Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: A disputa pela fabricação da biografia de Cora Coralina envolve uma rede de
memórias que se apóiam, se cruzam ou se excluem: a autobiografia tecida pela poeta; a
memória biográfica produzida pelo Museu Casa de Cora Coralina; a biografia escrita pela
filha, Vicência Brêtas Tahan; a memória subterrânea engendrada na cidade de Goiás. Nesse
campo de conflitos, pretendo investigar o trabalho de construção e gestão da memória
promovido pelo discurso museológico biográfico. No museu Casa de Cora Coralina, a
disposição, o contexto e a configuração espaço-temporal dos móveis, objetos, fotografias
e poesias constroem a biografia da poeta em simbiose com a memória da cidade e
representam o projeto de promover sua imortalização como Mulher-Monumento de
Goiás.
Palavras-chave: museu; memória; gênero.
Em 2001, a cidade de Goiás recebeu o título Vicência Brêtas Tahan; a memória subterrânea
de Patrimônio da Humanidade, ao passar a engendrada na cidade de Goiás (Delgado, 2003).
integrar a seleta Lista do Patrimônio Mundial, Esse artigo pretende delinear essa intriga
elaborada pela Organização das Nações Unidas com base na investigação do trabalho de cons-
para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). trução e gestão da memória promovido pelo
Este é o mais recente episódio de uma trama discurso museológico biográfico da Casa de
que instituiu Goiás como cidade histórica e Cora Coralina, local mais visitado pelos turistas
turística. Nesse campo da memória, Cora Cora- na cidade de Goiás. Nosso foco de análise
lina é personagem principal: o processo de compreende desde a sua inauguração, em 1989,
monumentalização da poeta como símbolo até o final de 2001, quando uma grande enchente
emblemático da cidade de Goiás constituiu peça fez com que o Rio Vermelho transbordasse e
estratégica na construção desse “lugar da inundasse a Casa Velha da Ponte, causando
memória” (Nora, 1993). grandes estragos ao acervo. Depois de seis
A disputa pela fabricação da biografia da meses de reformas, nos quais o museu continuou
Mulher-Monumento envolve uma rede de parcialmente aberto à visitação, ocorreu a sua
memórias que ora se apóiam ou se cruzam, ora reinauguração, com alterações na composição
se excluem: a autobiografia tecida pela poeta; a da exposição decorrentes do agenciamento de
memória biográfica produzida pelo museu Casa outras concepções de museologia.
de Cora Coralina; a biografia escrita pela filha, Logo após o falecimento da poeta, ocorrido
em abril de 1985, um pequeno grupo de
moradores de Goiás começou a organizar a
* Doutora em História pela Universidade Estadual de Cam- Associação Casa de Cora Coralina, com o
pinas e professora do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada
à Educação (Cepae), da Universidade Federal de Goiás. E- objetivo imediato de lutar pela preservação da
mail: andreadelgado@uol.com.br. Casa Velha da Ponte, herdada pelos filhos da
103
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
104
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
justifica o destaque da “Casa de Cora Coralina” histórias e fantasias. Ela sabe que eles estão
no seu inventário, “pela importância sociocultural no seu porão e diz que, por mais de uma vez,
que representa no contexto da cidade, como fez contatos com eles: “não me preocupo se as
pessoas acreditam ou não nesse fato. Eu os
residência de sua poeta maior” (Coelho, 1999,
vejo e falo com eles. Por certo outras pessoas,
p. 67-68). também, poderão vê-los, e o fato fica no julga-
Mais do que pelo valor histórico, é como mento de cada um” (Diário da Manhã, Goiâ-
residência da Mulher-Monumento que a Casa nia, 7 a 13 de abril de 1975, grifos no original)
Velha da Ponte é singularizada no conjunto do
patrimônio instituído pelo Iphan. No entanto, o Essas e outras histórias são narradas em
amálgama entre a poeta e a casa é muito mais detalhes pela escritora nos livros Estórias da
complexo, pois constitui um dos mecanismos Casa Velha da Ponte (1986) e O tesouro da
fundamentais do processo de monumenta- Casa Velha (1996). Ao longo da obra de Cora
lização: Cora Coralina converteu a Casa Velha Coralina, a escrita da memória tece a rede de
da Ponte em templo da memória autobiográfica, significados que investe os espaços da Casa
familiar e coletiva. Velha da Ponte de espessura temporal, conver-
Quando voltou para Goiás, em 1956, depois tendo-a em um lugar singular, lendário e mítico.
de 45 anos de ausência, ela abriu as portas da
Casa Velha da Ponte para vender seus doces e CASA VELHA DA PONTE [...]
conversar com os visitantes, transformando sua Olho e vejo tua ancianidade vigorosa e sã.
casa em um dos pontos turísticos mais procu- Revejo teu corpo patinado pelo tempo, marcado
rados da cidade. Aos visitantes, ela contava das escaras da velhice, desde quando ficaste
assim? [...]
“estórias” de tesouros, fantasmas e poderes mila-
MINHA CASA VELHA DA PONTE [...] assim
grosos da biquinha d’água localizada no porão. a vejo e conto, sem datas e sem assentos. Assim
a conheci e canto com minhas pobres letras.
No porão da casa de Cora Coralina tem um Desde sempre. [...]
tesouro enterrado. Onde, ninguém sabe. “Quem CASA VELHA DA PONTE
quiser procurá-lo, pode” diz ela. “Se achar Velho documentário de passados tempos,
alguma coisa, dividiremos meio a meio”. Esse vertente viva de estórias e de lendas.
tesouro vem sendo procurado há uns dois Minha bisavó falava de seus antigos ances-
séculos. Cora conta a sua história para as trais. [...]
visitas mais curiosas, a mesma história (ou Estórias, fantasias de “enterro do ouro”, muito
estória, como ela gosta de grafar). [...] No porão, ouro que se pesava às arrobas, [...] e assim se
entretanto, tem a famosa biquinha, de uma água criou a mística do “enterro do ouro” na Casa
que vem detrás da Igreja do Rosário, um lugar Velha da Ponte.
chamado Morrinho, pelo povo. A biquinha foi Nesta casa me criei e me fiz jovem. Meus anseios
construída no séc. XVIII e acredita-se que quem extravasaram a velha casa. Arrombaram portas
bebe de sua água, na própria mão, se livra dos e janelas, e eu me fiz ao largo da vida. Pobre,
azares por muito tempo. (Cinco de Março, vestida de cabelos brancos, voltei à CASA
Goiânia, 4 a 10 de fevereiro de 1974) VELHA DA PONTE, barco centenário enca-
lhado no Rio Vermelho. [...]
Quatro fantasmas guardam um tesouro que CASA VELHA DA PONTE, és para o meu
estaria escondido nalgum canto dos porões da cântico ancestral uma benção madrinha do
casa onde reside a escritora Cora Coralina, na passado. (Coralina, 1986, p. 7-11)
Cidade de Goiás. Os fantasmas, segundo afir-
mação da escritora, só deixarão o porão no dia Seja por meio da produção literária, seja
em que o tesouro for achado, comunicação que
através de reportagens veiculadas em jornais,
lhe foi feita pelos entes desencarnados: “São
fantasmas familiares que não me amedrontam,
revistas e emissoras de televisão, a Casa Velha
apesar de que, às vezes, provocam algum da Ponte foi associada a Cora Coralina e vice-
incômodo fazendo barulho e dando pancadas versa. Na rede discursiva que monumentaliza a
nas tábuas do assoalho”, comenta Cora Corali- poeta, essa simbiose testemunha a ligação da
na. A escritora vilaboense garante que os qua- ilustre moradora com o passado imemorial
tro fantasmas nada têm a ver com as suas configurado na cidade colonial.
105
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
106
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
107
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
No final do “Corredor de Entrada”, uma do Couto Brandão. Ele é de 1881. Couro puro e
porta mantida sempre aberta dá acesso à contém as iniciais em cima. Ali atrás, a Cora,
“Varanda”, local de recepção dos visitantes e com 20 anos. Dois anos depois, em 1911, a Cora
também uma das salas de exposição do museu. casou. Ela casou e teve quatro filhos, 15 netos
A recepcionista informa o preço do ingresso e e 29 bisnetos. Ela morou 45 anos no interior de
orienta o visitante para esperar o guia que vai São Paulo: Avaré, Jaboticabal e Andradina.
acompanhá-lo na visita. Viúva e os filhos criados, em 56, Cora voltou a
essa casa. Cora faleceu em 10 de abril de 85,
Penetrar nesse universo museológico exige
com 95 anos, em Goiânia. Agora, nós vamos
a construção de um texto que permita ao leitor
pra “Sala de Escrita”, pra conhecer as obras de
o contato com a configuração espaço-temporal Cora.
do discurso visual da exposição. Para nos apro-
ximar da memória biográfica instituída pela
narrativa museológica, produzi seqüências
iconográficas de cada um dos aposentos e as
organizei, acompanhando o roteiro imposto ao
público.
No Museu Casa de Cora Coralina, o deslo-
camento do visitante é controlado, acompanhado
por um guia, e obedece a um único roteiro: o
“Quarto da Cora”, a “Sala de Escrita”, a “Sala
de Condecorações”, a “Biblioteca”, o “Porão”,
a “Sala de Vendas”, a “Varanda”, a “Cozinha”
e a “Sala de Memória da Obra”. Em cada ponto
do trajeto, o guia relata informações específicas, Sala de Escrita: Cora começou a escrever com
cujo núcleo se manteve praticamente inalterado 14 anos de idade, mas só veio a publicar o
desde a inauguração. primeiro livro dela, que é Poemas dos becos de
Com o intuito de percorrer a Casa de Cora Goiás, com 75 anos. Dez anos depois, foram
publicados Meu livro de cordel, Vintém de
Coralina, vamos “ouvir” a guia Maria José,
cobre, que é autobiográfico e, após a morte de
funcionária da Casa de Cora Coralina há quinze
Cora, foram publicados História da Casa Velha
anos, em uma gravação realizada em 20 de da Ponte, Meninos verdes, que é literatura
agosto de 1999: infantil, Tesouro da Casa Velha e A moeda de
ouro que o pato engoliu, que é também litera-
tura infantil. Nessa mesa, ela escrevia os poemas
... todos os objetos que a Cora usou. A Cora
estudou só até a terceira série primária. O único
curso que ela fez foi datilografia, aos 75 anos.
Aos 93 anos ela não conseguia mais datilogra-
far. O “Selo do Centenário”... Dia 20 de agosto
é o dia do aniversário de Cora. Nesse dia, ela
criou o “Dia do Vizinho” e o “Dia do Cozi-
nheiro”. O “Dia do Vizinho” porque Cora dizia
que o vizinho é o parente mais próximo nosso.
E o “Dia do Cozinheiro” porque é a pessoa que
prepara nossa mesa. Aqui na cidade de Goiás é
Quarto: Em 20 de agosto de 1889, Ana Lins comemorado o dia 20 de agosto. Aqui atrás,
dos Guimarães Peixoto Bretas, Cora Coralina, temos o Troféu Juca Pato que a Cora recebeu
nascia neste quarto. A Cora passou toda a da União Brasileira de Escritores. Ela é ainda a
infância nesta casa. Essas são algumas das única mulher no Brasil a ter recebido esse troféu.
roupas que pertenceu [sic] a Cora. Essa muleta O capacete que ela ganhou de um engenheiro
Cora usou a partir de 74, quando ela sofreu do metrô de São Paulo, que esteve na casa
uma queda e quebrou o fêmur direito. Cora fazendo uma visita e deixou como doação.
usou muleta até o último dia de vida. O baú em Agora, nós vamos conhecer a “Sala de
couro pertenceu à mãe de Cora, Jacintha Luísa Condecorações”.
108
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
109
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
tachos usados por Cora ... a geladeira ... todos Para os objetos-testemunho do cotidiano de
os objetos da cozinha. Cora Coralina, os suportes constituem também
parte da coleção biográfica: utilizam-se peças
Sala de Memória da Obra: E essa é uma “Sala de mobiliário e utensílios que compunham os
de Memória da Obra”. Faz parte da restauração
ambientes domésticos da Casa. Ou seja, os
da casa. Quando a Cora faleceu, a casa tava do
jeito que estão [sic] nos quadros. A restauração objetos são contextualizados pela composição
durou três anos, pra depois ser aberta como museológica do “Quarto”, da “Varanda”, da
museu. “Cozinha”, da “Sala de Escrita”.
Para além da existência banal de artefatos
Na composição da exposição museológica, geralmente produzidos em série, cada um desses
um conjunto de móveis, objetos, fotografias, objetos, deslocado do universo privado para o
pinturas e painéis com trechos da produção espaço público, passa a ser considerado único e
literária da poeta entrelaça-se ao discurso do singular, “auráticos” na expressão benjaminiana
guia, construindo uma narrativa biográfica que (Benjamin, 1994), exatamente por terem perten-
estabelece os contornos da Mulher-Monumento. cido a Cora Coralina e interligarem-se entre si,
Em cada um dos aposentos, determinados mar- formando uma trama narrativa que compõe tanto
cos biográficos são estabelecidos, de modo a o cotidiano quanto a imagem pública da poeta.
promover um enquadramento da memória Os objetos que são as insígnias da consa-
(Pollak, 1989) e a produzir uma biografia oficial. gração da Mulher-Monumento – troféus, diplo-
Ao mesmo tempo, as imagens e os discursos mas, medalhas, condecorações, becas – estão
evocam a cidade de Goiás e, mais especifi- majoritariamente expostos em mobiliário museo-
camente, a Casa Velha da Ponte. Ou seja, lógico: armários e vitrines, que formam a “Sala
mecanismos de transferência de sentidos atuam de Condecorações” e a “Biblioteca”.
para promover a simbiose da poeta com a cidade Essas estratégias diferentes de contextua-
e instituir a memória individual como represen- lização dos objetos, tal como destaca Ulpiano
tação da memória coletiva. Meneses (1994; 1998), são fundamentais para
Na narrativa delineada ao longo do per- a construção do olhar do visitante: a composição
curso, “os objetos são suportes de significações dos ambientes domésticos desloca a apreensão
que a própria exposição museológica propõe” dos significados dos objetos para a esfera
(Meneses, 1994, p. 86). No Museu Casa de Cora privada, enquanto a “vitrinização” remete à
Coralina, os conteúdos social e historicamente interpretação, em última instância, para os
construídos para o gênero feminino em nossa sentidos engendrados no espaço público ao longo
cultura são agenciados continuamente por meio do processo de monumentalização da poeta.
da exibição de um conjunto de artefatos femi- Na casa da memória da Mulher-Monu-
ninos que funcionam como vetores de cons- mento, diferentemente do que ocorre em museus
trução do gênero e de instituição da Mulher- construídos em torno de personagens mascu-
Monumento. linos, os espaços privados da cozinha e do quarto
Na coleção exposta, encontramos objetos são valorizados e o ambiente feminino é
pessoais – roupas, chinelos, valises de viagem, reconstruído com a utilização dos objetos do
muletas, óculos, leques, canetas – e objetos de cotidiano.
trabalho, como a máquina de costura, a máquina Na “Cozinha”, os instrumentos que moldam
de escrever, a balança e os tachos de cobre. a prática culinária de fazer doces são transfor-
Além de uma infinidade de objetos domésticos: mados em objetos biográficos e modulam o ofício
louças, panelas, utensílios de cozinha, toalhas e de doceira como marco da história de vida
guardanapos. O gênero está incrustado nesses (Delgado, 2002): o fogão a lenha, os tachos de
objetos biográficos (Bosi, 1987) que nos contam cobre, a presença das frutas da região, a balança
histórias femininas, pois são artefatos de que as e os próprios doces à venda reinventam a prática
mulheres se servem, mantêm e conservam dia- de fazer doces. Com essas peças singularizadas
riamente. pelas marcas deixadas pelo fazer cotidiano,
110
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
reconstruímos os gestos e as vivências daquela lho como marco biográfico com base nas marcas
que os manipulou, investindo-as de intenso valor inscritas no próprio corpo. Entrelaçadas com a
simbólico. Sacralizados pelo ambiente museoló- linguagem espaço-temporal do discurso museo-
gico, os doces tornam-se alimentos-signo da lógico que nos desloca para as antigas cozinhas
tradicional arte da doçaria, constituindo apelo goianas, as poesias falam do trabalho das
irresistível para o turista. mulheres, aproximando-nos do conjunto de
Nesse espaço socialmente considerado gestos, códigos, saberes femininos envolvidos
como domínio feminino, o tempo acumula-se no na execução dos afazeres domésticos que se
mobiliário e nos utensílios, tecendo vínculos entre desdobravam em ofícios femininos para a
um passado muito antigo e o presente fugidio obtenção dos “abençoados vinténs, tão valedo-
do trabalho cotidiano das mulheres. Nos painéis res, tão indispensáveis”.
ali expostos, o discurso literário da poeta é O “Quarto”, espaço doméstico que costuma
agenciado na construção dos sentidos para a ser ocultado aos olhares estranhos, é composto
exposição: museograficamente de forma a recompor a
intimidade feminina. Significativamente, é o
Minhas mãos doceiras primeiro aposento do roteiro estabelecido para
Jamais ociosas, o visitante, constituindo o lugar escolhido para o
Fecundas. Imensas e ocupadas. discurso museológico estabelecer os fatos
Mãos laboriosas. fundamentais da trajetória de vida de Cora
Abertas sempre para dar, Coralina.
ajudar, unir e abençoar. O perfil biográfico traçado pelo guia é
[...] (In: Meu livro de cordel) pontuado pelas grandes datas de uma vida – o
nascimento, em 1889; o casamento, em 1911; a
A pobreza em toda a volta, a luta obscura de
transferência para São Paulo; o retorno para
todas mulheres goianas. No pilão, no tacho,
Goiás, em 1956, e o falecimento, em 1985. A
fundindo velas de sebo, no ferro de brasas de
engomar. Aceso sempre o forno de barro. intersecção do tempo cronológico com o tempo
As quitandas de salvação, carreadas pelos social instaura os conteúdos culturais da iden-
tabuleiros, os abençoados vinténs, tão tidade feminina, apoiando-se em ciclos: infância,
valedores, indispensáveis. juventude, casamento, maternidade, viuvez,
Eram as costuras trabalhadas, os desfiados, os velhice. Atravessando as referências temporais,
crivos pacientes. A reforma do velho, o o espaço emerge como núcleo: a Casa Velha
aproveitamentos dos retalhos. da Ponte é o centro simbólico, espaço existencial
Os bordados caprichados, os remendos e sagrado (Bachelard, 1993), que funda o mundo
instituídos, os cerzidos pacientes ... de Cora Coralina – é o centro do seu destino,
Tudo economizado, aproveitado. Tudo ajudava onde ela nasceu, passou a infância e a juventude.
a pobreza daquela classe média, coagida,
Desse lugar ela partiu para viver o casamento e
forçada a manter as aparências de decência,
a maternidade, retornando na velhice para tecer
compostura, preconceito, sustentáculos da
pobreza disfarçada. Classe média de após treze
a imortalidade.
(13) de maio. Geração ponte, eu fui, posso De forma mais intensa que nos outros
contar. ambientes, no “Quarto”, as marcas que o uso
Cora Coralina imprimiu aos objetos biográficos recordam mais
do que a passagem do tempo, pois constituem
Nessas duas poesias, assim como em toda vestígios materiais que ganham significado ao
sua obra, Cora Coralina engendra, em um duplo incorporar a interação com o corpo que os
movimento de escrita da memória, o passado manipulou em práticas cotidianas rotineiras: os
coletivo e o individual: “Moinho do tempo” chinelos furados, o leque gasto, o castiçal
(Coralina, 1984), poesia memorialista, revela a quebrado, as muletas rotas que apoiaram o corpo
pobreza do passado configurada na labuta cansado, a fronha furada que tantas vezes
cotidiana das mulheres goianas; “Estas Mãos” guardou o sono da poeta evocam a presença de
(Coralina, 1994), autobiográfica, recria o traba- Cora Coralina, seu toque e seus gestos.
111
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
Nesse lugar privilegiado da vida íntima, as poeta construída pela mídia, na década de 1970
peças do vestuário da poeta formam um conjunto e, principalmente, no início da década de 1980.
de objetos que são vetores da subjetividade No processo de monumentalização, essas
feminina (Perrot, 1989) e tornam-se estratégicos imagens-símbolo são evocadas recorrentemente,
para a construção da narrativa de cunho pois a produção, a circulação e a recepção dos
autobiográfico. Diferentes composições são discursos de Cora Coralina são indissociáveis
realizadas com os vestidos simples, a maioria da figura humana: a velhinha de cabelos brancos,
de uso doméstico, combinados ao chapéu, ao magra, face enrugada, de aparência frágil,
guarda-chuva e aos diferentes lenços, echarpes, locomovendo-se com dificuldade, encantava
chales e bolsas. Inseridos na exposição museo- quando transformava a voz trêmula em um
lógica, esses elementos representam a dimensão torrencial de palavras fortes. A ancianidade
privada da vida feminina e mobilizam o desejo constitui, portanto, peça fundamental na teia
do espectador de apreender a intimidade que discursiva que institui a poeta como Monumento,
essas roupas denotaram outrora. socialmente investida do poder de recordar,
Outra prática feminina no trabalho com o testemunhar e eternizar o passado.
passado é a materialização da memória familiar A inscrição de Cora Coralina como arqui-
em artefatos cuidadosamente preservados, vista e arauto da memória constitui matéria
alguns guardados e outros exibidos ao olhar primordial da narrativa museológica, na qual
público (Barros, 1989). Essa estratégia de me- objetos, imagens e poesias vão urdindo uma
mória do espaço doméstico é apropriada pelo trama com os fios entremeados do passado
museu, e a “Varanda” é o lugar privilegiado da individual, familiar e coletivo, construindo o
memória familiar, recriada por Cora nos seus poder de evocação da Mulher-Monumento.
livros. Dentro da cristaleira, por exemplo, encon- Nesse processo, a memória de Cora Cora-
tram-se cacos das peças que compunham um lina é amalgamada com a Casa Velha da Ponte,
aparelho de jantar que foi âncora da memória em uma prática estratégica para celebrar, come-
nas poesias “Estória do aparelho azul-pombinho” morar e perpetuar a poeta como monumento da
e “O prato azul-pombinho”, do livro Poemas dos cidade de Goiás. O discurso material, o icono-
becos de Goiás e Estórias mais (Coralina, gráfico e o literário engendram o espaço da Casa
1993), nas quais a poeta traça um painel dos Velha da Ponte como síntese de todos os tempos
costumes e dos rituais das famílias goianas da cidade, tal como está sintetizado na “Sala de
tradicionais. Os objetos expostos nesse aposento Memória da Obra”, e a Mulher-Monumento
configuram signos da genealogia, que eviden- como artesã e guardiã dessa memória ancestral.
ciam e destacam a importância da linhagem e o A exposição da Casa de Cora Coralina
papel das relações de parentesco na construção expressa o princípio orientador da biografia
biográfica da Mulher-Monumento. institucionalizada: a narrativa museológica é a
Ao longo da análise dos espaços domésticos solidificação da autobiografia produzida por Cora
reconstituídos, percebe-se que o gênero atribui Coralina, na qual presente e passado são cons-
significados à exposição museológica, configu- truídos, entrelaçando os tempos da vida à cidade
rando uma narrativa material engendrada por de Goiás. Podemos, portanto, afirmar que tal
móveis e objetos biográficos pessoais e fami- concepção museológica pretende construir a
liares que falam do cotidiano, dos afetos e das memória individual como símbolo da memória
práticas da Mulher-Monumento. da cidade, consagrando e imortalizando a Cora-
Outro importante componente da coleção Monumento.
biográfica é o conjunto de imagens da poeta
espalhadas pela Casa, distribuídas em múltiplos A narrativa biográfica do museu no
suportes: fotografias, quadros, objetos. Com confronto da batalha das memórias
exceção de duas fotografias da década de 1920,
que estão no “Quarto”, a iconografia retrata a No processo de consagração da imortal,
poeta na velhice. O acervo museológico repro- duas construções póstumas lutam pela produção,
duz, com isso, a personagem da anciã doceira e pelo controle e pela divulgação da biografia
112
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
113
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
lação de um só momento, de uma única cena, cidade entre ele e o biógrafo numa atividade
de um único ato converte-se no resumo biográ- excitante e proibida: atravessar o corredor na
fico com base no qual instituem o estigma que ponta dos pés, parar diante da porta do quarto
marca Cora Coralina e pela qual sua imagem é e espiar pelo buraco da fechadura. (Malcon,
1995, p. 17)
construída por parte da memória subterrânea.
Os depoentes consideram desnecessário acres-
A história romântica narrada por Vicência,
centar outros elementos além da fuga de uma
que termina por exaltar a coragem e a deter-
jovem com um homem casado, pois aí se
minação de Ana/Cora em enfrentar os precon-
condensa o valor emblemático da transgressão
ceitos da época, adquire outros sentidos na
feminina.
memória subterrânea, configurando um estigma,
Em poesias e depoimentos, entretanto,
na acepção de Erving Goffmann (1975), uma
Cora Coralina imprimiu uma versão para sua
marca socialmente instituída, que configura uma
vida que corresponde ao destino que ela apren-
mácula no status moral e determina práticas de
deu a atribuir ao gênero feminino, contando sobre
exclusão do indivíduo.
o noivado, o casamento em 1910 e a mudança
Quando a poeta retorna para a cidade de
para São Paulo em 1911, citando as respectivas
Goiás, as quatro décadas de ausência não tinham
datas dos eventos tal qual ocorre no resumo
apagado a lembrança desse episódio e ela
biográfico apresentado no Museu Casa de Cora
reencontra-se com a história da fuga da jovem
Coralina durante a visita ao “Quarto”.
Aninha, transmitida de geração para geração.
Esse episódio da fuga para São Paulo,
Conforme resume um depoente, “essa história
silenciado e/ou ocultado pela poeta e pela
narrativa museológica, torna-se o ponto central ficou na cidade, essas coisas o povo não esquece
da composição da narrativa biográfica do livro não”.
Cora coragem, Cora poesia (Tahan, 1989), O conjunto de histórias, com as quais uma
que esmiúça o romance entre Cora Coralina e parcela dos moradores compõe a memória dos
Cantídio Bretas: a aproximação entre os dois; o anos em que a poeta morou na Casa Velha da
namoro com o consentimento da família; a Ponte, faz sentido à medida que se relaciona
decisão materna de proibir o relacionamento com o mesmo momento crucial e simbólico que
depois da descoberta que Cantídio havia funda uma identidade. A mecânica da estigma-
abandonado a esposa e os três filhos em São tização estabelece-se nas relações sociais e
Paulo, além de ter uma filha com outra mulher; associa valores e conceitos depreciativos aos
os encontros de Cora e Cantídio às escondidas atos e à personalidade de Cora Coralina.
e a gravidez; a decisão de passar a viver com A memória subterrânea é composta por um
Cantídio, rejeitada pela mãe de Cora; o plane- conjunto de lembranças dissidentes da imagem
jamento e os detalhes que marcaram a fuga oficial, transmitidas e preservadas nas redes
empreendida pelo casal na madrugada do dia familiares e de amizades. Tanto que elas foram
25 de novembro de 1911. expressas com mais facilidade em entrevistas
Ao tornar este o fato central do livro, a coletivas, nas quais as pessoas recorriam umas
autora propôs-se a contar um segredo guardado às outras para referendar o que estavam contan-
por sua mãe, algo desconhecido, um ponto do, encadeando histórias que fazem parte de um
obscuro da sua vida privada. Com essa estra- repertório comum, demonstrando que foram
tégia, Vicência procura estabelecer um pacto muitas vezes recordadas pelo grupo. Há muito
com os leitores baseado naquilo que Janet tempo, histórias a respeito de Cora Coralina
Malcom chama de “natureza transgressiva da mantêm girando, como diria Norbert Elias e Jonh
biografia”: Scotson (2000, p. 92), as rodas do moinho da
fofoca na cidade de Goiás.
a incrível tolerância do leitor (que não se A utilização do termo “fofoca” não desva-
estenderia a um romance mal escrito como a loriza nem questiona o discurso dos depoentes,
maior parte das biografias) só faz sentido se mas explicita uma rede de comunicação que tem
for entendida como uma espécie de cumpli- importante função na dinâmica social da cidade
114
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
115
DELGADO, ANDRÉA FERREIRA. Museu e memória biográfica: um estudo...
116
SOCIEDADE E CULTURA, V. 8, N. 2, JUL./DEZ. 2005, P. 103-117
MALCON, Janet. A mulher calada: Silvia Plath, e PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina.
os limites da biografia. São Paulo: Companhia das Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 18, p.
Letras, 1995. 9-18, 1989.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memó- POLLAK, Michel. Memória e identidade social.
ria ao laboratório da História: a exposição museoló- Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-
gica e o conhecimento histórico. Anais do Museu 212, 1992.
Paulista, Nova Série, São Paulo, v. 2, p. 9-42, 1994. _____. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
_____. Memória e cultura material: documentos
pessoais no espaço público. Estudos Históricos. Rio TAHAN, Vicência. Cora coragem, Cora poesia. São
de Janeiro, v. 11, p. 89-103, 1998. Paulo: Global, 1995.
TELLES, José. No santuário de Cora Coralina.
NORA, Pierre. Entre memórias e história. A proble- Goiânia: Editora do Autor, 1991.
mática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n.
VELLASCO, Marlene Gomes de. A poética da remi-
10, p. 8-28, 1993.
niscência. Estudos sobre Cora Coralina. Goiânia,
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade 1999. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências
nacional. São Paulo: Brasilense, 1985. Humanas e Letras da Universidade Federal de Goiás.
117