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3.

MOMENTUM SCHMITTIANO

Andityas Soares de Moura Costa Matos

3.1. A representação política na obra de Carl Schmitt

Parece útil agora uma incursão no pensamento de Carl Schmitt, de modo a secundar as
ideias já expostas na seção anterior e demonstrar definitivamente o caráter teológico-político
da representação política. Tal se mostra necessário porque a representação corporativa
revelou-se como algo claramente distinto da representação política moderna, não se podendo
sustentar a existência de um continuum puro e simples entre ambas as experiências. De fato, o
caráter embrionariamente multitudinário da representação corporativa jamais poderia ser
assumido pelas formas modernas de representação, quais sejam, a representação por absorção
e a representação nacional. Para entender essa descontinuidade, é preciso abandonar qualquer
ilusão progressista em história das ideias, assumindo que as figuras concretas que realizam
certas concepções políticas não obedecem a nenhuma evolução progressiva ou linear.
Nesse sentido, como será demonstrado no próximo capítulo, a representação política
moderna, em suas duas formas (por absorção e nacional), só pôde surgir graças à decadência
da representação corporativa, processo que tem seu ponto de chegada na Revolução Francesa.
Concomitantemente, a representação simbólica da Igreja parece ser retomada de modo
funcional por pensadores como Hobbes e Sieyès, que nela veem a “verdadeira” estrutura da
representação política, reservando, outrossim, duras críticas às corporações. Em grande
medida, é esse processo de secularização de uma figura originalmente teológica que Schmitt
descreve, ainda que não faça uso intensivo da ideia de símbolo, a qual, contudo, está
pressuposta em seu discurso.
No que diz respeito à teoria schmittiana da representação, Hasso Hofmann chama a
atenção para o fato de ela se amoldar não às ideias de unidade definidas pela representação
corporativa ou pela representação por absorção, mas sim à noção de representação simbólica,
de recorte especificamente teológico-medieval1. Todavia, apesar de importante, a visão de
Schmitt sobre a representação não é hoje dominante e nem pode ser tida acriticamente como a
1
HOFMANN, Repräsentation, p. 187.
mais adequada para um exame de largo fôlego das formas históricas desse dispositivo.
Entendo que a chave de leitura unificante de recorte hobbesiano – de resto, não totalmente
ausente na concepção de Schmitt – oferece melhores condições para se compreender o
fenômeno ao longo de suas tumultuosas metamorfoses na história do Ocidente, tal como
discutido na seção II.4.2. Obviamente, não é preciso frisar que minha interpretação se efetiva
sempre a partir de contextos de disputa em relação ao que significa “representar” e, nesse
sentido polêmico, a obra de Schmitt me parece imprescindível.
Em seu estudo sobre a representação política em Schmitt, Jorge Eugenio Dotti se
refere a três diferentes dimensões de representação presentes na obra do autor, as quais
manteriam entre si relações de complementariedade e tensionamento. Em primeiro lugar
estaria a representação teológico-política que Schmitt pensaria a partir de Hobbes e que,
segundo me parece, custodia o verdadeiro conceito de representação no corpus schmittiano. A
segunda teoria da representação seria aquela especificamente jurídico-constitucional, calcada
no jogo entre representação e identidade que, segundo Dotti, corresponde a uma tentativa de
modernizar o conceito originalmente teológico de representação. Por fim, haveria um terceiro
sentido para a representação, trabalhada por Schmitt na obra Die Tyrannei der Werte (A
tirania dos valores), a qual se apresenta enquanto uma teoria sobre a representação axiológica
e seu descontrole no mundo atual, em especial tendo em vista a atividade hermenêutica dos
juízes2, algo que está longe do tema da representação política e, portanto, não será objeto de
análise nas próximas páginas, nas quais prefiro indicar três núcleos e sentidos para a
representação no pensamento schmittiano: a representação católica na Igreja, a representação
burguesa no Parlamento e a representação “popular-existencial” na Constituição.
De modo análogo, há basicamente três obras em que Schmitt trabalha o conceito
teológico-político de representação sob o ponto de vista de sua secularização, ainda que o
tema apareça subliminarmente em muitos outros de seus escritos. São elas: Römischer
Katholizismus und politische Form (Catolicismo romano e forma política, 1923), Die
geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus (A situação histórico-espiritual do
parlamentarismo hodierno, 1923) e Verfassungslehre (Teoria da Constituição, 1928). Sua
argumentação, contudo, é bastante desigual nesses três escritos, correspondendo
evidentemente à intenção polêmica que, em um autor como Carl Schmitt, anima toda sua
produção intelectual. Isso significa que, para compreender a representação política em
Schmitt, é preciso indicar contra quem ele escreve.

2
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 453.
3.2. A representação católica na Igreja

Em Römischer Katholizismus und politische Form, Schmitt não desenvolve


claramente uma teoria da representação como fará em Verfassungslehre. Contudo, muitos dos
elementos presentes na teoria da representação do livro de 1928 encontram seus fundamentos
teológicos – tema naturalmente pouco explorado em um tratado de Direito Constitucional –
nas breves, mas incisivas e sumamente irônicas páginas da obra de 1923, em que Schmitt
caracteriza a Igreja como uma complexio oppositorum, ou seja, uma realidade existencial
capaz de abrigar as mais diversas posições e ideias, desde o conservadorismo dogmático até o
revolucionarismo, e que, diferentemente de qualquer construção dialética, jamais sintetiza tais
oposições, mantendo em seu seio a diversidade e o conflito. Isso só é possível porque a Igreja
encarna no mais alto grau o político, o que se dá mediante a assunção de seu caráter
representativo, permitindo desse modo que diversificadas tendências convivam em seu
interior e ainda assim – ou talvez por isso mesmo – conformem uma unidade3.
Logo nas primeiras páginas de Römischer Katholizismus und politische Form Schmitt
deixa claro que há um inimigo do espírito católico-romano a rondar a Europa, o qual ele
chama de “o pensamento econômico” (das ökonomische Denken). A oposição entre o político
e o econômico se dá tendo em vista a pretensa objetividade que a economia quer imprimir ao
mundo, relegando a uma posição secundária aquilo que, como o direito e a política, seria “não
objetivo”4. Nessa perspectiva, a representação aparece como o signo mais profundo do
político, revelando-se enquanto um dispositivo transcendente capaz de encarnar a autoridade e
uma específica forma política. Ora, o terreno da autoridade é posto em xeque pela economia
porque ela pretende derivar o domínio a partir da técnica e do controle de processos tidos
como racionais, algo comum tanto aos capitalistas quanto ao proletariado industrial que, para
Schmitt, não passam de faces complementares da mesma moeda econômica, razão pela qual
ambos recusam, consciente ou inconscientemente, a representação.
De fato, a representação exige pensar algo preexistente em relação à pura realidade
material, algo transcendente que implica uma autoridade que vem do alto e, assim, pode
garantir a relação de mando e obediência entre representante e representado5. Em um breve
3
SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form, pp. 11-19.
4
SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form, pp. 34-36.
5
“Ella [la representación] es desde la perspectiva hobbesiano-schmittiana el único
dispositivo capaz de volver visible y reconocible la autoridad, sin la cual no hay mando ni
obediencia políticas. […] El concepto de obediencia política presupone el de representación.
Si se busca su especificidad frente a otras formas como la marcial, la coactiva o la paternal
es preciso pensarla con relación a aquello que constituye la politicidad estatal en cuanto tal”
texto chamado Die Sichtbarkeit der Kirche: eine scholastische Erwägung (A visibilidade da
Igreja: uma consideração escolástica), Schmitt explica tal ideia ao afirmar que a
representação sempre deve vir de cima para baixo, jamais de baixo para cima – tese que ele
logo terá oportunidade de relativizar em 1928 –, dado que uma instituição que queira fazer
valer o invisível com base no visível precisa se fundar no invisível e aparecer no visível;
afinal, tomando o exemplo da Igreja, foi Deus que se fez homem e não o homem que se fez
Deus6. Para um pensamento que extrai sua lógica da imanência do econômico-tecnológico, tal
transcendência só pode ser uma perturbação imposta ao governo das coisas por elas mesmas7.
Os burgueses tentam limitar e racionalizar o dispositivo teológico da representação ao
restringi-lo ao cenário liberal-parlamentar, construindo um mecanismo completamente
destituído de politicidade, eis que, além de se fundamentar, ao menos retoricamente, em uma
força que vem de baixo – diferentemente da verdadeira representação, que sempre vem de
cima (von oben)8 –, acaba por tecnicizar e empobrecer toda dimensão autoritária que somente
uma representação pessoal pode garantir, o que o eterno debate ocasionalista dos burgueses
jamais pode trazer à luz. O proletariado, por seu turno, vai ainda mais longe ao abolir a
representação e criar os soviets, nos quais o delegado supostamente representativo não tem
nenhum poder de decisão real, já que o proletariado assume que o concreto e o objetivo
residem na esfera estrutural da produção, não na superestrutural, própria da decisão política.
Explica Schmitt:

Daí que o sistema soviético proletário procure aniquilar este rudimento [o da


complexio oppositorum representativa] de um tempo que pensa de um modo não
econômico, e acentue que os delegados apenas são emissários e agentes, comissários
dos produtores com um “mandat impératif” e exoneráveis em qualquer momento,
servidores administrativos do processo de produção. A “totalidade” do povo é
apenas uma idéia; a totalidade do processo econômico é uma coisa real 9.
Nada disso se coaduna com a dignidade própria da representação, conclui Schmitt,
lançando uma ideia que será desenvolvida em Verfassungslehre. Representar não tem a ver
com processos reais, como os que a técnica combinada com o econômico exigem para sua
(PÁEZ CANOSA, Aspectos de una subjetividad política estatal, p. 605 e p. 611).
6
SCHMITT, Die Sichtbarkeit der Kirche, p. 75.
7
SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form, pp. 45-46.
8
SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form, p. 43.
9
SCHMITT, Catolicismo romano e forma política, pp. 39-40. Original: “Das proletarische
Rätesystem sucht daher dieses Rudiment einer unökonomisch denkenden Zeit zu beseitigen
und betont, daβ die Delegierten nur Boten und Agenten sind, jederzeit abberufbare
Beauftragte der Produzenten, mit einem »mandat impératif«, administrative Bediente des
Produktionsprozesses. Das »Ganze« des Volkes ist nur eine Idee; das Ganze des
ökonomischen Prozesses eine reale Sache” (SCHMITT, Römischer Katholizismus und
politische Form, pp. 44-45).
incessante reprodutibilidade. Ao contrário, representar significa manter a pluralidade na
unidade por meio de uma autoridade pessoal que só pode ser posta a partir de uma percepção
– totalmente subjetiva do ponto de vista da economia – de dignidade e glória que transcende o
suposto racionalismo da técnica econômica. Na verdade, o econômico é completamente
irracional por não possuir finalidade alguma senão sua própria e contínua autorreprodução.
Por seu turno, a representação sempre aponta para uma finalidade, radicando-se no valor que
ela mesma constitui:

A idéia da representação, pelo contrário, é tão dominada pelo pensamento da


autoridade pessoal, que tanto o representante como o representado têm de afirmar
uma dignidade pessoal. Ela não é nenhum conceito pragmático. Num sentido
eminente, só uma pessoa pode representar – diferenciando-se da simples “delegação
do lugar” – e representar uma pessoa autoritária ou uma idéia que, na medida em
que é representada, precisamente se personifica. Deus ou, na ideologia democrática,
o povo, ou idéias abstractas como liberdade e igualdade, são o conteúdo pensável de
uma representação, mas não a produção e o consumo. A representação dá à pessoa
do representante uma dignidade própria, porque o representante de um valor elevado
não pode não ter valor. [...] Diante de autômatos e de máquinas não se pode
representar, tão pouco quanto eles mesmos podem representar ou ser representados,
e quando o Estado se tornou no Leviatã, ele desapareceu do mundo do
representativo10.

Nota-se assim que Schmitt compreende a representação a partir de sua origem


teológico-medieval, indicando sua profunda incompatibilidade com o mundo atual da técnica
e do domínio econômico, no qual ela só pode sobreviver – para além de seu nicho natural em
Roma, onde sempre será preservada – enquanto farsa. Estou de acordo com Schmitt acerca
tanto da origem quanto da natureza teológico-medieval da representação política 11, muito

10
SCHMITT, Catolicismo romano e forma política, p. 35. Original: “Die Idee der
Repräsentation ist dagegen so sehr von dem Gedanken persönlicher Autorität beherrscht, daβ
sowohl der Repräsentant wie der Repräsentierte eine persönliche Würde behaupten muβ. Sie
ist kein dinghafter Begriff. Repräsentieren im eminenten Sinne kann nur eine Person und
zwar-zum Unterschiede von der einfachen »Stellvertretung« – eine autoritäre Person oder
eine Idee, die sich, sobald sie repräsentiert wird, ebenfalls personifiziert. Gott, oder in der
demokratischen Ideologie das Volk, oder abstrakte Ideen wie Freiheit und Gleichheit sind
denkbarer Inhalt einer Repräsentation, aber nicht Produktion und Konsum. Die
Repräsentation gibt der Person des Repräsentanten eine eigene Würde, weil der
Repräsentant eines hohen Wertes nicht wertlos sein kann. [...] Vor Automaten und Maschinen
kann man nicht reprasentieren, so wenig wie sie selber repräsentieren oder reprasentiert
werden können, und wenn der Staat zum Leviathan geworden ist, so ist er aus der Welt des
Repräsentativen verschwunden” (SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form,
pp. 35-36).
11
No mesmo sentido, sustentando a origem e a natureza medieval da representação política, cf. CARLYLE;
CARLYLE, A history of mediaeval political theory in the west, p. 129, HALLER, Repräsentation, p. 50 et seq.,
HINTZE, História de las formas políticas, p. 103, POST, Studies in medieval legal thought, SOUSA, La
representación política, pp. 121-137 e ZIMMERMANN (Hrsg.), Der Begriff der repræsentatio im Mittelalter.
embora as consequências que derivo dessa posição sejam muito diversas daquelas intuídas
pelo jurista alemão, como será visto na terceira parte.

3.3. A representação burguesa no Parlamento

O passo seguinte de Schmitt consiste em demonstrar como a atual representação


parlamentar não é, de fato, representativa, e sim farsesca. Esse movimento é realizado na obra
Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, escrita no mesmo ano do
livro sobre o catolicismo romano e acrescida em 1926 de um importante prefácio à segunda
edição intitulado Über den Gegensatz von Parlamentarismus und Demokratie (Sobre a
contradição entre parlamentarismo e democracia), no qual Schmitt polemiza com Richard
Thoma e outros célebres autores de seu tempo.
Apesar de Schmitt não apresentar nessa obra uma teoria acabada da representação, ele
centraliza seus esforços para desmascarar um tipo específico de representação que, com o
ocaso de seu caráter público (öffentliche) – antes traduzido nos atributos da publicidade e da
discussão – e seu necessário fracionamento em um sistema partidista, tornou-se sem sentido
(sinnlos)12. Trata-se da representação parlamentar que, no fundo, não é um verdadeiro tipo de
representação, em especial porque vem de baixo. O tipo puro de representação teológico-
medieval identificado por Schmitt no texto sobre o catolicismo romano de 1923 e
reestruturado para uso contemporâneo – e autoritário – na sua obra sobre teoria constitucional
de 1928 é, para o autor, o paradigma por excelência da representação. Ao contrário, o espaço
do Parlamento constitui um âmbito supérfluo, inútil e até mesmo vergonhoso, no qual os
partidos não se enfrentam com base no confronto de opiniões em uma discussão pública,
tratando-se antes de grupos de poder social e econômico que competem entre si lançando mão
de mecanismos propagandísticos para apelar aos interesses e às paixões imediatas das
massas13. Em tal cenário, seria impossível representar verdadeiramente, ou seja, fazer visível
um ser invisível por meio de uma presença pública que possua adequada dignitas.
Diferentemente, o Parlamento corresponderia, na expressiva metáfora de Schmitt, à pintura de
chamas vermelhas nos radiadores de um moderno sistema de calefação central, dando assim a
impressão de que é essa pintura que aquece o ambiente, e não o mecanismo de calefação – o
qual é claramente comparável ao âmbito econômico, onde são tomadas as decisões efetivas.

12
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 28.
13
SCHMITT, Vorbemerkung, pp. 10-11.
Nesse contexto, Schmitt não pode deixar de sublinhar o anacronismo do Parlamento,
instituição antiquada e incompreensível diante da democracia de massas então existente nos
anos 20 do século passado. Ambos os conceitos não se confundem, sendo, em certo ponto, até
mesmo incompatíveis. É perfeitamente possível a existência de uma democracia sem
parlamentarismo, bem como um parlamentarismo sem democracia14. A partir dessa
percepção, Schmitt destaca o caráter decisivo da vontade popular, que não pode ser barrada
ou contida por instituições tipicamente liberais semelhantes ao Parlamento. Aliás, diante da
vontade popular o Parlamento não teria sequer direito à existência autônoma, dado que ele
seria uma instituição baseada na discussão liberal entre deputados independentes, nada tendo
de realmente democrático-homogêneo15.
Com a impossibilitação de discussões “livres” e públicas – agora cooptadas pelo
domínio econômico, em que se impõem arcana rei publicae e interesses ainda mais temíveis
do que os dos antigos monarcas –, o Parlamento deixa de realizar sua função de ordenação
pacífica e discursiva da sociedade, na qual agora Schmitt vê surgir, sob a forma do
bolchevismo, do anarquismo e do fascismo, irracionalismos que pregam o uso direto da
violência para a consecução de seus objetivos, abandonando assim o velho racionalismo
iluminista e individualista característico do Parlamento, temas ao qual o publicista alemão
dedica os dois últimos e mais brilhantes capítulos de Die geistesgeschichtliche Lage des
heutigen Parlamentarismus.
De qualquer modo, é curioso perceber como nesse livro – e com mais força no
prefácio à sua segunda edição de 1926 – Schmitt começa a conceber o povo a partir de um
paradigma político de forte ilimitação, com o que poderá descrevê-lo em termos de poder
constituinte na Verfassungslehre, retirando-lhe as amarras próprias do poder constituído de
matriz liberal. Para tanto, segundo Dotti, a concepção original de representação política de
Schmitt, que a compreendia enquanto dispositivo teológico-político que vinha do alto,
precisou sofrer uma importante transformação, eis que na Verfassungslehre a representação
parte de baixo, percorrendo um movimento que vai do imanente ao transcendente, da vida
efetiva do povo enquanto grandeza política à afirmação da autoridade representativa, em
especial aquela do Poder Executivo16.

14
“Pode haver uma democracia sem o que é chamado de parlamentarismo moderno, bem como um
parlamentarismo sem democracia”. Original: “Es kann eine Demokratie geben ohne das, was man modernen
Parlamentarismus nennt und eine Parlamentarismus ohne Demokratie” (SCHMITT, Die geistesgeschichtliche
Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 41).
15
SCHMITT, Vorbemerkung, p. 21.
16
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 461.
Tal modificação parece ainda mais notável se comparada a uma das críticas
construídas em Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, a qual tinha a
ver exatamente com o caráter débil da representação parlamentar-burguesa que vinha de
baixo. Essa inflexão pode ser explicada porque Schmitt, em sua teoria constitucional,
diferentemente do que fazia a grande maioria dos constitucionalistas alemães, não relacionava
a representação política de maneira única e primordial ao Poder Legislativo que, afinal, ele
via como um grupo de debatedores individualistas e ocasionalistas. Ao contrário, a figura
forte da representação jurídico-constitucional schmittiana reside no Poder Executivo, ou seja,
naquele que deveria decidir sobre a exceção e proteger a Constituição, tudo com amplo e
irrestrito apoio popular por meio da aclamação e não através de técnicas liberais e privatistas
como as eleições.
Assim, essa centralidade e imensurabilidade do povo, que não pode ser contido pelas
redes do direito ordinário, não serve a Schmitt para fundamentar qualquer projeto democrático
substancial. Trata-se antes de um gesto que possibilita o afastamento de todos os dispositivos
liberais de controle; não para emancipar o povo e entregá-lo a si mesmo, mas para justificar a
solução autoritária e plebiscitária que mais e mais se insinuava nos escritos schmittianos do
final dos anos 20.
Concluindo a leitura de Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen
Parlamentarismus, parece-me que Schmitt percebe que o Parlamento não traduz de maneira
adequada a ideia de representação. O Parlamento da época de Carl Schmitt – e o da nossa
também, com muito mais razão – foi dominado por formas de direito privado tributárias da
economia liberal. Com efeito, uma organização política deixa de o ser quando se remete às
bases do direito privado, vaticina Schmitt. Dessa maneira, ainda que existam semelhanças,
por exemplo, entre um monarca absoluto e um empresário capitalista privado, há que se
reconhecer que são diferentes, em ambos os casos, a forma e o conteúdo da autoridade, seu
caráter público ou não e a representação porventura existente 17. Com a progressiva perda de
seu caráter público, o Parlamento se afasta cada vez mais da representação, cuja função – dar
visibilidade ao invisível – não pode ser realizada sem publicidade.

3.4. A representação “popular-existencial” na Constituição

17
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 33.
Segundo Schmitt, a confusão entre parlamentarismo e representação é típica do liberal
século XIX. Para o jurista alemão, a representação é algo muito mais complexo do que sua
mera e defeituosa tradução parlamentar. A representação não precisa apresentar
necessariamente qualquer caráter democrático – nem o parlamentarismo, muito embora
ambos os conceitos sejam confundidos –, dado que se trata da esfera de visibilização e
unificação do poder por meio de um ser de presença pública. Um nobre pode representar seu
príncipe como embaixador, pois ambos detêm certa dignidade, o que não acontece nas
negociações meramente econômicas, para as quais os reis enviavam meros “agentes” e não
embaixadores.
No que diz respeito à relação entre democracia e representação parlamentar, Schmitt
faz notar que o Parlamento representa o povo como um todo sem que, necessariamente, seja
eleito por todos os integrantes do povo, o que de fato seria impossível 18. No limite, pode haver
até mesmo um único homem que, por razões técnicas, decida em nome do povo 19. A ideia de
democracia, portanto, não se confunde com a ideia parlamentar, o que resta claro quando se
percebe que, apesar do Parlamento se definir como a primeira comissão eleita pelo povo, não
pode ser por ele revogada, permanecendo independente do povo por uma legislatura inteira20.
Mas se a representação não está no Parlamento, seu locus habitual e comum para
muitos pensadores da política e do direito, onde ela se encontra? Para responder tal questão,
Carl Schmitt apresenta sua noção acabada de representação política na Verfassungslehre
(Teoria da Constituição) de 1928, texto que, como nota Alexandre Franco de Sá, funciona
como um momento fundamental – e problemático – da obra de schmittiana. Nesse livro o
autor empreende a difícil tarefa de separar conceitualmente liberalismo e democracia, figuras
confundidas graças à sua comum atitude de repúdio diante do absolutismo monárquico 21. Tal
tarefa se inicia com a retomada da crítica à suposta representação parlamentar, de caráter
puramente quantitativo, bem como com a apresentação de outra dimensão – a única
verdadeira, na visão de Schmitt – da representação, que pode ser chamada de existencial,
sendo, portanto, genuinamente política.
No pensamento constitucional de Schmitt, representação e identidade são os dois
princípios políticos comuns a qualquer Estado. Nesse sentido, todo Estado se configura

18
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 44-45.
19
Lembrando-se da obra de Karl Löwenstein, Ellen Kennedy (comentadora do texto de Schmitt em sua tradução
inglesa, The crisis of parlamentary democracy) exemplifica este ponto, dado que para os partidários do rei na
Assembleia Nacional Francesa um único homem poderia representar o povo. Cf. LÖWENSTEIN, Volk und
Parlament nach der Staatstheorie der französichen Nationalversammlung von 1789.
20
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 42-43.
21
FRANCO DE SÁ, O poder pelo poder, p. 249.
mediante um jogo mais ou menos proporcional entre identidade e representação, sem o que
não alcançaria a necessária unidade. A identidade se relaciona à presença do povo – o qual,
para Schmitt, corresponde ao verdadeiro substrato do Estado –, enquanto a representação
garante a unificação popular por meio de homens que representam o Povo 22. Conforme ensina
Alexandre Franco de Sá, o princípio da identidade, de cariz democrático, é insuficiente para
se decidir sobre o caráter político de um Estado empiricamente dado. Por ser formal, o
princípio da identidade apenas afirma a coincidência dos governantes com os governados,
sendo necessária uma ulterior especificação – a qual se dá mediante a representação – para se
reconhecer a forma política em sua concretude 23. Segundo Carlo Galli, ambos os princípios
“constituyen la proyección política de la inseparabilidad de excepción y norma, de decisión y
orden, de energía y construcción afirmada en Teología política […]”24.
Assim, todas as formas políticas – monarquia, aristocracia, democracia etc. – se
constituem tendo em vista diferentes proporções de elementos identitários e representativos,
sendo impossível, para Schmitt, um Estado completamente identitário ou totalmente
representativo25. Até mesmo no caso hipotético de uma democracia direta haveria elementos
de representação, já que nem todas as pessoas que formam o povo unificado poderiam estar
presentes nos atos de legislação, como seria o caso, por exemplo, dos menores de idade.
Ademais, as pessoas que comparecem à arena democrática não o fazem na condição de
indivíduos privados, mas sim como cidadãos, o que envolve, uma vez mais, dinâmicas
representativas. Dessa feita, o princípio representativo é o remédio necessário à constante
vontade de identidade que assombra os Estados democráticos.
Já que não existe Estado sem representação, falar em democracia direta equivaleria a
postular uma espécie de dissolução da unidade política 26. Em todo Estado precisa haver um
22
Segundo Duso, não há uma contraposição total entre os princípios da identidade e da representação enunciados
por Schmitt, pois toda identidade exige um processo de identificação que só pode ser efetivado mediante lógicas
representativas, as quais põem em jogo o uno e o múltiplo que compõem o político. Cf. DUSO, La
rappresentanza politica, pp. 158-167.
23
“[...] a crença democrática nos princípios do auto-governo e da auto-determinação de um povo, a crença
democrática na identidade entre governantes e governados, consiste numa crença abstracta e geral, incapaz de
determinar por si qualquer forma política concreta. Qualquer tipo de governo, independentemente da sua
configuração concreta, poder-se-ia justificar democraticamente, através de um processo de identificação da
vontade de quem decide com a vontade do povo. E tal quereria dizer que, na sua pura formalidade, o princípio da
identidade requereria um segundo princípio – um princípio da representação – capaz de decidir concretamente a
identificação. Por outras palavras: tal quereria dizer que, enquanto princípio puramente formal e abstracto, o
princípio democrático da identidade não poderia deixar de evocar, como co-princípio determinante da forma
política, a decisão desta mesma forma política às mãos de um princípio da representação” (FRANCO DE SÁ, O
poder pelo poder, p. 257).
24
GALLI, La mirada de Jano, p. 68.
25
SCHMITT, Verfassungslehre, pp. 204-205.
26
26 “Antes de tudo, não há Estado sem representação. [...] Caso contrário, a democracia sem mediação não
significaria senão a dissolução da unidade política”. Original: “Es gibt zunächst keinen Staat ohne
Repräsentation. [...] Sonst würde unmittelbare Demokratie nichts anderes bedeuten als Auflösung der politischen
grupo de homens que possa dizer: “L’État c’est nous”. Bem se vê que Schmitt percebe a
função central da representação: garantir a unidade virtual da forma política, negando assim a
multiplicidade própria de formas democráticas não representativas como a multidão, tema
debatido no capítulo III.3.
Para Schmitt, a representação apresenta caráter necessariamente público, não podendo
se confundir com institutos do direito privado como o mandato, o encargo de negócios, a
comissão etc. Ao insistir no caráter público da representação, Schmitt polemiza com juristas
do século XIX que, a exemplo de Robert Mohl, não viam diferenças significativas entre a
representação (Repräsentation) e o mandato (Stellvertretung), eludindo assim o caráter
público da primeira, que parece essencial para sua configuração enquanto forma de
manutenção da unidade política27.
Praticamente na mesma época em que Schmitt escreve seu tratado de Direito
Constitucional, o jurista alemão Gerhard Leibholz sublinhou a diferença entre Repräsentation
e Vertretung. Segundo ele entende, a Repräsentation torna empiricamente perceptível a
realidade concreta do povo, que originariamente existe enquanto unidade ideal. Por outro
lado, a Vertretung constitui apenas um canal para a expressão de desejos dos sujeitos
particulares28. Do mesmo modo que Schmitt, Leibholz compreende a representação política
como uma técnica de visibilização e encarnação, não podendo se desenvolver em ambientes
privados nos quais a ideia de Povo unitário está ausente.
De fato, não pode haver representação política que se processe em segredo ou que
tenha o sentido de um negócio privado29. Tal indica que, seguindo o pensamento schmittiano,
o sequestro que hoje se assiste da representação política por parte dos poderes econômicos
equivaleria não à sua crise, mas à sua extinção. A denúncia de Schmitt dirigida contra o
domínio da representação por parte dos partidos políticos 30 equivale a uma inequívoca
demonstração não apenas da perda de visibilidade e publicidade do Parlamento, indicando
ainda a confusão entre as esferas representativas e as do puro mandato. Tal revela a
decadência do sistema de representação abraçado acriticamente pelo liberalismo. Da mesma
maneira, Leibholz afirma insistentemente – mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial
– que a representação política é incompatível com o Estado de partidos e que esse problema

Einheit” (SCHMITT, Verfassungslehre, pp. 206-207).


27
Para uma interessante leitura dessa díade no pensamento de Carl Schmitt, cf. BEAUD, Repräsentation et
Stellvertretung.
28
LEIBHOLZ, Gerhard. La rappresentazione nella democracia. A cura di S. Fortini. Milano: Giuffrè, 1989, p.
100.
29
SCHMITT, Verfassungslehre, p. 208.
30
SCHMITT, Der Hütter der Verfassung, p. 83.
está longe de ser superado no pós-guerra, já que a partir de então os representantes passaram a
ser dependentes da direção partidária, não mais podendo exercer aquela independência que
lhes possibilitava constituir autonomamente a soberania nacional. Essa situação se agrava
ainda mais com o predomínio da eleição proporcional, que confere centralidade aos partidos
políticos no jogo eleitoral31.
O passo seguinte de Schmitt demonstra como a herança teológico-cristã medieval
impregna suas considerações, já que, para ele, somente alguns seres podem ser representados.
Como dito anteriormente, a representação não seria um fenômeno de caráter normativo, mas
sim algo existencial, de maneira que “representar significa fazer perceptível e atualizar um ser
imperceptível mediante um ser de presença pública”32. A dialética do conceito, complementa
Schmitt, é que o ser imperceptível se faz presente quando se supõe sua presença33. Por isso, só
um especial tipo de ser – que tenha majestade, glória, honra ou dignidade – pode ser
presentificado pela representação, o que jamais acontece com elementos determinados por
interesses privados, os quais teriam, para Schmitt, uma existencialidade mais débil.
Segundo Dotti, Schmitt reformula a noção hobbesiana de representação, na qual o
povo é apresentado como multidão caótica e desordenada que só ganha realidade política ao
ser unificado pelo representante. Para tanto, Schmitt teria superado Hobbes ao conceber o
Povo como grandeza existencialmente política capaz de conformar o representante – o
Presidente do Reich – em um movimento que vai do imanente ao transcendente, mas que
ainda assim consegue salvar o teor especificamente teológico-político da representação34. Não
concordo com essa interpretação. Ainda que a representação presente na teoria constitucional
schmittiana de fato tenha sentido teológico-político, não se pode pressupor, como faz Dotti, a
unidade e a originária dignitas do povo. Tais dimensões só são alcançadas mediante a
representação; é esse, aliás, o verdadeiro sentido teológico da representação constitucional em
Schmitt.
Nesse mesma perspectiva, deve ser rechaçada a crítica de Eric Voegelin, para quem
Schmitt permaneceria preso às aporias da representação política moderna, pois ao alienar o
representante dos representados ele comprometeria a transcendência necessária ao conceito.
Tal transcendência somente se daria quando se considerasse a práxis político-representativa

31
LEIBHOLZ, La rappresentazione nella democracia, p. 169.
32
Original: “Repräsentieren heißt, ein unsichtbares Sein durch ein öffentlich anwesendes Sein sichtbar machen
und vergegenwärtigen” (SCHMITT, Verfassungslehre, p. 209).
33
“A dialética do conceito está em que se supõe como presente o imperceptível ao mesmo tempo em que se lhe
faz presente”. Original: “Die Dialektik des Begriffes liegt darin, daß das Unsichtbare als abwesend voraugesetzt
und doch gleichzeitig anwesend gemacht wird” (SCHMITT, Verfassungslehre, pp. 209-210).
34
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 465.
de todos, e não apenas a do representante 35. Ainda que, como visto, a posição de Schmitt
sobre o “alto” e o “baixo” tenha se modificado significativamente desde Römischer
Katholizismus und politische Form até Verfassungslehre, é exatamente por desconsiderar a
esfera dos representados enquanto dimensão efetivamente transcendente – dado que está
“embaixo” – que Schmitt pôde retomar o sentido puramente teológico-político-medieval da
representação política, cujo problema é constituir e legitimar o poder que vem “do alto”,
sendo sua base empírica uma condição operacional imprescindível para tanto. A
representação ocorre muito facilmente com o Deus da teologia cristã que, devido à sua
excelência, pode ser representado pela Igreja. Um processo similar se verifica no terreno
político, quando a ideia onicompreensiva de Povo unificado é constituída e trazida à luz pela
representação. Esse é o verdadeiro coração do conceito de representação no pensamento de
Schmitt, o que a torna atual enquanto existirem Estados e Povos, mesmo que sejam
pluralizados na dimensão retórica dos chamados Estados Democráticos de Direito.
Nessa perspectiva, não me parecem corretas as críticas segundo as quais a teoria da
representação de Schmitt seria incompatível com estruturas democráticas de mediação de
interesses plurais36. Em tais estruturas vale com toda força a dinâmica teológica segundo a
qual o invisível se faz visível – e, portanto, público – mediante a representação. Nesses casos,
o invisível – o inexistente, para uma filosofia radical da imanência – é exatamente o Povo
soberano, que recebe existência e visibilidade política graças à representação, e não devido a
elementos materiais porventura traduzidos nos mais diversos pluralismos sociais. Afirma
Schmitt: “[...] todo governo autêntico representa a unidade política de um povo, e não o povo
em sua presença natural”37.
Diante da realidade política decadente de seu tempo, quando o povo se traduzia como
massa disponível às manobras da esquerda e da direita, em sua teoria da representação
Schmitt tenta reconfigurá-lo enquanto poder constituinte. Assim o fazendo, ele estatiza o
povo, conclui Rodrigo Páez Canosa. Para tanto, o papel da representação é fundamental, dado
que só ela pode conferir forma ao povo tendencialmente impolítico e disforme 38. Todavia,
como bem se expressa Georges Didi-Huberman, a representação em Schmitt acaba sendo
problemática, já que pressupõe a unificação da noção de povo em sua negatividade e
35
Tal leitura da teoria da representação de Schmitt por parte de Voegelin já se encontra em sua resenha à
Verfassungslehre, sendo retomada posteriormente em The new science of politics. Cf. VOEGELIN, Die
Verfassungslehre von Carl Schmitt e VOEGELIN, The new science of politics.
36
Apenas a título de exemplo, cf. uma das formulações de tais críticas em CAMPDERRICH BRAVO, Estudio
preliminar, p. XXIV
37
“[...] jede echte Regierung die politische Einheit eines Volkes – nicht das Volk in seinem natürlichen
Vorhandensein – repräsentiert” (SCHMITT, Verfassungslehre, p. 212).
38
PÁEZ CANOSA, Aspectos de una subjetividad política estatal, p. 614.
impotência próprias. De fato, em Schmitt o povo não é algo que preexiste à representação,
não podendo ser traduzido enquanto entidade independente do processo representativo. Ao
contrário, o povo só se torna Povo quando aclama a liderança (Führertum39) que o constitui40.
Percebe-se então como a ideia de Povo representado é um conceito teológico secularizado
que surge da concepção do Deus representado pela Igreja. Em ambas as perspectivas,
representante é quem governa – seja a autoridade política ou a religiosa –, fazendo-o de modo
independente dos representados, sejam eles o povo real – que não se confunde com o Povo
governante – ou a evanescente ideia de Deus.

Excursus

TRANSCENDÊNCIA RECICLADA

Após reconhecer que o Povo unificado, puro e homogêneo constituído pela


representação à maneira schmittiana é um mitologema conservador que nada tem a ver com a
realidade efetiva e sensível dos povos em suas materialidades históricas 41, Georges Didi-
Huberman tenta substituir a representação política por uma concepção estética e alargada da
representação que encontraria nas artes – em especial na fotografia – seu substrato ideal. A
representação sensível e emocional dos povos se daria por meio de imagens dialéticas – a
expressão é de Walter Benjamin – comprometidas com a constituição de uma historiografia
dos vencidos42.
Contudo, o gesto de Didi-Huberman é isomórfico em relação ao de Schmitt. Ele
parece não perceber que sua proposta, ainda que prenhe de boas intenções, repete ponto por
ponto o dispositivo teológico-medieval da representação descrito por Carl Schmitt. Com
efeito, Didi-Huberman faz o invisível – os povos – visível por meio de um ser de presença

39
No que diz respeito à ideia de Führertum durante o nacional-socialismo, deve ser considerado que para os
teóricos nazistas o conceito de Führer expressa precisamente a tentativa de abandonar o esquema representativo.
Para eles o Führer não é pensado enquanto representante do povo, “soberano” ou “ditador”, justamente porque
ele se revela como algo imanente ao próprio povo. Na imanência que se resolve em identidade repousa a
liderança do Führer. Nesse específico sentido, não se pode falar de uma liderança que constitui o povo nazista,
mas de uma liderança que emana desse mesmo povo.
40
DIDI-HUBERMAN, Rendre sensible, p. 82. Cf. também, entre as muitas intervenções de Schmitt sobre o tema
da aclamação, SCHMITT, Vorbemerkung, pp. 22-23.
41
Talvez o próprio Carl Schmitt tivesse plena consciência do caráter fictício da ideia de Povo homogêneo com a
qual opera. É a tese desenvolvida por Alexandre Franco de Sá, para quem a obra de Schmitt não pode ser
adequadamente compreendida sem se levar em conta a importância das ficções, de modo que a representação do
povo, entendido enquanto substância política primordial, constitui um dos elementos no combate pela ordem
levado a efeito por Schmitt com base na ideia de uma necessária ficção ou mito político. Cf. FRANCO DE SÁ,
O poder pelo poder, pp. 667-668.
42
DIDI-HUBERMAN, Rendre sensible.
pública – a arte e, em última instância, o artista separado da sociedade que a produz. Ainda
aqui se põe a tarefa central da representação, que consiste em falar pelo outro. Trata-se de um
movimento de silenciamento dos sujeitos concretos em nome daquele que assume sua voz,
seja ele o Presidente do Reich ou o Führer na visão de Schmitt, seja ele o artista ou o
arquivista sensível na proposta de Didi-Huberman, o que se comprova pela luxuosa e até
mesmo elitista exposição recentemente organizada por este último e que tem por tema,
paradoxalmente, levantes populares43.
Representar significa então falar pelo outro e, nesse sentido, para ser consequente com
a ideia de democracia radical desenvolvida na terceira parte deste trabalho, é preciso negar
veementemente a representação, não importa se política ou “sensível”, assumindo que os
povos – ou a multidão – são irrepresentáveis. Ainda que algum grau de mediação pareça ser
insuprimível e necessário para a organização de qualquer comunidade humana, o seu suposto
nível máximo e alienante, o da representação, deve ser resolutamente combatido. Propostas
“libertárias” e estetizantes como as de Didi-Huberman são perigosas, pois a pretexto de
desnaturar e “abrir” a representação, elas a mantêm intocada em sua essência alienante, a qual
sempre substitui as vozes dos muitos pelo discurso de um Outro.
Nessa perspectiva, mas de modo inverso, penso ser legítimo perguntar se a
representação política contemporânea não assume uma função contrária àquela que Schmitt
soube tão bem indicar como típica do conceito. A representação que nasce diretamente da
teologia cristã – e é assumida como modelo pela soberania moderna – tem a ver com a
visibilização do invisível. Já a representação política contemporânea, submetida a um
processo de esvaziamento e de erosão que data pelo menos dos anos 20 do século passado,
corresponderia antes a uma técnica de tornar invisível o visível, ou seja, as relações
econômicas e de poder privado que hoje colonizam as instâncias representativas.
Essa estrutura é lida por Alexandre Franco de Sá sob a chave do que ele chama de
criptopolítica44. Seguindo as indicações de Michel Foucault sobre a passagem do poder
soberano ao disciplinar, ou seja, a transformação de um poder eminentemente visível e
resplandecente em um poder discreto que age nos detalhes para constituir os sujeitos, Franco
de Sá entende que tal processo tem a ver com uma mudança no regime de visibilidade do
poder, o qual conhece hoje uma terceira metamorfose sob o pano de fundo do neoliberalismo.
Trata-se de uma nova criptopolítica das populações ainda mais terrível porque, ao visibilizar o

43
DIDI-HUBERMAN, Levantes.
44
FRANCO DE SÁ, Liberal democracy and domination: a cryptopolitics of populations.
objeto sobre o qual o poder é exercido – a “população” –, gera-se enquanto efeito necessário a
invisibilização do poder mesmo, que jamais se mostra enquanto tal, mas apenas sob as vestes
de imperativos supostamente técnico-econômicos. Nas palavras de Alexandre Franco de Sá:

É neoliberal a situação na qual a população, enquanto objecto que sofre os efeitos e


as consequências do ocultamento, da retirada e da demissão de um poder que a
poderia proteger, torna visível um poder que permanece em si mesmo invisível. [...]
Assim, do mesmo modo que a transição da soberania para o poder disciplinar se
desenvolveu como um movimento de invisibilização do poder, dir-se-ia que o
neoliberalismo emerge como um movimento exactamente contrário a este: ele
emerge como um movimento de visibilização não do poder enquanto tal, mas do
objecto sobre o qual o poder se exerce e no qual o poder invisível se torna visível.
Noutros termos, visibilizando-se nesse objecto, o poder invisível da biopolítica da
população torna‐se agora novamente visível. Mas ele torna‐se visível enquanto
invisível. Tal quer dizer que, sob o neoliberalismo, o poder se torna manifesto na
vida de um corpo populacional que o reflecte precisamente na medida em que o
poder abdica de o cuidar, tutelar e proteger, retirando‐se e escondendo-se sob a
lógica de um “mercado” que deverá funcionar sem perturbações normativas
exteriores.45

Sem discordar do diagnóstico de Franco de Sá, entendo que a representação política é um


elemento essencial no processo de invisibilização do poder neoliberal que ele descreve
enquanto criptopolítica das populações. A uma época como a nossa, em que todos os
absolutos foram não apenas trazidos à luz do dia, mas também desconfigurados pela crítica
radical, não resta ao poder separado – ou seja, aquele que se funda na ordem sagrada da
hierarquia, na excelência dos supostos aristói ou na “sabedoria” dos tecnocratas – outra
estratégia senão se invisibilizar, tema que o próprio Schmitt enfrentou em outro contexto.
Contudo, nem Schmitt poderia ter imaginado que a invisibilização do poder mediante a
representação política se tornaria a verdadeira pedra de toque de um sistema político-jurídico-
econômico que opõe ao desejo multitudinário de liberdade uma espécie de transcendência
reciclada, até certo grau secularizada e que, fundando-se contraditoriamente nas ideias de
tradição (“não se pode admitir transformações revolucionárias do sistema de reprodução da
vida social...”) e de progresso (“...e isso porque as mudanças necessárias são obtidas graças
aos próprios mecanismos desse mesmo sistema”), converte toda questão política em
justificação moral-religiosa, a qual costuma ser travestida sob formas aparentemente razoáveis
e tranquilizadoramente jurídicas.
Tal “veste” – que supõe, na verdade, uma blindagem – se revela na assunção da
universalidade dos direitos humanos que, segundo a percepção invisibilizadora, só podem ser
pensados, adquiridos, consolidados, reformados e, ao final, mantidos – ainda que as crises

45
FRANCO DE SÁ, Criptopolítica e populismo, fase superior do neoliberalismo?, pp. 5-6.
sucessivas do direito e da economia o desmintam sem cessar – sob o horizonte de uma
absolutização moderada do poder separado. Uma das dimensões centrais desse poder atende
hoje pelo nome de representação política, vista – graças a todas as suas vantagens
“evolutivas” – como algo incriticável e imune ao processo de destruição exigido por uma
filosofia radical pós-moderna resolutamente intranscendente e pouco inclinada a colaborar
com os “desenhos institucionais” dos vários níveis hierárquicos requeridos pelo jogo de
invisibilização do visível típico da criptopolítica, cuja função é ocultar, em pleno século XXI,
o caráter absoluto, incontrolado e transcendente do poder, ainda que ele se mostre sob vestes
jurídicas, econômicas e (neo)liberais, pretendendo não ser reconhecido como aquilo que de
fato é: violência oligárquica, mando sem fundamento, ódio à democracia.

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