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CMAJ

ANÁLISE

Punição física em crianças: lições de 20 anos de pesquisa

Joan Durrant (PhD) e Ron Ensom (MSW - mestre em assistência social e RSW -
assistente social credenciado)

Veja um editorial relacionado escrito por Fletcher na página 1339 e em:


www.cmaj.ca/lookup/doi/10.1503/cmaj.121070

Possíveis interesses: Ron Ensom participa da iniciativa nacional de transmissão de conhecimento sobre
punição física no Children’s Hospital of Eastern Ontario (Hospital Infantil do Leste de Ontário).

Durante as duas últimas décadas vimos uma mudança global de percepções


relacionadas à punição física de crianças. Em 1990, pesquisas mostrando uma
associação entre punição física e resultados negativos para o desenvolvimento
começaram a aumentar; a Assembleia Geral dos Estados Unidos adotou o Convention
on the Rights of the Child, um tratado similar ao nosso Estatuto da Criança e do
Adolescente em nível internacional; no entanto, apenas quatro países proibiram a
punição física de um modo geral.

Em 2000, pesquisas estavam se disseminando e as normas do tratado estavam


sendo aprovadas por 191 de 196 países do mundo, 11 dos quais proibiram qualquer tipo
de punição física. Hoje, pesquisas mostrando os riscos associados à punição física são
inúmeras, e o tratado vem sendo integrado à estrutura legal e política de várias nações;
31 países decretaram proibições contra a punição física de crianças. Essas três forças
(pesquisa, tratado e reforma legislativa) alteraram o panorama sobre a punição física.

O peso crescente das evidências e do reconhecimento dos direitos das crianças e


dos adolescentes nos levou a uma posição histórica. Médicos familiarizados com
pesquisas acadêmicas podem agora encorajar com confiança pais a adotarem
abordagens positivas para disciplinar seus filhos, assim como podem influenciar de
forma confortável e usar seus conhecimentos particulares para guiar outros aspectos do
desenvolvimento saudável infantil. Ao fazer isso, médicos reforçam o bem-estar das
crianças e a relação de pais e filhos em nível populacional. Sendo assim,
apresentaremos uma análise das pesquisas sobre punição física abrangendo as duas
últimas décadas para ajudar médicos nessa importante missão.

Os primeiros anos: identificando padrões

Há vinte anos a punição física de crianças ainda era amplamente aceita ao redor
do mundo e era considerada um método apropriado para promover obediência, também
vista como algo diferente de abuso físico. Contudo, essa visão começou a mudar quando
estudos encontraram uma ligação entre punição física normativa e agressão infantil,
criminalidade e violência doméstica anos mais tarde. Alguns desses estudos envolviam
grandes experimentos feitos nos Estados Unidos; uns examinavam o potencial do
raciocínio parental para moderar a relação entre punição física e agressão infantil, e
outros examinavam possíveis fatores ambíguos, como estresse parental e status
socioeconômico. Praticamente sem exceção, esses estudos constataram que a punição
física era associada com índices maiores de agressão dos pais, irmãos, conhecidos e
cônjuges.

Mas será que a punição física e agressão infantil são associadas estatisticamente
por que mais crianças agressivas levam a índices maiores de punição física? Embora
isso fosse uma possibilidade, pesquisas começaram a demonstrar que a punição física
provoca agressão. Experimentos pioneiros indicaram que sentir dor automatiza o
comportamento agressor. Em um estudo modelo anterior, meninos da primeira série que
assistiram a um vídeo de um minuto de outro menino recebendo gritos, sendo sacudido
e espancado com uma palmatória por mau comportamento foram mais agressivos
enquanto brincavam com bonecas do que os meninos que assistiram a um vídeo de um
minuto com reações não violentas ao mau comportamento. Em estudos com testes
clínicos, Forgatch mostrou que a redução da educação severa dos pais de meninos com
risco de comportamento antissocial foi acompanhada por reduções significantes da
agressão em seus filhos. Esses e outros resultados estimularam os pesquisadores a
identificar os mecanismos que ligam a punição física à agressão infantil.
Pontos-chave:

● Vários estudos constataram que a punição física aumenta de forma abrangente e


contínua os riscos de obter resultados negativos no desenvolvimento em geral;
● Nenhum estudo concluiu que a punição física pode melhorar o desenvolvimento
saudável;
● A maioria dos abusos infantis ocorrem no contexto punitivo;
● Um consenso profissional está surgindo sobre incentivar os pais a aprenderem
abordagens não violentas e efetivas de educar.

Em 1990, foi reconhecido que o método no qual a causalidade é tipicamente


retratada em estudos científicos (estudos clínicos randomizados controlados) limitou a
aplicação em estudos sobre a punição física de crianças. Embora os estudos clínicos
randomizados controlados possam ser usados para estudar o efeito da redução da
punição física (como no estudo de Forgatch), eles não podem ser usados para estudar o
efeito de impor tal punição, pois pode não ser ético colocar crianças em um grupo que
recebe tratamento doloroso, quando a pesquisa sugere que tal dor não compensa o
benefício. Os poucos estudos clínicos remanescentes mostraram que a punição física
não era mais eficaz do que outros métodos que geram complacência. Em um desses
estudos, uma média de oito espancamentos em uma única sessão era necessária para
conseguir obediência, e “não havia incentivo para a necessidade de punir fisicamente.”
Para se referirem à questão de causalidade dentro dos vínculos éticos, pesquisadores
criaram estudos independentes envolvendo crianças que tinham níveis equivalentes de
agressão ou comportamento antissocial no início do estudo. Além disso, as técnicas
cada vez mais sofisticadas de modelo estatístico foram aplicadas a estudos
correlacionados para ajudar a entender os resultados. Esses estudos mudaram a forma
em que a punição física seria estudada durante a década posterior e redefiniu o
panorama do debate.

O novo milênio: analisando a motivação e ampliando o foco

Um dos primeiros grandes estudos independentes (1997, n = 807) monitorava os


níveis iniciais de comportamento antissocial infantil e sexo, família, status
socioeconômico, níveis de apoio emocional e estímulo intelectual em casa. Mesmo com
esses monitoramentos, a punição física entre as idades de 6 e 9 anos previa níveis
maiores de comportamento antissocial dois anos depois. Estudos independentes
subsequentes geraram resultados semelhantes, tanto os que verificaram a idade parental,
idade dos filhos, raça, estrutura familiar, como pobreza, idade da criança, apoio
emocional, estímulo intelectual, sexo, raça e outras interações entre as variáveis; ou
outros fatores. Esses estudos apresentam a os maiores indícios existentes de que a
punição física é um fator de risco para agressão infantil e comportamento antissocial.

Uma metanálise marcante publicada em 2002 mostrou que de 27 estudos sobre


punição física e agressão infantil conduzidos até aquela época (que atendiam aos
critérios da metanálise), todos encontraram uma relação satisfatória expressiva,
independente do tamanho do experimento, do estudo, da idade das crianças ou qualquer
outra variável. Quase todos elaboraram adequadamente os estudos conduzidos desde
que na metanálise foi descoberta a mesma relação. Em um estudo clínico randomizado
controlado de uma intervenção feita para reduzir as dificuldades comportamentais
infantis, pais em mais de 500 famílias foram treinados para diminuir o uso da punição
física. O declínio paralelo significante visto nos comportamentos problemáticos no
grupo tratado foi em grande parte justificada pela redução do uso de punição física dos
pais. Os estudos em conjunto sugerem de forma consistente que a punição física tem
relação direta com o efeito causal de externalizar comportamentos, seja em uma
resposta automática à dor, exemplos vistos ou métodos familiares coercivos.

Em 2000, pesquisas sobre punição física expandiram além do seu efeito em


relação à agressão infantil. Estudos mostravam associações entre punição física e saúde
mental, lesão corporal, relacionamento entre pais e filhos e violência familiar na vida
adulta. Um dos primeiros estudos do tipo ligava tapas e espancamentos na infância a
desordens psiquiátricas na vida adulta num experimento de grande escala no Canadá,
cujos resultados foram desde então reforçados por uma crescente quantidade de estudos.
A punição física é associada a uma variedade de problemas de saúde mental em
crianças, jovens e adultos, como depressão, infelicidade, ansiedade, sentimento de
desesperança, uso de drogas e álcool e inadequação psicológica em geral. Essas relações
podem ser dividas pelo rompimento do vínculo parental decorrente de dor infligida por
um cuidador, pelo aumento de níveis de cortisol ou pelo rompimento químico do
mecanismo cerebral que regula o estresse. Pesquisadores também estão descobrindo que
a punição física é ligada ao desenvolvimento cognitivo mais lento e afeta negativamente
as realizações acadêmicas. Essas conclusões vêm de estudos amplos que controlam uma
vasta gama de possíveis fatores problemáticos. Resultados intrigantes estão emergindo
de estudos de neuroimagiologia, que sugerem que a punição física pode reduzir o
volume da massa cinzenta do cérebro em áreas associadas ao desempenho com base na
Escala de Inteligência Wechsler para adultos, terceira edição (WAIS-III). Ademais, a
punição física pode causar alterações nas regiões dopaminérgicas, que têm relação com
a vulnerabilidade ao abuso de drogas e álcool.

Todos esses resultados são compatíveis com a literatura crescente acerca do


impacto das experiências adversas na infância para o desenvolvimento neurológico,
cognitivo, emocional e social, assim como saúde física. Embora alguns estudos não
tenham encontrado relação entre punição física e resultados negativos e outros tenham
encontrado a relação sendo atenuada por outros fatores, nenhum estudo detectou se a
punição física tem um efeito positivo a longo prazo; Por fim, a maioria dos estudos
observou efeitos negativos.

Outra grande mudança de cenário foi acelerada pela pesquisa que questionou a
dicotomia tradicional: punição - abuso. Ainda que pesquisas que mostrassem que a
maioria dos abusos físicos são punições físicas (em intenção, forma e efeito) tenham
começado a acumular em 1970, estudos sobre maus tratos de crianças desde então
esclarecem essa constatação. Por exemplo, o primeiro ciclo do Estudo Canadense de
Incidência de Abuso e Negligência Infantil Reportados (Canadian Incidence Study of
Reported Child Abuse and Neglect - CIS 1998), mostrou que 75% do abuso físico
infantil substancial ocorria durante episódios de punição física. Essa descoberta foi
replicada no segundo ciclo do estudo (CIS 2003). Outro grande estudo canadense
constatou que crianças que recebiam palmadas dos pais eram sete vezes mais propensas
a serem violentamente agredidas pelos pais (com socos e chutes, por exemplo) que as
crianças que não recebiam palmadas. Em um estudo dos Estados Unidos, bebês em seu
primeiro ano de vida que receberam palmadas dos pais no mês anterior, eram de duas a
três vezes mais propensos a sofrer uma lesão que necessitasse de atenção médica do que
bebês que não receberam o mesmo tratamento dos pais. Estudos sobre a dinâmica do
abuso físico infantil ajudaram a esclarecer esse processo, que consistia em pais
atribuindo conflitos aos filhos intencionalmente e/ou rejeição, assim como uma
dinâmica familiar coerciva e respostas condicionadas por emoções.
Os crescentes indícios ligando resultados negativos a longo prazo da punição
física contribuíram para uma mudança global de perspectivas sobre tal prática. No
Canadá, mais de 400 organizadores patrocinaram o Joint Statement on Physical
Punishment of Children and Youth (basicamente uma declaração coletiva sobre punição
física em crianças e adolescentes). Um subgrupo dessas organizações é listada no
Apêndice 1 (disponível em: www .cmaj .ca /lookup /suppl /doi :10 .1503
/cmaj.101314/-/DC1). Em outros países, reformas legislativas foram instituídas para
proteger melhor as crianças. Acompanhando essas mudanças, houve uma ênfase
crescente no desenvolvimento de modelos positivos educativos disciplinares que é
baseado em uma resolução efetiva e não violenta.

O futuro: promovendo a criação não violenta

Há provas suficientes de que fornecer auxílio e orientação aos pais pode reduzir
o uso de punição física e comportamentos manifestados em seus filhos. A maior parte
dos programas que foram avaliados é baseada em comportamentos originados do
trabalho de Patterson e seus colaboradores. Nesses programas, pais são ensinados a
observar o comportamento de seus filhos, comunicar claramente e aplicar eventuais
repercussões. Estudos de metanálise avaliando esses programas mostram efeitos
positivos na aptidão, eficácia e saúde psicológica dos pais, assim como no
comportamento dos filhos. Um estudo recente sobre a implementação de estratégias
para o auxílio de pais e familiares, mostrou que as famílias do grupo tratado tiveram
menos casos confirmados de maus tratos, ferimentos de agressão e as crianças foram
menos deslocadas de seus lares.

A coerência dos resultados da pesquisa sobre punição física e educação positiva


em conjunto com o apoio crescente aos planos do Convention on the Rights of Child,
teve um impacto significativo na visão dos prestadores de assistência médica. A
Sociedade Pediátrica canadense desencoraja “fortemente” (ênfase original) o uso da
punição física em crianças, incluindo palmadas. A Academia Americana de Pediatria
alerta que a punição corporal é limitada de efetividade e potencialmente tem efeitos
colaterais bastante prejudiciais, além de recomendar que os pais sejam incentivados e
auxiliados no desenvolvimento de métodos diferentes do espancamento ou de palmadas
para controlar comportamentos indesejados.
Já faz 20 anos desde que o Canadá ratificou o Convention on the Rights of the
Child, que demanda a eliminação de todas as formas de violência infantil, incluindo a
punição física. O debate foi além das discussões acerca dos efeitos e causas para aqueles
da ética e dos direitos humanos. Esse novo contexto que avalia a punição física
impulsionou mudanças mundiais nos âmbitos legal, político e comportamental. Um
número crescente de países está abolindo o uso da punição física para proteger melhor
os jovens e mudar o foco parental de que a punição leva ao aprendizado e disciplina.
Evidências estão surgindo sobre a combinação da reforma legislativa e do ensino
público ser mais eficaz do que qualquer outra estratégia para mudar opiniões e condutas
parentais.

Médicos têm a responsabilidade primordial de traduzir as pesquisas e evidências


em diretrizes para pais e filhos, pois eles são pessoas confiáveis e influentes para
promover políticas públicas e educacionais no que diz respeito à saúde da população.
Por exemplo, médicos podem educar os pais sobre o desenvolvimento infantil para
reduzir raiva e reações punitivas para normalizar o comportamento da criança e fornecer
recursos para a educação positiva. Além disso, médicos podem indicar pais para
programas de saúde pública, centros de serviços, programas de educação positiva e
outros profissionais clínicos para auxilio futuro. Ainda, médicos podem se juntar a
outros profissionais para transmitir mensagens claras e precisas em nível populacional.
Exemplos dessas mensagens são “Palmadas doem mais do que você imagina” (Toronto
Public Health) e “Não às palmadas!” (Public Health Agency of Canada). Por fim,
médicos podem compelir o governo federal a remover cláusulas do Código Penal, que
fornece justificativas legais para o uso da punição física, e desta forma enfraquece
iniciativas do ensino público.

Segundo a Joint Statement on Physical Punishment on Children and Youth, as


evidências são bem claras e convincentes (a punição física em crianças e jovens não
desempenha um papel importante em sua formação e apenas cria riscos em seu
desenvolvimento). A conclusão é igualmente convincente. Os pais devem ser bastante
incentivados a desenvolver métodos alternativos e positivos para educar.

A educação efetiva se debruça em expectativas claras e de acordo com a idade,


transmitida de maneira eficaz em um relacionamento de confiança em um entorno
seguro.
(Referências no arquivo original)

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