Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MOMENTUM SCHMITTIANO
Parece útil agora uma incursão no pensamento de Carl Schmitt, de modo a secundar as
ideias já expostas na seção anterior e demonstrar definitivamente o caráter teológico-político
da representação política. Tal se mostra necessário porque a representação corporativa
revelou-se como algo claramente distinto da representação política moderna, não se podendo
sustentar a existência de um continuum puro e simples entre ambas as experiências. De fato, o
caráter embrionariamente multitudinário da representação corporativa jamais poderia ser
assumido pelas formas modernas de representação, quais sejam, a representação por absorção
e a representação nacional. Para entender essa descontinuidade, é preciso abandonar qualquer
ilusão progressista em história das ideias, assumindo que as figuras concretas que realizam
certas concepções políticas não obedecem a nenhuma evolução progressiva ou linear.
Nesse sentido, como será demonstrado no próximo capítulo, a representação política
moderna, em suas duas formas (por absorção e nacional), só pôde surgir graças à decadência
da representação corporativa, processo que tem seu ponto de chegada na Revolução Francesa.
Concomitantemente, a representação simbólica da Igreja parece ser retomada de modo
funcional por pensadores como Hobbes e Sieyès, que nela veem a “verdadeira” estrutura da
representação política, reservando, outrossim, duras críticas às corporações. Em grande
medida, é esse processo de secularização de uma figura originalmente teológica que Schmitt
descreve, ainda que não faça uso intensivo da ideia de símbolo, a qual, contudo, está
pressuposta em seu discurso.
No que diz respeito à teoria schmittiana da representação, Hasso Hofmann chama a
atenção para o fato de ela se amoldar não às ideias de unidade definidas pela representação
corporativa ou pela representação por absorção, mas sim à noção de representação simbólica,
de recorte especificamente teológico-medieval1. Todavia, apesar de importante, a visão de
Schmitt sobre a representação não é hoje dominante e nem pode ser tida acriticamente como a
1
HOFMANN, Repräsentation, p. 187.
mais adequada para um exame de largo fôlego das formas históricas desse dispositivo.
Entendo que a chave de leitura unificante de recorte hobbesiano – de resto, não totalmente
ausente na concepção de Schmitt – oferece melhores condições para se compreender o
fenômeno ao longo de suas tumultuosas metamorfoses na história do Ocidente, tal como
discutido na seção II.4.2. Obviamente, não é preciso frisar que minha interpretação se efetiva
sempre a partir de contextos de disputa em relação ao que significa “representar” e, nesse
sentido polêmico, a obra de Schmitt me parece imprescindível.
Em seu estudo sobre a representação política em Schmitt, Jorge Eugenio Dotti se
refere a três diferentes dimensões de representação presentes na obra do autor, as quais
manteriam entre si relações de complementariedade e tensionamento. Em primeiro lugar
estaria a representação teológico-política que Schmitt pensaria a partir de Hobbes e que,
segundo me parece, custodia o verdadeiro conceito de representação no corpus schmittiano. A
segunda teoria da representação seria aquela especificamente jurídico-constitucional, calcada
no jogo entre representação e identidade que, segundo Dotti, corresponde a uma tentativa de
modernizar o conceito originalmente teológico de representação. Por fim, haveria um terceiro
sentido para a representação, trabalhada por Schmitt na obra Die Tyrannei der Werte (A
tirania dos valores), a qual se apresenta enquanto uma teoria sobre a representação axiológica
e seu descontrole no mundo atual, em especial tendo em vista a atividade hermenêutica dos
juízes2, algo que está longe do tema da representação política e, portanto, não será objeto de
análise nas próximas páginas, nas quais prefiro indicar três núcleos e sentidos para a
representação no pensamento schmittiano: a representação católica na Igreja, a representação
burguesa no Parlamento e a representação “popular-existencial” na Constituição.
De modo análogo, há basicamente três obras em que Schmitt trabalha o conceito
teológico-político de representação sob o ponto de vista de sua secularização, ainda que o
tema apareça subliminarmente em muitos outros de seus escritos. São elas: Römischer
Katholizismus und politische Form (Catolicismo romano e forma política, 1923), Die
geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus (A situação histórico-espiritual do
parlamentarismo hodierno, 1923) e Verfassungslehre (Teoria da Constituição, 1928). Sua
argumentação, contudo, é bastante desigual nesses três escritos, correspondendo
evidentemente à intenção polêmica que, em um autor como Carl Schmitt, anima toda sua
produção intelectual. Isso significa que, para compreender a representação política em
Schmitt, é preciso indicar contra quem ele escreve.
2
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 453.
3.2. A representação católica na Igreja
10
SCHMITT, Catolicismo romano e forma política, p. 35. Original: “Die Idee der
Repräsentation ist dagegen so sehr von dem Gedanken persönlicher Autorität beherrscht, daβ
sowohl der Repräsentant wie der Repräsentierte eine persönliche Würde behaupten muβ. Sie
ist kein dinghafter Begriff. Repräsentieren im eminenten Sinne kann nur eine Person und
zwar-zum Unterschiede von der einfachen »Stellvertretung« – eine autoritäre Person oder
eine Idee, die sich, sobald sie repräsentiert wird, ebenfalls personifiziert. Gott, oder in der
demokratischen Ideologie das Volk, oder abstrakte Ideen wie Freiheit und Gleichheit sind
denkbarer Inhalt einer Repräsentation, aber nicht Produktion und Konsum. Die
Repräsentation gibt der Person des Repräsentanten eine eigene Würde, weil der
Repräsentant eines hohen Wertes nicht wertlos sein kann. [...] Vor Automaten und Maschinen
kann man nicht reprasentieren, so wenig wie sie selber repräsentieren oder reprasentiert
werden können, und wenn der Staat zum Leviathan geworden ist, so ist er aus der Welt des
Repräsentativen verschwunden” (SCHMITT, Römischer Katholizismus und politische Form,
pp. 35-36).
11
No mesmo sentido, sustentando a origem e a natureza medieval da representação política, cf. CARLYLE;
CARLYLE, A history of mediaeval political theory in the west, p. 129, HALLER, Repräsentation, p. 50 et seq.,
HINTZE, História de las formas políticas, p. 103, POST, Studies in medieval legal thought, SOUSA, La
representación política, pp. 121-137 e ZIMMERMANN (Hrsg.), Der Begriff der repræsentatio im Mittelalter.
embora as consequências que derivo dessa posição sejam muito diversas daquelas intuídas
pelo jurista alemão, como será visto na terceira parte.
12
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 28.
13
SCHMITT, Vorbemerkung, pp. 10-11.
Nesse contexto, Schmitt não pode deixar de sublinhar o anacronismo do Parlamento,
instituição antiquada e incompreensível diante da democracia de massas então existente nos
anos 20 do século passado. Ambos os conceitos não se confundem, sendo, em certo ponto, até
mesmo incompatíveis. É perfeitamente possível a existência de uma democracia sem
parlamentarismo, bem como um parlamentarismo sem democracia14. A partir dessa
percepção, Schmitt destaca o caráter decisivo da vontade popular, que não pode ser barrada
ou contida por instituições tipicamente liberais semelhantes ao Parlamento. Aliás, diante da
vontade popular o Parlamento não teria sequer direito à existência autônoma, dado que ele
seria uma instituição baseada na discussão liberal entre deputados independentes, nada tendo
de realmente democrático-homogêneo15.
Com a impossibilitação de discussões “livres” e públicas – agora cooptadas pelo
domínio econômico, em que se impõem arcana rei publicae e interesses ainda mais temíveis
do que os dos antigos monarcas –, o Parlamento deixa de realizar sua função de ordenação
pacífica e discursiva da sociedade, na qual agora Schmitt vê surgir, sob a forma do
bolchevismo, do anarquismo e do fascismo, irracionalismos que pregam o uso direto da
violência para a consecução de seus objetivos, abandonando assim o velho racionalismo
iluminista e individualista característico do Parlamento, temas ao qual o publicista alemão
dedica os dois últimos e mais brilhantes capítulos de Die geistesgeschichtliche Lage des
heutigen Parlamentarismus.
De qualquer modo, é curioso perceber como nesse livro – e com mais força no
prefácio à sua segunda edição de 1926 – Schmitt começa a conceber o povo a partir de um
paradigma político de forte ilimitação, com o que poderá descrevê-lo em termos de poder
constituinte na Verfassungslehre, retirando-lhe as amarras próprias do poder constituído de
matriz liberal. Para tanto, segundo Dotti, a concepção original de representação política de
Schmitt, que a compreendia enquanto dispositivo teológico-político que vinha do alto,
precisou sofrer uma importante transformação, eis que na Verfassungslehre a representação
parte de baixo, percorrendo um movimento que vai do imanente ao transcendente, da vida
efetiva do povo enquanto grandeza política à afirmação da autoridade representativa, em
especial aquela do Poder Executivo16.
14
“Pode haver uma democracia sem o que é chamado de parlamentarismo moderno, bem como um
parlamentarismo sem democracia”. Original: “Es kann eine Demokratie geben ohne das, was man modernen
Parlamentarismus nennt und eine Parlamentarismus ohne Demokratie” (SCHMITT, Die geistesgeschichtliche
Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 41).
15
SCHMITT, Vorbemerkung, p. 21.
16
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 461.
Tal modificação parece ainda mais notável se comparada a uma das críticas
construídas em Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, a qual tinha a
ver exatamente com o caráter débil da representação parlamentar-burguesa que vinha de
baixo. Essa inflexão pode ser explicada porque Schmitt, em sua teoria constitucional,
diferentemente do que fazia a grande maioria dos constitucionalistas alemães, não relacionava
a representação política de maneira única e primordial ao Poder Legislativo que, afinal, ele
via como um grupo de debatedores individualistas e ocasionalistas. Ao contrário, a figura
forte da representação jurídico-constitucional schmittiana reside no Poder Executivo, ou seja,
naquele que deveria decidir sobre a exceção e proteger a Constituição, tudo com amplo e
irrestrito apoio popular por meio da aclamação e não através de técnicas liberais e privatistas
como as eleições.
Assim, essa centralidade e imensurabilidade do povo, que não pode ser contido pelas
redes do direito ordinário, não serve a Schmitt para fundamentar qualquer projeto democrático
substancial. Trata-se antes de um gesto que possibilita o afastamento de todos os dispositivos
liberais de controle; não para emancipar o povo e entregá-lo a si mesmo, mas para justificar a
solução autoritária e plebiscitária que mais e mais se insinuava nos escritos schmittianos do
final dos anos 20.
Concluindo a leitura de Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen
Parlamentarismus, parece-me que Schmitt percebe que o Parlamento não traduz de maneira
adequada a ideia de representação. O Parlamento da época de Carl Schmitt – e o da nossa
também, com muito mais razão – foi dominado por formas de direito privado tributárias da
economia liberal. Com efeito, uma organização política deixa de o ser quando se remete às
bases do direito privado, vaticina Schmitt. Dessa maneira, ainda que existam semelhanças,
por exemplo, entre um monarca absoluto e um empresário capitalista privado, há que se
reconhecer que são diferentes, em ambos os casos, a forma e o conteúdo da autoridade, seu
caráter público ou não e a representação porventura existente 17. Com a progressiva perda de
seu caráter público, o Parlamento se afasta cada vez mais da representação, cuja função – dar
visibilidade ao invisível – não pode ser realizada sem publicidade.
17
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, p. 33.
Segundo Schmitt, a confusão entre parlamentarismo e representação é típica do liberal
século XIX. Para o jurista alemão, a representação é algo muito mais complexo do que sua
mera e defeituosa tradução parlamentar. A representação não precisa apresentar
necessariamente qualquer caráter democrático – nem o parlamentarismo, muito embora
ambos os conceitos sejam confundidos –, dado que se trata da esfera de visibilização e
unificação do poder por meio de um ser de presença pública. Um nobre pode representar seu
príncipe como embaixador, pois ambos detêm certa dignidade, o que não acontece nas
negociações meramente econômicas, para as quais os reis enviavam meros “agentes” e não
embaixadores.
No que diz respeito à relação entre democracia e representação parlamentar, Schmitt
faz notar que o Parlamento representa o povo como um todo sem que, necessariamente, seja
eleito por todos os integrantes do povo, o que de fato seria impossível 18. No limite, pode haver
até mesmo um único homem que, por razões técnicas, decida em nome do povo 19. A ideia de
democracia, portanto, não se confunde com a ideia parlamentar, o que resta claro quando se
percebe que, apesar do Parlamento se definir como a primeira comissão eleita pelo povo, não
pode ser por ele revogada, permanecendo independente do povo por uma legislatura inteira20.
Mas se a representação não está no Parlamento, seu locus habitual e comum para
muitos pensadores da política e do direito, onde ela se encontra? Para responder tal questão,
Carl Schmitt apresenta sua noção acabada de representação política na Verfassungslehre
(Teoria da Constituição) de 1928, texto que, como nota Alexandre Franco de Sá, funciona
como um momento fundamental – e problemático – da obra de schmittiana. Nesse livro o
autor empreende a difícil tarefa de separar conceitualmente liberalismo e democracia, figuras
confundidas graças à sua comum atitude de repúdio diante do absolutismo monárquico 21. Tal
tarefa se inicia com a retomada da crítica à suposta representação parlamentar, de caráter
puramente quantitativo, bem como com a apresentação de outra dimensão – a única
verdadeira, na visão de Schmitt – da representação, que pode ser chamada de existencial,
sendo, portanto, genuinamente política.
No pensamento constitucional de Schmitt, representação e identidade são os dois
princípios políticos comuns a qualquer Estado. Nesse sentido, todo Estado se configura
18
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 44-45.
19
Lembrando-se da obra de Karl Löwenstein, Ellen Kennedy (comentadora do texto de Schmitt em sua tradução
inglesa, The crisis of parlamentary democracy) exemplifica este ponto, dado que para os partidários do rei na
Assembleia Nacional Francesa um único homem poderia representar o povo. Cf. LÖWENSTEIN, Volk und
Parlament nach der Staatstheorie der französichen Nationalversammlung von 1789.
20
SCHMITT, Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, pp. 42-43.
21
FRANCO DE SÁ, O poder pelo poder, p. 249.
mediante um jogo mais ou menos proporcional entre identidade e representação, sem o que
não alcançaria a necessária unidade. A identidade se relaciona à presença do povo – o qual,
para Schmitt, corresponde ao verdadeiro substrato do Estado –, enquanto a representação
garante a unificação popular por meio de homens que representam o Povo 22. Conforme ensina
Alexandre Franco de Sá, o princípio da identidade, de cariz democrático, é insuficiente para
se decidir sobre o caráter político de um Estado empiricamente dado. Por ser formal, o
princípio da identidade apenas afirma a coincidência dos governantes com os governados,
sendo necessária uma ulterior especificação – a qual se dá mediante a representação – para se
reconhecer a forma política em sua concretude 23. Segundo Carlo Galli, ambos os princípios
“constituyen la proyección política de la inseparabilidad de excepción y norma, de decisión y
orden, de energía y construcción afirmada en Teología política […]”24.
Assim, todas as formas políticas – monarquia, aristocracia, democracia etc. – se
constituem tendo em vista diferentes proporções de elementos identitários e representativos,
sendo impossível, para Schmitt, um Estado completamente identitário ou totalmente
representativo25. Até mesmo no caso hipotético de uma democracia direta haveria elementos
de representação, já que nem todas as pessoas que formam o povo unificado poderiam estar
presentes nos atos de legislação, como seria o caso, por exemplo, dos menores de idade.
Ademais, as pessoas que comparecem à arena democrática não o fazem na condição de
indivíduos privados, mas sim como cidadãos, o que envolve, uma vez mais, dinâmicas
representativas. Dessa feita, o princípio representativo é o remédio necessário à constante
vontade de identidade que assombra os Estados democráticos.
Já que não existe Estado sem representação, falar em democracia direta equivaleria a
postular uma espécie de dissolução da unidade política 26. Em todo Estado precisa haver um
22
Segundo Duso, não há uma contraposição total entre os princípios da identidade e da representação enunciados
por Schmitt, pois toda identidade exige um processo de identificação que só pode ser efetivado mediante lógicas
representativas, as quais põem em jogo o uno e o múltiplo que compõem o político. Cf. DUSO, La
rappresentanza politica, pp. 158-167.
23
“[...] a crença democrática nos princípios do auto-governo e da auto-determinação de um povo, a crença
democrática na identidade entre governantes e governados, consiste numa crença abstracta e geral, incapaz de
determinar por si qualquer forma política concreta. Qualquer tipo de governo, independentemente da sua
configuração concreta, poder-se-ia justificar democraticamente, através de um processo de identificação da
vontade de quem decide com a vontade do povo. E tal quereria dizer que, na sua pura formalidade, o princípio da
identidade requereria um segundo princípio – um princípio da representação – capaz de decidir concretamente a
identificação. Por outras palavras: tal quereria dizer que, enquanto princípio puramente formal e abstracto, o
princípio democrático da identidade não poderia deixar de evocar, como co-princípio determinante da forma
política, a decisão desta mesma forma política às mãos de um princípio da representação” (FRANCO DE SÁ, O
poder pelo poder, p. 257).
24
GALLI, La mirada de Jano, p. 68.
25
SCHMITT, Verfassungslehre, pp. 204-205.
26
26 “Antes de tudo, não há Estado sem representação. [...] Caso contrário, a democracia sem mediação não
significaria senão a dissolução da unidade política”. Original: “Es gibt zunächst keinen Staat ohne
Repräsentation. [...] Sonst würde unmittelbare Demokratie nichts anderes bedeuten als Auflösung der politischen
grupo de homens que possa dizer: “L’État c’est nous”. Bem se vê que Schmitt percebe a
função central da representação: garantir a unidade virtual da forma política, negando assim a
multiplicidade própria de formas democráticas não representativas como a multidão, tema
debatido no capítulo III.3.
Para Schmitt, a representação apresenta caráter necessariamente público, não podendo
se confundir com institutos do direito privado como o mandato, o encargo de negócios, a
comissão etc. Ao insistir no caráter público da representação, Schmitt polemiza com juristas
do século XIX que, a exemplo de Robert Mohl, não viam diferenças significativas entre a
representação (Repräsentation) e o mandato (Stellvertretung), eludindo assim o caráter
público da primeira, que parece essencial para sua configuração enquanto forma de
manutenção da unidade política27.
Praticamente na mesma época em que Schmitt escreve seu tratado de Direito
Constitucional, o jurista alemão Gerhard Leibholz sublinhou a diferença entre Repräsentation
e Vertretung. Segundo ele entende, a Repräsentation torna empiricamente perceptível a
realidade concreta do povo, que originariamente existe enquanto unidade ideal. Por outro
lado, a Vertretung constitui apenas um canal para a expressão de desejos dos sujeitos
particulares28. Do mesmo modo que Schmitt, Leibholz compreende a representação política
como uma técnica de visibilização e encarnação, não podendo se desenvolver em ambientes
privados nos quais a ideia de Povo unitário está ausente.
De fato, não pode haver representação política que se processe em segredo ou que
tenha o sentido de um negócio privado29. Tal indica que, seguindo o pensamento schmittiano,
o sequestro que hoje se assiste da representação política por parte dos poderes econômicos
equivaleria não à sua crise, mas à sua extinção. A denúncia de Schmitt dirigida contra o
domínio da representação por parte dos partidos políticos 30 equivale a uma inequívoca
demonstração não apenas da perda de visibilidade e publicidade do Parlamento, indicando
ainda a confusão entre as esferas representativas e as do puro mandato. Tal revela a
decadência do sistema de representação abraçado acriticamente pelo liberalismo. Da mesma
maneira, Leibholz afirma insistentemente – mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial
– que a representação política é incompatível com o Estado de partidos e que esse problema
31
LEIBHOLZ, La rappresentazione nella democracia, p. 169.
32
Original: “Repräsentieren heißt, ein unsichtbares Sein durch ein öffentlich anwesendes Sein sichtbar machen
und vergegenwärtigen” (SCHMITT, Verfassungslehre, p. 209).
33
“A dialética do conceito está em que se supõe como presente o imperceptível ao mesmo tempo em que se lhe
faz presente”. Original: “Die Dialektik des Begriffes liegt darin, daß das Unsichtbare als abwesend voraugesetzt
und doch gleichzeitig anwesend gemacht wird” (SCHMITT, Verfassungslehre, pp. 209-210).
34
DOTTI, La representación en Carl Schmitt, p. 465.
de todos, e não apenas a do representante 35. Ainda que, como visto, a posição de Schmitt
sobre o “alto” e o “baixo” tenha se modificado significativamente desde Römischer
Katholizismus und politische Form até Verfassungslehre, é exatamente por desconsiderar a
esfera dos representados enquanto dimensão efetivamente transcendente – dado que está
“embaixo” – que Schmitt pôde retomar o sentido puramente teológico-político-medieval da
representação política, cujo problema é constituir e legitimar o poder que vem “do alto”,
sendo sua base empírica uma condição operacional imprescindível para tanto. A
representação ocorre muito facilmente com o Deus da teologia cristã que, devido à sua
excelência, pode ser representado pela Igreja. Um processo similar se verifica no terreno
político, quando a ideia onicompreensiva de Povo unificado é constituída e trazida à luz pela
representação. Esse é o verdadeiro coração do conceito de representação no pensamento de
Schmitt, o que a torna atual enquanto existirem Estados e Povos, mesmo que sejam
pluralizados na dimensão retórica dos chamados Estados Democráticos de Direito.
Nessa perspectiva, não me parecem corretas as críticas segundo as quais a teoria da
representação de Schmitt seria incompatível com estruturas democráticas de mediação de
interesses plurais36. Em tais estruturas vale com toda força a dinâmica teológica segundo a
qual o invisível se faz visível – e, portanto, público – mediante a representação. Nesses casos,
o invisível – o inexistente, para uma filosofia radical da imanência – é exatamente o Povo
soberano, que recebe existência e visibilidade política graças à representação, e não devido a
elementos materiais porventura traduzidos nos mais diversos pluralismos sociais. Afirma
Schmitt: “[...] todo governo autêntico representa a unidade política de um povo, e não o povo
em sua presença natural”37.
Diante da realidade política decadente de seu tempo, quando o povo se traduzia como
massa disponível às manobras da esquerda e da direita, em sua teoria da representação
Schmitt tenta reconfigurá-lo enquanto poder constituinte. Assim o fazendo, ele estatiza o
povo, conclui Rodrigo Páez Canosa. Para tanto, o papel da representação é fundamental, dado
que só ela pode conferir forma ao povo tendencialmente impolítico e disforme 38. Todavia,
como bem se expressa Georges Didi-Huberman, a representação em Schmitt acaba sendo
problemática, já que pressupõe a unificação da noção de povo em sua negatividade e
35
Tal leitura da teoria da representação de Schmitt por parte de Voegelin já se encontra em sua resenha à
Verfassungslehre, sendo retomada posteriormente em The new science of politics. Cf. VOEGELIN, Die
Verfassungslehre von Carl Schmitt e VOEGELIN, The new science of politics.
36
Apenas a título de exemplo, cf. uma das formulações de tais críticas em CAMPDERRICH BRAVO, Estudio
preliminar, p. XXIV
37
“[...] jede echte Regierung die politische Einheit eines Volkes – nicht das Volk in seinem natürlichen
Vorhandensein – repräsentiert” (SCHMITT, Verfassungslehre, p. 212).
38
PÁEZ CANOSA, Aspectos de una subjetividad política estatal, p. 614.
impotência próprias. De fato, em Schmitt o povo não é algo que preexiste à representação,
não podendo ser traduzido enquanto entidade independente do processo representativo. Ao
contrário, o povo só se torna Povo quando aclama a liderança (Führertum39) que o constitui40.
Percebe-se então como a ideia de Povo representado é um conceito teológico secularizado
que surge da concepção do Deus representado pela Igreja. Em ambas as perspectivas,
representante é quem governa – seja a autoridade política ou a religiosa –, fazendo-o de modo
independente dos representados, sejam eles o povo real – que não se confunde com o Povo
governante – ou a evanescente ideia de Deus.
Excursus
TRANSCENDÊNCIA RECICLADA
39
No que diz respeito à ideia de Führertum durante o nacional-socialismo, deve ser considerado que para os
teóricos nazistas o conceito de Führer expressa precisamente a tentativa de abandonar o esquema representativo.
Para eles o Führer não é pensado enquanto representante do povo, “soberano” ou “ditador”, justamente porque
ele se revela como algo imanente ao próprio povo. Na imanência que se resolve em identidade repousa a
liderança do Führer. Nesse específico sentido, não se pode falar de uma liderança que constitui o povo nazista,
mas de uma liderança que emana desse mesmo povo.
40
DIDI-HUBERMAN, Rendre sensible, p. 82. Cf. também, entre as muitas intervenções de Schmitt sobre o tema
da aclamação, SCHMITT, Vorbemerkung, pp. 22-23.
41
Talvez o próprio Carl Schmitt tivesse plena consciência do caráter fictício da ideia de Povo homogêneo com a
qual opera. É a tese desenvolvida por Alexandre Franco de Sá, para quem a obra de Schmitt não pode ser
adequadamente compreendida sem se levar em conta a importância das ficções, de modo que a representação do
povo, entendido enquanto substância política primordial, constitui um dos elementos no combate pela ordem
levado a efeito por Schmitt com base na ideia de uma necessária ficção ou mito político. Cf. FRANCO DE SÁ,
O poder pelo poder, pp. 667-668.
42
DIDI-HUBERMAN, Rendre sensible.
pública – a arte e, em última instância, o artista separado da sociedade que a produz. Ainda
aqui se põe a tarefa central da representação, que consiste em falar pelo outro. Trata-se de um
movimento de silenciamento dos sujeitos concretos em nome daquele que assume sua voz,
seja ele o Presidente do Reich ou o Führer na visão de Schmitt, seja ele o artista ou o
arquivista sensível na proposta de Didi-Huberman, o que se comprova pela luxuosa e até
mesmo elitista exposição recentemente organizada por este último e que tem por tema,
paradoxalmente, levantes populares43.
Representar significa então falar pelo outro e, nesse sentido, para ser consequente com
a ideia de democracia radical desenvolvida na terceira parte deste trabalho, é preciso negar
veementemente a representação, não importa se política ou “sensível”, assumindo que os
povos – ou a multidão – são irrepresentáveis. Ainda que algum grau de mediação pareça ser
insuprimível e necessário para a organização de qualquer comunidade humana, o seu suposto
nível máximo e alienante, o da representação, deve ser resolutamente combatido. Propostas
“libertárias” e estetizantes como as de Didi-Huberman são perigosas, pois a pretexto de
desnaturar e “abrir” a representação, elas a mantêm intocada em sua essência alienante, a qual
sempre substitui as vozes dos muitos pelo discurso de um Outro.
Nessa perspectiva, mas de modo inverso, penso ser legítimo perguntar se a
representação política contemporânea não assume uma função contrária àquela que Schmitt
soube tão bem indicar como típica do conceito. A representação que nasce diretamente da
teologia cristã – e é assumida como modelo pela soberania moderna – tem a ver com a
visibilização do invisível. Já a representação política contemporânea, submetida a um
processo de esvaziamento e de erosão que data pelo menos dos anos 20 do século passado,
corresponderia antes a uma técnica de tornar invisível o visível, ou seja, as relações
econômicas e de poder privado que hoje colonizam as instâncias representativas.
Essa estrutura é lida por Alexandre Franco de Sá sob a chave do que ele chama de
criptopolítica44. Seguindo as indicações de Michel Foucault sobre a passagem do poder
soberano ao disciplinar, ou seja, a transformação de um poder eminentemente visível e
resplandecente em um poder discreto que age nos detalhes para constituir os sujeitos, Franco
de Sá entende que tal processo tem a ver com uma mudança no regime de visibilidade do
poder, o qual conhece hoje uma terceira metamorfose sob o pano de fundo do neoliberalismo.
Trata-se de uma nova criptopolítica das populações ainda mais terrível porque, ao visibilizar o
43
DIDI-HUBERMAN, Levantes.
44
FRANCO DE SÁ, Liberal democracy and domination: a cryptopolitics of populations.
objeto sobre o qual o poder é exercido – a “população” –, gera-se enquanto efeito necessário a
invisibilização do poder mesmo, que jamais se mostra enquanto tal, mas apenas sob as vestes
de imperativos supostamente técnico-econômicos. Nas palavras de Alexandre Franco de Sá:
45
FRANCO DE SÁ, Criptopolítica e populismo, fase superior do neoliberalismo?, pp. 5-6.
sucessivas do direito e da economia o desmintam sem cessar – sob o horizonte de uma
absolutização moderada do poder separado. Uma das dimensões centrais desse poder atende
hoje pelo nome de representação política, vista – graças a todas as suas vantagens
“evolutivas” – como algo incriticável e imune ao processo de destruição exigido por uma
filosofia radical pós-moderna resolutamente intranscendente e pouco inclinada a colaborar
com os “desenhos institucionais” dos vários níveis hierárquicos requeridos pelo jogo de
invisibilização do visível típico da criptopolítica, cuja função é ocultar, em pleno século XXI,
o caráter absoluto, incontrolado e transcendente do poder, ainda que ele se mostre sob vestes
jurídicas, econômicas e (neo)liberais, pretendendo não ser reconhecido como aquilo que de
fato é: violência oligárquica, mando sem fundamento, ódio à democracia.