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Maria Amália Pie Abib Andety


Nilza Micheletto
Tereza Maria de Azevedo Pires Sério
Denize Rosana Rubano
Melania Moroz
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Sílvia Catarina Gioia
Mônica Helena Tieppo Alves Gianfaldoni
Márcia Regina Savioli

PS
Maria de Lourdes Bara Zanotto

U
RO
PARA COMPREENDER
G
S
A CIÊNCIA
K

U M A PERSPECTIVA H ISTÓ R IC A
O
BO
EX
D
IN

ESWO

edue U
EMPO

São Paulo / Rio de Janeiro


1996

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©Autoras, 1988, 1996

Catalogação na Fonte - Biblioteca Central/PUC.-SP


Para compreender a ciência; uma perspectiva histórica / Maria Amália Andery... et al. -
6, ed. rev. e ampL - Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: São Paulo: EDUC, 1996.

p. 436; 21 cm.

PS
Inclui bibliografia.
ISBN: 85-283-0097-8

U
1. Ciência - Metodologia. 2. Ciência - Filosofia. I. Andery, Maria Amália.

RO
II. Pontifícia Uniyersidade Católica de São Paulo.
CDD 500.18
501
G
S
K
O
BO
EX

Produção Editorial
Eveline Bouteiller Kavakama
D

Maria Eliza Mazzilli Pereira


IN

Revisão
Sonia Montone
Berenice Haddad Aguerre

Editoração Eletrônica
Elaine Cristine Fernandes da Silva Capa
Maurício Fernandes da Silva Cláudio Mesquita

EDUC - Editora da PUC-SP Editora Espaço e Tempo


Rua Monte Alegre, 984 Rua Santa Cristina, 18
05014-001 - São Paulo - SP 20451-250 - Rio de Janeiro - RJ
Fone: (011) 873-3359 - Fax: (011) 62-4920 Tel.: (021) 232-5474

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CAPÍTULO 3

O PENSAMENTO EXIGE MÉTODO,


O CONHECIMENTO DEPENDE DELE

PS
Durante o período clássico (séculos V e IV a.C.), como nos anteriores,

U
o desenvolvimento das várias regiões da Grécia foi desigual, tanto na orga­
nização econômica como política. Algumas cidades-Estado da Grécia, no en­

RO
tanto, atingiram, nesse período, seu mais alto grau de desenvolvimento: dentre
essas cidades destaca-se Ateras.
Nessas poleis - em especial em Atenas - atingiram-se, nesse período,
G
o aprofundamento e a consolidação da democracia grega, que permanecia
fundada no trabalho escravo e acabava por implicar o desprezo dos cidadãos
S
pelo trabalho manual. A riqueza dos cidadãos estava baseada na propriedade
K

da terra, embora houvesse cidadãos não-proprietários que se ocupavam de


várias funções na cidade. Os pequenos proprietários de terras, que constituíam
O

a maior parte dos cidadãos, trabalhavam com suas famílias na terra, em geral
BO

auxiliados por um ou dois escravos.


Os escravos que se constituíam na maioria da população eram funda­
mentais para a economia. Eram responsáveis pela extração de prata (única
atividade proibida aos cidadãos por ser considerada degradante), trabalhavam
EX

nas oficinas artesanais, nas atividades domésticas, em várias tarefas de fun­


cionários de Estado e nas propriedades rurais. Eram, ainda, alugados aos
pequenos proprietários nas épocas de colheita e plantio.
D

Além dos escravos e cidadãos, a cidade-Estado contava também com


IN

grande número de estrangeiros (gregos de outras cidades e bárbaros). Estes,


sem direito à propriedade da terra, eram na maioria artesãos e mercadores,
importantes à economia tanto pela atividade produtiva como pelos impostos
obrigatórios que pagavam, dos quais os cidadãos eram isentos. O grande
número de estrangeiros e a situação econômica vivida nesse período deram
origem a uma restrição do conceito de cidadão, que passou a ser apenas o
indivíduo nascido de pai e mãe gregos.'
A economia era baseada numa política de importação de alimentos,
matérias-primas e escravos e numa política de exportação de vinho, azeite e
cerâmica. Em Atenas, também eram fundamentais à economia a produção de

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prata e as contribuições compulsórias pagas, por outras cidades gregas, pela


sua proteção. Segundo Florenzano (1982), o excedente da economia (advindo
das exportações) era investido basicamente na construção de monumentos,
na manutenção dos escravos do Estado, do exército e da frota marítima e no
abastecimento de cereais, e nunca reinvestido na produção, Outros autores
salientam que a construção de monumentos e obras públicas, como os portos,
tinha o objetivo de criar empregos para uma parcela de cidadãos, como os
artesãos, que não era possuidora de propriedades, e que gastos com a manu­
tenção do exército e da frota marítima atendiam aos interesses de hegemonia

PS
militar e econômica de Atenas sobre outras cidades gregas.
Embora persistissem diferenças de poder político, associadas a diferen­

U
ças de riqueza, a todos os cidadãos atenienses era garantido o direito de
participação nas decisões políticas. Nesse período, a democracia expandiu-se

RO
de forma que a participação política incluía não apenas a aprovação de de­
cisões, mas também a discussão e a tomada de decisão sobre os rumos e as
leis da cidade e, até mesmo, de decisões relativas ao poder judiciário, como
G
o julgamento de pessoas e de atos executados por aqueles que estavam en­
volvidos em atividades públicas. O próprio preenchimento de alguns cargos
S
públicos, como o de juiz, passou a ser feito por mandatos de tempo prefixado
K

e por sorteio; e a participação nas assembléias assim como o desempenho


O

das funções de Estado passaram a ser remunerados como forma de permitir


a participação de todos os cidadãos e não apenas dos mais ricos e, portanto,
BO

com tempo disponível.


Os séculos V e IV a.C. foram os séculos em que Atenas viveu seu
apogeu econômico e político, mas foram também séculos de grande contur-
EX

bação e crises constantes. As cidades-Estado gregas, nesse período, estavam


em constante guerra umas com as outras, na tentativa de garantir sua hege­
monia. Atenas comandou várias lutas contra cidades lideradas por Esparta e
D

por certo tempo manteve sua hegemonia, perdendo-a quando perdeu a guerra
do Peloponeso1. Além da luta pela hegemonia entre as cidades-Estado, os
IN

persas mantiveram guerras com várias cidades gregas, inclusive Atenas,


ameaçando, assim, a independência da civilização grega. Ao lado dessas cri­
ses, as cidades-Estado, e dentre elas Atenas, foram marcadas por sucessivas
conturbações internas. Dois partidos políticos, atendendo a diferentes inte-

1 Guerra iniciada em 431 a.C. e encerrada em 405 a.C., entremeada de períodos de paz.
Duas ligas de cidades-Estado dela participaram, sendo a liga do Peloponeso liderada por
Esparta e a liga de Delos liderada por Atenas; cidades que lutavam por uma hegemonia
inclusive comercial. A batalha de Egos Potamos, vencida por Esparta, marcou o fim da
hegemonia ateniense.

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resses, alternaram seu domínio: de um lado o Partido Agrário ou Aristocrá­


tico, de outro o Partido Marítimo ou Democrático.
Todo o desenvolvimento de Atenas e a crise vivida pela cidade trans­
formaram-na na cidade grega mais importante do período. Sua importância
militar, econômica e política refletiu-se em sua vida cultural e intelectual, e
Atenas transformou-se em importante centro de debates e de efervescência
política e cultural. À cidade acorriam os homens interessados nas artes e na
filosofia e aí permaneciam os atenienses que se preocupavam com tais ques­
tões. Como resultado, a cidade conheceu, nesse período, um surpreendente
desenvolvimento das artes, da ciência e filosofia.

PS
Finalmente, em 338 a.C., os macedônicos, que além dos persas vinham
ampliando seu império, submeteram toda a Grécia, e Atenas também, a seu

U
domínio. A partir dai todas as cidades gregas perderam sua independência

RO
política e econômica.
Do ponto de vista da produção de conhecimento, três pensadores mar­
caram esse período - Sócrates, Platão e Aristóteles. Todos eles viveram em
G
Atenas, pelo menos durante o período central de sua produção, e todos eles
têm uma obra que influenciou não apenas o momento histórico que viveram,
S
mas também o próprio desenvolvimento da filosofia e da ciência.
K

Sócrates, Platão e Aristóteles contrapunham-se aos pensadores jónicos


porque traziam para o centro de suas preocupações o homem, em lugar da
O

natureza física dos jónicos, e porque viam esse homem como capaz de pro­
BO

duzir conhecimento por possuir uma alma, absolutamente diferenciada do


corpo e essencial. Esses pensadores caracterizaram-se por suas reflexões sobre
as bases para a produção de conhecimento rigoroso. Todos eles estavam en­
volvidos na busca de formas de ação que levariam o homem a produzir
EX

conhecimento, e todos propuseram métodos para isso.


A proposição de métodos para a produção de conhecimento do e
D

para o homem está associada à crença de que pela via do conhecimento


das verdades, pela via do conhecimento objetivo, seria possível formar os
IN

cidadãos e, portanto, seria possível transformar a cidade para que essa


fosse melhor e mais justa. Acreditavam que o conhecimento - a filosofia
- tinha uma função social, e a formação de suas escolas é demonstração
disso. Pela primeira vez, fundavam-se instituições particulares com a preo­
cupação de transmitir e produzir conhecimento (e não importa que cada
uma delas fosse marcada por concepções metodológicas e prioridades di­
ferentes). Pela primeira vez, também, a formação dos cidadãos foi enca­
rada como sendo tarefa fundamental para que se pudesse transformar (ou
manter) a sociedade.

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OS SOFISTAS

Nesse contexto de crescente participação política na vida da pólis, a


filosofia torna-se um instrumento de educação nas mãos de um grupo de
“ sábios” : os sofistas (sábio é o sentido original da palavra sofista). Do que
escreveram, muito pouco restou e, de uma maneira geral, o que deles se sabe
é por meio de Platão e Aristóteles, que deles discordavam.
Esse grupo de homens - dentre os quais podem ser citados Protágoras
de Abdera (480 a.C. aproximadamente), Górgias de Leôncio (483-375 a.C.),
Crítias de Atenas (455-403 a.C.), Hípias de Ellis (morto em 343 a.C.) e

PS
Antifonte (do qual muito pouco se sabe) - não constituiu uma escola, uma
vez que defendia muitas vezes posições distintas e tinha concepções diversas

U
sobre a natureza, os deuses, etc. Entretanto, como afirma Romeyer-Dherbey
(1986), tem em comum “(...) um determinado conjunto de temas, como o

RO
interesse prestado a problemas sobre a linguagem, à problemática das relações
entre a natureza e a lei, por exemplo” (p. 10).
Talvez mais importante, os sofistas, em perfeita consonância com seu
G
tempo, mantinham uma prática que os distinguia e os caracterizara: eram
homens que iam de cidade em cidade com 0 fim de transmitir aos filhos dos
S
cidadãos, por um preço estipulado, uma educação que lhes garantisse a par­
K

ticipação e o sucesso na vida pública e na política. Além de transmitirem


O

conhecimentos vários, então considerados relevantes para a formação do ci­


dadão, valorizavam e ensinavam a retórica e a arte de argumentar, que con­
BO

sideravam indispensáveis a tal formação. Acreditavam que o sucesso de um


homem era devido à sua capacidade de convencer o outro de seus argumentos.
Como afirma Romeyer-Dherbey, “ os sofistas foram profissionaris do saber” .
EX

A palavra é uma grande dominadora, que com pequeníssimo e sumamente


invisível corpo, realiza obras divinissimas, pois pode fa zer cessar o medo e
tirar as dores, infundir a alegria e inspirar a piedade... O discurso, persua­
D

dindo a alma, obriga-a, convencida a ter f é nas palavras e a consentir nos


IN

fatos... A persuasão, unida à palavra, impressiona a alma como quer... O


poder do discurso com respeito à disposição da alma é idêntico ao dos remé­
dios em relação à natureza do corpo. Com efeito, assim como os diferentes
remédios expelem do corpo de cada um diferentes humores, e alguns fazem
cessar o mal, outros a vida, assim também, entre os discursos alguns afligem
e outros deleitam, outros espantam, outros excitam até o ardor os seus ouvin­
tes, outros envenenam e fascinam a alma com persuasões malvadas. (Górgias,
Elogio de Helena, 8, 12-14, em Mondolfo, 1967)

Os sofistas acreditavam, também, que essa capacidade de argumentação


podia ser ensinada, que a natureza humana podia ser moldada ao se transmitir

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maneiras de comportamento e formas de atuação adequadas, e por isso foram


considerados os primeiros pedagogos,
Declaro ser eu um sofista e instruir os homens... Oh, jovenzinho! se vieres a
mim poderás comprovar, no mesmo dia, que, ao voltar à tua casa, j á estarás
melhor, e o mesmo acontecerá no dia seguinte e cada dia farás progressos
para o melhor... (Platão, Protágoras, 317-319, em Mondoifo, 1967)

A possibilidade de preparar homens para a política por meio do ensino


da argumentação e do raciocínio argutos e rigorosos combinava-se, para os
sofistas, com a defesa que faziam de que as leis eram um conjunto de con­

PS
venções humanas que poderiam ser transformadas dependendo dos interesses
humanos e até mesmo dos interesses individuais. Para tanto, bastava a habi­

U
lidade para convencer outros.
Houve um tempo em que a vida dos homens era desordenada, cruel e escrava

RO
da força, quando nenhum prêmio havia para os bons, nem nenhum castigo
para os maus. E parece-me que, mais tarde, os homens tenham estabelecido
as leis punitivas, para que a jitstiça reinasse soberana sobre todos igualmente,
G
e tivesse como sua servidora a força: e castigava a quem pecasse. E como
depois as leis impediam que cometessem abertamente atos violentos, eles os
S
faziam ocultamente; parece-me, então, que um homem prudente e de espírito
sábio inventou, para os homens, o temor aos deuses, para que os malvados
K

temessem até no fazer, dizer ou pensar ocidtamente... E [com istoj acabou


O

com as violações às leis. (Crítias, Fragmento 25, em Mondoifo, 1967)


BO

As leis, assim como as instituições da pólis, eram tidas, portanto, como


construções humanas, como relativas a uma cultura e, assim, como passíveis
de serem mudadas a depender dos interesses humanos e da cultura. Desse
modo, pelo menos para alguns deles, a justiça, as virtudes ou as diferenças
EX

entre os homens não eram atribuídas a divindades. É a Protágoras que se


atribui a afirmação:
D

Quanto aos deuses não posso saber se existem, nem se não existem, nem qual
possa ser sua forma; pois muitos são os impedimentos para sabê-lo, a obscu­
IN

ridade do problema e a brevidade da vida do homem. (Fragmento em Diógenes


Laércio, IX, 51, em Mondoifo, 1967)

A esse agnosticismo soma-se, entre os sofistas, uma defesa da igualdade


natural entre os homens, o que é coerente com sua posição de defesa da
democracia e com sua crença na construção humana das instituições sociais.
Respeitamos e veneramos quem è de nobre origem, porém não respeitamos
nem veneramos aquele que tem um obscuro nascimento. Assim agindo uns a
respeito dos outros mostramos o nosso espírito bárbaro. Somos por natureza
absolutamente iguais, todos, bárbaros e Helenos... Pois todos respiramos o ar

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pela boca e pelo nariz... (Antifonte, Fragmento II, lacunos do papiro de Oxir-
rinco, em Mondolfo, 1967)

Com os sofistas inaugura-se assim uma enorme ênfase no indivíduo


que moida e é moldado pela cultura, pelas convenções humanas. Essa con­
cepção, com sua marca de relativismo, toma o indivíduo o centro da preo­
cupação dos sofistas. Mais uma vez, uma frase atribuída a Protágoras é es­
clarecedora: “(...) o homem é a medida de todas as coisas, das que são
enquanto são, e das que não sâo enquanto não são ” (Platão, Teetetos, 151­
152, em Mondolfo, 1967).
Essa afirmação tem sido alvo de distintas interpretações filosóficas,

PS
como esclarecem Mondolfo (1967) e Romeyer-Dherbey (1986): há, de um
lado, os que a interpretam como uma proposição relativa ao gênero humano,

U
de outro, os que a interpretam como uma asserção sobre o indivíduo particular
que então seria visto como juiz supremo dos fatos. Essa segunda interpretação

RO
supõe um extremado subjetivismo por parte dos sofistas. Seja qual for a
interpretação que se adote, é importante ressaltar aqui a centralidade do ho­
mem e o subjetivismo, quase decorrência de seu relativismo, como marcas
G
que parecem ter caracterizado os sofistas.
S
SÓCRATES (469-399 a.C. aproximadamente)
K
O

Reputava a loucura contrária à sabedoria. Mas não considerava


a ignorância como loucura, dissesse embora vizinhar a demência
BO

o não conhecer-se a si mesmo e acreditar se saiba o que se ignore.


Xenofonte
EX

Filho de um escultor ou pedreiro e de uma parteira, nasceu no século


em que Atenas atingiu o apogeu na filosofia, em que fundou suas primeiras
instituições filosóficas e em que a matemática e a astronomia desenvolve­
D

ram-se enormemente.
IN

Há controvérsias sobre o pensamento de Sócrates. Alguns estudiosos


chegam a suspeitar que o pensamento a ele atribuído foi, na realidade, ela­
borado por outros pensadores. Isso se deve ao fato de que Sócrates nada
escreveu e tudo o que dele se conhece advém de escritos como os de Platão,
Xenofonte, Aristóteles e outros. Outros estudiosos, no entanto, apesar de re­
conhecerem a dificuldade histórica de descobrir o que, nos textos que a ele
se referem, é, ou não, pensamento de Sócrates, não têm qualquer dúvida de
sua existência e de sua importância como filósofo. O próprio fato de Sócrates
nada ter escrito é interpretado por tais estudiosos (Jaeger, 1986; Mondolfo,
1967; Wolff, 1984) como parte de seu compromisso com o método por ele

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proposto, que exigia de cada um o autoconhecimento, que só poderia ser


descoberto por meio do diálogo constante e da troca de idéias; o que não
poderia ser obtido mediante um texto estático. Um dos primeiros fatos a se
destacar sobre Sócrates é sua oposição a um importante grupo de pensadores
da Grécia de sua época - os sofistas. Apesar de ter mantido contato com
eles, Sócrates deles divergia tanto na sua maneira de pensar como de ser.
Sócrates opunha-se radicalmente ao relativismo dos sofistas. Acreditava
e defendia que havia valores e virtudes permanentes e que precisavam ser
conhecidos para serem seguidos em defesa do bem de todos e não de alguns.
Diferentemente dos sofistas, não se preocupava com certas convenções, como

PS
a forma de se vestir, dado que acreditava que importante era o que ia dentro
dos homens, sua alma. Era profundamente respeitador das leis e das normas

U
da cidade, considerando-se e comportando-se como um bom cidadão. Além
disso, supunha que, em princípio, todos os homens eram iguais e que todos

RO
poderiam descobrir em si mesmos a bondade e sabedoria que traziam em
suas almas, se corretamente orientados para isso. Propunha-se a ensinar a
todos quantos se dispusessem a aprender, também porque se acreditava como
G
um escolhido dos deuses para tal fiinção. Sua vida e forma de atuar eram,
para ele e seus seguidores, um exemplo daquilo que defendia.
S
Para Sócrates, a sabedoria dependia de conhecer-se a si mesmo e do
K

conhecimento e controle de seus próprios limites; o reconhecimento de sua


própria ignorância, por parte de cada indivíduo, consistia, assim, no primeiro
O

passo, absolutamente necessário, para o verdadeiro saber. Sócrates acreditava


BO

que os homens precisavam reconhecer que tinham conhecimentos errôneos,


inclusive de si mesmos. Acreditava que essa era uma empresa difícil, mas
fundamental. Mostrar-lhes tal ignorância também era sua tarefa. A partir desse
passo, o conhecimento de si (e daquilo que importava, os universais) era
EX

possível e indispensável porque os homens, possuidores de uma alma indis­


sociável de seu corpo, aspiravam ao Bem, e só não eram capazes de reco­
nhecê-lo e praticá-lo por causa de sua ignorância. O homem - suas virtudes,
D

seu comportamento e seu conhecimento - era o centro, portanto, das preo­


IN

cupações de Sócrates.
O conhecimento das virtudes humanas, como a coragem, a justiça, de­
pendia, para Sócrates, do conhecimento da Virtude, do Bem; e isso era visto
como algo imutável e universal. Era o conhecimento desses universais que
os homens deviam buscar e, uma vez descobertos, tais conhecimentos natu­
ralmente levariam os homens a praticá-los em seu benefício e do próximo.
O conhecimento era, portanto, visto como mecanismo de aprimoramento do
homem e da sociedade, e, para Sócrates, o conhecimento era autoconheci­
mento, porque os homens já os traziam em sua alma, necessitando apenas
descobri-lo pelo esforço da busca de si mesmos.

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Na medida em que Sócrates acreditava poder descobrir o Bem, e que


acreditava ser possível levar os homens a descobri-lo, destaca-se dos pensa­
dores que o precederam por considerar e por incluir como fundamental a
reflexão moral, a reflexão sobre o homem, como tema da filosofia e do
conhecimento. Sócrates não buscava o conhecimento da natureza, mas o co­
nhecimento dos homens e da sociedade. Pelo menos tão importante como
esse aspecto, é o fato de Sócrates considerar que o conhecimento verdadeiro,
mesmo em se tratando do homem e dos seus valores, é o conhecimento de
universais e não de instâncias ou fenômenos particulares. A filosofia trataria
de coisas permanentes e essenciais, e não do mutável. Segundo Mondolfo

PS
(1967), Sócrates, “(...) Com a indução, trata sempre de obter dos exemplos
particulares o conceito universal, em que se acham compreendidos todos os

U
casos particulares, e quer determiná-los por meio da definição” (p. 252).
A Virtude e o Bem são entendidos como conceitos universais e imu­

RO
táveis, que servem de critério e de guia para toda ação particular e para toda
a vida da cidade: como conceitos universais adquirem objetividade e podem
ser descobertos e partilhados por todos que se submeterem a apreendê-los.
G
Seu objeto de estudo é, assim, a descoberta desses universais, e seu método
de investigação, a maneira de a eles chegar, faz parte integrante de sua con­
S
cepção. Sócrates pratica seu método na forma como atua e relaciona-se com
K

os outros. Seu método é a ironia.


O

A investigação que leva ao conhecimento, a ironia, só poderia, para


Sócrates, ser praticada pelo diálogo. E por meio do diálogo que o aprendiz
BO

chegaria a descobrir em sua alma o conhecimento. Nesse diálogo, Sócrates


fazia o papel do animador e do filósofo, que coloca as perguntas e provoca
o aprendiz, levando-o a penetrar em si mesmo e descobrir as verdades. Para
EX

Sócrates, o conhecimento não podia ser transmitido como mero conjunto de


regras já estabelecidas. Tinha de ser descoberto pelo homem, pelo indivíduo,
em si mesmo. Só assim os homens reconheceriam como conhecimento o que
D

aprendiam e só aprendiam consigo mesmos. Por isso o diálogo, como forma


de ensinar, como maneira de formar o homem, era tão íiindamental. A ironia
IN

socrática (e o diálogo) compunha-se de dois momentos - a refutação e a


maiêutica. O primeiro momento da investigação era, para Sócrates, a refuta­
ção. Sempre por meio do diálogo com outro, que não era fechado ou dog­
mático, mas, pelo contrário, aberto e sem um fim predeterminado, o aprendiz
descobria os erros do que pretendia conhecer, descobria a sua ignorância e,
assim, preparava-se para o verdadeiro conhecimento.

Estrangeiro: Quanto ao outro método, parece que alguns chegaram, após ama­
durecida reflexão, a pensar da seguinte forma: toda ignorância é involuntária,
e aquele que se acredita sábio se recusará sempre a aprender qualquer coisa

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de que se imagina esperto, e, apesar de toda a punição que existe na admoes­


tação, esta form a de punição tem pouca eficácia.
Teeteto: Eles têm razão.
Estrangeiro: E propondo livrar-se de tal ilusão, se armam contra ela, de um
novo método.
Teeteto: Qual?
Estrangeiro: Propõem, ao seu interlocutor, questões às quais acreditando res­
ponder algo valioso ele nâo responde nada de valor; depois, verificando f a ­
cilmente a validade de opiniões tão errantes, eles as aproximam em sua crítica,
confrontando umas com as outras, e por meio deste confronto demonstram
que a propósito do mesmo objeto, sob os mesmos pontos de vista, e nas mesmas

PS
relações, elas são mutuamente contraditórias. Ao percebê-lo, os interlocutores
experimentam um descontentamento para consigo mesmos, e disposições mais

U
conciliatórias para com outrem. Por esse tratamento, tudo que neles havia de
opiniões orgulhosas e frágeis lhes é mrebatado, ablação em que o ouvinte

RO
encontra o maior encanto, e o paciente o proveito mais duradouro. Há, na
realidade, um princípio, meu jovem amigo, que inspira aqueles que praticam
este método purgativo; o mesmo que diz, ao médico do corpo, que da alimen­
tação que se lhe dá não poderia o corpo tirar qualquer proveito enquanto os
G
obstáculos internos não fossem removidos. A propósito da alma formaram o
mesmo conceito: ela não alcançará, do que se lhe possa ingerir de ciência,
S
beneficio algum, até que se tenha submetido à refutação, e que p o r esta re­
K

futação, causando-lhe vergonha de si mesma, se tenha desembaraçado das


opiniões que cetram as vias do ensino e que se tenha levado ao estado de
O

manifesta pureza e a acreditar saber justamente o que ela sabe, mas nada
além. (Platão, Sofista, 230, c, d)
BO

Descoberta sua ignorância, o aprendiz estava preparado para o segundo


momento do método socrático, a maiêutica. Ainda por meio do diálogo, o
aprendiz descobria os conhecimentos que já parecia ter dentro de si, em sua
EX

alma. Aqui o filósofo, o animador, como que conduzia o aprendiz para que
ele retirasse de dentro de si um conhecimento que de certa forma preexistia,
D

que transcendia casos particulares, portanto, o conhecimento de um universal,


e do homem sobre si mesmo, um conhecimento ético, moral.
IN

- E não owiste, pois, dizer que sou filho de uma parteira muito hábil e séria,
Fenareta?
- Sim, já ouvi dizer isso.
- E ouviste também que me ocupo igualmente da mesma arte?
- Isso não.
- Pois bem, deves saber que é verdade... Reflete sobre a condição da parteira
e compreenderás mais facilmente o que quero dizer. Tu sabes que nenhuma
delas assiste às parturientes, quando ela mesma se encontra grávida ou par­
turiente, mas unicamente quando não se acha em estado de dar à luz... E não
é natural e necessário que as mulheres grávidas são melhor auscultadas pelas

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parteiras do que por outras?


- Certamente.
- E as parteiras têm remédios e podem, por meio de cantilenas, excitar os
esforços do parto e fazê-los, se quiserem, mais suaves, e aliviar as que têm
um parto muito laborioso, e fazer abortar quando sobrevem um aborto pre­
maturo.
- Assim o é efetivamente.
- Ora bem, toda minha arte de obstetra é semelhante a essa, mas difere en­
quanto se aplica aos homens e não às mulheres, e relacionando-se com as
suas almas parturientes e não com os corpos. Sobretudo, na nossa arte há a
seguinte particularidade: que se pode averiguar por todo o meio se o pensa­

PS
mento do jovem vai dar à luz a algo de fantástico e de falso, ou de genuíno
e verdadeiro. Pois acontece também a mim como às parteiras: sou estéril de

U
sabedoria: e o que muitos têm reprovado em mim, que interrogo os outros, e
depois não respondo nada a respeito de nada por falta de sabedoria, na ver­

RO
dade pode me ser censurado. E é esta a causa: que Deus obriga-me a agir
como obstetra, porém veda-me de dar à luz. E eu, pois, não sou sábio, nem
posso mostrar nenhuma descoberta minha, gerada por minha alma; mas os
que me freqüentam, a princípio (alguns também em tudo) ignorantes; mas
G
depois, adquirindo familiaridade, como assistidos pelo deus, obtêm proveito
admiravelmente grande, como parece a eles próprios e aos outros. E não
S
obstante é manifesto que nada aprenderam comigo, mas encontraram por si
K

mesmos, muitas e belas coisas; que já possuíam (...). Confia então em mim,
como filho de parteira, e parteiro que sou; e as perguntas que eu te fizer,
O

trata de responder da maneira que puderes. E se depois, examinando alguma


das coisas que disseres, eu julgá-la imaginária e não verdadeira, e por isso
BO

separá-la e a dissecar, não te ofendas, como fazem as primíparas com os


filhinhos. (Platão, Teetetos, 148-151, em Mondolfo, 1967)

A importância do pensamento de Sócrates revela-se não só pelo fato


EX

de ter influenciado tão grandemente pensadores que o sucederam. Sua noção


de conhecimento, por exemplo, parece indicar a noção de reminiscência de
Platão, e o próprio Aristóteles afirma que Sócrates introduz a questão dos
D

conceitos universais e da indução. Sócrates é importante também pelo fato


IN

de que, indubitavelmente, respondendo às necessidades de seu tempo, foi


capaz de somar à preocupação com o conhecimento da natureza a preocupa­
ção com o conhecimento do homem e da sociedade e de seus aspectos éticos
e políticos. Com Sócrates a visão naturalista de homem é substituída, ou pelo
menos complementada, por uma visão ética de homem. No entanto, essa ética
é transformada, também com Sócrates, em conhecimento rigoroso. Mesmo o
conhecimento sobre o homem é visto como conhecimento daquilo que é
permanente e universal; e, dessa fornia, a ética, a política e o próprio homem
como ser social tornam-se objetos de conhecimento rigoroso e deixam de ser
meros objetos de especulação.

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PLA TÃ O (426-348 a.C . aproxim adam ente)

O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores,


imaginações de toda sorte enfim, uma infinidade de bagatelas
que, por seu intermédio, não recebemos na verdade nenhum pen­
samento sensato, não, nem uma vez sequer!
Platão

PS
Platão nasceu em Atenas, filho de família aristocrática. Viajou pelo
menos duas vezes a Siracusa, onde parece ter atuado politicamente, aplicando
suas idéias àquela cidade, sem sucesso. Passou todo o restante de sua vida

U
em Atenas.

RO
Diferentemente de Sócrates, com quem manteve contato e que o in­
fluenciou em sua juventude, Platão tem uma vasta obra escrita, da qual boa
parte se conservou (é por seu intermédio, inclusive, que se tem acesso a
muito do que se sabe de Sócrates). Sua obra foi escrita na forma de diálogo
G
e, além do imenso valor literário, tem enorme importância para a filosofia e
a ciência. O diálogo, além de permitir uma forma de expressão literária muito
S
rica, parece ter tido, para Platão, importância do ponto de vista metodológico.
K

Permitia-lhe demonstrar que o conhecimento, que para ele era fruto da re­
O

flexão do homem consigo mesmo, dependia, para ser atingido, da argumen­


tação e da discussão que eram forma de se validar cada passo da reflexão.
BO

A preocupação de Platão com a construção do conhecimento e com


a formação dos homens explicitou-se em sua obra escrita e também
esteve presente na fundação da Academia. A Academia (fundada em 387
EX

a.C.) pretendia ser uma escola onde se ensinaria aos futuros cidadãos filo­
sofia. preparando assim os possíveis faturos governantes. A Academia não
era aberta a todo e qualquer cidadão. Platão acreditava que a obtenção de
D

conhecimento e a sua transmissão não eram tarefas de e para todos os ho­


mens, mas apenas daqueles que, por natureza (por sua álma), tinham as con­
IN

dições para tanto. Estes, por meio do conhecimento, transformavam-se em


homens melhores e preparavam-se para o governo da cidade.
Platão foi, no entanto, muito mais que um educador. Elaborou um sis­
tema filosófico e um método de investigação que objetivavam o que consi­
derava o verdadeiro saber. Era esse saber que, para ele, permitiria aos homens
construírem uma cidade justa e mais perfeita. A política, a transformação da
sociedade e o governo constituíam-se, assim, na pedra de toque de seu sis­
tema. Ao se propor a produzir conhecimento, tinha como objetivo criar as
condições que julgava necessárias para a construção de uma cidade justa.
Para isso considerava indispensável descobrir as verdades sobre as coisas,

67
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ensinar pessoas a proceder a essas descobertas e, então, aplicá-las à consti­


tuição e ao governo da sociedade.
Platão, dessa maneira, alinha-se a seu mestre, Sócrates. Buscava no
conhecimento daquilo que considerava a essência das coisas o conhecimento
verdadeiro, o caminho para a solução da vida humana. Acreditava, ainda,
que o conhecimento que era possível, embora exigisse um árduo trabalho, era
o conhecimento do próprio homem. Com isto não queria dizer o conheci­
mento de seu corpo, mas o conhecimento contido na alma, aquilo que tomava
o homem humano. O conhecimento daquilo que a alma continha era, para

PS
Platão, o conhecimento das verdades essenciais, imutáveis e fonte de tudo
aquilo que existia no mundo sensível. Como Sócrates, Platão colocava a filo­

U
sofia a serviço da condição humana e, como Sócrates, acreditava que

RO
esse conhecimento não era o conhecimento das técnicas e do mundo empí­
rico, que certamente considerava importante para a reprodução da vida coti­
diana do homem, mas que não o conduzia à felicidade e ao Bem. Dessa
G
maneira, o verdadeiro saber era contemplativo, um saber que não criava ob­
jetos, que apenas determinava parâmetros e critérios a serem atingidos. No
S
entanto, exatamente por permitir tais critérios, exatamente por permitir a con­
K

templação da verdade, permitiria aos homens atuar melhor, julgar com justiça
e governar com sabedoria.
O

Platão acreditava que os homens eram dotados não apenas de corpo


BO

mortal, mas também de alma imortal, que era imaterial, da qual provinham
todos os conhecimentos:
(...) a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado de capacidade de
EX

pensar, ao que tem uma form a única, ao que é indissolúvel e possui sempre
do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é
D

humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a


^ 2
decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. (Fedon, 80a, b)
IN

Essa alma, além de eterna, depois da morte do corpo, reencamava-se em


outro corpo; Platão abria exceção para a alma que
(...) se ocupa, no bom sentido, com a filosofia, e que, de fato, sem dificuldade
se prepara para morrer. [Esta alma] (...) se dirige para o que é invisível, para
o que é divino, imortal e sábio (...) ela passa na companhia dos deuses o resto
do seu tempo. (Fedon, 80c, 81a)

2 Neste capítulo, as citações de Platão, com exceção daquelas referentes às obras Timeo
e A república, foram retiradas do volume Platão, Coleção Os Pensadores (Pessanha, 1983).

68

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Os conhecimentos que os homens detinham eram possíveis, pois suas


almas teriam já esses conhecimentos, antes de serem aprisionadas no corpo.
Platão afirmava que:
(...) o [conhecimento] adquirimos antes do nascimento, uma vez que ao nascer
já dele dispúnhamos, podemos dizer, em conseqüência, que conhecíamos tanto
antes como logo depois de nascer, não apenas o Igual, como o Maior e o
Menor (...) mas também o Belo em si mesmo, o Bom em si, o Justo, o Piedoso,
e de modo geral, digamos assim, tudo o mais que é a Realidade em si. (Fedon,
75c-d)

PS
Ao afirmar que o conhecimento preexistia na alma humana, Platão não
estava afirmando que todos os homens possuíam (ou poderiam vir a possuir)

U
os mesmos conhecimentos, assim como não estava afirmando que os homens

RO
tinham de pronto consciência desse conhecimento - que sabiam o que co­
nheciam. Por considerar que nem todas as almas tinham tido igual acesso ao
mundo das idéias, Platão não as supunha com igual capacidade ou possibi­
lidade de conhecer. O conhecimento verdadeiro - ou reconhecimento - exigia
G
um metódico esforço do homem para que sua alma se lembrasse, para que
o saber fosse, finalmente, adquirido.
S
Esse saber real (e não a mera opinião) era o conhecimento daquilo que
K

era uno e imutável. Era o conhecimento da idéia, da essência que era universal
O

e não particular, imutável e não efêmera, necessária e não contingente. É por


isso que Platão buscava, por exemplo, a Justiça e não as qualidades que
BO

definem este ou aquele homem como justo, e buscava, acima de tudo, o Bem,
aquilo que a tudo une e a tudo dá sentido.
Platão supunha a existência de dois mundos: o mundo das idéias, en­
EX

tendidas como invisíveis, eternas, incorpóreas, mas reais, e o mundo das


coisas sensíveis, o mundo dos objetos e dos corpos. E assim que pode ser
interpretada a resposta que Platão dá à questão da origem do cosmo, ou seja,
D

se o cosmo existiu sempre, não tendo, portanto, nenhum começo, ou se se


pode encontrar um começo para o cosmo:
IN

Nasceu posto que é visível e tangível, e porque tem corpo. Com efeito\ todas
as coisas deste tipo são sensíveis e tudo que é sensível e se apreende por
intermédio da opinião e da sensação está evidentemente sujeito ao devenir e
ao nascimento. Assim, segundo dissemos, é necessário que tudo que nasceu
tenha nascido pela ação de uma causa determinada. (Timeo, 28b-d)

Platão supunha, assim, a necessidade de um criador para o mundo sen­


sível e esclarece como este criador o produziu:
Assim, se o Cosmos é belo e o demiurgo [seu criador] é bom é evidente que
põe seus olhares no modelo eterno. (...) E absolutamente evidente para todos

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que levou em conta o modelo eterno. Pois o Cosmos é o mais belo de tudo o
que fo i produzido e o demiurgo é a mais perfeita e a melhor das causas. E,
em conseqüência, o Cosmos feito nestas condições fo i produzido de acordo com
o que é objeto de intelecção e reflexão e é idêntico a si mesmo. ( Timeo, 29a)

Esse artesão divino, ao produzir o mundo, produziu tanto os objetos


sensíveis como suas imagens: “Eis, pois, as duas obras da produção divina:
de um lado, a coisa em si mesma; e de outro, a imagem que acompanha
cada coisa” (Sofista, 266c). Da mesma forma como o divino artesão, o ho­
mem também era capaz de produzir coisas e também o fazia em dois planos:

PS
Mas que diremos da nossa arte humana? Não afirmaremos que, pela arte do

U
arquiteto, se a ia uma casa real. e, pela arte do pintor, uma outra casa, espécie
de sonho apresentado pela mão do homem a olhos despertos? (Sofista, 266c)

RO
O poder de transformação do homem, no entanto, restringia-se a apenas
uma esfera da criação divina: o mundo das coisas sensíveis, esse mundo que
G
não era imutável, que se transformava, se decompunha. Q homem não ope­
rava, portanto, sobre o mundo das idéias, do qual o mundo empírico era uma
cópia imperfeita. A esse respeito, Platão afirmava:
S
K

Estamos, pois, de acordo, quando, ao ver algum objeto, dizemos: “Este objeto
que estou vendo tem tendência para assemelhar-se a um outro ser, mas, por
O

ter defeitos, não consegue ser tal como o ser em questão, e lhe é, pelo con­
BO

trário, inferior. ” Assim, para podermos fazer estas reflexões, é necessário que
antes tenhamos tido ocasião de conhecer este ser de que se aproxima o dito
objeto, ainda que imperfeitamente. (Fedon, 74d, e)
EX

Sobre o mundo das idéias podia-se obter conhecimento, porém sem


jamais ser capaz de transformá-lo. O conhecimento desse mundo só era pos­
sível porque
D

(...) poder-se-ia supor que perdemos, ao nascer, essa aquisição anterior ao


IN

nosso nascimento, mas que mais tarde, fazendo uso dos sentidos a propósito
das coisas em questão, reaveríamos o conhecimento que num tempo passado
tínhamos adquirido sobre elas. Logo, o que chamamos de "instruir-se" não
consistiria em reaver um conhecimento que nos pertencia? E não teríamos
razão de dar a isso o nome de “recordar-se”? (Fedon, 75e)

A suposição da existência de dois mundos, o das idéias e o das coisas


sensíveis, está relacionada à distinção que Platão faz entre dois tipos de co­
nhecimentos possíveis, cada um deles relativo a um desses mundos: a opinião,
referente ao mundo sensível (os objetos e suas imagens); e a filosofia, refe­
rente ao mundo das idáias-que-eta.visto ctfmo o real objeto do conhecimento

70
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Como já foi dito, o conhecimento do mundo sensível, para Platão, es­


tava limitado a mera opinião. Embora necessário, era reduzido a simples
técnica (téchne) que permitia a sobrevivência do homem. Já o conhecimento
referente ao mundo das idéias era o verdadeiro saber, o verdadeiro conheci­
mento (épisthéme), um conhecimento apenas contemplativo, mas que levaria
o homem a ter possibilidade de transformar e melhor governar a cidade.
Na alegoria da caverna, Platão explora as dificuldades de se chegar ao
verdadeiro conhecimento - o conhecimento do inteligível - e a necessidade
de se passar da contemplação das coisas sensíveis às próprias idéias, impreg­
nadas na alma.

PS
• (...) representa da seguinte forma o estado de nossa natureza relativamente à

U
«j*' instrução e à ignorância. Imagina homens em morada subterrânea, em form a
■s de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes

RO
homens ai se encontram desde a infância, com as pernas e o pescoço acor-
VT rentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante

í
deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes vem de um fogo
aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles; entre o fo g o e os prisioneiros
G
passa um caminho elevado; imagina que ao longo deste caminho, ergue-se
um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches
S
erigem à frente deles e por cima dos quais exibem suas maravilhas.
(...)
K

'

Figura, agora, ao longo deste pequeno muro homens a transportar objetos de


O

todo gênero, que ultrapassam o muro, bem como estatuetas de homens e ani­
mais de pedra, de madeira e de toda espécie de matéria; naturalmente, entre
BO

estes portadores, uns falam e outros se calam.


(...) um estranho quadro e estranhos prisioneiros!
(■
■■
)
EX

(...) tais homens só atribuirão realidade às sombras dos objetos fabricados


(■■■)■ ‘

( ...)
D

Considera agora, o que lhes sobrevirá naturalmente se forem libertos das


cadeias e curados da ignorância. Que se separe um desses prisioneiros, que
IN

o forcem a se levantar imediatamente, a volver o pescoço, a caminhar, a erguer


os olhos à luz: ao efetuar todos esses movimentos sofrerá, e o ofuscamento o
impedirá de distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco. O que
achas, pois, que ele responderá se alguém lhe vier dizer que tudo quanto vira
até então eram apenas vãos fantasmas, mas que presentemente, mais perto da
realidade e voltado para objetos mais reais, vê de maneira mais justa? Não
crês que ficará embaraçado e que as sombras que via há pouco lhe parecerão
mais verdadeiras do que os objetos que ora são mostrados?
(...)
E se o forçam a fitar a própria luz, não ficarão os seus olhos feridos? Não
tirará dela a vista, para retotyar às coisas que pode olhar, e não crerá que

71

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estas são realmente mais distintas do que as outras que lhe são mostradas?
(...) '

Necessitará, penso, de hábito para ver os objetos da região superior. Primeiro


distinguirá mais facilmente as sombras, depois as imagens dos homens e dos
outros objetos que se refletem nas águas, a seguir os próprios objetos. Após
isso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da lua, contemplar mais
facilmente durante a noite os corpos celestes e o céu mesmo, do que durante
o dia o sol e sua luz.
(...)
Por fim, imagino, há de ser o sol, não suas vãs imagens refletidas nas águas
ou em qualquer outro local, mas o próprio sol em seu verdadeiro lugar, que

PS
ele poderá ver e contemplar tal como é.
(...)

U
Depois disso, há de concluir, a respeito do sol, que é este que fa z as estações
e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é causa

RO
de tudo quanto ele via, com os seus companheiros, na caverna,
(...)
Imagina ainda que este homem tom e a descer à caverna e vá sentar-se em
G
seu antigo lugar, não terá ele os olhos cegados pelas trevas, ao vir subitamente
do pleno sol?
(...)
S
E se, para julgar estas sombras, tiver que entrar de novo em competição, com
K

os cativos que não abandonaram as correntes, no momento em que ainda está


com a vista confusa e antes que seus olhos se tenham reacostumado (...), não
O

provocará riso à própria custa e não dirão eles que, tendo ido para cima,
BO

voltou com a vista arruinada, de sorte que não vale mesmo a pena tentar
subir até lá? (...)
(...)
(...) cumpre aplicar ponto por ponto esta imagem ao que dissemos mais acima,
EX

comparar o mundo que a vista nos revela à morada da prisão e a luz do fogo
que a ilumina ao poder do sol. No que se refere à subida à região superior
e à contemplação de seus objetos, se a considerares como a ascenção da alma
D

ao lugar inteligível (...) tal é minha opinião: no mundo inteligível, a idéia do


bem é percebida por último e a custo, mas não se pode percebê-la sem concluir
IN

que é a causa de tudo quanto há de direito e belo em todas as coisas; que


ela engendrou, no mundo visível, a luz e o soberano da luz; que, no mundo
inteligível, ela própria é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e
que é preciso vê-la para conduzir-se com sabedoria na vida particular e na
vida pública. -
(...)
Devemos, pois, se tudo isto fo r verdade, concluir o seguinte: a educação não
é de nenhum modo o que alguns proclamam que ela seja; pois pretendem
introduzi-la na alma, onde ela não está, como alguém que desse a visão a
olhos cegos.
(...) "

72

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A educação é, portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão da alma,


e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de operá-la, ela não consiste
em dar a vista ao órgão da alma, pois que este já o possui; mas como ele
está mal disposto e não olha para onde deveria, a educação se esforça p o r
levá-lo à boa direção. (A república, VII, 514a-519a)

Ao falar desses dois mundos e do conhecimento deles, Platão estabe­


leceu, em A república, uma analogia entre o Sol, “(..) cuja luz permite que
os olhos vejam da maneira possível e os objetos visíveis sejam vistos e a
idéia do Bem (...) que difunde a luz verdadeira sobre os objetos do conhe­

PS
cimento e confere ao sujeito conhecedor o poder de conhecer” (A república,
508a, c, d, e). Essa analogia mostra que, para Platão, o verdadeiro conheci­
mento, ao mesmo tempo que iluminava o homem, permitindo-lhe melhor

U
conhecer, era, ele próprio, iluminador, o conhecimento esclarecia, dava traas-
parência à realidade, No entanto, esse conhecimento não era dado ao homem

RO
e, para a ele chegar, era necessário galgar vários degraus. Esse percurso ini­
ciava-se no mundo sensível e terminava quando se atingia o mundo das
idéias. Continuando a analogia entre o conhecimento e a luz, Platão explicita
G
esse caminho:
S
, —Concebe portanto, como dizemos, que sejam dois reis, um dos quais reina
K

sobre o gênero e o damínio do inteligível e outro, do visível: não digo do céu,


\,Ç> p or medo de que vás pensar que jogo com palavras. Mas consegues imaginar
O

% estes dois gêneros, o visível e inteligível?


- Imagino, sim.
BO

- Toma, pois, uma linha cortada em dois segmentos desiguais, um repre­


sentando o gênero visível e outro o gênero inteligível, e secciona de novo cada
segmento segundo a mesma proporção; terás então, classificando as divisões
obtidas, conforme o seu grau relativo de clareza ou de obscuridade, no mundo
EX

visível, um primeiro segmento, o das imagens - denomino imagens primeiro


as sombras, depois os reflexos que avistamos nas águas, ou à superfície dos
corpos opacos, polidos e brilhantes, e todas as representações similares; tu
D

me compreendes?
- Mas sim.
IN

- Estabelece agora que o segundo segmento corresponde aos objetos repre­


sentados p or tais imagens, quero dizer, os animais que nos circundam, as
plantas e todas as obras de arte.
- Fica estabelecido.
- Consentes também em dizer - perguntei - que, com respeito à verdade e a
seu contrário, a divisão fo i feita de tal modo que a imagem está para o objeto
que ela reproduz como a opinião está para a ciência?
- Consinto na verdade.
- Examina, agora, como é preciso dividir o mundo inteligível.
- Como?
- De tal maneira que, para atingir uma de suas partes, a alma seja obrigada

73

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a servir-se, como de outras tantas imagens, dos originais do mundo visível,


procedendo, a partir de hipóteses, não rumo a um princípio, mas a uma con­
clusão; enquanto, para alcançar a outra, que leva a um princípio an-hipotético,
ela deverá, partindo de uma hipótese, e sem o auxílio das imagens utilizadas
no primeiro caso, desenvolver sua pesquisa por meio exclusivo das idéias to­
madas em si próprias.
- Não compreendo inteiramente o que dizes.
- Pois bem! Voltemos a isso; compreenderás, sem dúvida mais facilmente,
depois de ouvir o que vou dizer. Sabes, imagino, que os que se aplicam à
geometria, à aritmética ou às ciências deste gênero, supõem o par e o impar,
as figuras, três espécies de ângulos e outras coisas da mesma família, para

PS
cada pesquisa diferente; que, tendo admitido estas coisas como se as conhe­
cessem, não se dignam dar as razões delas a si próprios ou a outrem, julgando

U
que são claras a todos; que enfim, partindo daí deduzem o que se segue e
acabam atingindo, de maneira conseqüente, o objeto que a sua indagação

RO
visava.
- Sei perfeitamente disso.
- Sabes, portanto, que eles se servem de figuras visíveis e raciocinam sobre
elas, pensando, não nestas figuras mesmas, porém nos originais que reprodu­
G
zem; seus raciocínios versam sobre o quadrado em si e a diagonal em si, não
sobre a diagonal que traçam, e assim no restante; das coisas que modelam
S
ou desenham, e que têm suas sombras e reflexos nas águas, servem-se como
K

outras tantas imagens para procurar ver estas coisas em si, que não se vêem
de outra form a exceto pelo pensamento.
O

- É verdade.
- F.u dizia, em conseqüência, que os objetos deste gênero são do domínio
BO

inteligível, mas que, para chegar a conhecê-los, a alma é forçada a recorrer


a hipóteses: que não procede então rumo a um princípio, porquanto não pode
remontar além de suas hipóteses, mas emprega, como outras tantas imagens,
os originais do mundo visível, cujas cópias se encontram na seção inferior, e
EX

que, relativamente a estas cópias, são encarados e apreciados como claros e


distintos.
Compreendo que o que dizes se aplica à geometria e às artes da mesma
D

família.
- Compreende, agora, que entendo por segunda divisão do mundo inteligível
IN

a que a própria razão atinge pelo poder da dialética, formulando hipóteses


que ela não considera princípios, mas realmente hipóteses, isto é, pontos de
partida e trampolins para elevar-se até o princípio universal que já não pres­
supõe condição alguma; uma vez apreendido este princípio, ela se apega a
todas as conseqüências que dele dependem e desce assim até a conclusão, sem
recorrer a nenhum dado sensível, mas tão-somente às idéias, pelas quais pro­
cede e às quais chega.
- Compreendo-te um pouco, mas não suficientemente, pois me parece que
tratas de um tema muito árduo; queres distinguir, sem dúvida, como mais
claro, o conhecimento do ser e do inteligível, que se adquire pela ciência
dialética, daquele que se adquire pelo que chamamos as artes, às quais as

74

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hipóteses ser\>em de princípios, é verdade que os que se aplicam às artes são


obrigados a fazer uso do raciocínio e não dos sentidos: no entanto, como nas
suas investigações não remontam a um princípio, mas partem de hipóteses,
não crês que tenham a inteligência dos objetos estudados, ainda que a tivessem
partindo de um princípio; ora, denominas conhecimento discursivo, e não in­
teligência, o das pessoas versadas na geometria e nas artes semelhantes, en­
tendendo com isso ser este conhecimento intermediário entre a opinião e a
inteligência.
- Tu me compreendes suficientemente - disse eu. - Aplica agora a estas quatro
divisões as quatro operações da alma: a inteligência à mais alta, o conheci­
mento discursivo à segunda, à terceira a f é e à última a imaginação; e as

PS
ordena, atribuindo-lhe mais ou menos evidência, conforme os seus objetos
participem mais ou menos da verdade.
- Compreendo - disse ele. - Estou de acordo contigo e adoto a ordem que

U
propões. (A república, VI, 509c, d até 511c, e)

RO
Assim, pode-se supor que para Platão o processo de conhecimento en­
volvia diferentes objetos e diferentes operações da alma necessárias à apreen­
são de tais objetos: o conhecimento começava com as imagens dos objetos
G
sensíveis, às quais correspondia só uma “ representação confusa” . Passava-se
a seguir aos próprios objetos do mundo sensível, aos quais correspondia uma
S
“ representação nítida”, que levava à crença; tanto a representação confusa
K

como a representação nítida referíam-se ao mundo sensível, mundo esse pas­


sível apenas de um conhecimento no nível da opinião. A partir do conheci­
O

mento desse mundo sensível, para atingir as idéias, passava-se por um estágio
intermediário em que se lidava com objetos distintos dos objetos do mundo
BO

sensível, mas que mantinham relação com ele (por exemplo, uma figura de
quadrado), mas ainda não eram idéias puras (não se lidava ainda com idéia
de quadrado).
EX

Egse terceiro estágio envolvia o conhecimento e o uso da matemática.v-


Segundo Jaeger (1986), as matemáticas permitiam “(...) uma idéia de saber
de uma exatidão e perfeição da prova e da construção lógica como o mundo
D

não sonhara sequer” (p. 619). Daí seu valor como instrumento para o co­
IN

nhecimento e como instrumento que, numa certa medida, preparava o homem


para utilizar a dialética, último estágio metodológico para o conhecimento. \
Pela matemática , a alma transferia-se do mundo sensível para o conceituai.''

3 Ao valorizar as matemáticas como procedimento e como instrumento necessário à edu­


cação, Platão, numa certa medida, valorizava Pitágoras e os pitagóricos. Ao associar, como
Pitágoras, as noções de número (da aritmética) e de forma (da geometria), Platão deu um
imenso passo em direção ao conhecimento abstrato, e, nesse caso, sem grande dificuldade,
visto que a noção de número é perfeitamente compatível com a noção de perfeição asso­
ciada à idéia.

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Partindo de fenômenos perceptíveis pelos sentidos, estabeleciam-se hipóteses


- que não podiam ser justificadas - e, por meio da demonstração, elabora­
vam-se princípios que não mais se referiam ao sensível. Nesse momento do
conhecimento, portanto, não apenas se produzia um conhecimento que não
mais se referia ao mundo sensível, mas sim ao inteligível, como também se
preparava o espírito para a utilização da dialética.
Ainda segundo Jaeger (1986), “(...) o dialético é o homem que com­
preende a essência de cada coisa [a idéia], e sabe dar conta dela” (p. 473).
A dialética ensina a “perguntar e responder cientificamente” de forma que
se é capaz de discernir a idéia, separá-la das demais e delimitá-la. Para isso,

PS
o diálogo era empregado de maneira positiva - isso é, com o objetivo de se
obter uma resposta - em que cada passo deveria ser justificado e validado.
Era, portanto, pelo diálogo que se penetrava a essência, a idéia. Na dialética,

U
assim, além de se partir de um princípio e de se chegar a uma afirmação
verdadeira, procedia-se por passos, numa discussão em que se submeteria à

RO
fiscalização e se fiscalizava todo o percurso do conhecimento, de forma que
ele era, finalmente, trazido à tona pelo sujeito do conhecimento.
A dialética, segundo Allan (1970), G
(...) integrará num único sistema coerente a nossa experiência fragmentária,
S
não por mera reunião e conjunção dos fragmentos, mas sim através de uma
K

apreensão intuitiva de uma verdade nuclear necessária (a forma do bem) donde


poderá ser deduzida toda a verdade parcial sem risco de errar. (p. 135)
O

Para Platão, filósofo era aquele que tivesse alcançado esse estágio do
BO

conhecimento; que tivesse, portanto, se desligado do mundo sensível e as­


cendido ao mundo inteligível, por meio do conhecimento das idéias. O filó­
sofo era aquele que conhecia contemplativamente o real.
A concepção que Platão tem de conhecimento está relacionada a sua
EX

concepção de sociedade; mais do que isso, prepara e justifica para aquilo


que Platão defendia para a sociedade na qual vivia - a cidade grega. Platão
pretendia organizar a cidade de forma a mantê-la estável, ordenada; essa
D

organização e estabilidade - ditadas pela razão - dependiam basicamente da


IN

divisão do trabalho e do estabelecimento de leis. A divisão do trabalho (atri­


buindo a cada um atividade correlata à sua natureza) era vista como estando
estreitamente vinculada ao surgimento da cidade:
O que dá nascimento a uma cidade (...) é, creio, a impotência de cada indivíduo
de bastar-se a si próprio e a sua necessidade de uma multidão de coisas, ou
perna existir outra coisa qualquer na origem de uma cidade? (A república II,
369a, c)

Tal organização refletia, ainda, uma concepção de hierarquia social que


se baseava na natureza das coisas: a natureza não fe z cada um de nós

76

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semelhante ao outro, mas diferentes em aptidões, e próprio para esta ou


aquela função ” (A república II, 369e, 370d), Platão estabelecia três ativi­
dades fundamentais para a cidade: a produção, garantida pelos artesãos;
a defesa, garantida pelos soldados; e a administração interna pelos guardiães. \ ;\
Todos os homens tinham, por natureza, três características em suas W
almas, e em cada homem uma era dominante. Os homens eram, assim, di-.ç
vididos, de acordo com seu caráter, em três tipos: o caráter de bronze, do~'J £
minado pelos desejos sensíveis; o caráter de prata, dominado pelo ímpeto; e , ^
o caráter de ouro, dominado pelo pensamento especulativo. Platão defendia
que era preciso descobrir, em cada indivíduo, sua predisposição dominante

PS
para que se lhe pudesse atribuir sua função, seu papel na pó lis e, assim.
garantir sua felicidade, o bem-estar e a justiça da pólis. Por exemplo, para
exercer a função de guardião eram necessárias algumas aptidões naturais,

U
entre outras:

RO
(...) sentidos aguçados para descobrir o inimigo, rapidez para persegui-lo logo
que o descubra e força para combatê-lo, se necessário quando fo r alcançado
(...) e também a coragem para combater bem. (...) Eis, pois, evidentemente as
G
qualidade que o guardião deve possuir no que respeita ao corpo. (...) E no
que respeita à alma deve ser de humor irascível. (...) cumpre que sejam bran­
S
dos com os seus e rudes com os inimigos. (...) Além do humor irascível, deve
ter uma índole filosófica. (...) Portanto, filósofo, irascível, ágil e fo rte há de
K

ser aquele que destinamos a tornar-se belo e bom guardião da cidade. (A


O

f
república II, 374d-376e) a1
BO

A cidade, para Platão, deveria manter-se intata, sem traumas e sem


grandes mudanças: cada homem deveria trabalhar para o benefício da cidade,
segundo suas aptidões e. desse modo, a cidade se manteria íntegra e justa,
atendendo a todos. ^
EX

Para que a cidade se mantivesse una, Platão considerava indispensável $


que a educacão dos cidadãos ficasse a cargo do Estado.
D

Isso garantia uma educação de acordo com as aptidões naturais de cada


um, atendendo assim às necessidades da nólis. A estabilidade da legislação
IN

era mais uma condição para a unicidade da cidade, a legislação deveria ser
estável, para que se evitasse o maior mal da cidade: “(..) aquele que a divide
e a toma múltipla em vez de Una”, e que propiciasse o seu maior bem “(...)
aquele que a une a torna Una” (A república V, 462a-d).
O governo da cidade deveria estar a cargo de um rei filósofo, ou de
um conjunto de reis filósofos,. Escolhidos dentre os guardiães, alguns cidadãos
passariam por anos de educação filosófica, até que atingissem o verdadeiro
conhecimento - o saber contemplativo. Quando a pólis necessitasse, passa­
riam a governá-la, não como um privilégio, mas como obrigação devida à

77

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cidade que os tinha educado (e isso seria um peso porque teriam de descer
de sua contemplação para o mundo da cidade e dos negócios humanos). Esses
sábios, sem ambições pessoais e conhecedores das verdades essenciais, seriam
capazes de governar a cidade com justiça, A pólis perfeita era aquela que
visava o Bem de todos e não de grupos, isso seria possível somente se os
seus governantes conhecessem o Bem e se cada cidadão realizasse a função
para a qual era, por natureza, mais apto e para a qual tivesse sido educado,
Platão foi, como Sócrates, um homem que abordou questões de seu
tempo, A complexa vida da cidade grega, as crises e as dificuldades exigiam
que se tentasse encontrar soluções. A sociedade escravista que desvalorizava,

PS
cada vez mais, todo contato com o trabalho, afastava os homens do conhe­
cimento prático e do mundo empírico; a democracia que ressaltava a impor­
tância do homem, como indivíduo que era capaz de governar a si e aos

U
demais, como cidadão capaz de construir a sociedade por meio do encami­

RO
nhamento de propostas e de soluções aos problemas enfrentados, sem dúvida
alguma, marcaram profundamente o pensamento de Platão.

ARISTÓTELES (384-322 a.C.)


G
S
E pois manifesto que a ciência a adquirir é a das causas
K

primeiras, pois dizemos que conhecemos cada coisa somente


quando julgamos conhecer a sua primeira causa.
O

Aristóteles
BO

Nasceu em Estagira, na Grécia setentrional, cidade grega sob domínio


macedõnico. Seu pai era médico do rei da Macedônia, Amyntas, pai de Filipe.
Aristóteles chegou a Atenas em 367 a.C. e ingressou na Academia de Platão,
EX

aí permanecendo até 347 a.C., quando morreu Platão, e Aristóteles deixou


Atenas. Durante os anos 347 a 342 a.C., viveu em Assos e Mitilene; por
volta de 342 a.C. passou a ser preceptor de Alexandre, filho de Filipe da
D

Macedônia. É possível que tenha permanecido nessa função até 336 a.C.,
quando Alexandre subiu ao trono. Foi nessa época que Aristóteles voltou
IN

para Atenas, mas não para a Academia de Platão. Fundou sua própria escola
denominada Liceu. Permaneceu em Atenas até 323 a.C. quando, com a morte
de Alexandre, Aristóteles e as pessoas suspeitas de terem colaborado com os
macedônicos passaram a sofrer perseguições. Aristóteles, acusado de impie­
dade, parte para Eubéia (em Cálcis), terra natal de sua mãe, sem esperar
julgamento. No ano seguinte, em 322 a.C., Aristóteles morreu.
Há uma controvérsia se, no início de sua obra, Aristóteles assumiu a
teoria das idéias de Platão para posteriormente rejeitá-la, o que implicaria a
existência de dois momentos na elaboração de seu pensamento. É certo, en-

78

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tretanto, que, durante o tempo em que ocupou a direção do Liceu, produziu


um conjunto de idéias que se afastava das idéias platônicas, nas explicações
e no método que utilizou.
Aristóteles abandonou a noção de um mundo das idéias, separado e
modelo do mundo sensível, Apesar de - como Platão - enfatizar que o co­
nhecimento científico se referia a conceitos universais, Aristóteles diferia de
Platão no papel que atribuía à investigação do mundo sensível na construção
de tais universais. Essa diferença entre ambos pode estar relacionada com os
modelos que cada um utilizou para a construção de conhecimento: Platão

PS
enfatizou a matemática, Aristóteles a explicação dos seres vivos.
Platão e Aristóteles diferiam também no que se refere à política. Para

U
Platão, além de objeto de conhecimento, a política era também objeto de
ação, já, para Aristóteles, a política interessava apenas como objeto de estudo,

RO
o que poderia estar relacionado ao fato de ser um estrangeiro e, portanto,
sem estatuto de cidadão ateniense.
A obra escrita de Aristóteles é muito vasta. No entanto, boa parte dela
G
perdeu-se, restando, basicamente, trabalhos que aparentemente serviram de
base aos ensinamentos no Liceu. É essa a razão porque, inclusive, se divergiu
S
tanto a respeito da aceitação ou não, por parte de Aristóteles, do platonismo,
K

em seus primeiros escritos. Seu trabalho é vasto também pela ampla gama
de temas que aborda. Além de temas como astronomia, física, biologia, bo­
O

tânica, política, discute, em vários momentos, temas relativos à filosofia, me­


recendo destaque sua preocupação com o método de investigação. Também
BO

é característica de seus escritos sua preocupação em historiar o desenvolvi­


mento do pensamento grego. Parece haver aí não apenas uma tentativa de
sistematizar, por meio da descrição, o desenvolvimento do pensamento que
EX

o precedeu, mas, também, uma tentativa de demonstrar que seu pensamento


sintetizava e ampliava o que havia sido produzido e que podia, então, ser
aceito sem reserva.
D

Desde o período arcaico, duas questões centrais vinham sendo debatidas


IN

pelos pensadores gregos: a questão da unidade ou multiplicidade do universo


e a questão de seu movimento ou não. Essas questões foram fundamentais
também para Aristóteles. Sua resposta a esses problemas não foi dada, no
entanto, sem antes avaliar e comparar as posições defendidas por seus pre­
decessores. Isso não quer dizer que Aristóteles tenha usado como parte de
seu método de investigação a investigação histórica, mas apenas que consi­
derava importante tomar claro que os problemas que abordava eram legítimos
e que as respostas que fornecia superavam as anteriores. Com relação à ques­
tão do movimento ou não da natureza e de sua essência, por exemplo, Aris­
tóteles parte da caracterização da posição imobilista de Parmênides, que pos­

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tulava a inexistência do não-ser e negava qualquer possibilidade de movi­


mento do ser. Aristóteles afirma que: “(...) convencido de que, além do ser,
o não-ser não è coisa alguma, ele pensa que, necessariamente, existe uma
única coisa, o ser, e nada mais” (.Metafísica, A, V, ll) .4
Sobre o mesmo tema, afirmava que os atomistas, como Demócrito e
Leucipo, supondo a existência do não-ser, consideravam-no condição de exis­
tência do movimento, e afirmava: ambos
(...) reconhecem como elementos o pleno e o vazio, a que eles chamam o ser
e o não-ser; e ainda, destes princípios, o pleno e o sólido são o ser, o vazio

PS
e o raro o não-ser, (por isso afirmam que o ser não existe mais do que o
não-ser, porque nem o vazio [existe mais] que o corpo), e estas são as causas

U
dos seres enquanto matéria. (Metafísica, A, IV, 7)

RO
Referindo-se à teoria das idéias de Platão, Aristóteles não apenas anun­
ciava sua diferença como discutia a relação entre este e os pitagóricos. Aqui,
tomava claro como essa concepção de idéia marcava o sistema platônico em
G
ralação à solução do problema sobre a multiplicidade e o movimento. Sobre
Platão afirmava:
S
Tendo-se familiarizado, desde sua juventude, com Crátilo e com as opiniões
K

de Heráclito, segundo as quais todos os sensíveis estão em perpétuo fluir, e


O

não pode deles haver ciência, também mais tarde não deixou de pensar assim.
Por outro lado, havendo Sócrates tratado as coisas morais, e de nenhum modo
BO

do conjunto da natureza, nelas procurando o universal e, pela primeira vez,


aplicando o pensamento às definições, Platão, na esteira de Sócrates, fo i tam­
bém levado a supor que [o universal] existisse noutras realidades e não nal­
guns sensíveis. Não seria, pois, possível, julgava, uma defmição comum de
EX

algum dos sensíveis, que sempre mudam. A tais realidades deu então o nome
de “idéias”, existindo os sensíveis fora delas, e todos denominados segundo
D

elas. È, com efeito, por participação que existe a pluralidade dos sinônimos,
em relação às idéias. Quanto a esta ' p‘ articipação ", não mudou senão o nome:
IN

os pitagóricos, com efeito, dizem que os seres existem à imitação dos números,
Platão, por “participação”, mudando o nome; mas o que esta participação
ou imitação das idéias afinal será, esqueceram todos de o dizer. Demais, além
dos sensíveis e das idéias diz que existem, entre aqueles e estas, entidades
matemáticas intermédias, as quais diferem dos sensíveis por serem eternas e
imóveis e das idéias por serem múltiplas e semelhantes, enquanto cada idéia
é, por si, singular. (Metafísica, A, VI, I, 2, 3)

4 Neste capítulo, as citações de Aristóteles, com exceção daquelas que fazem outra in­
dicação, foram retiradas do volume Aristóteles, coleção Os Pensadores (Pessanha, 1979).

80

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Para Aristóteles, essas eram questões importantes porque se propunha


a construir um sistema explicativo e para isso propunha também um método
para conhecer os fenômenos que o rodeavam, Aristóteles não pensava que o
conhecimento dos fenômenos da natureza física excluísse ou fosse incompa­
tível com o conhecimento do homem ou da sociedade. Mais que isso, não
supunha que a investigação de uma dessas classes de fenômenos fosse muito
diferente da outra. A partir dessas suposições, tornava-se importante discutir
e estabelecer bases seguras para a produção de conhecimento e, para ele, esta
iniciava-se na proposição dos princípios relativos à caracterização dos objetos
que poderiam ser conhecidos - todos os fenômenos da natureza.

PS
A primeira questão a responder dizia respeito a sua concepção sobre
o mundo físico e sua realidade. Aristóteles, ao definir o que entendia por

U
Ser, não apenas afirmava que os fenômenos da natureza têm uma essência

RO
que é própria de cada um deles, mas também traduzia de uma nova forma
as questões relativas à unidade e multiplicidade e ao movimento e imutabi­
lidade do ser. A palavra ser tinha, para Aristóteles um significado próprio.
G
A palavra ser ttsa-se em muitos sentidos (...) pois, de uma parte, significa a
essência e a existência individual; da outra, a qualidade, a quantidade e cada
S
um dos outros atributos de espécie semelhante. Mas, ainda empregando a
K

palavra ser em tantos significados, é e\’idente que a essência é o ser primeiro


entre todos estes, como a que manifesta a substância. De fato, quando quere­
O

mos expressar uma qualidade de determinado ser, dizemos, por exemplo, que
é bom ou mau, mas não de três côvados ou homem; quando queremos exprimir
BO

a essência, não dizemos; bram o ou quente ou de três côvados, mas, por exem­
plo, homem ou Deus. As outras determinações chamam-se seres, porque são
as quantidades, ou as qualidades ou as afecções ou algo semelhante, do ser
assim considerado. (...) Nenhuma delas existe naturalmente de per si nem pode
EX

separar-se da substância. (...) Mas parecem antes seres somente porque nelas
há sujeito determinado, e este é a substância ou o indivíduo, que aparece em
tal categoria: e, sem ele não se pode dizer: bom, ou sentado (ou algo seme­
D

lhante). E claro, então, que só por meio deste pode existir cada um deles. De
IN

modo que a substância será o primeiro ser, e não qualquer ser, mas o ser
simplesmente. Logo, em muitos sentidos diz-se o primeiro; não obstante, a
substância é primeira entre todos pelo conceito, pelo conhecimento e pelo
tempo. Nenhum dos outros predicados pode existir separadamente, mas uni­
camente ela. E é primeira pelo conceito, porque é necessário que o conceito
de substância seja inerente ao de cada coisa. E quando sabemos o que é uma
coisa, somente então é que acreditamos saber cada coisa (...) melhor do que
quando sabemos qual, e quanto e onde, pois também destas coisas conhecemos
cada uma quando sabemos que é a quantidade ou a qualidade, etc. E p o r isto,
antes, agora e sempre, a investigação e o problema: "que é o ser”, equivale
a isto: “que é a substância”. (Metafísica, VII, 1, 1028, em Mondolfo, 1967)

81

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Para Aristóteles, o ser, e cada ser, continha uma substância que o definia,
que era sua essência, iS s a substância, constitutiva e indispensável à existência
do ser, caracterizaria aquilo que era definidor do fenômeno, seus atributos,
e lhe daria fêalidade. Compreender essa substância era a tarefa do conheci­
mento.
A palavra substância emprega-se pelo menos em quatro sentidos, se não em
mais: de fato, parece ser substância de cada coisa, a essência, o universal, o
gênero e, em quarto lugar, o seu sujeito. O sujeito é aquele a respeito de quem
se enuncia alguma coisa; ao contrário, ele não enuncia nada de outrem. (...)

PS
Por isso, deve determinar-se primeiro, porque o sujeito parece ser a substância
primeira por excelência. (Metafísica, VII, 3, 1029, em Mondolfo, 1967)

U
Aristóteles não atribuía, como o fez Platão, a essência da coisa a algo
externo a ela, mas considerava que cada coisa tinha uma essência que estava

RO
nela própria.
Á substância, compreendida no sentido mais próprio, em primeiro lugar e por
G
excelência, c o que não se predica de nenhum sujeito nem se encontra em
nenhum sujeito; por exemplo: um homem determinado, um cavalo determinado
(...). Substância por excelência, porque são o sujeito de todas as outras rea­
S
lidades, e todas as outras realidades delas se enunciam ou nelas se encontram
K

(...) cada substância parece designar um determinado ser real. (Categoria, c,


5, 2-3, em Mondolfo, 1967)
O

Essa essência permanecia sempre a mesma, sem alterar-se, apesar de


BO

um ser comportar diferentes modos de ser. Assim, para Aristóteles, tudo o


que existe englobaria o que é e o que poderia vir a ser. Todas as coisas, os
objetos, os fenômenos, eram seres em ato, mas continham em si, ao mesmo
EX

tempo, determinadas possibilidades: potências.


(...) cada ser transmuta-se do ser em potencial no ser em ação: por exemplo,
D

do branco em potência ao branco em ação. (...) Assim, não somente épossível,


sob certo ponto de vista, o nascer do não ser, mas pode-se também dizer que
IN

tudo nasce do ser: bem entendido, do ser em potência, ou seja, do nâo ser
em ação (...) assim, se a matéria é única, chega a ser ação aquilo de que a
matéria era potência. (Metafísica, XII, 2, 1069, em Mondolfo, 1967)

Com essa noção, o conhecimento da essência é tomado o conhecimento


de algo que está no objeto, e o objeto que se conhece é, para Aristóteles,
aquilo que é e não algo que possa não estar nas coisas que os homeas ex-
perienciam. As noções de ato e potência também permitem a Aristóteles
resolver a questão do movimento; afirmando que, embora os fenômenos mu­
dem e se transformem, permanecem os mesmos em sua essência e que só
se transformam porque essa é a maneira de se realizarem, isso é, de perma­

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necerem o que são, de permanecerem em sua essência, imutáveis. O movi­


mento toma-se, assim, parte do ser e era importante, então, que se estabele­
cesse como ele ocorria. O movimento era, nara Aristóteles, a passagem da
potência ao ato, era a possibilidade de que se revelasse num ser, que se
revelasse em ato, aquilo que ele trazia em potência. Entretanto para que a
potência se transformasse em ato, era necessário que um ser já em ato, que
algo externo ao próprio fenômeno ou evento, provocasse o movimento. O
que provocava o movimento era uma causa, a chamada causa eficiente. Essa
causa, no entanto, exatamente por ser, de certa forma, exterior ao próprio ser
em movimento não poderia dai- conta da concepção arístotélica de ser que

PS
envolvia as noções de ato e potência, de ser que continha em si todas as
suas possibilidades de transformação. Essa forma de compreensão do movi­
mento implicava a necessidade de se reconhecer outras causas. Aristóteles

U
afinjiou-a-exigtência de outras três: causa formal, causa material e causa final.

RO
A(causa formal jfera o aue tornava um ser ele mesmo, o que o ideriíifi«a^
consigo mesmo; a ^áusamateria) era a matéria de que era feito; âúçausa final,
era o estado final, o fim para o qual o ser se dirige.
G
E evidente, então, que necessitamos adquirir a ciência das causas primeiras
(pois dissemos que sabemos cada coisa, quando cremos conhecer a causa
S
primeira); mas a palavra causa usa-se em quatro sentidos, um dos quais é
K

que consideramos como causa fsubstãncia e a essência7formal (com efeito,


o porquê rediiz-se por ú ltjm o ao conceito, e causa e principio são o porquê
O

primeiro); o outro, (a matéria à o substrato; um terceiro, aquele donde vem o


princípio da-tnovimento ffcãusa eficiente•]) um quarto, a causa oposta a esta,
BO

ou sejaÇo fim e o bem jípois este~ê o fim de toda a geração e de todo o


movimento). (Metafísica I, 3, 983, em Mondolfo, 1967)
Por exemplo, qual é a causa do homem como matéria? Não é talvez o mêns-
truo? E qual é como motor? Não é por acaso o esperma? E qual como fornia?
EX

A essência. Qual como fim? A finalidade (do homem). Talvez estas duas úl­
timas sejam a mesma coisa. (Metafísica, VIII, 4, 1044, em Mondolfo, 1967)
D

O conhecimento das causas era a tarefa primordial para a compreensão


do ser. Segundo Allan (1970):
IN

Fomia e matéria têm de ser distinguidas e diferenciadas porque (...) são ambas
componentes de cada ente determinado. Em terceiro lugar, tem de descobrir-se
a origem da mudança (a “causa eficiente”). Em quarto lugar, deve indicar-se
a finalidade que o processo visa atingir (a “ causa fina!”), (p. 44)

Alguns autores, ao discutir as quatro causas propostas por Aristóteles,


reduzem-nas a duas; Bernhardt (1980), por exemplo, afirma:

83

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(...) a causa material corresponde à receptividade da matéria, enquanto as outras


três correspondem a diversos aspectos do papel da forma. De fato, a causa
formal identifica-se com a forma, na medida em que a forma descreve pro­
priedades que dela decorrem necessariamente; a causa final é a forma, na me­
dida em que a forma, como objetivo e termo, descreve o processo que a conduz;
a causa eficiente ou motora é ainda a forma, desta vez enquanto agente ou
causa no sentido moderno deste processo, pois uma forma é sempre em última
análise o agente específico dos processos que condicionam o surgir de uma
forma idêntica (a forma é o agente de sua própria repetição), (p. 105)

Mandolfo (1967) também afirma que as quatro causas poderiam, em

PS
última instância, ser rêciuzidas à causa formal e causa material. A causa finai
seria, numa certa medida, identificável à causa formal porque a finalidade

U
do ser é, na verdade, dada por sua forma; do mesmo modo, a causa eficiente,
o agente, é também uma forma em ação. A substância do ser seria dada,

RO
assim, pela unidade de sua forma e matéria.
Essas noções - de forma e matéria - estão subjacentes a toda a con­
cepção aristotélica de ser, de potência e ato e de causa. São elas que permitem
G
a compreensão do ser como aquele que contém uma substância, uma essência
que o define e que o leva a transformar-se, embora essa mesma essência não
S
seja passível de alteração.
K

Produzir um objeto determinado é extrair este objeto determinado de um subs­


O

trato inteiramente subsistente [O artíficej dá existência a uma esfera de


BO

bronze: produz nele a forma, e isto é a esfera de bronze. (...) Logo, é evidente
que o que surge não é o que se chama espécie ou substância, mas o encontro
que toma o nome da mesma, e que há uma matéria implícita em toda coisa
em que se torna, e ora é esta, ora aquela outra coisa. (Metafísica, VII, 8,
EX

1033, em Mondolfo, 1967)

Comentando essa distinção entre matéria e forma, Bréhier (1977) afirma:


D

Para essa essência ou forma não há devenir; a forma da esfera de bronze, que
é a forma esférica, não nasce quando se fabrica a esfera de bronze. O nasci­
IN

mento ou devenir consiste, pois, na união de uma forma com um ser capaz de
recebê-la; esse ser em potência, que se toma ser em ato, depois de ter recebido
a forma, é propriamente aquilo que Aristóteles chama de matéria (hylé). A
matéria é o conjunto de condições que devem ser realizadas para que a forma
possa surgir; a arca em potência, ou, o que vem a dar no mesmo, a matéria
da arca, é a madeira, (p. 162)

As concepções aristotélicas de ser, de substância, de causa, estão pre­


sentes na explicação que forneceu para a Terra e o universo. Aristóteles pro­
pôs uma física e uma astronomia que trazem a marca dessas suas concepções.

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Supunha que o universo era único e finito. Esse universo era entendido como
eterno (sem começo ou fim). Nele se dispunham em esferas, os vários pla­
netas e estrelas. Cada conjunto de corpos celestes estava disposto numa es­
fera. Essas esferas dispunham-se em forma concêntrica em relação à Terra,
tendo cada uma delas seu próprio movimento. Essas esferas, assim como os
corpos celestes que nelas estavam, eram compostas de uma substância invi­
sível e indestrutível - o éter. O único movimento possível nessas esferas era
o movimento circular, já que só esse movimento tomava viável pensar que
o universo fosse etemo (o movimento circular era considerado o único mo­
vimento que não tinha começo, ou meio, ou fim) e que fosse ao mesmo

PS
tempo finito (o movimento circular sempre percorre o mesmo caminho). Tal
movimento e tais esferas não podiam ser mudados de nenhuma maneira ou

U
por força alguma, iá aue o éter de aue se compunham era considerado in­
destrutível. No interior e centro desse sistema estava a Terra e nessa primeira

RO
esfera encontrava-se toda a chamada região sublunar. No limite extremo do
sistema estava a esfera que carregava as estrelas fixas. No mundo sublunar
todos os seres e a própria Terra não eram compostos de éter, mas sim de
G
um ou de combinações de quatro elementos básicos - terra, ar, fogo e água.
Embora a Terra fosse fixa e estivesse no centro do universo, os seres que
S
nela existiam só podiam executar movimentos retilíneos, já que não eram
K

compostos de éter. A determinação dos movimentos possíveis a cada ser ou


corpo dependia dos elementos que predominavam na sua composição. Havia
O

dois tipos de movimentos retilíneos - para baixo (o que queria dizer, para o
BO

centro da Terra); que era movimento natural aos seres compostos de terra ou
água principalmente; e para cima (o que significa contrário ao centro da
Terra), o movimento natural dos seres compostos principalmente de ar ou
fogo. Esses dependiam, para Aristóteles, do peso (quanto mais pesado maior
EX

velocidade) e os diferentes seres o(s) executavam espontaneamente para atin­


gir seus chamados lugares naturais (lugares para os quais tendiam, por sua
própria natureza, atingindo o repouso quando atingiam tais lugares). Tal mo­
D

vimento (ou repouso) só podia ser mudado ou interrompido quando algo


IN

externo ao próprio ser ou corpo (no caso outro ser ou corpo) aplicasse a ele
alguma força, constituindo assim os chamados niawmentos não-naturais.
Os seres na Terra eram jrjivifjjflos eny^mmado^ (as plantas, os animais
e o próprio homem) ^ n a n im àdosj (os m inêrasjT ü que orientava o movi­
mento dos seres anima3os, ò""Tjne lhes dava finalidade, era sua alma, sua
forma (psique). Já os seres inanimados não eram vistos como regidos por
finalidades impressas neles mesmos, eram regidos pela natureza (physis).
A natureza parte dos seres inanimados para os animais, em graus tão pequenos
que, na continuidade, não se percebe a qual dos dois campos pertencem os

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de limite e os intermediários, porque depois do gênero dos inanimados segue


primeiro o das plantas, e dentre estas, uma difere da outra porque parece que
participa mais da vida; e todo o gênero, em comparação com os outros corpos
(inanimados) parece quase animado; em confronto com os animais, inanimado.
A passagem destas para os animais é continua (...) pois algumas espécies
marinhas propõem o problema para saber se sâo animais ou plantas, porque
se acham unidas ao solo, e muitas delas, arrancadas ao solo, morrem. (...)
Sempre por pequena diferença parece que uma antes da outra tenha mais vida
e movimento. (Hist. Anim., VIII, 1, 588, em Mondolfo, 1967)

Havia, para Aristóteles, três tipos de movimentos: os movimentos ce­

PS
lestes, os vitais e os naturais, a cada um correspondendo um motor diferente.
Os movimentos vitais e naturais correspondiam aos seres e fenômenos do
mundo sublunar. No entanto, todos os três motores compartilhavam uma mes­

U
ma característica: eram imóveis. O sistema aristotélico consistia, assim, numa

RO
hierarquia em que corpos inferiores dependiam de corpos a eles imediata­
mente superiores, e assim sucessivamente, de forma que era do primeiro
motor que, em última instância, se transmitia o movimento do céu até a
G
Terra.
Quanto ao movimento dos corpos na Terra, Aristóteles não o pensava
S
como movimento de corpos apenas no espaço. Para ele, esses corpos também
K

estavam sujeitos a mudanças de qualidade e alterações de quantidade. A Ter­


ra, assim como o restante do universo aristotélico, era vista como eterna,
O

mas nela os seres e fenômenos estavam constantemente transformando-se


porque os elementos que os compunham se transformavam uns nos outros.
BO

Essas transformações ocorriam de maneira circular, de forma que o fogo, por


exemplo, transformava-se em ar, este em água e a água em terra, que por
sua vez voltava a ser fogo. Dessa forma, os fenômenos da natureza, na Terra,
EX

acompanhavam, como um todo, o movimento das esferas celestes do universo.


De qualquer maneira, o movimento (seja a mudança qualitativa, quan­
titativa, seja o deslocamento no espaço) era devido a uma finalidade e, por
D

isto, jamais poderia ultrapassar as potencialidades já dadas e imutáveis em


IN

cada ser. Isso valia para a física com suas noções de movimentos naturais e
valia também para a biologia aristotélica. Aristóteles supunha que os seres
vivos se organizavam em graus crescentes de complexidade e que as dife­
renças entre as espécies próximas eram mínimas, o que parecia significar um

5 Segundo Allan (1970), Aristóteles distingue apenas três ciências teóricas: física, mate­
mática e a filosofia primeira. No entanto, seus sistemas contêm explicações e dados sobre
uma infinidade de campos que modernamente se constituíram em ciências especificas. Daí
o costume de se falar em uma astronomia, uma física, uma biologia, uma zoologia, uma
botânica aristotélicas, etc.

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contínuo. No entanto, as características de cada espécie e as diferenças entre


elas eram consideradas imutáveis, não havendo qualquer possibilidade de
transformação ou evolução no mundo dos seres vivos. No mais alto grau de
complexidade, encontrava-se o homem, cuja distinção fundamental em rela­
ção às outras espécies era a capacidade de deliberadamente escolher e racio­
cinar.
No homem, como em todo ser vivo, corpo e alma compunham uma
unidade. A alma garantia a vida, a realização das funções vitais; a alma era
a forma, enquanto o corpo era a matéria que precisava dessa forma para

PS
tomar-se ato. Era a forma, a alma, que dava vida, que emprestava finalidade
aos corpos animados. E, assim como não se podia pensar em matéria desti­
tuída de forma, também o contrário era sem sentido. Dessa maneira, Aristó­

U
teles afastava-se de Platão também no que se referia à concepção de alma:

RO
já que não considerava o corpo como prisão da alma e negava a noção de
transmigração da alma, a questão da imortalidade da alma tem, pelo menos,
de ser discutida diferentemente em Aristóteles. Corpo e alma transformavam-
G
se em unidade aparentemente indissociável, e a alma adquiria, de certa ma­
neira, um novo estatuto, mais natural, como indica a concepção aristotélica
de que o estudo da alma é pertinente ao campo da física.
S
K

A alma é aquilo no qual primeiro vivemos, sentimos e pensamos, pelo que ela
será razão e forma, não matéria ou sujeito... A matéria é potência, a form a
O

é a ação (enteléquia), e, como o ser animado resulta de ambos, o corpo não


é ação da alma, mas esta é ação de um certo corpo (...) Por isso, a alma é
BO

o ato primeiro de um corpo natural que tem a vida em potencial. Este é o


corpo orgânico (...) de modo que a alma será a ação primeira do corpo natural
orgânico e por isso não se deve pesquisar se a alma e o corpo são uma só
EX

coisa, como (não se deve investigar se são um) a cera e a figura, nem em
geral a matéria de cada coisa e aquilo de que ela é matéria. (De analíticos,
II, 1, 2, 412, em Mondolfo, 1967)
D

Todo ser vivo era, assim, portador de uma alma. Nas plantas, a a lm a ^
IN

permitia-lhes a nutrição e a reprodução (função nutritiva). Os animais infe- ,


riores tinham ainda, pelo menos, alguns sentidos e a capacidade de mover-se ^
para se nutrir e reproduzir (funções sensorial e motriz). A alma humana, além
de todas essas capacidades, tinha a faculdade da razão (função pensante).
Essa função parecia envolver, para Aristóteles, tanto a faculdade de intuir
verdades (a mais superior de todas as capacidades), como as faculdades cog­
nitivas, intelectivas, que lhe permitiam deliberar, deduzir, raciocinar.
Em alguns seres acham-se presentes todas as facxãdades da alma; em outros
algumas, e em alguns, uma somente: e chamamos faculdade à nutrição, ao
apetite, à sensibilidade, à locomoção, ao pensamento. (...) E necessário inves-

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íigar a causa pela qual se acham assim em série: pois a necessidade não se
dá sem a faculdade nutritiva; mas, nas plantas, a nutritiva está separada da
sensitiva; de outra parte, sem tato não se exerce nenhum dos outros sentidos,
porém o tato existe sem os outros. (...) Entre os seres sensíveis, alguns
possuem locomoção, e outros, não; enfim, pouquíssimos possuem raciocínio
e pensamento: aqueles, de fato, entre os mortais, que possuem raciocínio, pos­
suem também todas as outras faculdades; mas os que possuem somente uma
não têm raciocínio. (De analíticos, II, 3, 414, em Mondolfo, 1967)

Segundo AIlan (1970), “A cada nível, numa sucessão interminável,

PS
nascem indivíduos que lutam para se desenvolverem até a maturidade e, uma
vez isto conseguido, lutam para exibir sua ‘energia’ característica ou atividade
por um período de tempo próprio da respectiva espécie” (p. 64). Essa afir­

U
mação toma clara a concepção aristotélica finalista e a concepção de que

RO
tudo é, num certo sentido, imutável e eterno, já que as próprias mudanças
de cada ser se repetem na natureza com inexorável precisão. São essas noções
que caracterizam o estudo dos seres animados como um estudo que exige
G
classificação e ordenação, a fim de que se descubram em cada ser sua forma,
seus atributos essenciais. A compreensão dos seres animados dava-se, para
S
Aristóteles, a partir dos seres superiores, que continham, sempre, os graus
de organização da matéria e da forma dos seres inferiores, reproduzindo-se,
K

assim, na Terra, e no estudo dos seres terrenos, a concepção hierarquizada


O

já existente no mundo celeste. Arístóteles-classificava os seres nela comple­


xidade da sua alma. Essa classificação é compatível com uma concepção
BO

teleológica, em que cada um e todos os indivíduos cumpriam um determinado


fim, e é compatível também com uma concepção vitalista em que se supõe
uma mudança qualitativa dos seres inanimados aos seres animados, não ex­
EX

plicável em termos físicos.


O mundo e o universo, da maneira como Aristóteles os via, e que
acabou por imperar no mundo ocidental por quase vinte séculos, eram finitos,
D

hierarquizados, governados pela finalidade e neles imperavam as diferenças


IN

qualitativas. Nesse universo hierarquizado, a Terra e suas criaturas eram, de


alguma forma, inferiores qualitativamente se comparadas com o mundo su­
pralunar: só movimentavam-se de maneira retilínea, compunham-se e cor­
rompiam-se. Sua finitude estabelecia fronteiras claras e precisas, que só fa­
ziam aumentar a pequenez e a distância qualitativa que separavam homens
de astros, de forma que a ação humana só seria possível dentro de limites
muito estreitos.
Aristóteles dividiu o universo em fenômenos não equivalentes, mas
todos sujeitos a leis. Suas concepções de causa, de movimento, de potência
e ato representam uma tentativa de explicação racional do universo, um es­

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forço considerável de criar um sistema explicativo natural e não divinizado


referente ao homem e ao mundo.
O pensamento de Aristóteles não se esgotou na sua concepção de mun­
do ou na elaboração de explicações referentes aos mais diversos fenômenos.
Ao contrário, parte fundamental de sua obra, que exerceu forte influência
sobre pensadores posteriores, refere-se a como se chega ao conhecimento.
Aristóteles ocupou-se não apenas com a explicação de que faculdades per­
mitiam ao homem chegar ao conhecimento rigoroso. Além disso, estabeleceu
o que considerava o método que os homens deveriam utilizar para chegar a

PS
esse conhecimento.
O processo de conhecimento, para Aristóteles, iniciava-se da sensação.

U
Por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, nuns,
da sensação não se gera a memória, e noutros, gera-se. Por isso, estes são

RO
mais inteligentes, e mais aptos para aprender do que os que são incapazes de
recordar. Inteligentes, pois, mas sem possibilidade de aprender, são todos os
que não podem captar os aons, como as abelhas, e qualquer outra espécie
G
parecida de animais. Pelo contrário, têm faculdade de aprender todos os seres
que, além da memória são providos também desse sentido. Os outros [animais]
S
vivem portanto de imagens e recordações, e de experiência pouco possuem.
Mas a espécie humana [vive] também de arte e de raciocínios. E da memória
K

que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da mesma


O

coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se


parece com a ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm
BO

aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência, como afirma


Poios, e bem, criou a arte, e a inexperiência, o acaso. E a arte aparece quando,
de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo univer­
sal dos [casos] semelhantes. Com efeito, ter a noção de que a Cálias, atingido
EX

de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma


maneira, a outros tomados singularmente, é da experiência; mas julgar que
tenha aliviado a todos os semelhantes, determinados segundo uma única es­
D

pécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os inco­


modados por febre ardente, isto é da arte. Ora, no que respeita à vida prática,
IN

a experiência em nada parece diferir da arte; vemos, até, os empíricos acer­


tarem melhor do que os que possuem a noção, mas não a experiência. E isto
porque a experiência é conhecimento dos singulares, e a arte dos universais;
e, por outro lado, porqüe as operações e as gerações todas dizem respeito ao
singular. Não é o Homem, com efeito, a quem o médico cura, senão por aci­
dente, mas Cálias ou Sócrates, ou a qualquer um outro assim designado, ao
qual acontece também ser homem. Portanto, quem possua a noção sem a
experiência, e conheça o universal ignorando o particular nele contido, enga-
nar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de preferência,
o singular. No entanto, nós julgamos que há mais saber e conhecimento na
arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios

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que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos, de preferência, o


saber. Isto porque uns conhecem a causa e os outros não. Com efeito os
empíricos sabem “o que”, mas não o "porquê”; ao passo que os outros sabem
o "porquê”. Por isso nós pensamos que os mestres de obras, em todas as
coisas, são mais apreciáveis e sabem mais que os operários, pois conhecem
as causas do que se faz, enquanto estes, à semelhança de certos seres inani­
mados, agem, mas sem saberem o que fazem, tal como o fogo [quando] queima.
Os seres inanimados executam, portanto, cada uma das suas funções em vir­
tude de uma certa natureza que lhes è própria, e os mestres pelo hábito. Não
são, portanto, mais sábios os [mestres] por terem aptidão prática, mas pelo

PS
fa to de possuirem a teoria e conhecerem as causas. Em geral a possibilidade
de ensinar é indício de saber; p or isso nós consideramos mais ciência a arte
do que a experiência, porque [os homens de artej podem ensinar e os outros

U
não. Além disso, não julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência,
embora elas constituam, sem dúvida, os conhecimentos mais seguros dos sin­

RO
gulares. Mas não dizem o "porque" de coisa alguma, por exemplo, porque o
fo g o é quente, mas só que é quente. (Metafísica, A, I, 2 a 9)
G
Assim, além da sensação - o nível mais elementar de conhecimento,
entendido como base para o conhecimento científico - , três outros níveis
S
progressivos do conhecimento são possíveis: a memória que se constituiria
na conservação das sensações, e que também seria básica para o conheci­
K

mento científico; a exneriência que seria o conhecimento de relações entre


O

fenômenos singulares e que, por isso, não poderia ainda ser chamado de
ciência; e, finalmente, o conhecimento dos universais que envolveria o co­
BO

nhecimento das causas das coisas, não enquanto ocorrências isoladas, mas
enquanto universais. Para Aristóteles, só esse último tipo de conhecimento
constituía-se em conhecimento científico propriamente dito.
EX

O motivo que nos leva agora a discorrer é este: que a chamada filosofia é
por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e os princí­
pios; de maneira que, como acima se notou, o empírico parece ser mais sábio
D

que o ente que unicamente possui uma sensação qualquer, o homem de arte
IN

mais do que os empíricos, o mestre de obras mais do que o operário, e as


ciências teoréticas mais do que as práticas. Que a filosofia seja a ciência de
certas causas e de certos princípios é evidente. {Metafísica, A, I, 12)

Esse conhecimento do ser enquanto ser, esse conhecimento de univer­


sais, que implicava a formulação de conceitos, só era possível, para Aristó­
teles, por meio da razão, do uso sistemático do raciocínio.
O conhecimento cientifico é um juízo sobre coisas universais e necessárias, e
tanto as conclusões da demonstração como o conhecimento científico decorrem
de primeiros princípios (pois ciência subentende apreensão de uma base ra­
cional). Assim sendo, o primeiro princípio de que decorre o que é cientifica-

90
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mente conhecido não pode ser objeto de ciência, nem de arte, nem de sabedoria
prática; pois o que pode ser cientificamente conhecido é passível de demons­
tração, enquanto a arte e a sabedoria prática versam sobre coisas variáveis.
Nem são esses primeiros princípios objetos de sabedoria filosófica, pois é
característico do filósofo buscar a demonstração de certas coisas. Se, por con­
seguinte, as disposições da mente pelas quais possuímos a verdade e jamais
nos enganamos a respeito de coisas invariáveis ou mesmo variáveis se tais
disposições, digo, são o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabe­
doria filosófica e a razão intuitiva, e não pode tratar-se de nenhuma das três
(isto é, da sabedoria prática, do conhecimento científico ou da sabedoria f i ­

PS
losófica), só resta uma alternativa: que seja a razão intuitiva que apreende os
primeiros princípios. (Etica a Nicômaco, VI, 6)

U
Para construir afirmações universais e necessárias sobre os fenômenos,

RO
para poder saber-lhes as causas (ou seja, para construir conhecimento cien­
tífico), Aristóteles afirmava ser necessário, em primeiro lugar, descobrir as
qualidades essenciais das coisas - seus atributos. Para conhecer os atributos,
G
supunha necessário o uso dos órgãos dos sentidos, a observação de fenômenos
singulares. A partir daí, era então possível construir, por raciocínio indutivo,
S
asserções universais e necessárias sobre os fenômenos - construir conceitos,
K

base de toda a ciência, que deveriam, necessariamente, corresponder à reali­


dade. O que possibilitava ao homem ascender, por via indutiva, da observação
O

e classificação dos fenômenos (pelas quais se faziam asserções particulares^


BO

para conceitos e afirmações necessárias e universais sobre os seres era uma


faculdade natural humana - a razão intuitiva.
Esse era o ponto de partida de todo conhecimento certo porque apenas
a razão intuitiva permitia ao homem apreender os primeiros princípios que
EX

eram a base de todo conhecimento verdadeiro. Em relação à matemática, por


exemplo, Aristóteles afirmava:
D

A matemática, constituídos os princípios, forma a sua teoria em tom o de urna


IN

parte de sua mcitéria própria como linhas, ângulos inúmeros e quaisquer das
outras quantidades considerando a cada uma delas, não enquanto entes mas
como contínuos... (Metafísica, XI, 4, 1061, em Mondolfo, 1967)

Tais princípios referiam-se àqueles que eram próprios de cada ciência


particular e referiam-se, também, aos princípios da demonstração, dos quais
o mais importante era, sem dúvida, o princípio da identidade - “é impossível
que cada coisa seja ou não seja ao 'mesmo tempo; e todas as outras propo­
sições do mesmo gênero’’ (Metafísica, III, 2, 996, em Mondolfo, 1967). Para §*
Aristóteles, tais princípios, c<Jmo já foi dito, não eram passíveis de demons- v
tração:

91
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De tais princípios, por si mesmos, não se dá demonstração... Pois não é pos­


sível derivar o raciocínio demonstrativo (silogismo) de algum princípio mais
certo do que ele mesmo (princípio de demonstrar): o que seria necessário, se
fo sse possível dar uma demonstração em sentido próprio. (Metafísica, XI, 5,
1061, em Mondolfo, p. 1967)

Tendo como base esses princípios, tanto os particulares a cada ciência,


como os princípios que se referiam ao raciocínio demonstrativo, a ciência
buscava estabelecer demonstrativamente definições; “A definição concerne

PS
ao que uma coisa é e a sua essência " (Analíticos posteriores II; 3, 90, em
Mondolfo, 1967). “Uma definição é uma frase que significa a essência de
uma coisa” (Tópicos, I, S, 102a). O conhecimento científico era, portanto, o

U
conhecimento de universais (como para Sócrates e Platão). Os universais

RO
referiam-se à forma, àquilo que definia os fenômenos porque lhes emprestava
a um só tempo singularidade (a possibilidade de diferenciá-lo de outros fe­
nômenos) e generalidade (a possibilidade de reconhecê-lo sempre). Como
G
conhecimento do atributo essencial, o conhecimento científico referia-se
ao conhecimento de verdades imutáveis, que constituíam os próprios fenô­
menos. (Aqui, mais uma vez, Aristóteles afastava-se de Platão, para quem a
S
essência também existia e era objeto do conhecimento, mas era, de certa
K

forma, exterior ao próprio fenômeno.)


O

Apenas porque o homem (diferentemente de Deus que tudo apreendia


intuitivamente) não era perfeito, necessitava, para produzir conhecimento,
BO

usar de sua razão demonstrativa. O problema de como os homens chegavam


a descoberta de universais tomou-se assim, uma preocupação central de Aris­
tóteles. Sobre isso afirma:
EX

A indução é o ponto de partida que o próprio conhecimento do universal


pressupõe, enquanto o silogismo procede dos universais. Existem, assim, pon­
tos de partida de onde procede o silogismo e que não sâo alcançados por
D

este. Logo, é por indução que são adquiridos. (Ética a Nicômaco, VI, 143)
IN

Para Aristóteles, portanto, duas vias de raciocínio eram indispensáveis


à obtenção de conhecimento científico (estabelecimento de conceitos, de uni­
versais): a indução e a dedução (o silogismo).
A indução
(...) é a passagem dos individuais aos universais, por exemplo, o argumento
seguinte: supondo-se que o piloto adestrado seja o mais eficiente, e da mesma
form a o auriga adestrado, segue-se que, de um modo geral, o homem adestrado
é o melhor na sua profissão. A indução é, dos dois [indução e deduçãoj, a
mais convincente e a mais clara; apreende-se mais facilmente pelo uso dos
sentidos e é aplicável à grande massa dos homens. (Tópicos I, 12)

92
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Para Aristóteles, a indução não passava, no entanto, de um estágio


inicial e preparatório do conhecimento cientifico, aue nermitia aue se pudesse
estabelecer, a partir do exame de casos particulares, uma regra geral que
fosse válida para casos não examinados. Nesse primeiro momento de elabo­
ração do conhecimento científico, pelo raciocínio indutivo, a partir de obser­
vações, atingia-se uma definição, que deveria ser válida para todos os casos,
observados e não-observados. O primeiro passo de cada ciência, para Aris­
tóteles, consistia no estabelecimento dessas definições. De posse dessas ver­
dades era possível e imprescindível proceder à dedução (ao silogismo), à

PS
demonstração, em que se concluía, a partir de duas verdades, necessariamente
uma terceira verdade. A partir de princípios gerais respondia-se, assim, tam­

U
bém à questão de porque tais princípios eram verdadeiros. Pelo silogismo,
pela dedução, não apenas se somavam afirmações gerais, mas também de­

RO
monstrava-se sua validade:
(...) as demonstrações propõem supor o que é uma coisa.. (...) A definição, pois,
declara o que uma coisa é, e a demonstração, porque é ou não é [verdadeira]
G
uma determinada coisa. (Analíticos posteriores II, 3, 90, em Mondolfo, 1967)
S
Era o raciocínio demonstrativo, a dedução, portanto, que se constituía na via
de raciocínio mais importante para a construção do conhecimento científico.
K

A dedução, o silogismo, é que permitia ao homem chegar a verdades e ex­


O

plicá-las.
BO

O silogismo é um discurso em que, estabelecidas algumas coisas (premissas)


se deriva necessariamente algo diferente das premissas estabelecidas [conclu­
são/, pelo fato mesmo de que elas são. Digo pelo fa to de que elas são, no
sentido de que delas se deriva a conclusão: e digo que delas se deriva, no
EX

sentido de que não é necessário nenhum termo estranho para que se tenha ne­
cessidade (da conclusão). (Analíticos primeiros I, 24, em Mondolfo, 1967)
D

O silogismo permitia estabelecer critérios claros, explícitos e específicos, ou


seja, normas que garantiam a correção do raciocínio. Pelo silogismo era pos­
IN

sível atribuir um conceito - os atributos de um ser particular - , pelo silogismo


era possível descobrir a causa desse ser. O silogismo não tratava do conteúdo
do que se afirmava. A dedução, desde que baseada em princípios gerais ver­
dadeiros (e a ciência sempre deveria basear-se em princípios verdadeiros),
levaria a conclusões também verdadeiras, desde que se seguissem as regras
formais estabelecidas para esse tipo de raciocínio. Ao mesmo tempo, para
Aristóteles, apenas pela dedução, pelo silogismo, era possível demonstrar
verdades sobre o ser e atingir o ideal de conhecimento científico, porque
apenas pela dedução era possível articular definições e princípios e assim
ascender a afirmações sobre o que é um fenômeno e quais as suas causas.

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Com essas concepções, mais uma vez Aristóteles afastava-se de Platão. A


dialética deixava de ser o método de obtenção de conhecimento científico
para converter-se em exercício introdutório desse processo.
Ao descrever dessa maneira o processo de obtenção de conhecimento
científico e ao propor essas vias para sua consecução, Aristóteles não excluía
desse processo a observação, assim como não excluía a indução, o que é
indicativo de uma menor desconfiança, por parte de Aristóteles, dos dados
sensíveis. No entanto, indubitavelmente, Aristóteles atribuía muito maior im­
portância e considerava como fundamental não a experiência, mas o racio­

PS
cínio, e como forma de raciocínio não a indução, mas a dedução por silo­
gismo. O conhecimento científico e cada ciência particular assumiam, assim,
o caráter de um conhecimento de verdades demonstradas. A preocupação

U
central na construção de conhecimento passava a ser a correção lógica do

RO
raciocínio empregado, embora Aristóteles não tenha perdido de vista a noção
de que as verdades afirmadas pelas ciências deviam ser verdades que se
referissem aos fenômenos tal como realmente são.
G
Finalmente vale ressaltar alguns aspectos referentes à concepção aris-
totélica de sociedade. Aristóteles discordava, entre outras coisas, da organi­
S
zação econômica da cidade-Estado ateniense do seu tempo, voltada para o
K

comércio e intercâmbio com o exterior, que, segundo ele, mantinha a cidade


dependente e levava às guerras. Propunha que a cidade se organizasse em
O

tomo de uma economia natural, que devia se basear na família, o que tornaria
a cidade auto-suficiente na produção de bens agrícolas e de outros bens (oicós
BO

significa família, daí a palavra economia). Discordava, ainda, das concepções


mais alargadas de cidadania e propunha restringir o estatuto de cidadão àque­
les indivíduos completamente liberados de todo trabalho manual, não entran­
EX

do nessa categoria os artesãos e os lavradores. Apenas aos cidadãos estaria


reservada a prática da virtude, que precisava ser exercitada para que se de­
senvolvesse a política. O trabalho manual devia ser executado por escravos
D

completamente submetidos a seus senhores. Os escravos eram vistos como


possuidores de almas diferentes, que os tornavam aptos ao trabalho e à ser­
IN

vidão. A concepção de espécies fixas justificava a possibilidade de se manter


indefinidamente tal estrutura. Assim como a concepção aristotélica de conhe­
cimento como um conjunto de verdades imutáveis demonstradas (e nesse
sentido quase reveladas), sua concepção de sociedade traz a marca da con­
templação de algo que não deve ser submetido a transformações, de algo que
é e que deve permanecer como tal para que se mantenha o equilíbrio já
existente.
Ao analisar as diferentes propostas de constituição para a pólis grega, mais
uma vez Aristóteles anunciava sua visão social e política, e mais uma vez per­
cebe-se a relação dessa visão com sua concepção mais ampla de mundo:

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Existem três espécies de constituição e igual número de desvios - perversões


daquelas, por assim dizer. As constituições são a monarquia, a aristocracia,
e em terceiro lugar a que se baseia na posse de bens e que seria talvez apro­
priado chamar timocrática, embora a maioria lhe chame governo do povo. A
melhor delas é a monarquia, e a pior é a timocracia.

O desvio da monarquia é a tirania, pois que ambas são formadas de governo


de um só homem, mas há entre elas a maior diferença possível. O tirano visa
à sua própria vantagem, o rei à vantagem de seus súditos. Com efeito, um
homem não é rei a menos que baste a si mesmo e supere os seus súditos em
todas as boas coisas. Ora, um homem em tais condições de mais nada precisa,

PS
e por isso não olhará aos seus interesses, mas aos de seus súditos; pois o rei
que assim não fo r terá da realeza apenas o título. Ora, a tirania é o contrário

U
exato de tudo isso: o tirano visa ao seu próprio bem. E é evidente ser esta a
pior form a de desvio, pois o contrário do melhor é que é o pior.

RO
A monarquia degenera em tirania, que é a forma pervertida do governo de
um só homem, e o mau rei converte-se em tirano. A aristocracia, p o r seu lado,
degenera em oligarquia pela ruindade dos governantes, que distribuem sem
G
eqüidade o que pertence ao Estado - todas ou a maior parte das coisas boas
para si mesmos, e os cargos públicos sempre para as mesmas pessoas, olhando
acima de tudo a riqueza; e destarte os governantes são poucos e maus, em
S
lugar de serem os mais dignos.
K

A timocracia, por seu lado, degenera em democracia. Ambas são co-extensivas,


já que a própria timocracia tem como ideal o governo da maioria, e os que
O

não têm posses são contados como iguais aos outros. A democracia é a menos
BO

má das três espécies de perversão, pois no seu caso a form a de constituição


não apresenta mais que um ligeiro desvio.
São estas, pois, as mudanças a que estão mais sujeitas as constituições, e estas
as transições menores e mais fáceis.
EX

Podem ser encontradas analogias das constituições e, por assim dizer, modelos
delas nas próprias jamílias. Com efeito, a associação de um pai com seus
filhos tem a forma da monarquia, visto que o pai zela pelos fãhos. A í está por
D

que Homero clmma a Zeus de “p a i”; e o ideal da monarquia é ser uma form a
paternal de governo. Entre os persas, no entanto, o governo dos pais é tirânico,
IN

pois ali os pais usam os jilhos como escravos. Tirânico, igualmente, é o go­
verno dos amos sobre os escravos, em que a única coisa que se tem em vista
é a vantagem dos primeiros. Ora, esta parece ser uma form a correta de go­
verno, mas o tipo persa é per\>ertido, uma vez que diferentes são as modali­
dades de governo apropriadas a relações diferentes.
Á associação entre marido e mulher parece ser aristocrática, já que o homem
governa como convém ao seu valor, mas deixa a cargo da esposa os assuntos
que pertencem a uma mulher. Se o homem governa em tudo, a relação dege­
nera em oligarquia, pois ao proceder assim ele não age de acordo com o
valor respectivo de cada sexo. Nem governa em virtude de sua superioridade.

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As vezes, no entanto, são as mulheres que governam, por serem herdeiras; e


assim o seu governo não se baseia na excelência, mas na riqueza e no poder,
como acontece nas oligarquias.
A associação de irmãos assemelha-se à timocracia, porquanto eles são iguais,
salvo na medida em que haja diferença de idades; e por isso, quando diferem
muito em idade, a amizade já não é do tipo fraternal. A democracia é
encontrada sobrettulo nas famílias acéfalas (onde, por consegwnte, todos se en­
contram num nível de igualdade), e naquelas em que o chefe é fraco e todos
têm licença de agir como entenderem. (Etica a Nicômaco, VIII, 10)

As propostas políticas de Aristóteles parecem refletir o momento his­

PS
tórico em que viveu, um momento de muita conturbação e em que a defesa
da ordem poderia significar a conservação de toda uma sociedade; mas, in­
dubitavelmente, refletem também sua concepção mais geral de mundo e de

U
conhecimento.

RO
A influência de Aristóteles não foi importante apenas no período ime­
diatamente posterior a ele. Por muitos séculos sua visão de mundo, suas
explicações e sua proposta metodológica imperaram como modelo de ciência.
G
Indiscutivelmente, Aristóteles foi responsável por um imenso avanço na dis­
cussão do processo de conhecimento. Ao abordar problemas que são centrais
S
à construção do conhecimento, como a lógica, e ao construir um sis­
K

tem a capaz de abarcar uma explicação do mundo físico, do homem e um


método de obtenção do conhecimento, Aristóteles construiu um paradigma
O

marcado por uma concepção de conhecimento eminentemente contemplativo,


que se refere a verdades imutáveis sobre um mundo acabado, fechado e finito.
BO

Um paradigma que, capaz de dar conta de todas as áreas do conhecimento,


caracterizou-se por se constituir na forma mais acabada de pensamento ra­
cional que o mundo grego foi capaz de elaborar.
EX
D
IN

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