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In:
Acontecimento: reverberações. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. Cap. 1, p. 21-38.
NOÇÃO DE ACONTECIMENTO
1. Há pouco tempo, em 2006, Pierre Nora, em vez de chamar a atenção para o
“retorno acontecimento”, insistia, “sobre a transformação em profundidade da
própria noção de acontecimento, que se resume em uma palavra: o
acontecimento se ‘desrealizou’, ou, se preferirmos, se dessusbtânciou. P 21
2. O acontecimento midiatizado teria sido, algum dia, uma “garantia de real”? E
tratando-se do acontecimento “desrealizado’ tudo depende do tipo de
acontecimento que é abordado [...], portanto, vou tomar a defesa do retorno de
certa forma de realismo na abordagem do acontecimento, precisamente um
realismo pragmatista. P 21
3. Para saber se a própria noção de acontecimento sofreu alguma alteração em seus
usos, seria necessário proceder, sem dúvida, a uma pesquisa de semântica
histórica. Mas nada indica que a palavra “acontecimento” tenha deixado de
significar o que significou sempre em nossa linguagem corrente: o
acontecimento é o que vem de fora, o que surge, o que acontece, o que se
produz, o excepcional que se desconecta da duração. P 21
Acontecimento
Podemos conceber o
acontecimento como: uma
ruptura, uma fissura, uma
inauguração aquilo que
possibilita a emergência de
sujeitos, atos, falas, objetos que
não preexistiam ao
acontecimento. Autor do
fichamento (AF)
CATEGORIAS DO ACONTECIMENTO
4. Pensar o acontecimento sob as categorias da transição, do vir a ser e da
emergência em vez da substância e da simples ocorrência, eis o que evoca em
mim imediatamente um autor [...] Georg Hebert Mead [...] o mundo, argumenta
Mead, é ‘um mundo de acontecimentos”, isto é, um mundo temporal em que as
coisas advêm à existência e “cessam continuamente de existir”. Mas essa
temporalidade não mera passagem. P 22
5. Por conseguinte, vamos encontrar o acontecimento, sob diferentes formas, na
nossa experiência [...] a principal distinção que podemos fazer é a seguinte:
1
Objetos de consciência, de pensamento, de discurso, de investigação e julgamento.
2
Para Queré, o devir não é uma evolução direcional, o devir é parte do processo ou caráter próprio do
processo.
é portanto, a mente que “estende temporalmente o entorno do organismo”. Eles
são de natureza representacional, ou seja, mentais e discursivos. “ Eles estão no
presente, mas o aspecto a que se referem não está nesse presente”. P 27
12. Somos levados a pensar não só o acontecimento como o que se produz, mas
também que, uma vez transcorrido, ele está encerrado e é irrevogável: se
ocorreu, ocorreu. P 27
13. Com efeito, o acontecimento emerge “cria, com seu caráter único, um passado e
um futuro. Desde que o vemos, ele se torna uma história e uma profecia. Ele cria
um passado porque surge a questão de saber o que o provocou e condicionou e
cria um futuro porque a interesse por suas potencialidades e suas consequências,
ou seja, por seu significado, e porque se pretende, em maior ou menor grau
controlar sua aparição. P 27
14. A relação do acontecimento com as condições que precedem sua aparição
instaura, ao mesmo tempo, uma história, e o caráter único do acontecimento
torna essa história relativa ao acontecimento. P 27
15. A compreensão, a avaliação, a narração e a explicação dos acontecimentos
transcorridos se fazem, portanto, sempre “do ponto de vista do presente”, que dá
uma perspectiva, mais precisamente do ponto de vista de uma situação, (aberta e
problemática no sentido de que ela não é inteiramente nítida, além de comportar
algo de indeterminação, contradições e conflitos, etc.). Mas elas não consistem
em fazer retornar o presente, que é passado, acompanhado pela realidade que, na
época, era a sua. Se fôssemos capazes de fazê-lo, isso de nada nos serviria. P 27
16. Eis o que é válido também para o acontecimento: é impossível reconstruir, tal
como ela havia ocorrido, a experiência da mudança existencial que foi a prova
do acontecimento no instante de sua ocorrência, e mesmo que tal reconstrução
fosse possível, ela de nada serviria. Outra coisa tomou o lugar desse presente
existencial desaparecido: um objeto mental, de acordo com a expressão de
Mead, constituído por ideias e imagens com as quais o indivíduo entra em
relação de uma forma semelhante àquela com que lida com os objetos concretos
de seu entorno. P 28
Experimentação do acontecimento:
18. Eis o que produz precisamente a comunicação - ela não se contenta, portanto,
em anunciar os acontecimentos, em nomeá-los e em fixar neles um rótulo
identificador ou categorizante [...] os acontecimentos deixam de ser, assim,
simples mudanças existenciais. Eles se transformam em objetos dos quais nos
tornamos conscientes, em “coisas com significados”, porque são estes – e, em
particular, a causalidade, a individualidade e as potencialidades do
acontecimento – que suscitam, na prática nosso interesse [...] Ele se torna não só
um objeto e uma fonte de inferências e de raciocínios, mas também um meio de
ação controlada. Com efeito, servimo-nos desse tipo de objeto cognitivo-
discursivo para intervir no curso dos acontecimentos, a fim de canalizá-lo ou
atenuar sua brutalidade. P 30 – 31
PRODUÇÃO DA COMUNICAÇÃO
Tornando-se passíveis de
investigação, apreciação, reflexão
e estruturação no plano seja das
ideias ou da lógica.
19. A comunicação atenua, assim, o impacto dos acontecimentos e transforma suas
qualidades imediatas, fazendo com que se tornem objetos de julgamento [...]
julgamento de valor e julgamento de prática ( Dewey ) respaldados em um
conhecimento produzido pela investigação. P 31
20. É, portanto, na investigação que o acontecimento intervém como “termo do
julgamento”. Aliás, a conversão do acontecimento em objeto só é completa ao
final de uma investigação devidamente realizada sobre as relações internar ao
acontecimento, suas relações com outros acontecimentos, suas condições e
consequências. P 33
21. Um aspecto do julgamento na investigação é a ordem temporal dos
acontecimentos – objetos. Colocar em ordem do ponto de vista temporal é
delimitar séries ou ciclos, atribuir-lhes um começo, um desenvolvimento e um
fim, um limite ab quo e um limite ad quem, com intervalo entre eles. O
estabelecimento de tais limites é efetuado pela investigação em referência ao
problema a tratar em determinada situação. P 33
RETORNO À “DESREALIZAÇÃO”
22. A matriz do sentido do acontecimento é, portanto, relativamente complexa. Não
é somente a linguagem que entra em jogo. Defendi que o acontecimento
existencial e o acontecimento – objeto incluem um elemento de simbolização,
muito mais importante no segundo que no primeiro. Ora as mediações
simbólicas diferem culturalmente e evoluem historicamente. P 37
23. Considerei a comunicação como o lugar da constituição do acontecimento –
objeto. Os canais da mídia para essa comunicação são também bastante
diferentes, dispõem de potenciais diferentes e cada um tem sua própria eficácia,
particularmente, diante das condicionantes temporais; por sua vez eles não
cessam também de evoluir. P 37
24. Os acontecimentos não são, em primeiro lugar, representações, mas mudanças
existenciais apreendidas sob o aspecto de seu happening3 e experimentadas
3
Imprevisibilidade
simultaneamente sob o prisma de suas qualidades imediatas e de seu
condicionamento externo. P 37
25. A experiência do acontecimento é uma experiência de tais mudanças
combinando as dimensões do afeto, do conhecimento e da prática. A percepção
imediata dessas mudanças não as representa; elas é que são efetivamente
percebidas e experimentadas. Mas a experiência do acontecimento é também
uma experiência de acontecimentos – objetos que solicitam nossa atenção em
diversos graus. A recepção desses acontecimentos configurados no universo do
discurso não deixa de ocorrer no domínio da experiência. P 37
26. Acontecimentos-objetos são substitutos ideacionais e discursivos de
acontecimentos existenciais; eles não podem restituir a qualidade e o impacto
existenciais destes últimos, tais como essas duas características poderiam ter
“sido experimentadas”. P 38