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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de História
História Ibérica I
Professor Francisco Carlos Palomanes Martinho

Aluno: Silvio R. B. Petrone


Período: noturno

ANÁLISE DO LIVRO “A VIDA É SONHO”

A vida é sonho é uma peça escrita por Calderón de la Barca que se


desenvolve em três jornadas e nos conta a história de Segismundo, um príncipe
que foi mantido em uma torre construída com o fim de isolá-lo de todo contato
humano, à exceção de um homem com o qual interagia para ser alimentado e
com o qual conversava. Diz Segismundo: “nunca vi nem falei senão a um
homem e só por ele tenho sei notícias do seu e da terra. Sou um homem para
as feras e uma fera para os homens”.1

A condição de Segismundo deu-se em função de um sonho de sua mãe,


sonho que no momento do parto serve para profetizar que dará a luz a um
homem que destruirá o reino, o que ganha importância pelo valor ainda dado à
superstição baseada na astrologia (em um momento de transição dos saberes
científicos desde uma concepção medieval a uma concepção moderna). O
evento é relatado pelo rei aos seus sobrinhos, futuros ocupantes do trono,
dizendo:

De Clorinda, minha esposa, tive um desgraçado filho, para cujo parto os


céus se esgotaram em prodígios. Antes que a formosa luz lhe desse um
sepulcro vivo de um ventre (porque o nascer e morrer são parecidos),
sua mãe, muitíssimas vezes entre ideias e delírios sonhou que ele
rompia suas entranhas, atrevido, qual monstro em forma de homem: e

1
CALDERON DE LA BARCA, Pedro. A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2010, p, 39
por seu sangue tingido dava morte a sua mãe, sendo assim humana
víbora. Chegou o dia do parto e os presságios se cumpriram.2

Diante do nascimento do príncipe, o rei decide então isolar Segismundo


por acreditar que ele seria o monarca mais cruel e mais terrível, alegando que
está atendendo aos presságios são vozes divinas (novamente a influência da
superstição em detrimento de um enfoque científico). E para que outros não
ficassem sabendo do destino de Segismundo, o rei declara que a criança tinha
morrido.

O rei consegue seu intento de manter Segismundo isolado, entretanto,


com o passar do tempo a dúvida se instala e demonstrando sinais de remorso
por ter feito de seu filho um delito, questiona-se se deveria ter tomado tal atitude
em função de uma superstição. Por isso, quer trazer Segismundo para a corte
para saber se estava certo ao tornar o próprio filho cativo, se ele era um monstro
ou os astros tinham errado.

Segismundo, então na corte, mostra-se inconformado com o fato de ter


passado a vida toda preso em uma torre, mas é convencido de que o que lhe
ocorrera fora um sonho e que, agora desperto, pode desfrutar do poder e exercer
as suas vontades. Com isso, apresenta comportamentos que servem para que
o rei Basílio justifique a sua decisão de mantê-lo preso, inclusive lamenta o
homicídio cometido por Segismundo afirmando:

Pois muito me desgosta, príncipe, vir te ver, esperançado em te


encontrar prudente e triunfante de fados e estrelas e, em vez disso, te
encontrar de ânimo tão áspero, que a primeira ação que neste momento
praticaste foi um grave homicídio.3

Diante das atitudes pouco comedidas de Segismundo, o rei ordena


novamente que ele seja enviado para a torre, mas não conta com um levante
popular que reconhece o príncipe e a sua condição injusta. Segismundo retorna

2
Ibidem, p, 45
3
Ibidem, p, 62
a corte, mas agora cumprindo aquilo que se espera de um verdadeiro príncipe,
age com temperança, perdoa o seu pai o seu lacaio (único homem com o qual
tivera contato no período de sua experiencia na torre) e supera o que foi
profetizado pelo sonho de sua mãe.

A peça, que se fundamenta em uma estética barroca, busca evidenciar


que os personagens vivem em constante contradição, a realidade vive em
conflito, o que é real e o que é sonho? O mundo é um teatro no qual a dualidade
são forças opostas que regem o enredo. Assim é que Rosenfeld exemplifica, não
somente esta peça, mas a temática da obra de Calderon:

O mundo é um teatro – “el gran teatro del mundo” – cujo diretor é Deus.
Na obra de Calderon toda a história, particular ou universal, mais uma
vez é história sagrada. Tudo faz parte do grande processo entre Deus e
o demônio, iniciado com a queda do homem e de antemão decidido no
juízo final. Toda a vida humana é parte de um espetáculo em que
“Todomundo” desempenha o papel prescrito por Deus. O homem
barroco sabe que está em um espectáculo, exatamente como Crespo da
peça de Calderon que no fim se dirige ao público, dizendo que aqui
termina a estória e pedindo desculpas pelas deficiências.4

Apesar de a trama em “A vida é Sonho” fazer referência a uma corte


polonesa, o que fica sinalizado é a representação de uma corte ibérica e católica,
na qual a vida era sonho, o teatro uma metáfora do mundo. Sendo católica, todo
homem deveria ser fiel a Deus e evitar o pecado, não só por causa de sua
danação particular, mas porque se pecasse, errasse, afetaria, como membro
doente de um corpo maior, toda a Igreja e seu Reino.

No período (século XVII) uma concepção de reino como um corpo místico,


mas também de contornos humanos, sendo o príncipe a cabeça, os nobres
seriam os braços e o povo integrava, hierarquicamente (inferior no caso), os
outros “membros” do corpo. Tal composição orgânica da sociedade deveria ser
“harmonicamente” aceita, até porque o rei era o representante da vontade divina
na terra e o corpo humano era a imagem e semelhança de Deus. Este sentido

4
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p, 60
corporativo transformava o príncipe em espelho do reino, em personificação da
divindade para os seus súditos e vassalos.

Estando em situação de superioridade em relação ao restante dos


homens, de acordo com Elias, “ao rei era exigido o distanciamento como um fim
em si, racionalidade, apreço por nuances, controle das emoções”5, de forma a
evidenciar o seu autocontrole e as boas maneiras. E complementa que “para o
Rei, a etiqueta não é apenas um instrumento de distanciamento, mas também
de dominação”.6

Além do alinhamento aos valores cristãos, as atitudes exigidas do rei não


eram apenas comportamentos, mas uma condição de se manter de tal modo
elevado dos outros para não ser confundido com os comportamentos daqueles
a quem tem de governar. A corte também “representa uma estrutura de
dominação e é por meio dela que o rei governa uma região mais ampla” 7, na qual
se insere o reino propriamente.

Devemos também considerar que a peça em questão se insere em um


contexto religioso marcado pela afirmação da contrarreforma (é sempre bom
lembrar, que La Barca estudou com os jesuítas e foi ordenado sacerdote), o que
também deve ter contribuído para a construção da temática tratada na obra.
Neste período da história mundial, tem-se uma nova concepção de mundo que,
ao mesmo tempo, evidencia a luta religiosa, sendo que “la posición luterana
estaba a favor de la predestinación, mientras que la posición católica se
pronunciaba em defensa del libre albedrio”.8

Por uma parte, a peça afirmava a salvação pela fé devotada a Deus que
no momento certo intercede para que a paz e a justiça prevaleçam entre os
homens, bem como, ela combatia qualquer capacidade humana de prever o

5
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p, 132
6
Ibidem
7
ELIAS, op. cit., p, 133
8
IMAGINARIO, Andrea. La vida es sueño de Calderon de la Barca. Disponível em:
https://www.culturagenial.com/es/la-vida-es-sueno-de-pedro-calderon-de-la-barca/ Acessado
em 19 jul. 2002
destino de uma pessoa, pois o destino somente a Deus pertence, demonstrando
mais uma contradição na qual se vê envolvido o homem (não somente o homem
daquela época, é preciso dizer), que não sabe ao certo se o que importa em sua
trajetória de vida é a predestinação ou o livre-arbítrio, embora a posição de La
Barca seja favorável ao segundo.

O homem deste período se vê lançado em um mundo ambíguo, deslocado


do centro do universo, ele se vê em uma luta constante entre os seus impulsos
e o livre-arbítrio que é uma dádiva de Deus para ser usada em prol da superação
de suas paixões e na crença da predestinação. Desta forma, de acordo com
Aguinagua:

El secreto del drama de Segismundo parece obvio: el hombre no está en


verdad unido al cosmos, sino que se halla, al margen de la Naturaleza,
en manos de Dios, como aparece patente en el famoso monólogo en que
el héroe se compara a sí mismo con otros elementos de la Creación. El
dilema entre predestinación y libre albedrío, resuelto a favor de este
último a través de un penoso camino de autonegación y desengaño, es
decir, la típica constatación barroca de que en efecto la vida es sueño.9

Tendo a obra muitos temas abordados, outro que carece menção é aquele
que retrata Segismundo, que alijado das convenções sociais, repentinamente
vê-se diante de uma condição muito peculiar, uma vez que da falta de liberdade,
passa quase que instantaneamente a desfrutar de poder sobre as pessoas em
seu entorno. Neste ponto, pode-se perceber que La Barca alerta para o fato de
que o príncipe, por mais que tenha poder, também não pode tudo, não deve
ficar à mercê de seus instintos, bem como, aponta Cardim, “um sistema
corporativo impunha ao rei determinadas balizas e possibilidades de atuação” 10
não somente em relação ao seus comportamentos individuais, mas também em
suas ações visando manter o status quo e o equilíbrio das forças sociais.

Entretanto, o que a peça também nos mostra é que é pouco provável que
ser humano criado à parte da sociedade ou de um regimento específico como

9
BLANCO AGUINAGA, Carlos. RODRÍGUEZ PUÉRTOLAS, Julio. ZAVALA, IRIS M. Historia
Social de la Literatura Espanhola. Madrid: Editorial Castalia, 1979, p, 343
10
CARDIM, Pedro. As cortes na política do século XVII. Cortes e cultura política no Portugal do
Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998, p, 20
caso daqueles que precisam se comportar em concordância com uma série de
rituais (a sociedade de cortes) venham a fazê-lo por conta própria e de modo
eficiente sem uma estrutura social que lhe dê suporte em seu desenvolvimento.

Ao se ver privado de instrução, Segismundo vê solapada a sua


possibilidade de superar aquele conhecimento imediato fornecido pelos
sentidos, permanecendo (como todo ser humano) afeito ao que está relacionado
aos apetites e sensações. As suas ações são fundamentalmente mediadas pelos
instintos e vontades, incapaz de compreender aquilo que não se alinha a uma
forma primitiva de conceber o mundo. Tendo poder, que crê ilimitado, não aceita
qualquer tipo de crítica ou adiamento de suas necessidades.

O homem pela sua própria natureza fica sujeito também às atitudes


perversas e, sendo assim, nada mais importante do que atentar para os valores
sociais e as boas maneiras, imprescindíveis para o bom governo de um príncipe,
que eles precisam ser cultivados. Esta necessidade de dotar o monarca de
referenciais para exercer o que se espera em seu papel é conforme a conclusão
de Hatzfeld, segundo o qual, “a vida é sonho apresenta-se como um programa
para a educação de um príncipe perfeito.”11

“A vida é sonho” alerta que o homem deve se conduzir na vida de forma


equilibrada, utilizando o seu livre-arbítrio como uma dádiva de Deus,
pavimentando um bom caminho para se encontrar com o juízo final, atento aos
preceitos católicos, mas também demonstrando lealdade ao Estado
representado pelos monarcas, que em função de sua condição de superioridade
podem conduzir o povo garantindo o bem comum e a harmonia no reino.

11
HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989, p, 312
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLANCO AGUINAGA, Carlos. RODRÍGUEZ PUÉRTOLAS, Julio. ZAVALA,


IRIS M. Historia Social de la Literatura Espanhola. Madrid: Editorial Castalia,
1979.

CALDERON DE LA BARCA, Pedro. A vida é sonho. São Paulo: Hedra, 2010.

CARDIM, Pedro. As cortes na política do século XVII. Cortes e cultura política


no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

IMAGINARIO, Andrea. La vida es sueño de Calderon de la Barca. Disponível


em: https://www.culturagenial.com/es/la-vida-es-sueno-de-pedro-calderon-de-
la-barca/

HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985.

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