arrendamento, 1/3 do produ-
ções sobre transporte e preços, que se es- to da terra (a “primeira renda”). Os 2/3
palham por toda a Parte II do Ensaio, restantes permanecem com os fazendei-
integram a discussão sobre circulação mo- ros, que sustentam a si próprios, aos tra-
netária, orientada por uma questão cen- balhadores e aos animais de cultivo (a
tral no debate econômico dos séculos “segunda renda”, que cobre aproximada-
XVII e XVIII, qual seja: qual a quantida- mente 50% dos 2/3), e retêm ainda a
de necessária de meio circulante?8 “terceira renda”, ou o lucro.
Na verdade, Cantillon pretendeu A subsistência dos trabalhadores
em sua obra dar uma resposta inovado- não envolve transferências monetárias
ra a uma questão que fora o carro-chefe nem custos de transporte e, portanto,
de pensadores mercantilistas como Mun, não afeta a circulação. Os trabalhadores
Malynes, Locke, e representava o ponto são remunerados com produtos obtidos
alto do debate econômico francês dos na propriedade ou mediante troca direta
anos 20 do século XVIII, influenciado nas cercanias. O mesmo vale para uma
pelo terremoto da bolha inflacionária de parte do pagamento de serviços e ma-
Law e por controvérsias sobre o “balan- nufaturas diretamente relacionados ao
ço” de meio circulante entre a capital e a cultivo da terra e, naturalmente, para a
província. É no contexto de controvérsi- subsistência dos fazendeiros. Já os pro-
as monetárias que as ponderações sobre prietários recebem sua renda em dinhei-
custo de transporte aparecem no Ensaio, ro e efetuam seus gastos nas cidades.
e cabe a ressalva de que a apresentação É com base no pagamento da renda da
dos custos de transporte como um ele- terra que se estrutura o esquema de cir-
mento à parte, feita a seguir, é de certo culação do Ensaio.
modo arbitrária e só se justifica pela ne- O fazendeiro necessita transfor-
cessidade de destacarmos os argumentos mar uma parcela do produto em dinheiro
8 Hébert (1981) diz que
propriamente espaciais de Cantillon. para fazer face às despesas representadas
a questão espacial aparece
O esquema de circulação do Ensaio pelo pagamento da renda dos proprietá- “camuflada” na teoria
facilita o entendimento da relação entre rios e pela aquisição das mercadorias que monetária de Cantillon.

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não podem ser obtidas na vila ou nas que dois fatores – os custos de transporte
imediações. É essa parcela monetizada e a maior disponibilidade de meio circu-
do produto agrícola que, ao dirigir-se às lante – contribuem para que os preços
cidades, forma a base da circulação mo- sejam maiores nas cidades do que nas
netária. A quantidade necessária de moe- províncias. Em face disso, as questões
da metálica em circulação em um país, que Cantillon passa a enfrentar são:
desse modo, pode ser calculada a partir do a. levando-se em consideração os cus-
valor da renda da terra. Rigorosamente, tos de transporte, qual a estrutu-
ela é uma fração da renda, cuja determina- ra de preços de equilíbrio?;
ção exata depende de fatores como velo- b. em que medida a “desigualdade de
cidade de circulação da moeda e difusão circulação” afeta a distribuição
dos meios de pagamento não-metálicos das atividades econômicas e o
Na visão de Cantillon, a “desigual- balanço campo/cidade?
dade de circulação” entre a província e as A primeira questão envolve dois
cidades, em especial a capital, surge da mecanismos complementares de equilí-
necessidade de efetuar as transferências brio, associados ao custo de transporte.
contínuas de renda em forma monetária Um dos mecanismos é o de arbitragem
do campo à cidade. A desigualdade ex- no sentido estrito. Para Cantillon, a es-
pressa um “débito” ou o “balanço” das trutura de preços de equilíbrio é aquela
províncias em relação a capital. O “débi- em que o diferencial de preços se explica
to” – uma assimetria nos fluxos de meio pelos custos de transporte. Fora dessa es-
circulante – é “pago”, ou contrabalançado, trutura, os comerciantes obteriam ganhos
com o dinheiro destinado à aquisição de de arbitragem levando as mercadorias de
produtos agrícolas para as cidades. Voltare- um local a outro.
mos ao tema após introduzirmos os custos O outro mecanismo amplia a di-
de transporte no esquema de circulação. mensão dos custos de transporte no mo-
Na medida em que nas cidades delo, uma vez que remete a seu papel
concentra-se metade da população, po- como elemento de reorganização da dis-
9 “A cidade consome mais
da metade do produto
de-se admitir que uma proporção similar tribuição espacial. Cantillon complemen-
do fazendeiro” (Cantillon, dos produtos agrícolas enfrenta custos de ta e qualifica os argumentos originais so-
[1755] 2001, p. 24). transporte.9 Combinam-se aqui os custos bre localização dos cultivos, ao admitir
de transporte e a circulação monetária, já que as cidades, por representarem gran-

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des pólos de consumo, reorganizam a lo- exploração de minas que ficam inativas
calização dos cultivos agrícolas em fun- em razão da distância dos centros consu-
ção de fatores relacionados a custos e midores, ou seja, de minas que não pro-
à exeqüibilidade do transporte. Daí de- duzem competitivamente por causa dos
corre a conclusão de que a produção custos de transporte, Cantillon esboça
agrícola vai distribuir-se em torno dos uma idéia de renda diferencial locacional.
grandes mercados consumidores em cír- O esboço fica mais claro ainda na suges-
culos dispostos conforme a perecibilida- tão de que a descentralização das ativida-
de dos bens, a densidade de valor por des econômicas e da população possibi-
massa etc.10 Enfim, os custos de transpor- lita a valorização de propriedades cuja
te dispõem a produção agrícola no entor- renda é muito baixa, exatamente graças
no das cidades. aos custos de transporte elevados.
Vai mais longe a preocupação do Note-se que o sistema de Cantil-
Ensaio com a reorganização do espaço. lon não incorpora os diferenciais de pro-
De modo a se promover uma economia dutividade na produção agrícola. A ren-
da diferencial é estritamente locacional.
em custos de transporte e uma distribui-
Observe-se ainda que a curiosa ficção de
ção mais uniforme do meio circulante,
que os proprietários atendem a sua sub-
Cantillon propõe que as manufaturas es-
sistência com produtos das próprias gle-
tritamente dependentes de insumos mi-
bas talvez seja um expediente para realçar
nerais e que exibem uma relação eleva-
as rendas diferenciais locacionais. Dizer
da entre peso dos insumos e peso dos que o proprietário arca com os custos de
produtos instalem-se próximas às minas. transporte equivale a admitir que ele tem
Nesse caso, a economia de transporte de subtrair de sua renda uma fração cor-
abrangeria a produção direta da manufa- respondente aos custos de transporte de
tura e a subsistência dos trabalhadores, sua subsistência, proporcional à distância 10 Por exemplo, hortaliças

que passaria a ser obtida no entorno das e ovos são produzidos


entre sua propriedade e o local de resi- no contorno das cidades;
minas. O salário dos trabalhadores ma- dência. Temos aqui uma aproximação à gado de consumo urbano,
nufatureiros decresceria, em virtude da idéia de renda locacional, que, embora idem; produtos de fácil
exclusão dos custos de transporte de ali- imperfeita, é a possível diante do pressu- conservação e que admitem
mentos da cesta de subsistência. transporte mais rústico
posto de que os preços dos produtos
ocupam terras mais distantes...
Ao considerar que a produção agrícolas se formam nos burgos, isto é, Voltamos aqui ao modelo
manufatureira descentralizada viabiliza a os preços básicos não incluem os custos de von Thünen.

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Mauricio C. Coutinho 109

de transporte aos principais mercados elevados criam mercados distintos para o


consumidores. Quanto à subsistência dos mesmo produto.11
trabalhadores manufatureiros e demais Além disso, a visão que Cantillon
prestadores de serviços urbanos, nenhum tem do processo de mercado é sofistica-
artifício teórico se faz necessário, porque da e plenamente informada dos mecanis-
Cantillon considera que o salário de sub- mos concretos de barganha. No Ensaio,
sistência nas cidades é ajustado pelos cus- os processos de mercado envolvem con-
tos de transporte da cesta básica. tratos e instrumentos de crédito varia-
Enfim, ao tratar da economia ur- dos, e têm à frente a onipresente figura
bana, Cantillon esboça uma idéia de ren- do comerciante. As soluções de equilíbrio
da diferencial locacional e mostra que os não emanam de uma etérea mão invisível
custos de transporte representam um fa- de sabor smitheano, mas de barganhas e
tor inequívoco de organização das ativi- apostas conduzidas por comerciantes que
dades econômicas no espaço, mediante o se aproveitam de todas as oportunidades
sistema de preços. Os custos de trans- de arbitragem, que compram no atacado
porte sobrepõem-se àquilo que se pode- nas províncias e vendem no varejo das ci-
ria denominar de princípio básico de or- dades, estocam e fracionam mercadorias,
especulam e têm informação, fornecem e
ganização espacial, apresentado na seção
tomam crédito, efetuam transporte, espe-
anterior, relacionado às decisões de culti-
culam em mercados futuros...
vo e às escolhas de locais de residência pe-
A etiqueta de empreendedor capi-
los proprietários, pelo rei e pelos nobres.
talista aplica-se no sistema de Cantillon
É importante ter presente que, ao
não apenas aos arrendatários agrícolas,
tratar dos preços e ao introduzir os cus- mas também aos produtores de manufa-
tos de transporte na estrutura de preços, turas e, com destaque especial, aos comer-
Cantillon tem em mente a noção de mer- ciantes. Todos eles são tomadores de risco
11 Como se vê no exemplo
cado. O Ensaio revela um fino entendi- (vivem de “rendas incertas”) e participan-
dos ovos, que, no interior
remoto, têm preço quase mento dos mercados, isto é, produtos tes ativos dos ajustamentos entre oferta e
desprezível, por causa da que não concorrem entre si, em razão da demanda e das decisões de inovação. Se
impossibilidade de transporte impossibilidade de transporte, são pro- na compreensão da figura do capitalista
e ao pequeno tamanho do
dutos que participam de mercados dis- Cantillon está léguas à frente dos fisiocra-
mercado. Os mercados de
ovos no campo e nas cidades tintos; mercados distintos não nivelam tas, na descrição dos processos de mercado
são, na verdade, distintos. os preços e custos de transporte muito faz sombra a Adam Smith.

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110 Espaço e economia no sistema de Cantillon

Para finalizar, algumas palavras so- manufaturas instalarem-se nas províncias,


bre a relação entre custos de transporte perto das fontes de matérias-primas e de
e circulação monetária. No sistema de meios de subsistência.
Cantillon, a renda do proprietário é paga Espalhar a população e as ativida-
em dinheiro e representa o principal ele- des econômicas pelo território é o melhor
mento da circulação monetária. O paga- meio de se nivelar a disponibilidade de
mento dessa renda, acrescido ao fato de meio circulante. Para Cantillon, esse não é
que algumas das aquisições do arrendatá- um processo natural: os custos de trans-
rio são feitas nas cidades, com dinheiro, e porte fazem uma parte, mas a outra parte
ao fato de que os tributos são carreados depende de iniciativas tomadas pelos pro-
à capital, faz com que haja um débito, prietários de terra e pelos produtores ma-
ou balanço, das províncias em relação nufatureiros. O processo de ocupação do
às cidades, particularmente a capital.12 território implica aumento de produção
O sistema se equilibra do seguinte modo: de bens de subsistência e, em decorrência,
o dinheiro remetido às capitais produz da população, e é, em simultâneo, um pro-
abundância de meio circulante e, em de- cesso de multiplicação da riqueza. Ao
corrência, diferenciais de preços das ma- elevar as condições de vida, valorizar as
térias-primas e produtos agrícolas em terras e aumentar o valor dos arrenda-
relação às províncias. O equilíbrio na cir- mentos, favorece a arrecadação de tribu-
culação entre capitais e províncias resta- tos e fortalece o Estado [...] Cantillon, na
belece-se mediante uma estrutura de pre- tradição de Petty e contrariamente aos fi-
ços em que as diferenças situem-se a siocratas, é francamente populacionista.
um nível estritamente equivalente ao paga-
mento dos custos e aos riscos de transpor-
te. Em suma, para Cantillon, a “desigualda-
4_ Circulação e custos
de de circulação” entre as províncias não é de transporte nas relações
um fator preocupante, uma vez que de- internacionais
corre dos custos de transporte. É essa A passagem ao plano do comércio inter-
“desigualdade de circulação” que contri- nacional reforça o papel da localização
bui para a realocação espacial da ativida- e dos custos de transporte, ao mesmo 12 “Pode portanto ser dito que todo
o interior e todas as cidades de um
de produtiva, de modo a se minimizarem tempo em que reafirma os contornos de Estado devem regular anualmente
os custos de transporte. Como foi visto, a uma visão econômica naturalista centra- um balanço ou débito à capital ”
desigualdade pode ser diminuída, se certas da na provisão de bens de subsistência. (Cantillon, [1755] 2001, p. 62).

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Mauricio C. Coutinho 111

A rigor, a análise do comércio internacio- monetária, ao estender suas considera-


nal permite um melhor entendimento do ções sobre localização e custo de trans-
funcionamento dos mercados e propor- porte ao plano das transações internacio-
ciona uma qualificação importante às hi- nais. A questão em jogo é a seguinte: em
póteses sobre preços e circulação que ha- que medida diferenças de meio circulan-
viam sido formuladas no contexto de te afetam os níveis de preços, o comércio
uma economia fechada. internacional e o desenvolvimento das
Para começar, a eficiência dos trans- nações? É na resposta a essa questão que
portes unifica os mercados internacionais emerge uma versão do specie flow mecha-
e faz com que o produtor rural e os con- nism que difere em diversos aspectos im-
sumidores sejam afetados pelas condi- portantes da de Hume. A versão de Can-
ções de produção e de mercado que vi- tillon oferece uma especificação do papel
goram em outros países.13 Ao discutir os dos mecanismos de transmissão da ofer-
efeitos do aumento do meio circulante ta monetária ao nível de preços e carrega
sobre os preços, Cantillon contrasta tra- o peso concepção agrícola e naturalista
13 “Mercados distantes podem
dables (grãos) e non-tradables (gado), mos- de sociedade econômica.
sempre afetar os preços do mercado trando que o encarecimento da carne Para nossos propósitos, o interes-
onde alguém está: se o grão no mercado inglês deve-se às restrições sante é que, num quadro referido a pro-
é extremamente caro na França, ao comércio, e não ao aumento do meio blemas de economia monetária e de ajus-
as preços subirão na Inglaterra circulante. Nesse caso, são as barreiras te no balanço de pagamentos, em ao
e em outros países vizinhos”
(Cantillon, [1755] 2001, p. 51). políticas que impedem a unificação dos menos duas situações os custos de trans-
14 “[...] o preço do grão pode mercados. Não havendo essas barreiras, porte são introduzidos como elemento
apenas ser elevado acima do preço aplica-se a tese que vale para o comércio de qualificação da argumentação. Nessas
de outros países nos quais doméstico, ou seja, a de que, também no duas situações, emergem os limites da vi-
o dinheiro é escasso pelos custos
plano internacional, a estrutura de pre- são naturalista e agrícola de economia
e riscos de importar de países
estrangeiros” (Cantillon, ços é graduada apenas pelos custos e ris- que molda o sistema de Cantillon.
[1755] 2001, p. 73). cos do transporte, e não pela abundância Na primeira situação, Cantillon
15 Para Cantillon, como para ou escassez de meio circulante.14 enfatiza a importância do transporte ma-
outros autores dos séculos A exemplo do que ocorre no mo- rítimo, ou as vantagens de países que
XVII e XVIII, o transporte
eficiente beneficia os países
delo de preços formulado para uma eco- contam com transporte marítimo desen-
que detêm as frotas, como nomia fechada, Cantillon manteve-se no volvido e barato.15 Já que um superávit
Holanda e Inglaterra. contexto de uma discussão estritamente comercial persistente tende a elevar os

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112 Espaço e economia no sistema de Cantillon

preços e, em decorrência, a enfraquecer equilíbrio dos preços no mercado interna-


a posição do país na concorrência com cional, considerados os custos de trans-
países mais atrasados, a detenção de van- porte.16 Logo, vantagens em custos de
tagens comparativas em transporte per- transporte podem também retardar o ga-
mite a exportação de produtos em geral tilho da mobilidade fatorial.
e de manufaturas em particular, mesmo Na visão de Cantillon, são múlti-
quando os custos de produção sobem. plos os fatores e os mecanismos que in-
Em suma, vantagens comparativas em terferem na construção do equilíbrio do
transporte equilibram até certo ponto as balanço de pagamentos. Afora a mencio-
desvantagens em custos de produção que nada vantagem em custo de transporte,
decorrem do encarecimento dos bens de devem-se levar em consideração os me-
subsistência e da elevação da renda da canismos de transmissão da oferta mo-
terra, os dois subprodutos do aumento netária a preços e também o que se pode
do meio circulante. Assim, desde que denominar de teoria sociológica da ri-
o país detenha vantagens em custos de queza e da decadência.
transporte (e controle a importação de Em termos resumidos, uma maior
bens de luxo), os efeitos positivos da ri- oferta monetária pode ser acompanhada
queza e da maior disponibilidade de meio por fatores que afetam a velocidade de cir-
circulante podem ser prolongados. A culação; por outro lado, ela exerce um im-
localização do país passa a ser um fator pacto diferenciado sobre os preços, con-
estratégico de competitividade interna- forme os setores sociais e tipos de gasto
cional, atenuando ou intensificando os que se vêem imediatamente atingidos pe-
efeitos do aumento do nível de meio cir- lo aumento da disponibilidade de moeda.
culante provocados pelo superávit co- Os dois fatores – velocidade de circulação
mercial. Nesse ponto, a localização inte- e mecanismos de transmissão – provocam
rage com o specie flow mechanism. um retardamento entre a maior disponibi-
É importante acrescentar que o lidade de riqueza monetária e sua propaga- 16 Razão pela qual não é um
modelo de comércio internacional do ção a todos os preços da economia. Nesse absurdo colocar Cantillon
Ensaio leva em consideração preços de meio tempo, a posição do país no comér- na cadeia que leva ao modelo
de Ohlin. A respeito
mercadorias e de fatores e, preponderan- cio internacional não fica debilitada. de modelos de localização
temente, o nível dos salários. A mobilida- Já a teoria sociológica da riqueza e e de troca internacional,
de dos fatores é um dos mecanismos de da decadência se expressa na forma de ver Meardon (2000).

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Mauricio C. Coutinho 113

uma certa reserva em relação aos hábitos minou de teoria sociológica da riqueza e
das classes enriquecidas, bem como de da decadência. Enquanto o primeiro leva
ceticismo quanto ao comportamento dos ao equilíbrio entre as nações, por meio de
governos, em situações de abundância. nivelamentos de preços e de transferên-
Os ricos espalham um padrão de consu- cia de fatores, a segunda constitui um dos
mo hostil à produção de bens de subsis- componentes de uma visão pessimista e
tência e pressionam a importação de bens de longo prazo sobre a estagnação. Can-
de luxo, provocando um impacto desfa- tillon utiliza ora um, ora outro enfoque,
vorável no balanço das transações inter- sem explorar o eventual antagonismo e
nacionais. Ao absterem-se de retirar di- dele retirar conclusões.
nheiro de circulação, os governos, por Uma segunda situação em que os
sua vez, perdem a oportunidade de con- custos de transporte qualificam argu-
trabalançar a elevação de preços e a perda mentos referidos à circulação e ao equilí-
de ramos do comércio dela decorrente. brio do balanço de pagamentos transpa-
Sobrevém a pobreza.17 rece no complexo e famoso exemplo da
A conclusão pessimista contrasta troca de vinho francês por rendas produ-
com o habitual otimismo com que Can- zidas na Bélgica, do início da parte III do
tillon encara o aumento da quantidade Ensaio. Cantillon pretende mostrar que,
de moeda em circulação, dos preços e apesar de envolver um equilíbrio nos va-
da renda da terra, um processo entendi- lores e, portanto, nenhum fluxo de meio
do como manifestação de riqueza e pro- circulante de um país para outro, a troca é
gresso. No argumento sociológico da de- vantajosa aos belgas porque, no cômpu-
cadência, é como se o mecanismo de to global, eles trocam menos terras por
ajustamento automático do balanço de mais. O cômputo leva em consideração
pagamentos não fosse capaz de nivelar terras de cultivo dos insumos (uvas e li-
os fluxos de comércio e de produção no nho), terras para produção de subsistên-
tempo devido. Antes que o mecanismo cia de todos os trabalhadores envolvidos
17 É por isso que “Quando de equilíbrio restabeleça as atividades, o e terras para manutenção dos animais
um Estado chegou ao ponto mais comportamento das classes proprietárias utilizados no transporte das mercadorias.
alto da riqueza [...] ele
e do governo leva o país à decadência. Os franceses empenhariam 6.166 acres
inevitavelmente cairá na pobreza
pelo curso natural das coisas” Há um certo antagonismo entre o na produção de vinho, e os belgas 6.000
(Cantillon, [1755] 2001, p. 76). specie flow mechanism e o que aqui se deno- acres na produção da renda; porém,

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114 Espaço e economia no sistema de Cantillon

a vantagem dos belgas equivaleria aos modo, o tamanho da população. No exem-


4.000 acres que, hipoteticamente, teriam plo da troca internacional de vinho por
que destinar à produção de cerveja, caso renda, ocorre algo parecido: o transporte
não dispusessem do vinho francês. por gado aparece como o fator de subtra-
O que surpreende na exposição de ção de terras à produção de bens de sub-
Cantillon não é tanto a arbitrariedade e a sistência e, portanto, como um dos ele-
especiosidade do exemplo, que transpa- mentos que tornam a troca desvantajosa
recem na omissão dos diferenciais de para um dos parceiros, apesar de equili-
produtividade e de diversos elementos brada em dinheiro. O exemplo funde
de custo indireto. Chama atenção, no que custos de transporte, um elemento es-
se refere à localização e à competitivida- sencial no sistema de Cantillon, à visão
de internacional, o fato de o desequilí- naturalista de economia. A ênfase na
brio a favor dos belgas ser explicado não produção de subsistência e a utilização
apenas pelos supostos 4.000 acres não de uma medida dupla e natural de valor,
destinados à produção de cerveja, mas o par terra-trabalho, decorrem dessa vi-
também – e decisivamente – pelo gado são naturalista.
requerido para o transporte das uvas e do Vale notar que a ilustração da tro-
vinho. A criação desse gado requer muita ca de vinho por rendas é utilizado por
terra, o que é levado em consideração no Cantillon em reforço a suas teses sobre
cômputo global. Soma-se aos custos de comércio internacional, principalmente
produção elevados (a terra é a medida de as de que as vantagens no comércio têm
valor) o inconveniente da subtração de que ser analisadas caso a caso, e não de
espaço à produção de subsistência. modo abrangente e multilateral, e de que
No exemplo da troca de vinho por o objetivo do país no comércio deve ser
rendas, o gado utilizado no transporte sempre a troca de “menos terras por
aparece como elemento emblemático do mais”, privilegiando a obtenção de bens
sistema de Cantillon. Na seção 2, vimos de subsistência. Essas teses têm sabor
que a atitude de reservar terras para a cri- mercantilista, passam longe da teoria das
ação de cavalos ou deixá-las incultas co- vantagens comparativas e representam
mo território de caça – casos extremos uma paradoxal e antiquada reminiscência
de gasto suntuário – deprimia a capaci- no interior de um modelo de circulação
dade de produção de alimentos e, desse monetária de resto avançadíssimo.

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Mauricio C. Coutinho 115

5_ Conclusões i. o alcance limitado da análise das


O objetivo do artigo foi mostrar que a te- economias de aglomeração, uma
mática espacial é parte integrante do sis- vez que a renda é determinada em
tema teórico de Cantillon. Nesse sistema, última instância na agricultura;
ii. o recuo a posições de sabor mer-
i. as decisões (de cultivo, de consu-
cantilista e dirigista, que se re-
mo, de localização) dos proprie-
velam na identificação de trocas
tários determinam o tamanho
internacionais recomendáveis e
da população, sua dispersão pelo
não-recomendáveis, bem como
território e a configuração da
na aspiração a que se promova
rede urbana;
uma redistribuição das manufa-
ii. os custos de transporte ocupam
turas pelo território para nivelar
um papel decisivo na definição
a distribuição de meio circulante,
da estrutura de preços e na aloca-
elevar a renda e baixar os custos
ção de atividades produtivas no
de produção;
território;
iii. finalmente, a omissão das rendas
iii. os custos de transporte moldam,
diferenciais de fertilidade, assim
em conjunto com outros elemen-
como de qualquer consideração
tos, os processos de mercado, as
sobre produtividade da terra. A te-
trocas e a circulação monetária no
oria locacional de Cantillon le-
plano internacional.
va em consideração os custos de
A concepção naturalista e agrícola transporte, mas não as aptidões
de economia marca o sistema, no entanto, naturais e os diferenciais de pro-
e afeta até mesmo seu componente espa- dutividade.
cial. Essa concepção se faz sentir na cen-
A despeito de todos esses hiatos e
tralidade da relação social de propriedade
restrições, pesados todos os elementos,
da terra – a despeito do destaque concedi-
Cantillon certamente pode ser conside-
do à produção manufatureira e ao capital
rado “o primeiro dos modernos” (Spengler,
mercantil – e na importância conferida à
1954) também na proposição de uma vi-
produção de subsistência. Isso muitas ve-
são de economia que só faz sentido se in-
zes se dá em detrimento de um entendi-
tegrada a sua dimensão espacial.
mento mais refinado de produtividade e
de vantagens comparativas, e implica:

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116 Espaço e economia no sistema de Cantillon

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