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Neves Filho et al. (2015) usaram o termo recombinação de repertórios para abordar
a emissão emergente da nova cadeia de respostas emitida para a resolução. Por isso,
iremos manter o uso do termo para descrever o experimento.
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seus efeitos, é esperado que a cafeína possa afetar a formação das relações
de controle necessárias para a resolução de problemas.
Estudos sobre o efeito da cafeína sobre a aquisição de pré-requisitos
de uma situação de resolução de problemas são escassos (Schubert et al.,
2017). Entretanto, em um estudo com o labirinto aquático de Morris, um
procedimento de fuga (Angelucci et al., 1999, 2002) e aprendizagem espa-
cial, os dados obtidos indicaram que a administração de cafeína 30 mg/kg
não teve efeito significativo na aquisição de comportamentos relevantes
para a tarefa, mas teve o efeito de manter ou aprimorar o desempenho
nesta tarefa em repetidas exposições, o que seria um efeito de aprimo-
ramento de retenção de memória. Em situação de teste, a cafeína parece
aprimorar a resolução de tarefas que não necessitam de um treino anterior
explícito (Zabelina & Silva, 2020). Até o momento, nenhum estudo sobre
o efeito da cafeína sobre a resolução de problemas via treino explícito de
respostas pré-requisito em animais não-humanos foi conduzido, apenas
com álcool (Nascimento, 2021), chá de ayahuasca (Araújo, Tatmatsu, Prata
Oliveira, Monteiro & Nascimento Jr., 2019) e drogas corticoides (metira-
pona e corticosterona - Knaus, 2021).
Assim, o objetivo do presente experimento foi duplo: (a) investigar se
uma variação do problema de cavar e escalar é sensível a manipulações
farmacológicas, e (b) verificar se a administração aguda de cafeína altera
a ocorrência da solução do problema. Para observar os possíveis efeitos
farmacológicos da cafeína sobre a resolução de problema em ratos, op-
tamos pelo uso do procedimento adaptado de cavar e escalar de Teixeira
et al. (2019), já que a inserção do treino discriminativo como feita neste
estudo aumentou a chance de os animais resolverem a tarefa.
Caso seja observado algum efeito, podemos identificar como eventu-
almente a cafeína, uma substância amplamente consumida por humanos
(Campion, van Dam, Hu & Wilett, 2020), pode modular a origem de com-
portamentos novos nesta situação, em ratos.
Método
Sujeitos
Participaram do experimento oito ratos albinos (Rattus norvegicus)
machos da linhagem Wistar, sem experiência em tarefas de cavar e esca-
lar, mas com experiência na resposta de pressionar a barra (treinada em
aparatos distintos dos utilizados neste experimento). Os animais ficavam
alojados em um biotério, vivendo em caixas-viveiro de polipropileno au-
toclavável (41 x 34 x 17 cm) com tampa (grade) em aço galvanizado, com
separadores em aço inox, com piso forrado por maravalha até aproxi-
madamente 5 cm. Cada caixa-viveiro abrigava até quatro animais (todos
participantes de um mesmo experimento), recebendo água e alimento à
vontade. Não foi utilizado nenhum procedimento de privação alimentar
durante o experimento. Durante as sessões de treino e teste, foram uti-
lizados cereais açucarados da marca Froot Loops® como consequência
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Equipamentos
A caixa usada no treino discriminativo era de polipropileno (41 x 34
x 17 cm), sem tampa, de piso liso, com dois suportes para o Froot Loops,
um na esquerda e outro na direita, localizados na borda da caixa, a 17
cm de altura (Figura 1).
Figura 2. Caixa de teste de cavar e escalar, composta pela junção das caixas
de treino de cavar (porção inferior) e caixa de treino de escalar (porção su-
perior), com a adição de uma divisória de acrílico translúcido que dividia
a caixa em duas porções. A letra “A” indica a placa transparente de acrílico
que divide a câmara em duas porções; “B” indica a passagem submersa
na maravalha (para atravessar de um lado para o outro, o animal deve
cavar na maravalha, encontrar a passagem, e cruzar para o outro lado);
“C” indica a plataforma após o primeiro lance de escadas; e “D” indica a
segunda plataforma, onde ficava disponível o alimento. Todos os animais
iniciavam a sessão de teste na porção esquerda da câmara (onde não há
escadas), sobre a maravalha.
Para o campo aberto foi utilizada uma caixa, sem tampa, feita em MDF,
com medidas de 72 cm x 72 cm x 36 cm, dividida em 16 quadrantes dos
quais quatro são centrais e 12 periféricos, próximos as paredes da caixa.
Cada quadrante possuía 18 cm x 18 cm.
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Manipulação Farmacológica
Duas substâncias foram administradas, cafeína e veículo (água 1,5 ml),
ambas por via intraperitoneal (i.p.). Para todos os animais que receberam
cafeína (GA), a administração de cafeína anidra (em pó) 99% foi feita 30
min antes da sessão, na concentração de 30 mg/kg, diluída em água (1,5
ml). Os animais do GC receberam somente veículo nas mesmas condições
que o GA recebeu as doses de cafeína.
Procedimento Geral
Todos os animais passaram por sete fases, na seguinte sequência: (1)
treino discriminativo, (2) campo aberto, (3) pré-teste, (4) treino das respos-
tas pré-requisito, cavar e escalar, (5) treino de recuperação, (6) teste e (7)
reexposição ao campo aberto.
Todos os animais receberam duas sessões de treino por dia, uma às
8 h e outra às 14 h (em ordem aleatória, e.g., um dia sendo cavar as 8 h
e escalar as 14 h, no outro, escalar as 8 h e cavar as 14 h e por assim em
diante). O teste e a reexposição ao campo aberto (Fases 6 e 7) ocorreram
em um mesmo dia, o teste (Fase 6) às 8 h e a reexposição ao campo aberto
(Fase 7) as 14 h.
Todos os animais receberam a primeira injeção na Fase 3 (Pré-teste),
na qual todos os animais de todos os grupos receberam veículo. Nas Fases
1 e 2 não houve manipulação farmacológica. Os animais do GA receberam
veículo nas Fases 4 e 5 (treino) e cafeína nas Fases 6 e 7 (teste), enquanto
os animais do GC receberam veículo nas Fases 4, 5, 6 e 7 (treino e teste).
No total, houve 19 dias de exposição a cafeína ou veículo.
Procedimento Detalhado
Fase 1. Treino discriminativo. Esta etapa foi realizada com todos os
animais, na caixa de treino discriminativo (Figura 1). Não houve manipu-
lação farmacológica nesta fase. O objetivo deste treino foi tornar o som um
sinalizador para a disponibilidade de alimento (Froot Loops). Este proce-
dimento não fez parte dos estudos iniciais que utilizaram o procedimento
de cavar e escalar (Neves Filho et al. 2015, 2016), surgindo somente no
trabalho de Teixeira et al. (2019), que indicou que a adição desta etapa de
treino facilitaria a resolução do problema de cavar e escalar no teste.
O procedimento de treino discriminativo consistiu na emissão de um
som (bater uma caneta três vezes na lateral da caixa, uma batida por
segundo) ao mesmo tempo em que o Froot Loops era disponibilizado na
plataforma por 10 s, pareando som e disponibilidade de alimento na pla-
taforma. Passado esse tempo, o Froot Loops era retirado, esperava-se 3 s
e o som era emitido novamente, começando outra tentativa. Este mesmo
estímulo sonoro foi posteriormente apresentado no início do pré-teste
(Fase 3) e teste (Fase 6). Para esse treino não foi necessário que os animais
escalassem, eles apenas se esticavam para pegar o Froot Loops, dado que
a altura da caixa de treino discriminativo era menor que o tamanho do
corpo do rato quando de pé, apoiado em suas patas traseiras.
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Análise de Dados
Para analisar os resultados do teste de campo aberto, foi realizado o teste
de Shapiro Wilks para averiguar a normalidade da amostra. A depender do
resultado, foi aplicado ANOVA para amostras independentes, com p < 0,05
como parâmetro de significância, ou teste Mann-Whitney, comparando a
média de grupos. A comparação intragrupos para a primeira e a segunda
exposição foi feita com o teste t para amostras emparelhadas.
Resultados
Tabela 1
Resultados do Pré-teste e Teste de todos os sujeitos.
Grupo GC GA
Sujeito A1 A2 A3 A4 B1 B2 B3 B4
Solução do
Pré-teste - - - - - - - -
problema
4 min 8 min 8 min
Teste - - - - -
3s 3s 22 s
Intervalo entre a
primeira e segun-
Pré-teste - - - - - - - -
da resposta de
solução
1 min
Teste 24 s 26 s - - - - -
11s
30 GC
25 GA
Sessões 20
15
10
5
0
A1 A2 A3 A4 B1 B2 B3 B4 GC GA
Animal
Figura 3. Número de sessões do treino discriminativo por animal.
20 Primeira expo-
sição
cruzamento/s
Velocidade
15
10
0
A1 A2 A3 A4 B1 B2 B3 B4
GC GA
Animal/Grupo
Figura 4. Velocidade durante a primeira exposição e reexposição ao campo
aberto.
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9
Sessões
0
A1 A2 A3 A4 B1 B2 B3 B4
Animal
Figura 5. Total de sessões de treino de escalar (Fase 4) para cada um dos
sujeitos.
15
12 GC
9
Sessões
0
A1 A3 A4 B1 B2 B3 B4
Animal
Figura 6. Total de sessões de treino de cavar (Fase 4) para cada um dos
sujeitos.
Discussão
fase de teste, por outro lado, a resposta de cavar deveria ficar sobre controle
da escada (ou outro estímulo presente na segunda câmara), estímulo que
controla o segundo elo da cadeia de resolução, a resposta de escalar. Assim,
os animais cavariam para a outra câmara e não para o fundo da caixa.
Dessa forma, a nova cadeia de resolução seria emitida pela generali-
zação funcional entre os estímulos cheiro do Froot Loops e escada. Essa
relação foi discutida por Knaus (2021), que demonstrou que aquisição de
controle da escada sobre o comportamento locomotor e de cavar de ratas foi
condição necessária para a ocorrência da resolução do problema. A autora
colocou que o tratamento administrado aos animais antes da situação de
teste (corticosterona a 10 mg/kg e metirapona a 50 mg/kg) possivelmente
perturbou a generalização funcional entre estímulos por meio de efeitos
no eixo HPA e níveis circulantes de corticosterona inferidos (Knaus, 2021),
ocorrendo prejuízo tanto em níveis muito baixos quanto muito altos. Uma
vez que a administração de cafeína em ratos tem o efeito conhecido de
aumentar os níveis séricos de corticosterona (Pollard, 1988), é possível que
o mesmo fenômeno tenha sido observado no presente estudo.
A generalização de estímulos parece não ter acontecido nos animais do
GA, já que nenhum deles resolveu o problema. Esse grupo emitiu diversas
respostas de cheirar o Froot Loops (que estava inacessível, em um andar
acima), seguido pela resposta de cavar em direção ao fundo da caixa. Esse
padrão também foi observado no animal A4 do GC. Ou seja, o cheiro do
Froot Loops ainda controlava a resposta de cavar e não houve a generali-
zação necessária para resolver o problema, indicada também pela ausência
de mudança na topografia do cavar. Epstein et al. (1985b) argumentaram
que o processo de generalização funcional é necessário para resoluções
súbitas, o que os autores chamam de insight.
Desta forma, a cafeína a 30 mg/kg apesar de não possuir efeito em
uma aprendizagem direta e gradual de novos comportamentos (Angelucci
et al., 2002), parece afetar negativamente a probabilidade de aparição de
aprendizagens emergentes.
Outro motivo pelo qual a administração aguda da cafeína pode ter
dificultado a resolução do problema pode ter relação com o fato de que o
problema a ser resolvido no experimento envolver comportamento mo-
tivado por alimento. Alguns estudos indicam que a cafeína pode exercer
função inibidora de apetite, entretanto ainda não existem dados conclu-
sivos sobre isso (Schubert et al., 2017). De qualquer forma, se este for o
caso, estudos posteriores com este mesmo procedimento, e com a mesma
administração de cafeína, porém com reforçadores não alimentares, podem
produzir resultados distintos, bem como também fornecer mais dados
sobre o eventual papel de inibidor de apetite da cafeína. Outro aspecto
a ser melhor investigado é o momento de inserção da cafeína, depois da
fase de teste e durante os treinos de respostas, para assim ampliar nossos
conhecimentos sobre os efeitos da cafeína, em diferentes momentos da
história, sobre a aprendizagem emergente.
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