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RPGista

Haruki Murakami 3D&T



BURP 11 anos atrás

Haruki Murakami é um dos principais autores do Japão atual, e provavelmente o mais


vendido deles fora do próprio país. Comecei a ler os seus livros alguns anos atrás e posso
dizer que ele é hoje facilmente um dos meus autores preferidos. No meu blog pessoal há
um punhado de resenhas sobre as obras dele, se vocês se interessarem.

Em todo caso, Murakami não é exatamente um autor de fantasia clássica, aquele estilo
tolkeniano de grandes batalhas entre o bem e o mal que é a fonte de inspiração
tradicional para jogos de RPG. Ele faz muito mais uma literatura do cotidiano, sobre
pessoas comuns em situações aparentemente comuns; mas sempre com algum elemento
inesperado, um pequeno foco de fantasia que o separa da mera literatura mainstream –
fantasmas, animais falantes, mundos paralelos… Para quem gosta de fantasia em um
sentido mais amplo, pode valer a pena dar uma olhada em livros como Kafka à Beira-Mar,
Após o Anoitecer, Minha Querida Sputnik e outros que já possuem edição nacional.

E o que isso tem a ver com RPG, você pergunta? Bem, 3D&T sempre um foco de nipofilias,
quem conhece o sistema há mais tempo certamente sabe. A sua origem está em uma
paródia dos clichês de séries japonesas, e mesmo na sua versão mais “séria” atual ele
normalmente é a base de adaptações de animes, tokusatsu e afins. Procure pela net e você
encontrará mesmo uma velha adaptação 3D&T Hentai, e no meu próprio blog tem lá o
3D&T Gore, sobre os bizarros filmes trash de diretores japoneses.

Assim, porque não adaptar também para o sistema um dos grandes autores da literatura
oriental? Uma aventura baseada nas suas obras provavelmente fugirá bastante do
tradicional explore a masmorra-mate o dragão-pegue o tesouro, mas pode ser uma
variação interessante para quem gosta de se focar mais na interpretação e no roleplay. E
para não reclamarem que vocês estão apenas jogando um Mundo Real RPG, ainda haverá
lá o elemento da fantasia e do maravilhoso para quebrar a rotina.

Enfim, gostem ou não da idéia, é ela que eu exploro com mais detalhes a seguir.

O Universo Murakamiano

O mundo de Haruki Murakami é bastante parecido com o nosso. Na verdade, olhando-o


superficialmente, é bem provável que você ache que ainda está nele. Temos os mesmos
planetas, nações e organizações. As pessoas acordam de manhã, trabalham, estudam ou
não fazem nada de muito útil durante o dia, e então jantam e dormem à noite. Seres
humanos de maneira geral possuem um tronco, duas pernas e dois braços, e não há
muitas raças exóticas como elfos, orcs ou anões
(exceto, claro, os portadores de nanismo).

No entanto, basta observá-lo com mais calma para


ver que há alguma coisa… Diferente. Há algo a mais
nas ruas, nas pessoas e nos animais, que vai além da
nossa experiência cotidiana. Pode ser um velho que
fala com gatos – e os gatos de fato respondem a ele! -,
ou talvez um macaco falante que rouba os nomes
das pessoas. Duas irmãs podem ter poderes
psíquicos e usá-los como vocação profissional, e uma
raça de youkai comedores de gente talvez viva no
subsolo de Tóquio. Um poço seco em um terreno
abandonado pode esconder um segredo misterioso,
e quem sabe até mesmo os terremotos recentes que
ocorreram no Japão não tenham sido causados pelo
movimento das placas tectônicas, mas sim por um verme gigante que despertou e está se
revirando sob a terra!

Murakami escreve, enfim, num estilo conhecido como realismo fantástico. Sim, aquele
mesmo de Cem Anos de Solidão e Jorge Luís Borges. Pense em um mundo que teria tudo
para ser como o nosso, sem nada de muito impressionante ou maravilhoso; exceto, bem,
por não ser, e um acontecimento fantástico e inesperado pode estar esperando por você a
cada esquina dobrada. Seus personagens principais são perfeitamente mundanos –
desempregados, professores, escritores, etc. -, e fazem coisas mundanas – acordam,
tomam café-da-manhã, trabalham, almoçam… -; mas a qualquer instante podem ter esse
cotidiano comum invadido, e se verem em meio a situações oníricas que parecem saídas
de um sonho ou livro de fantasia.

Sendo um escritor japonês, é claro que o cenário mais comum das suas histórias é a terra
do sol nascente e suas principais cidades e regiões. Muitas delas se passam em Tóquio,
outras ainda em cidades menores na região metropolitana, ou em Hokkaido e outras ilhas
do país. Também são comuns, no entanto, histórias de japoneses que viajam para outros
lugares, sobretudo os Estados Unidos e países europeus – um de seus livros mais
conhecidos, por exemplo, Minha Querida Sputnik, tem o seu desfecho acontecendo nas
ilhas gregas.

E nada impede também que você aproveite o espírito murakamiano em histórias


passadas em outros locais. Murakami escreve, acima de tudo, literatura urbana, sobre
pessoas comuns vivendo em cidades comuns; e isso é um tema aplicável a qualquer país
industrializado, ainda mais em uma era globalizada como a que vivemos. Então não há
nada de muito errado em ambientar suas aventuras em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto
Alegre ou qualquer outra cidade brasileira, por exemplo. Talvez seja interessante apenas
adaptar as referências culturais, aproveitando elementos locais ao invés dos nipônicos –
então ao invés de youkai, talvez sejam sacis que moram no subsolo paulistano; e você
pode incluir também versões surreais de lobisomens, curupiras, a loira do banheiro… Um
bom exemplo de livro que pega bem esse espírito murakamiano em nosso próprio país é
Neon Azul, do carioca Eric Novello.

Personagens e Aventuras

Personagens típicos de Murakami não são grandes


heróis ou aventureiros, daqueles que realizam
grandes proezas de força e habilidade antes do café
da manhã. São, antes disso, aquilo que o 3D&T
chama de “pessoas comuns.” Isso significa que,
para uma aventura murakamiana mais purista, o
ideal é que eles sejam construídos com até 4 pontos
de personagem, com nenhum atributo maior do
que 1 ou 2 pontos, e uma ênfase maior em perícias
e especializações do que propriamente em
vantagens de combate. A adaptação de Kick-Ass na
revista DragonSlayer n.º 30 possui também algumas
sugestões de regras extras para personagens mais
mundanos que talvez valha a pena dar uma olhada.

Vantagens e poderes permitidos incluem qualquer


um que possa ter uma explicação mais mundana e
racional – você pode ter Poder Oculto representando a sua capacidade de se esforçar para
resolver uma situação, mas Separação pode ser bem mais difícil de justificar.  Como
sempre, em todo caso, cabe ao mestre determinar uma lista de vantagens permitidas e
proibidas, de acordo com o seu julgamento sobre o que achar melhor para a
campanha. Não é como se os jogadores tivessem pontos suficientes para comprar muitas
delas, de qualquer forma.

Claro, é importante destacar que o mundo de Murakami não é 100% mundano e racional.
Se você não vai encontrar lá magos poderosos disparando bolas de fogo e relâmpagos,
poderes mais sutis como telepatia, comunicação por sonhos ou conversar com espíritos
podem ser até razoavelmente comuns. Então, se as Escolas de magia e
vantagens/desvantagens relacionadas devem ser proibidas, outras que envolvem poderes
sobrenaturais mais simples, como Telepatia e Xamã, ainda podem ser adquiridas.

As aventuras, se é que podemos chamar elas assim, em geral devem envolver situações
até bem mundanas a princípio, como a busca por um gato perdido, um problema
conjugal, ou o primeiro dia em um novo emprego. É só na medida em que ela se
desenvolver e os seus desdobramentos começarem a aparecer que o estranho e o surreal
começarão a surgir, com direito a mistérios sobrenaturais e personagens exóticos
convocando os jogadores para missões incomuns. Conflitos em geral devem ser resolvidos
muito mais através de interpretação e roleplay do que rolagem de dados – devem haver
poucos combates de fato, e os testes de perícia mais comuns deveriam ser Fáceis e
Médios, para valorizar as especializações dos personagens, que permitirão a eles sucessos
automáticos nos primeiros, e uma chance maior na rolagem dos segundos. Tudo o que
puder ser resolvido apenas pelo diálogo entre o mestre e os jogadores – procura por itens,
exploração de salas e aposentos, conversas com NPCs, etc. -, deveria ser feito assim. Acima
de tudo, é importante não deixar que um elemento importante para o desenrolar da
história fique dependendo de uma rolagem de dados, ou que pelo menos ela possa se
desenvolver adequadamente, ainda que de forma diferente, seja com um sucesso ou uma
falha nessa rolagem.

A distribuição de Pontos de Experiência também deve ser um tanto minguada, porque a


sua função em jogo será menos a de avançar os personagens do que a de serem usados
para obter benefícios diversos durante as partidas. Em geral o ideal é que os jogadores
sempre tenham ao todo de dois a cinco PEs durante as aventuras, seja pela sua reserva
prévia ou recebidos durante ela, para que comprem sucessos automáticos, poderes
surpreendentes e etc. Lembre-se de que os atributos dos personagens já são baixos, então
gastar 1 PE que seja para obter um sucesso em um teste durante um momento crítico, por
exemplo, pode fazer toda a diferença para a conquista de um objetivo! Você também pode
dar uma olhada no meu BD&T sobre sugestões de uso extras dos PEs em jogo, em especial
as vantagens narrativas, que são bem adequadas a um jogo mais interpretativo como este
deve ser.

Como regra opcional, você pode até mesmo eliminar a possibilidade dos personagens
evoluírem de forma normal durante o jogo, ou pelo menos aumentar a quantidade de PEs
necessárias para 20 PEs para cada ponto de personagem. No entanto, você pode permitir
que eles troquem os seus pontos gastos entre uma aventura e outra, representando o
avanço natural por que eles passem durante a história – por exemplo, se um determinado
acontecimento fizer você se interessar por História Medieval, mas a sua prática em
Artesanato acabar enferrujando devido à falta de uso, você poderia trocar uma
especialização de perícia pela outra.

Claro, estou assumindo até aqui que você irá jogar uma aventura murakamiana do tipo
mais puro, com histórias como as que ele escreve nos seus livros. Nada impede também
que você aproveite elementos comuns na sua literatura – os acontecimentos estranhos, os
mistérios sobrenaturais, a cultura e folclore nipônicos – e faça uma aventura de RPG mais
tradicional, com direito a ação e combates a torto e direito. Se o seu mundo é o nosso
mundo apenas com algumas adições, o que impede você de viver histórias com membros
de forças militares especiais, esquadrões policiais, detetives particulares? Você poderia
mesmo aproveitar o a idéia do realismo fantástico em cenários de fantasia mais
tradicionais, focando em personagens comuns convivendo com criaturas e
acontecimentos sobrenaturais em lugares como Arton, Allansia ou qualquer outro.

Nestes casos, enfim, você pode permitir aos jogadores terem pontuações maiores, e
mesmo comprar algumas vantagens e desvantagens mais exageradas.

Mundos Alternativos

Um tema constante nos livros de Murakami é a


presença de outros mundos além do nosso. Desde
verdadeiras realidades paralelas, apenas com alguns
detalhes sutis que denunciem a sua diferença, até
vilas idílicas e misteriosas situadas literalmente no
fim do mundo, é um tema que aparece desde 1Q84,
seu livro mais recente, até histórias mais antigas,
como Hard-Boiled Wonderland and The End of the
World.

Não existe uma regra muito padrão sobre como lidar


com estes mundos alternativos. Eles são muito mais
elementos da trama mesmo – coisas importantes vão
acontecer neles, então os personagens são
transportados para lá em algum momento para que
possam participar delas. Isso pode acontecer de forma sutil e quase instantânea, através
de uma ação específica – o outro mundo pode estar dentro do seu subconsciente, ou ser
mesmo o mundo dos sonhos -, ou, outras vezes, física – talvez você chegue lá após
percorrer caminhos escondidos em uma floresta misteriosa, por exemplo.

Dois mundos em especial, em todo caso, merecem alguns comentários mais específicos. O
primeiro deles é o mundo dos mortos. Murakami não chega realmente a enviar os seus
personagens para lá, muito embora uma certa passagem em Kafka à Beira-Mar possa ser
subentendida como algo parecido; no entanto, fantasmas são criaturas recorrentes em
algumas histórias, remetendo muitas vezes ao clássico da literatura medieval japonesa
Genji Monogatari. Você pode usar a vantagem única Fantasma (Manual 3D&T Alpha, pg.
1d+60) para representá-los normalmente, e talvez até mesmo permitir que um dos
jogadores seja um, se estiver disposto a gastar todos os seus pontos com isso. Você
também pode permitir que um fantasma compre a capacidade de interagir com o mundo
físico normalmente (e também se tornar incorpóreo quando necessário) pagando 1 ponto
a mais por ela – não é incomum, em algumas histórias, ver fantasmas cometendo
assassinatos, ou até fazendo sexo com outros personagens!

O segundo destes mundos mais relevantes é o mundo dos sonhos, que possui um papel
importante em livros como Após o Anoitecer e The Wind-up Bird Chronicle. Mais do que
meramente uma representação do subconsciente, nas histórias de Murakami ele pode
realmente ter efeito sobre o mundo real, fazendo com que certos conflitos e resoluções
importantes aconteçam enquanto os protagonistas dormem. E se no mundo desperto as
coisas são na maior parte do tempo mundanas e repetitivas, em um sonho elas podem ser
bem diferentes – perseguições, combates, talvez mesmo monstros e criaturas
aterrorizantes podem dar as caras com maior freqüência.

Felizmente, enquanto sonham os personagens também estão um pouco melhor


preparados para lidar com tais eventos, desde que saibam utilizar o seu subconsciente a
seu favor. Quando estão sonhando, assim, eles podem gastar PMs ao invés de PEs para
receber qualquer benefício de jogo equivalente – poderes surpreendentes, sucessos
automáticos, recuperações espantosas, etc. Também podem continuar usando
normalmente quaisquer habilidades e conhecimentos que possuíssem despertos.

No entanto, gastar PMs demais pode trazer problemas, uma vez que isso esgota o
personagem mentalmente, fazendo com que ele se torne mais fraco para enfrentar
desafios futuros. Além dos seus gastos normais, qualquer dano que o personagem receba
em um sonho também é descontado dos seus PMs, e não dos seus PVs. Caso chegue a 0
PMs, ele deve fazer uma espécie de Teste de Morte (ver no Manual 3D&T Alpha, pg.
1d+26), conforme os resultados abaixo:

1) Despertar. O personagem desperta repentinamente do sonho, sem nenhuma


conseqüência.

2-3) Fadiga. O personagem desperta do sonho, mas está extremamente cansado por não
ter tido um repouso adequado. Até conseguir ter uma boa noite de sono, ele terá um
redutor de -1 em todas as suas Características.

4-5) Coma. O personagem não consegue despertar, entrando em coma profundo. Um teste
bem sucedido de Medicina permite que ele faça um teste R-1 para despertar em 1d dias.
Cada teste bem sucedido de Medicina a partir daí concede um bônus de +1 no teste de R
seguinte (apenas R no segundo teste, R+1 no terceiro, etc). Lembre-se também que um
personagem em coma ainda está sujeito a privações como fome e sede, a menos que o seu
corpo receba os devidos cuidados (por exemplo, uma injeção de soro fisiológico direto na
veia).

6) Derrame. O personagem sofre um derrame e entra em estado vegetativo. Para todos os


efeitos, é como se estivesse morto.
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Categorias: 3D&T Alpha

Tags: Adaptação, Haruki Murakami, Japão, Literatura, Realismo Fantástico, Sonhos

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