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HISTÓRIA DA MEDICINA

História da varíola
Smallpox hist o ry

Antonio Carlos de Cast ro Toledo Jr.

Médico Infectologist a, Mest re em Saúde Pública/Epidemiologia, Professor da Faculdade de Ciências


Médicas - Unifenas, Belo Horizont e-MG

Endereço para correspondência


Rua Groenlândia, 90/401
Cep: 30320-060 Belo Horizont e - MG
E-mail: toledoac@t ask.com.br

Dat a de Submissão: 01/09/03


Dat a de Aprovação: 26/02/04

RESUMO

A varíola, doença exant emát ica causada pelo Poxvirus variolae, t eve grande import ância em saúde pública
ent re os séculos X e XX. Durant e a Idade Média, junt ament e com a Pest e Negra, foi responsável por
várias epidemias e por milhares de mort es. Embora não se conhecesse seu agent e et iológico, várias
medidas de cont role foram ut ilizadas, como isolamento, quarent ena, variolização e imunização. A
imunização, descobert a pelo médico inglês Edward Jenner no século XVIII, foi um dos mais import ant es
avanços da medicina. A ut ilização da imunização em larga escala permit iu a diminuição drást ica da
incidência da doença ent re os séculos XVIII e XX. No ent anto, apenas em 1977, após 11 anos de
funcionamento do Programa Global de Erradicação da Varíola, foi possível cont rolar definit ivament e a
doença. A varíola foi declarada oficialment e erradicada em 1980. Apesar disso, ela ainda faz part e do
nosso cot idiano, sendo sempre cit ada como arma biológica pot encial. Mesmo que não seja ut ilizada em
at aques de biot errorismo nos dias de hoje, a varíola ainda provoca medo e gasto de recursos humanos e
financeiros em pleno século XXI, mais de 20 anos após sua erradicação.

Palavras-chave: Varíola/história; Varíola/epidemiologia; Vírus da varíola; Vacina ant ivariólica; História da


medicina

INTRODUÇÃO

A origem da varíola ainda é muito discut ida e cont roversa. Apesar de deixar cicat rizes quase
patognomônicas, exist em poucos relatos indicat ivos da doença ant es do século X. A Tabela 1 elenca
grandes pragas que podem est ar relacionadas à varíola, mas t ambém a out ras epidemias, como a pest e
negra. Pelos relatos históricos, a praga dos Hititas, originária do Egito, e a epidemia ocorrida durant e a
Guerra dos Elefant es, quando os et íopes cercaram Meca, parecem est ar, provavelment e, relacionadas
com a varíola.

Os primeiros relatos da varíola ocorrem a part ir da era crist ã, principalment e a part ir do século IV. A
doença tornou-se mais evident e com a grande concent ração de pessoas e o surgimento de grandes
cidades ao longo dos vales dos rios Nilo (Egito), T igre e Eufrat es (Mesopot âmia), Ganges (Índia), Amarelo
e Vermelho (China). Ant es desse período, a doença provavelment e ocorria de forma esporádica, devido ao
pequeno número de habit ant es das cidades. A Tabela 2 sint et iza as primeiras descrições da varíola.
Alguns autores, como Ahrun, Al-Razi e Avicenna descreveram det alhadament e o quadro clínico da doença
e o diagnóst ico diferencial com o sarampo e a varicela. Ishinho, ainda no século X, descreve o t rat amento
vermelho e propõe o isolamento dos doent es como forma de cont role da doença. O t rat amento vermelho
consist ia no uso de roupas vermelhas pelo pacient e, e at é na t ransformação de todo o ambient e para a
cor vermelha. Ele foi ut ilizado at é o século XVI, inclusive na Europa ocident al.

 
 

Apesar de o Egito t er sido assolado por epidemias devast adoras periodicament e, não exist em
descrições sugest ivas de varíola ant es da era crist ã. No ent anto, o achado de lesões cicat riciais,
indicat ivas da doença, em t rês múmias, ent re 1580 e 1100 a.C., sust ent a est a hipót ese (um homem de
meia idade da 20ª dinast ia - 1200 a 1100 a.C., uma múmia da 18ª dinast ia - 1580 a 1350 a.C., e o corpo de
Ramsés V, falecido em 1157 a.C.)

Out ra hipót ese é que a varíola t enha se originado na Índia. Howell1(médico da British East India Company),
em 1767, defendeu a t ese de que, de acordo com o Atharva Veda (livro sagrado do hinduísmo), a varíola
exist iria há séculos na Índia. Sir Nicholas 1 (historiador e ant ropólogo) cont est a est a hipót ese e afirma que
a masurika (varíola) só é descrit a por Caraka e Susrut a Samhit a na compilação da medicina popular hindu,
que foi finalizada no século IV. De acordo com Nicholas, a doença deve t er sido int roduzida na Índia no
primeiro milênio ant es de Cristo por mercadores egípcios.

Como cit ado ant eriorment e, com o crescimento das populações ao longo dos grandes rios da Ásia, a
varíola fixou-se, por assim dizer, nessas regiões e espalhou-se para a Europa e o Japão. As rot as de
mercadores nas regiões das at uais Grécia e It ália foram as vias de disseminação da doença nos séculos
IV e V. A expansão islâmica nos séculos VIII e IX int roduziu a doença no nort e da África e na Península
Ibérica (710). Em 731, a expansão dos Mouros pela Europa foi cont ida na França, com auxílio de t ropas do
Sacro Império Germânico, que disseminaram a doença pela Europa Cent ral ao retornarem para casa
(Figura 1)1.

Figura 1 - Rot as de expansão da varíola na Asia e Europa (cedida pela OMS).


 

O t ermo varíola (do lat im varius = mancha ou varus = púst ula), foi ut ilizado pela primeira vez, em 452, pelo
bispo Marius de Avenches 1,2. O t ermo smallpox (púst ula pequena) só passou a ser ut ilizado no século XV,
quando a sífilis foi descrit a como uma nova doença exant emát ica e denominada greatpox (púst ula
grande). Essas denominações não se referem apenas ao t amanho da lesão, mas t ambém à população
acomet ida, uma vez que, no século XV, as crianças eram as principais vít imas da varíola.

 
VARÍOLA NO MUNDO ENTRE OS SÉCULOS XI E XIX

Ent re os séculos XI e XV, a varíola at inge prat icament e toda a Europa (exceto a Rússia). Era possível
observar dois padrões epidemiológicos dist intos. Em grandes cidades, ou em regiões densament e
povoadas, ela t inha carát er endêmico, at ingindo quase que exclusivament e crianças, com grandes
epidemias em int ervalos variáveis. Já nas cidades menores e em regiões de baixa densidade
populacional, apresent ava carát er exclusivament e epidêmico, com surtos ocorrendo de t empos em
t empos e at ingindo todas as faixas et árias 1. As piores epidemias ocorreram nos séculos XVII e XVIII.

Em 1546, Girolamo Fracastoro publica seu t rabalho De Contagione et Contagiosis Morbis, que foi passo
import ant e no início do ent endimento das doenças infecciosas, como a varíola, a pest e e a raiva. Ainda no
século XVI, a varíola difundiu-se da Península Ibérica para a cost a oest e da África, da América Cent ral e do
Sul (Figura 2). No século XVII, a doença at inge a América do Nort e e a Rússia.

Figura 2 - Expansão da varíola para as Américas e a Africa (cedida pela OMS).


 

As est imat ivas de mort es pela varíola são pouco precisas, pois não exist ia regist ro formal desses dados
vit ais, além da possibilidade de sobreposição com out ras epidemias. Apenas em 1629, em Londres,
iniciou-se o regist ro oficial da causa mortis (Bills of Mortality), mot ivado pela pest e negra.

A varíola era, port anto, import ant e problema de saúde pública na Europa, sendo as crianças suas
principais vít imas. Em alguns locais, a criança só era considerada como membro da família e recebia seu
direito de herança e o nome da família após sobreviver à varíola1. A doença at ingia a todas as classes
sociais, inclusive os nobres, como ilust rado na Tabela 3.

 
 

VARÍOLA NAS AMÉRICAS

A varíola não era doença autóctone das Américas, sendo int roduzida no cont inent e pelos europeus,
durant e a colonização. O primeiro caso da doença ocorreu em 1507, import ado da Espanha, na ilha de
Hispaniola (at ual República Dominicana e Tait i), dizimando met ade da população resident e 1. Em muitos
países, a disseminação da doença est ava est rit ament e relacionada com o t ráfico de escravos, que
apresent ava condições propícias para a t ransmissão do vírus. Em todo o cont inent e, os povos nat ivos
foram durament e at ingidos, inclusive com a ext inção de alguns deles.

O explorador espanhol Hernán Cort és possivelment e foi o precursor da guerra biológica durant e a
conquist a do Império Ast eca. Em 1520, seu primeiro at aque a Tenocht it lán foi rechaçado, com grandes
perdas para os espanhóis (900 mort es do tot al de 1.200 conquist adores)3. A varíola foi int roduzida na
Península de Yucat an pela expedição de Pánflilo de Narváez, que foi enviada para resgat ar Cort és. Em 13
de agosto de 1521, em seu retorno t riunfal, quando Cort és conquistou Tenocht it lán sem dificuldades, a
doença já havia mat ado um t erço da população ast eca3. A varíola at ingiu o Império Inca em 1524-1525,
mat ando seu imperador Huayna Capac e seus herdeiros, além de grande part e da população. Em meio à
crise de sucessão, eclodiu uma guerra civil, que abriu as port as para a conquist a espanhola, liderada por
Francisco Pizarro3.

Ent re 1617 e 1619, ocorreu a primeira epidemia de varíola na América do Nort e, em Massachuset t s. A
doença não se int eriorizou, permanecendo limit ada às grandes cidades (portos da cost a lest e). Apenas
com a Corrida do Ouro, por volt a de 1785, a varíola at inge a cost a oest e dos Est ados Unidos. Ent re 1636 e
1698, ocorreram grandes epidemias, import adas da Europa, nos principais portos da cost a lest e, como
Boston e Nova Iorque 1.

Em 1763, ocorre o primeiro ato int encional de guerra biológica regist rado na história da humanidade. Na
Revolt a de Pont iac, durant e a Guerra Franco-Indígena, ent re os ingleses e os franceses aliados aos índios
Iroquis, o general inglês Sir Jeffrey Amherst ordenou a infecção dos índios rebelados pela varíola. Foram
dist ribuídos cobertores infect ados para os índios, o que provocou surto da doença, facilit ando a
conquist a inglesa e colocando fim na disput a anglo-francesa por t erras na América do Nort e 1.

O medo da doença era t ão grande que chegou a influenciar a história da América do Nort e em certos
momentos. Como a doença est ava limit ada às grandes cidades da cost a lest e, os jovens das colônias
inglesas recusavam-se a ir para a Europa a fim de est udarem, t emendo a varíola1. Com isso, fundaram-se
as primeiras faculdades nort e-americanas. Acredit a-se que o cerco a Boston (1775-76), no final da
Guerra da Independência, t enha sido prolongado pelo fato de a varíola ser endêmica na cidade. Quando
Boston foi desocupada, o general George Washington ordenou que 1.000 soldados que t ivessem t ido
varíola fossem ocupá-la1.

No Brasil, o primeiro surto de varíola ocorreu em 1555, quando a doença foi int roduzida no est ado do
Maranhão por colonos franceses 4. Em 1560, ocorreu uma epidemia relacionada ao t ráfico de escravos
africanos e em 1562-63, a doença foi t razida pelos próprios port ugueses. As populações nat ivas t ambém
foram durament e at ingidas. O busca dos jesuít as pelas conversões de índios cont ribuiu para a
int eriorização e disseminação da doença4. A varíola est abeleceu-se nas grandes cidades (portos),
principalment e no Rio de Janeiro, assumindo carát er endêmico, como na Europa4.

INÍCIO DO CONTROLE DA DOENÇA

Variolização

A variolização consist ia na inoculação do mat erial derivado das crost as da varíola em pessoas sãs, na
t ent at iva de produzir doença mais branda que a nat ural. Baseava-se na observação de que os
sobrevivent es da doença não adoeciam novament e e de que pessoas infect adas por out ras vias, como a
cut ânea, apresent avam doença mais branda. O método parece t er sido desenvolvido na China e na Índia,
de forma independent e, no século XI, disseminando-se pela Ásia (Egito - século XIII), Europa (século XVIII)
e África2,5,6.

O método hindu consist ia na inoculação de mat erial derivado das crost as por via int radérmica
(escarificação), que produzia exant ema brando acompanhado de febre e com resolução espont ânea. Já
no método chinês, a inoculação era por via nasal e produzia quadro mais int enso, possivelment e por
assemelhar-se mais com a via nat ural de infecção2,5,6.

Em 1700, a Royal Society of London, cujo president e era Sir John Woodward, recebeu dois comunicados
sobre o método chinês de variolização e seus result ados. Em 1714 e 1716, dois médicos gregos
Emanuele T imoni e Jacob Pylarini, que t rabalhavam na Turquia, relat am à Royal Society o método t urco de
variolização, derivado do método hindu5.

Havia grande pressão social pela solução do problema da varíola, que cont inuava assolando as
populações das principais cidades da Europa. Em 1721, inicia-se a variolização no Reino Unido. Lady Mary
Wort ley Mont agu, que retornava da Turquia, onde observou os benefícios do procedimento, é considerada
a grande responsável pela int rodução da variolização no Reino Unido5,7.

A part ir daí, a variolização espalhou-se por toda a Europa, exceto na França. A let alidade da doença ent re
os inoculados era de uma mort e para 48 a 60 doent es, cont ra uma mort e para seis doent es infect ados
pela via nat ural. Apesar desse claro efeito prot etor, as pessoas inoculadas t ransmit iam a varíola para
out ras pessoas pela via normal e, caso não ficassem isoladas, podiam provocar surtos da doença. Além
disso, pessoas inoculadas podiam apresent ar quadro normal da doença, com as mesmas complicações
e let alidade. Em 1746, foi criado o London Small-Pox and Inoculation Hospital, a princípio para isolamento de
doent es, como sugerido pelo médico japonês Ishinho, ainda no século X. Depois, a principal função do
hospit al passou a ser o isolamento de pessoas inoculadas. Apesar de todas as limit ações e risco
pot enciais, a part ir da segunda met ade do século XVIII, a variolização era adot ada, em grande escala, em
toda a Europa. O procedimento só foi adot ado na França em 1754, quando o mat emát ico Charles la
Condamine demonst rou que um milhão de mort es t eriam sido evit adas se a variolização t ivesse sido
implant ada em 17225.

Em 1793, John Haygart h, diretor do London Small-Pox and Inoculation Hospital, est imulado pelos result ados
da variolização, propôs plano para eliminação da varíola at ravés da inoculação, isolamento dos pacient es
e descont aminação de fômit es 5.

Nos Est ados Unidos, a variolização t eve início em 1706, quando o reverendo Cot ton Mat her ouve relato de
seu escravo, Onesimus, sobre a prát ica da inoculação na África4,5. Na grande epidemia de varíola de 1721,
em Boston, a mort alidade foi de 2,5% ent re inoculados e de 14,1% na população virgem. Em 1777, George
Washington, t emendo os efeitos devast adores que a doença poderia t er sobre seus soldados originários
de regiões não-endêmicas, det erminou a variolização de todos os recrut as do exército cont inent al. A
preocupação do general americano era procedent e, pois, como cit ado ant eriorment e, o exército inglês
ut ilizou a varíola como arma biológica na Revolt a de Pont iac, em 17631.

Nas Américas Cent ral e do Sul, a variolização foi int roduzida t ardiament e, no final do século XVIII, pouco
ant es da descobert a da vacina por Edward Jenner. Isso se deveu, possivelment e, à pouca aceit ação do
método pelos médicos espanhóis e port ugueses e pelo pequeno impacto da doença nesses países,
naquela época4.

Descoberta da Vacina
O médico inglês Edward Jenner t rabalhava no int erior da Inglat erra como inoculador da varíola, quando
observou, em 1775, que as pessoas que haviam apresent ado a varíola da vaca (Cowpox) não t inham
sintomas quando inoculadas pela varíola. Em suas próprias palavras: "... who seemed to have undergone the
Cow Pox, nevertheless, on inoculation with the Small Pox, felt its influence ...". Est e fenômeno parecia ser
recent e, possivelment e apresent ando relação t emporal com a int eriorização da varíola e da variolização.
Ao cont inuar suas observações, notou que as mulheres que t rabalhavam com a ordenha de vacas
rarament e apresent avam as cicat rizes da varíola. Formulou, ent ão, a hipót ese do efeito prot etor da
varíola da vaca em humanos.

Apenas em 1796, quase 20 anos após suas primeiras observações, Jenner t eve a oport unidade de
comprovar sua t eoria. Na propriedade da família Phipps, ele inoculou um menino de oito anos com
mat erial ret irado das lesões de cowpox da Sra. Sarah Nelmes. Meses depois, o jovem Phipps recebeu a
variolização e não apresentou nenhum sintoma. Post eriorment e, várias crianças são inoculadas "braço-
a-braço" e não apresent aram sintomas após a variolização e não sofreram de varíola. Em 1801, Jenner
publicou seu t rabalho, int it ulado The Origin of the Vaccine Inoculation 2,5,6.

O t ermo vacina ou vaccine, em inglês, refere-se, originalment e, à varíola da vaca (vaccinia). O t rabalho
publicado por Jenner descreve as origens da inoculação da varíola da vaca. O t ermo passou a ser
ut ilizado com seu significado médico at ual, imunização at iva, por Louis Past eur, em 1884, em
homenagem à descobert a de Jenner2.

O método jenneriano encont rou muit a resist ência e problemas, mas foi amplament e implant ado em todo
o mundo. Em 1801, o president e americano T homas Jefferson iniciou programa de vacinação dos povos
indígenas. Em 1802, a vacinação já alcançava a Índia. Ent re 1803-1805, a coroa espanhola enviou a
Expedição Bamis-Salvany com a vacina para suas colônias nas Américas e na Ásia. A vacina foi mant ida
braço-a-braço, em crianças órfãs, durant e toda a viagem 5. Em 1811, foi criada a Junt a da Inst it uição
Vacínica no Rio de Janeiro, que post eriorment e daria origem ao Inst it uto Oswaldo Cruz 4.

A principal vant agem da vacina era sua segurança, pois não apresent ava risco de adoecimento nem de
disseminação da doença. Além disso, o procedimento era parecido com a variolização, já conhecido da
população em geral. Mas exist iam barreiras filosóficas e t eológicas. A int rodução de mat erial animal no
corpo humano era crit icada por muitos e t emia-se, inclusive, o risco de crescimento de part es animais ou
a best ialização das pessoas (Figura 3)4,5. A varíola era vist a, por muitos, como uma punição divina para
expurgar os pecados, e t emia-se que a int ervenção do homem no curso nat ural da doença (epidemia)
provocasse cast igos maiores 5. Essa barreira religiosa est eve present e durant e toda a história da
vacinação cont ra varíola, mesmo no final no século XX, próximo da erradicação da doença. Em algumas
comunidades da África e da Ásia, sobreviver à varíola era uma benção divina: significava que a pessoa
sobrevivent e era escolhida de Deus. Erradicar a varíola significava, para esses povos, acabar com um dom
divino4,5.

Figura 3 - Caricat ura do início do século XIX crit icando a vacinação (Gravura inglesa de James
Gillary, 1802).
 

A vacina t ambém apresent ava problemas de ordem t écnica. A varíola da vaca não era doença comum e
havia problemas na conservação do mat erial vacinal. Est e problema só foi resolvido em 1864, com a
ut ilização de bezerros como reservatórios vivos da vacina e com a ut ilização do vírus da varíola eqüina5.
Houve casos de cont aminação da vacina com o vírus da varíola, levando a surtos da doença4-6. A
vacinação braço-a-braço apresent ava risco de disseminação de doenças como a sífilis, sendo
observados vários surtos em crianças vacinadas 4-6. Apesar de a hepat it e ainda não ser conhecida na
época, exist e a descrição de surto de ict erícia após a vacinação5. Além disso, a vacinação braço-a-braço
provocava a diminuição da imunogenicidade da vacina, sendo necessária a renovação periódica do
mat erial vacinal4,5. Out ra quest ão, que só foi resolvida no final do século XIX, quase 100 anos após a
descobert a da vacina, foi a duração da imunidade. Jenner faleceu em 1823 defendendo que a vacina era
fort ement e imunogênica e que não haveria necessidade de out ras doses 5.

Apesar de todos esses problemas e resist ências, a vacina most rou-se import ant e inst rumento para o
cont role da varíola. Ent re 1807 e 1853, a vacinação tornou-se compulsória em vários países, inclusive no
Brasil. A legislação era severa e previa punições para as pessoas que não vacinassem seus filhos e que
não retornassem no oit avo dia para a ext ração do mat erial vacinal das lesões 4. Os benefícios da
vacinação em massa eram evident es. Observou-se grande queda na mort alidade e morbidade da varíola
nas primeiras décadas do século XIX e a doença tornou-se limit ada prat icament e aos não-vacinados. Em
1824, 20 anos após a int rodução da vacina, a varíola começa a recrudescer, acomet endo principalment e
adultos ao invés de crianças. A doença não voltou a at ingir os níveis observados no século XVIII5.

A necessidade da revacinação ficou bem clara durant e a Guerra Franco-Prussiana, quanto ocorreu grande
epidemia de varíola ent re 1870 e 1871. O exército prussiano, onde era obrigatória a revacinação,
apresentou 8.463 casos de varíola com mort alidade de 5,4%. Já o exército francês, em que não se
realizava a revacinação, apresentou 125.000 casos, com mort alidade de 18,7% 5.

Ent re o final do século XIX e meados do século XX, observou-se grande evolução das vacinas, at é o
desenvolvimento de sua forma liofilizada, e o combat e e cont role da varíola por meio de programas
nacionais de vacinação. A doença foi considerada erradicada, em vários países, em meados do século XX:
Canadá (1944), Est ados Unidos (1951) e Europa (1895-1953)8.

ERRADICAÇÃO MUNDIAL DA VARÍOLA

Em 1958, a União Soviét ica solicitou à OMS a criação de programa de erradicação da varíola. Nessa época,
a doença est ava present e em 33 países e causava cerca de dois milhões de óbitos por ano. As Américas
apresent avam bom cont role da doença, já em vias de erradicação. Os principais focos est avam na África
e na Ásia9,10.

A varíola era, t eoricament e, de fácil erradicação pela vacinação; pelo menos apresent ava todas as
condições para t al. Est ava disponível uma vacina alt ament e eficaz, em dose única e de fácil aplicação. A
doença apresent ava quadro clínico caract eríst ico, facilment e ident ificado por pessoas t reinadas, o que
permit ia o seu diagnóst ico precoce e a inst it uição rápida das medidas de cont role. T inha curto período de
incubação, o que limit ava sua disseminação ant es do início dos sintomas. Não possuía hospedeiro
int ermediária, nem reservatório na nat ureza, e a t ransmissão era exclusivament e pessoa-a-pessoa,
sendo necessário apenas o cont role ent re seres humanos para sua erradicação10-12.

No ent anto, a avaliação inicial da OMS most rou que 95% dos casos eram subnot ificados e que seriam
necessárias cerca de 250 milhões de doses de vacina por ano para a erradicação da varíola, dois grandes
desafios operacionais 10.

Após nove anos de planejamento (1957-1966), o Programa Global de Erradicação da Varíola foi lançado,
sob a coordenação do médico americano Donald A. Henderson, que foi subst it uído pelo japonês Isão Arit a,
já no final do programa. Iniciou-se, ent ão, uma verdadeira caçada aos casos de varíola no mundo, num
grande esforço de vigilância epidemiológica e vacinação, que envolveu mais de 100 profissionais de nível
superior e milhares de profissionais locais de saúde, invest indo cerca de 300 milhões de dólares 10,13,14.

Após 11 anos de t rabalho árduo e sacrifício de pessoas como Daniel Tarantola, Don Francis e David
Heymann, que passaram um bom t empo "caçando" novos casos de varíola e vacinando pessoas na Índia,
na Iugoslávia e no Sudão, o últ imo caso de varíola major ocorreu na Índia, em 1975, em uma menina
chamada Rahima Banu. O últ imo caso de varíola minor foi observado na Et iópia, em 1977, em um rapaz
chamado Ali Maow Maalin, que t rabalhava como vacinador no programa de erradicação. Em 1980, a varíola
foi declarada erradicada pela OMS 9,10,13.
 

BIOTERRORISMO

Durant e a década de 80, todos os estoques do vírus da varíola foram dest ruídos ou armazenados em dois
laboratórios de segurança máxima, um nos Est ados Unidos (Centers for Disease Control and Prevention,
At lant a, Georgia) e out ro na ant iga União Soviét ica (em Novosibrisk), com o aval da OMS, e sob a
just ificat iva de se est udar melhor a doença e se ent enderem os mecanismos imunológicos da vacina. O
acordo firmado era da dest ruição tot al do vírus at é o final da década de 90. No início de 2002, a diretoria
execut iva da OMS votou pela não-dest ruição do vírus, em prol do aprofundamento das pesquisas
médicas, pois a varíola foi a única doença erradicada at ravés da vacinação na história da humanidade e a
t ent at iva de desenvolvimento de vacinas cont ra novas doenças, como a aids e a hepat it e C, não
obt iveram sucesso at é o present e 9,12. Exist e grande debat e sobre a dest ruição definit iva ou não do vírus,
com posições acaloradas cont ra e a favor. Muitos defendem a posição de que a humanidade não est ará
livre da doença enquanto exist irem vírus armazenados 15-19.

Apesar de toda a especulação de que nações pot encialment e "host is" possuam o vírus com fins bélicos,
não se sabe se exist em cepas da varíola fora dos laboratórios oficiais. O vírus da varíola pode ser
considerado uma arma biológica quase perfeit a, bem superior ao ant raz, por ser mais let al, de
t ransmissão pessoa-a-pessoa bem mais eficaz e sem t rat amento específico15-19. A t ensão mundial
const ant e t em levado as grandes pot ências ocident ais a se prepararem para um possível at aque
biológico, com a produção de estoques est rat égicos de vacina cont ra varíola, vacinação de t ropas e
equipes médicas de urgência e planos de cont enção15-19. Esse é um bom exemplo do efeito do
biot errorismo, que não significa apenas o at ent ado em si, mas t ambém a t ensão e o gasto de recursos
na prevenção de um at aque que pode não ocorrer. Após mais de 20 anos de sua erradicação, a varíola se
mant ém como uma ameaça pot encial à humanidade 15.

AGRADECIMENTO

Agradeço à Profa. Vanize Macedo, ao Prof. Cleudson de Cast ro e ao Prof. João Barberino Santos por me
lembrarem a import ância da história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Fenner F, Henderson D, Arit a I, Jezek Z, Ladnyi ID. T he history of smallpox and it s spread around t he
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Resumo da Monografia apresent ada no Curso História da Medicina Tropical do Núcleo de Medicina
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