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Observatório de Políticas

Públicas para a Agricultura nº24 - março 2009

A POLÍTICA NACIONAL DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
DOS POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS – ENTRE CONFLITOS
E CONQUISTAS
Silvia A. Zimmermann*

D esde o início de seu mandato, o Gover-


no Lula se propôs a diversificar o âm-
bito de beneficiários de suas políticas
públicas. A instituição, pelo Decreto nº
6.040/2007, da Política Nacional de Desenvol-
A criação da PNPCT foi envolvida por mui-
tas polêmicas, que poderiam ser resumidas da
seguinte forma: as relacionadas à dimensão con-
ceitual das temáticas relacionadas; as relativas
ao universo de abrangência da categoria “povos
vimento Sustentável dos Povos e Comunidades e comunidades tradicionais”; e a definição do
Tradicionais (PNPCT) se deu nesse sentido. Essa número de categorias incluídas na política, na
política entende que, num país tão diverso em época mais de dez: Povos Indígenas, Comunida-
sua composição étnica e cultural, é um grande des Remanescentes de Quilombos, Ribeirinhos,
desafio estabelecer e implementar políticas pú- Extrativistas, Quebradeiras-de-Coco-Babaçú,
blicas para promoção do bem-estar social dessas Pescadores Artesanais, Seringueiros, Geraizei-
populações que, muitas vezes, encontram-se na ros, Vazanteiros, Pantaneiros, Comunidades de
invisibilidade, sendo socialmente excluídas por Fundos de Pastos, Caiçaras, Faxinalenses, den-
pressões econômicas, fundiárias ou por proces- tre outros. Atualmente, esse universo está ainda
sos discriminatórios. mais amplo.
Dividida em princípios gerais e objetivos Em fevereiro de 2009, a PNPCT comple-
específicos, a política está estruturada em quatro tou dois anos, e ainda parecem mal equaciona-
grandes eixos: I) garantia de acesso a territórios das questões relacionadas ao reconhecimento
tradicionais e aos recursos naturais; II) infra-es- de terras quilombolas, à demarcação de áreas
trutura; III) inclusão social e educação diferencia- indígenas, aos conflitos em torno da construção
da; e IV) fomento à produção sustentável. de barragens e hidrelétricas, à extração susten-
Representantes do Ministério do Meio tável dos recursos naturais entre outros. No tex-
Ambiente (MMA) e do Ministério do Desenvolvi- to, pretende-se revisitar três dos quatro eixos da
mento Social (MDS) ocupam, respectivamente, a PNPCT e comentar alguns conflitos e ações do
secretaria-executiva e a presidência da Comissão governo e da sociedade civil originados neste
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, processo.
criada em agosto de 2006, com a finalidade de O primeiro eixo, relativo ao acesso a terri-
coordenar a elaboração e implementação da po- tórios tradicionais e aos recursos naturais, é cer-
lítica. Uma série de debates públicos, promovidos tamente um dos mais polêmicos. Aqui, enqua-
por essa Comissão, antecedeu a PNPCT. Com o dra-se o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do
objetivo de operacionalizar a política, o MDS criou Sol, cuja homologação contínua foi feita em abril
o Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais, de 2005 e julgada legítima pelo STF em dezem-
composto por técnicos da área de antropologia e/ bro de 2008. A área da União que estava sendo
ou com experiência específica junto aos povos e ocupada há mais de vinte anos por arrozeiros foi
comunidades tradicionais.

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Artigos Mensais OPPA - nº24 - março 2009

palco de uma série de conflitos entre estes e os Esse quadro de crescente dificuldade na
indígenas. Como estratégia para agilizar o pro- garantia de acesso ao território e aos recursos
cesso e reduzir os conflitos, a União transferiu naturais pelas comunidades tradicionais expõe,
por Decreto (nº 6.754/2009) as terras para o Es- de uma forma geral, outra carência: a necessida-
tado de Roraima, o que facilita que as terras se- de de uma política mais consistente de reforma
jam preferencialmente utilizadas em atividades agrária para o Brasil, a qual inclua essas popu-
de conservação ambiental e desenvolvimento lações. Não subestimando as boas intenções en-
sustentável, assentamento, colonização e regu- volvidas na PNPCT, não há menção nem em seu
larização fundiária. Embora tenha sido determi- texto, nem nos decretos vinculados, sobre como
nada a retirada dos não-indígenas da área, in- equacionar as problemáticas já citadas, o que
cluindo os arrozeiros, até 30 de abril de 2009, a amplia os conflitos em torno do acesso a terra e
questão segue cercada de disputas políticas. ao uso dos recursos naturais.
Os conflitos em torno do acesso dos po- O segundo eixo da PNPCT trata de infra-
vos e comunidades tradicionais aos territórios estrutura para esses grupos. No entanto, a ques-
também estão presentes no reconhecimento de tão polêmica aqui se relaciona às obras federais
áreas quilombolas, a exemplo de Sapê do Norte destinadas a beneficiar a população de modo ge-
no Espírito Santo, da Marambaia no Rio de Janei- ral, mas que têm impactos nas áreas dos povos
ro, do Pontal dos Crioulos em Sergipe, de Minas e comunidades tradicionais. Destacam-se o caso
Novas em Minas Gerais, e de Alcântara no Ma- da construção da BR 163 (que liga o estado do
ranhão. A edição do Decreto nº 4.887/2003, Mato-Grosso ao Pará), a hidrelétrica do Belo
que dá poderes ao Incra para identifi- Monte no Rio Xingu, a transposição do
car e destinar às comunidades qui-
lombolas as terras por elas tra- A ocupação Rio São Francisco, a hidrelétrica Ti-
juco Alto (entre São Paulo e Para-
dicionalmente ocupadas, vem e uso sustentável ná), a Hidrelétrica do Madeira,
sofrendo uma série de ten- a área de lançamento de fo-
tativas de derrubada desde das áreas mencionadas guete em Alcântara no Ma-
sua criação. Destaca-se o
PDL 44/2007, cujo objeti-
esbarra nas contradições ranhão. Esses projetos têm
gerado conflitos das mais
vo é sustar a aplicação do em torno do projeto de diversas ordens, indicando
decreto federal antes men- um descompasso entre a
cionado. Segundo os seus desenvolvimento proposto PNPCT e projetos de infraes-
críticos, vários de seus pon-
tos, entre os quais o direito
e implementado pelo trutura em áreas desses gru-
pos populacionais.
à autoidentificação e à desa- Governo Federal A ocupação e uso susten-
propriação para remanescentes tável das áreas mencionadas es-
das comunidades de quilombos, não barra nas contradições em torno do
estariam previstos por lei ou pela Consti- projeto de desenvolvimento proposto e im-
tuição. Até o momento, o texto está em análise plementado pelo Governo Federal. Por envolver
na Comissão de Constituição e Justiça e de Cida- interesses políticos e econômicos, certamente é
dania, provocando protestos e debates. uma questão muito delicada e por isso tratada
Entre os fatores que pressionam o entor- com cautela. Destaca-se aqui a proposta do Fó-
no das áreas dos povos e comunidades tradicio- rum Amazônia Sustentável, a qual tem por fina-
nais estão o avanço das fronteiras econômicas lidade criar um espaço de diálogo entre empre-
do país – agrícola, madeireira e mineral – e a sas, governos e organizações da sociedade civil
construção das grandes obras de infraestrutu- para estudar e apontar alternativas e modelos
ra, especialmente de transporte e energia, para de desenvolvimento sustentáveis para a Amazô-
atender às demandas de crescimento econômi- nia. Isso, no entanto, não está em andamento
co. Somam-se a essas pressões outros elementos em outras regiões do país.
que tornam a implementação da política ainda O terceiro eixo da PNPCT trata do fomento
mais conturbada: o processo de reconhecimento a produção sustentável. Aqui o conflito está em
das áreas de povos e de comunidades tradicio- torno da extração sustentável dos recursos na-
nais, e das suas populações; a intensificação da turais, como a Lei de Cultivares nº 9.456/1997,
exploração dos recursos naturais; e a crescente a defesa da produção agroecológica e dos sis-
demanda econômica desses grupos, diante de temas agroflorestais. Há hoje uma proposta de
mudança em seus hábitos de consumo. alteração da lei que, segundo representantes

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de agricultores familiares e de povos e comuni- participado de debates sobre o decreto que irá re-
dades tradicionais, ameaçaria o direito dessas gulamentar o Fundo Nacional de Desenvolvimen-
populações às sementes. O PL 2.327/2007, de- to Florestal (FNDF) e estão presentes na Política
batido pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Indianista, em elaboração, e de debates sobre o
Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câ- Programa Territórios da Cidadania e na Política
mara dos Deputados, ainda não foi aprovado. Nacional de Manejo Comunitário e Familiar.
Ele propõe alterar a atual lei atual e permitir que Não obstante os problemas e desafios que
empresas possam proteger e obter exclusivida- a PNPCT vem enfrentando em sua implementa-
de na reprodução e comercialização de varieda- ção, pode-se afirmar, de uma forma geral, que a
des de sementes. A lei em vigor, fruto de intenso política teve efeitos positivos. Seu mérito reside,
debate, garantiu o direito aos pequenos produ- antes de tudo, em reconhecer as desigualdades
tores da guarda, da troca e do uso de sementes sofridas pelos povos e comunidades tradicionais
na safra seguinte. e trazê-las para o debate público, fortalecendo
Diante das polêmicas vinculadas ao eixo, a participação de representantes desses grupos
duas novas propostas do Governo Federal estão sociais nos espaços políticos, sejam eles formais
em curso: a criação de um Plano Nacional para ou informais. Nesse processo, apesar das contro-
Promoção dos Produtos da sociobiodiversidade vérsias, foram criadas novas categorias sociais
e a fixação de preços mínimos para produtos que vêm lutando por reconhecimento político.
extrativistas. O primeiro foi debatido em 2008 e É certo que as polêmicas em torno das
ainda não está concluído. O segundo, aprovado definições conceituais e da abrangência das ca-
pelo Conselho Monetário Nacional, encontra-se tegorias da PNCPT ainda não foram superadas.
em andamento, mas até o momento só inclui Basicamente, as disputas observadas na revisão
quatro produtos: borracha natural, açaí, pequi dos três eixos da política exigem não apenas a
e castanha de babaçu. A intenção é melhorar a garantia da igualdade dos direitos, mas, sobre-
capacidade produtiva, promover a autossusten- tudo, o reconhecimento da igualdade dos seres
tação e apoiar a comercialização dos produtos humanos e dos direitos daí decorrentes. O que
pelos povos e comunidades tradicionais. vai além muito além de uma política pública.
Para além da PNPCT, a visibilidade que
povos e comunidades tradicionais vêm experen- * Engenheira agrônoma, Doutoranda CPDA/UFRRJ e Assistente
ciando é fruto de um trabalho sócio-político que de Pesquisa do OPPA
estimulou a ampliação da participação desses
grupos na esfera pública e política, resultando no
aumento de suas organizações e mobilizações. A
influência no Poder Judiciário pode ser observa-
da pela criação de uma rede jurídica na América
do Sul, de defesa da Amazônia e seus Povos. Os
povos e comunidades tradicionais também têm

Observatório de Políticas
Coordenador
Públicas para a Agricultura
Sergio Leite
Pesquisadores
Georges Flexor, Jorge Romano, Leonilde Medeiros, Nelson
Delgado, Philippe Bonnal, Renato S. Maluf, Lauro Mattei e Endereço: Av. Presidente Vargas, 417 / 8º andar
Ademir A. Cazella Centro Rio de Janeiro - RJ CEP 20071-003
Assistentes de Pesquisa
Karina Kato, Silvia Zimmermann e Catia Grisa Telefone: 21 2224 8577 – r. 214
Fax: 21 2224 8577 – r. 217
Secretária Correio eletrônico: oppa@ufrrj.br
Diva de Faria Sítio eletrônico: www.ufrrj.br/cpda/oppa

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Desenvolvimento Agrário

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