Você está na página 1de 10

92

ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1

Mounk, Y. (2018). The People vs. Democracy: why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge:
Harvard University Press.
Pastoral Carcerária (2016). Tortura em tempos de encarceramento em massa. São Paulo: ASAAC. Dis-
ponível em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/01/relatorio-relatorio-tortura-2016.pdf
(acesso em 15/08/2018).
Portugal. DGPJ/MJ (2016). Estatísticas Prisionais. Disponível em: http://www.dgsp.mj.pt/ (acesso em
15/08/2018). STANDARDS DE PROVA: A MODÉSTIA
UNODC (2017). Commission on Narcotic Drugs. Sixty-first session. Report of the Secretariat: World NECESSÁRIA A JUÍZES E O ABANDONO DA
situation with regard to drug abuse. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/commissions/
CND/session/61_Session_2018/session-61-of-the-commission-on-narcotic-drugs.html (acesso em
PROVA POR CONVICÇÃO
08/03/2018).
_________ (2015). Commission on Narcotic Drugs. Fifty-ninth session. Report of the Secretariat:
World situation with regard to drug abuse. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/commis- Janaina Matida1
sions/CND/session/59_Session_2016/CND-59-Session_Index.html l (acesso em 08/03/2018).
Varela, D. (1999). Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras. INTRODUÇÃO
Começo esse artigo propondo um exercício hipotético. Imaginemos
um mundo no qual os sistemas de justiça não experimentam cenários de
dificuldades para a determinação dos fatos. Tais sistemas de justiça contam
com a ajuda de uma espécie de “oráculo”. Os casos são levados a Juízo e as
narrativas das partes são oferecidas ao oráculo. Após ouvi-las, o oráculo emite
a sua decisão, sempre baseada em proposições fáticas que se correspondem à
realidade, descrições verdadeiras dos fatos sobre as quais não sobrevive qual-
quer dúvida. O oráculo é imparcial, não sensível a vantagens pessoais. Ele
conhece a verdade e cuida de revelá-la no ambiente judicial. Um mundo de
certezas absolutas no qual a resolução dos conflitos individuais não esbarraria
em indesejáveis obstáculos de caráter cognitivo.
Hipotetizado o mundo do oráculo, voltemos ao mundo real. As Jurisdi-
ções reais são marcadas por limitações no contexto da determinação dos fatos,
a busca pela verdade encontra obstáculos importantes. Construir a premissa
menor do raciocínio que o juiz desenvolve no contexto decisório é tarefa que
não se confunde com a revelação dos fatos feita pelo oráculo (GONZALES
LAGIER, 2013, 2014; MATIDA; HERDY, 2016). Para começar, o juiz real
não é onisciente e, à falta de um prévio domínio de tudo o que ocorreu e que
é relevante para a decisão que deve tomar, cabe-lhe o labor de formar e valorar
um conjunto rico de informações. Testemunhos, depoimentos, documentos,
gravações, laudos periciais e outros recursos integram o contexto no qual o
juiz tem o objetivo de determinar corretamente os fatos. À diferença do orá-
culo, o juiz real tem de estar atento ao risco de considerar como verdadeiro

1. Doutoranda de Direito da Universitat de Girona; Mestre em Direito pela Puc-Rio; Professora de Teoria
do Direito da UFRJ.
94 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 95

algo em realidade falso, pois, o contato que faz com os fatos é intermediado texto decisório de modo responsável implica reconhecer a comissão de erros
por alegações2 (as mentiras e os erros de percepção são fortes obstáculos à judiciais como uma realidade concreta que deve ser evitada6.
construção de uma premissa menor justificada). Não fosse o bastante, além Os standards de prova integram precisamente um horizonte de reflexões
de precisar saber desviar das falsidades, diante da falta do contato direto com sobre soluções institucionais às limitações cognitivas que acometem os juízes;
os fatos juridicamente relevantes (disponível ao oráculo), o juiz deve deter- são barreiras que o desenho institucional pode – e deve – colocar à irracio-
minar a ocorrência deles através de inferências de caráter indutivo. Mediante nalidade judicial. Desenvolver teorizações sobre standards é, nesse sentido,
raciocínio inferencial, o juiz, no melhor dos casos, alcança a hipótese fática em primeiro lugar, reconhecer a necessidade de se refletir sobre a suficiência
provavelmente verdadeira3. Como bem nos recorda Ferrer Beltrán (2007, das hipóteses fáticas produzidas em Juízo e a partir de quê ponto, de quê
p. 91), “nunca um conjunto de elementos de juízo, por grande e relevante patamar, elas podem justificadamente ocupar a função de premissa menor de
que seja, permitirá ter certezas racionais sobre a verdade de uma hipótese”4. uma decisão condenatória e, em segundo lugar, determinar em quê ponto de
As informações colhidas por meio das provas praticadas funcionam como exigência determinado sistema jurídico deve fixar o seu próprio standard de
pontos de partida para o raciocínio – de caráter não dedutivo – através do prova. Em outras palavras – ou dado que não contamos com oráculos -, não
qual o juiz busca confirmar/refutar as hipóteses fáticas ao redor das quais a sobra qualquer racionalidade em se preservar um desenho institucional que
disputa judicial se desenvolveu. Esse é o esquema da inferência probatória, possibilite decisões condenatórias fundamentadas numa supervalorizada refe-
de autoria de Toulmin (2003), e reaproveitado por González Lagier (2003). rência ao “convencimento do juiz”; num suposto estado mental de convicção.
Assim, o mundo real de juízes reais é um mundo de limitações cog- O caminho de apreço à racionalidade envolve o abandono da convicção do
nitivas, sendo, portanto, inadequada qualquer tentativa de compreensão da julgador entendida como prova suficiente para a condenação. Já é tempo de
atividade intelectual a partir da apreensão de certezas absolutas. Por outras substituir o “há prova porque há convicção” por “há convicção porque há
palavras, dizer que há prova suficiente porque se há atingido a convicção do prova”. Esse é o sentido racional da relação entre prova e convicção.
julgador é abrir mão de qualquer controle da racionalidade judicial, deixando A primeira parte do artigo (II.) presta-se a reconstruir o estado atual
o caminho aberto às condenações arbitrárias e caprichosas5. Tratar o con- de coisas no discurso jurídico judicial, que, se bem já apresenta de modo
frequente uma referência à noção de “prova suficiente”, por outro lado, será
2. Sobre o perigo a valorização excessiva do contato que o juiz tem ao examinar as provas diretas, ver possível concluir que a mera referência a provas suficientes não garante de-
Andrés Ibáñez, 2007.
3. Uso a expressão recorrendo ao sentido a ele atribuído por Taruffo, 2012, 113: “No âmbito do processo, cisões justificadas (não há mais lugar para o “standard” de convencimento
em que as informações disponíveis são oferecidas pelas provas, pode ocorrer que essas forneçam um
determinado grau de confirmação ao enunciado que concerne a um fato relevante para a decisão. Poder- do julgador). Na sequência, a segunda parte (III.) serve à reflexão sobre
-se-á, então, dizer que esse enunciado é ‘provavelmente verdadeiro’, com a condição de que se queira
dizer com essa expressão que as provas produzidas no processo fornecem razões suficientes para que se os ajustes que devem ser realizados de modo a compatibilizar os procedi-
considere confirmada a hipótese de que aquele enunciado seja verdadeiro”. mentos probatórios previstos no sistema jurídico brasileiro à futura adoção
4. No entanto, como esclarece Ferrer Beltrán, a impossibilidade de se alcançar certezas absolutas não se
deve concluir, precipitadamente, pela impossibilidade de se formar crenças racionais. p. 92: “Como bem de standard de prova intersubjetivamente controlável. Qualquer que seja o
indica Popper, não é possível verificar uma hipótese, mas isso não implica que não podamos preferir
racionalmente uma hipótese sobre outras a partir da maior corroboração da primeira” (tradução livre). ponto de exigência ao qual fixemos o nosso standard de prova, será necessário
Na mesma linha argumentativa que valoriza os juízos de probabilidade, Taruffo, Taruffo, 2002, p. 30,
também aponta que a impossibilidade de certezas absolutas não autoriza concluir, como um ‘perfeccio- proceder a ajustes à produção e valoração da prova. Só assim o standard de
nista desiludido’, pela impossibilidade de qualquer conhecimento racional.
5. Aliás, a certeza do julgador não garante a verdade da proposição (sobre a qual se tem certeza), ver
prova poderá cumprir a sua função. Para tanto, serão examinadas as decisões
Taruffo, 2012, p. 109-110: “[...] Pode-se observar que a credibilidade da certeza de um sujeito sobre o condenatórias fundamentadas em prova de identificação do culpado sem a
conteúdo de uma afirmação depende da seriedade das justificativas que ele está em condições de dar.
Se as justificativas são do tipo ‘estou certo disso porque estou profundamente convencido’(ou seja, observância no disposto pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (que
não justificativas), trata-se, então de argumentos que têm a mesma força demonstrativa de borras de
café.”...“Quando se afirma, por exemplo, que a condenação de um acusado justifica-se quando o juiz
tem certeza absoluta de sua culpabilidade, ou quando se diz – como ocorre comumente – que o juiz 6. Tomarei a definição de Laudan, Laudan, 2013, p. 34, entre falsas condenações e falsas absolvições.
debe obter a certeza moral sobre a existência dos fatos da causa, comete-se um erro duplo: de um lado “‘Erro’, no sentido que atribuo a essa expressão, não tem nada a ver com determinar se o sistema jurídi-
deixa-se a ideia da verdade, excluindo-se a necessidade de que a decisão funde-se em uma apuração co seguiu pontualmente ou não as regras jurídico-processuais (isto é, nada a ver com o sentido de ‘erro’
verdadeira dos fatos; por outro lado, fortalece-se a ideia de que o que deve fundar a decisão do juiz é o empregado pelos tribunais de apelação) e tudo a ver com se determinar se as decisões condenatórias
grau de persuasão subjetiva que ele deve obter”. efetivamente condenam o culpado e absolvem o inocente”. (Tradução livre)
96 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 97

estabelece formalidades para a realização de tal ato). Na parte (IV.) propo- convencimento. O problema é que a convicção do juiz não é, ela mesma, a
nho um exame do valor probatório da memória a partir das ferramentas de prova de que algo é verdadeiro. Vejamos.
análise fornecidas pela chamada psicologia aplicada. Finalmente, a título de De acordo com o artigo 226 do Código de Processo Penal (de agora em
conclusão, em (V.) serão algumas últimas reflexões sobre o procedimento, diante, CPP), o reconhecimento pessoal deverá ocorrer da seguinte forma:
a valoração e os standards probatórios. Enfim, à carência de oráculos, num
I – a pessoa que tiver que fazer o reconhecimento será convidada a descrever
cenário de pouca modéstia judicial, o cenário da determinação dos fatos a pessoa que deva ser reconhecida;
requer esforços redobrados.
II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível,
1. O ESTADO ATUAL: UM MUNDO SEM ORÁCULO E ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se
quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
SEM MODÉSTIA
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconheci-
Reflexões sobre a temática dos standards de prova podem ser iniciadas mento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em
a partir de diversas perspectivas. Assim, esclareço que, para fins de análise, face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que
assumo a hipótese de que a sociedade brasileira tem o interesse político-mo- esta não veja aquela;
ral de diminuir os riscos de que inocentes venham a ser condenados. Entre IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito
o risco de se condenar inocentes e o risco de se absolver culpados, a nossa pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por
sociedade convenceu-se pela maior gravidade do primeiro. Isso dotaria de duas testemunhas presenciais.
sentido um desenho institucional que dificultasse a condenação de inocentes, Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase de
mediante o estabelecimento diversos mecanismos, e, entre eles, a adoção de instrução criminal ou em plenário de julgamento.
um standard de prova penal mais exigente. Logo, se em âmbito civil pode
fazer sentido pensar que demandante e demandado, na maior parte das si- Do texto normativo, é possível concluir que o legislador teve a preocu-
tuações, devem repartir igualmente o risco de decisões injustas (standard de pação de que se buscasse construir um cenário neutro à hora de se realizar o
probabilidade preponderante), no contexto criminal, o que se entende desde ato. Não é difícil de perceber que o legislador pretendeu resguardar protago-
a contribuição de Blackstone7, Voltaire8, Benjamin Franklin9 e tantos nismo à memória daquele que se presta a reconhecer, tentando evitar sugestões
outros10, é que a condenação de um inocente representa um erro mais grave indesejadas que pudessem pôr em xeque a confiabilidade do resultado. Daí é
que a absolvição de um culpado, não cabendo, portanto, repartir igualmente que se compreende o inciso II, que determina a realização de uma fila com-
os riscos de condenações e absolvições injustas. posta por mais pessoas além da pessoa do suspeito, todas semelhantes entre
si. Realizar o procedimento dessa forma serviria à redução do risco de que a
Com isso em mente, convido o leitor a refletir sobre a temática do vítima fosse induzida ao erro de apontar um inocente como causador de seu
standard no contexto de decisões condenatórias fundadas em prova de sofrimento. A jurisprudência, contudo, passou a interpretar que se trata de
reconhecimento pessoal. Nesses casos, os magistrados argumentam que a um conjunto de “meras recomendações” e, como tais, desnecessárias para a
certeza da vítima e a narrativa detalhada são suficientes à formação de seu regularidade do reconhecimento.
É relevante mencionar, ainda, que o dispositivo previsto no art. 226 do
7. “It is better that ten guilty persons escape than that one innocent suffer.” Commentaries on the Laws of Cód. de Processo Penal não contém mandamento absoluto, cogente e
England, Livro IV, cap 24, 1765-1769.
incontornável...” (TJ-SP, Apelação, 0000884-11.2017.8.26.0559, Min.
8. “Il vaut mieux hasarder de sauver un coupable que de condamner un innocent”, Voltaire, Zadig ou la
Destinée, 1747. Costabile e Solimene)11.
9. “It is better 100 guilty persons should escape than that one innocent person should suffer”, Works, Letter
from Benjamin Franklin to Benjamin Vaughan, 1785. 11. A consolidação dessa interpretação em sede jurisprudencial resultou na publicação do seguinte enuncia-
10. Laudan menciona diversas formulações dessa distribuição desigual como forma de ilustrar ao leitor as do por parte do Superior Tribunal de Justiça: “O reconhecimento fotográfico do réu, quando ratificado
consideráveis variações que a razão entre condenar inocentes e absolver culpados apresentou no decor- em juízo, sob a garantia do contraditório e ampla defesa, pode servir como meio idôneo de prova para
rer da história. Laudan, 2013, cap 3. fundamentar a condenação”, in Jurisprudência em teses, n. 105. acesso em agosto de 2018: http://www.
98 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 99

A interpretação como recomendação, por sua vez, serviu para elimi- que o reconhecimento em sede policial não observou as regras previstas no
nar as dúvidas sobre a legalidade do procedimento de identificação através art. 226, do Código de Processo Penal, pois o reconhecimento do Apelante
pela vítima foi feito através de fotografia. Ocorre, porém, que em Juízo, sob
de fotografia.
o crivo do contraditório, a vítima confirmou o reconhecimento e não teve
O reconhecimento fotográfico não é inválido como meio de prova, pois, dúvida em identificar o Apelante como um dos autores do crime sob aná-
conquanto seja aconselhável a utilização, por analogia, das regras previstas lise”. (TJ-RJ, Apelação criminal 0359848-80.2013.8.19.0001, Des. Marcia
no art. 226 do Código de Processo Penal, as disposições nele previstas são Perrini Bodart, 07 de agosto de 2018)12.
meras recomendações, cuja inobservância não causa, por si só, a nulidade do
ato. Precedentes”. (STJ, HC 427051, 2017/0311185-5, Min. Felix Fischer, O reconhecimento dos réus foi realizado pelo ofendido em Juízo, sob o crivo
5 de abril de 2018). do contraditório e da ampla defesa, restando assim superada a alegação de
nulidade pela inobservância das formalidades previstas no artigo 226 do CPP,
Além de reforçar o caráter meramente recomendatório dos requisitos aplicável em sede inquisitorial. Versão acusatória consiste no depoimento
dispostos no artigo 226, às decisões condenatórias que se fundamentam em firme e seguro do lesado que narrou com riqueza de detalhes a emprei-
reconhecimentos pessoais apresentam uma linha argumentativa comum: i. tada criminosa. Nos crimes patrimoniais, a palavra da vítima, quando
firme, coerente e ratificada pelos demais elementos dos autos, tem valor
valoriza-se a riqueza de detalhes da narrativa constante na prova oral (o que relevante na formação da convicção do juiz, dado o contato direto que esta
supostamente complementaria o reconhecimento pessoal), ii. o elevado grau tem com o autor dos fatos, sendo apta para embasar a condenação”. (TJ-RJ,
de convicção com que se reconhece o culpado, iii. a repetição do reconheci- Apelação criminal 0014783-66.2015.8.19. 0066, Des. Suimei Meira Cava-
mento em juízo. Esse último aspecto discursivo deve-se à preocupação de se lieri, 28/03/2017)13.
tentar evitar recursos com base no artigo 155 do CPP. Como é sabido, a
disposição em questão estabelece limites à livre convicção do juiz, que deve 2. STANDARDS, VALORAÇÃO E PRODUÇÃO DAS PROVAS
ser formada a partir de provas produzidas em contraditório “não poden- O leitor pode se questionar como a produção e valoração das provas
do fundamentar a sua decisão exclusivamente em elementos informativos relacionam-se com os standards de prova. A resposta reside na relação de
colhidos na investigação” (in verbis). Nesse sentido, a jurisprudência têm dois tipos de preocupação que o responsável pelo desenho institucional:
entendido que a repetição em audiência é bastante para eliminar eventuais uma preocupação de corte epistêmico somada a uma preocupação de corte
defeitos da produção da prova na fase de investigação. político-moral. A partir de uma perspectiva epistemológica, um processo penal
Observe-se que naquela ocasião não havia outros presos para serem apresen- comprometido com a busca pela verdade deveria contar com regras que
tados juntamente com o réu para que a vítima Samuel Marcelo procedesse ao expressassem o objetivo de redução de erros; isto é, deveria se preocupar em
reconhecimento, motivo pelo qual a Defesa requereu seu adiamento, que foi reduzir os riscos de condenar inocentes e de absolver culpados. Para tanto,
indeferido pela magistrada em razão do ato ter sido requerido pelo Ministério
desenvolver regras para selecionar como verdadeiras as hipóteses fáticas
Público e por considerá-lo desnecessário especialmente em razão de a já citada
vítima ter afirmado em juízo que na data do fato reconheceu com absoluta mais provavelmente verdadeiras – independente de quem seja essa hipótese.
certeza o apelante como um dos autores do crime. Caberia ao responsável pelo desenho institucional processual criminal a
adoção de procedimentos probatórios formulados a partir de metodolo-
No mais, as formalidades do art. 226 do CPP são meras recomendações
legais. (TJ-DF, 0003631-45.2017.8.07.0014, Min Relator Roberval Case- gias com maior potencial veritativo. Os procedimentos destinados à prova
miro Belinati) deveriam incorporar a preocupação com a busca pela verdade e, portanto,
refletir os conhecimentos técnicos e científicos já acumulados pela expe-
O crime de roubo restou cabalmente demonstrado pela prova oral. A vítima
narrou de forma clara toda a dinâmica delitiva, inclusive o emprego de riência social (a adoção do teste do DNA como prova nos processos em
arma de fogo, além de esclarecer que levou um tapa no rosto. A defesa alega que haja material genético que possa ser analisado é um exemplo disso.

stj.jus.br/internet_docs/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudência%20em%20teses%20 12. grifei.


105%20-%20Provas%20no%20Processo%20Penal%20-%20I.pdf. 13. grifei.
100 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 101

Não aproveitar essa técnica de investigação, com alto potencial de conduzir exigência do standard (de modo a que ele reflita a proporção dos erros que
à verdade (truth-conducive), seria o mesmo que descartar o objetivo de estamos dispostos a experimentar na vida em sociedade).
redução de erros. Esclarecida a função de um standard de prova, é preciso compreender
No entanto, a partir de uma perspectiva moral ou política, é possível que ele é apenas uma das ferramentas para a determinação dos fatos. Para
que se entenda que o processo penal teria de se comprometer em “reduzir” que ele possa, nos casos individuais, oferecer-nos a resposta sobre se a hi-
uma classe de erros (a condenação de inocentes) com maior intensidade pótese acusatória está suficientemente provada, é preciso entendê-lo como
do que reduz outra classe de erros (a absolvição de inocentes)14. Entre o uma peça operativa pertencente uma etapa posterior à seleção das hipóteses
cômputo total de erros, haveria uma preocupação em que as condenações mais prováveis. Qualquer que seja o standard, ele se aplica às hipóteses já
injustas fossem em menor proporção se comparadas às absolvições in- valoradas pelo julgador. Não por outra razão, a a aplicação de um standard
justas. Isso implicaria, em outras palavras, assumir que temos o objetivo pertence ao momento da decisão, e não ao momento da valoração.
de distribuir assimetricamente essas duas classes de erros. Um standard O terceiro momento (referindo-se ao momento da decisão sobre os fatos) é
de prova penal mais elevado serve ao objetivo de reduzir a condenação ao que corresponde a tomada da decisão. A valoração da prova já terá per-
de inocentes porque dificulta as condenações em geral. Em todos os mitido outorgar a cada uma das hipóteses em conflito um determinado grau
de confirmação que nunca será igual à certeza absoluta. Será então necessário
processos, exige mais da hipótese acusatória para considerá-la verdadeira.
decidir se a hipótese h pode ou não ser declarada provada com o grau de
O outro lado da moeda é que, para proteger inocentes do risco de con- confirmação que ela dispõe.
denações injustas, tornaríamos as absolvições de culpados mais fáceis de
(...)
ocorrer. Evita-se a produção de uma classe de erro a partir da facilitação
do erro considerado “menos pior”15. Convém insistir que o resultado da valoração da prova que se obtenha no
segundo momento (referindo-se ao momento da valoração dos elementos
Por outro lado, caso se optasse por um standard de prova menos ele- de prova) não implica, por si só, nada a respeito da decisão a ser tomada.
vado (por exemplo aquele conhecido como “probabilidade prevalecente”), (Ferrer Beltrán, 2007, pp. 47-48. Tradução livre).
isso expressaria a compreensão de que condenações injustas e absolvições
injustas são erros da mesma ordem de importância, não havendo algum Portanto – e correndo o risco de ser repetitiva -, insisto: a tarefa que
que cuja eliminação deva ser preferida. Ora, se não enxergamos como pior é asignada ao standard de prova só pode ser adequadamente entregue uma
a condenação de inocentes, não há porque fixar a exigência de prova da vez que a produção e a valoração probatórias já tenham se mostrado idôneas
hipótese acusatória em patamares especialmente mais altos. Ou seja, levar a à seleção da hipótese fática mais provável. Isso explica a necessidade de se
sério a adoção der um standard de prova significa ter em consideração duas compatibilizar a produção e a valoração probatórias à adoção de um standard
perguntas: a pergunta sobre se existe preferência por evitar alguma classe de prova racional. Seja mais exigente, seja menos exigente, num sistema ge-
de erro frente a outra e, em caso positivo, a pergunta sobre onde fixar a nuinamente comprometido com a busca pela verdade, o standard age sobre
hipóteses selecionadas como provavelmente verdadeiras. Se as hipóteses se-
lecionadas não são as hipóteses provavelmente verdadeiras, a aplicação do
14. Diversas são as formulações que, ao longo da história, trataram de expressar a preferência moral de se
evitar condenações injustas mesmo que às custas de se produzir absolvições injustas. Em Blackstone, a standard não logra reproduzir a distribuição de erros previamente escolhida.
razão entre absolvição de culpados e condenação de inocentes é de 10 para 1; em Fortescue, de 20 para
; em Hale, de 5 para 1; em Benjamin Franklin de 100 para 1.
15. Standards de prova mais exigentes devem garantir que as condenações são fundamentadas nas hipó- 3. A PSICOLOGIA APLICADA COMO FERRAMENTA ADE-
teses fáticas as quais mais provavelmente sejam verdadeiras, mas as absolvições não necessariamente
são fundamentadas em hipóteses fáticas de mesmas características. Pode acontecer que a hipótese da QUADA
acusação, embora seja provavelmente verdadeira, não tenha satisfeito o patamar de exigência estabele-
cido por determinado sistema jurídico. Nesse caso, o juiz será obrigado a decidir incorporando em sua Feitas essas observações conceituais, centro minhas atenções em alguns
premissa menor a hipótese da defesa como se verdadeira fosse; não porque há elementos probatórios
que lhe ofereçam valor de verdade, mas porque faltam elementos de prova suficientes a satisfazer o trabalhos desenvolvidos a partir da psicologia aplicada na temática do tes-
standard elevado à hipótese da acusação. Logo, as condenações são epistemicamente comprometidas,
mas as absolvições não. Nesse sentido, ver Goldman, 1999, p. 284. temunho (eyewitness testimony). À falta de dados sobre certo evento do qual
102 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 103

se quer mais informações, estaríamos justificados em crer no que as pessoas identificação20. Isso, porque, confirmando as conclusões que a psicologia
nos dizem ter ocorrido? A memória é uma fonte confiável de informação aplicada já havia antecipado, é possível que uma pessoa esteja absolutamente
sobre a realidade? Não é difícil intuir que as pesquisas de psicologia aplicada convicta e ao mesmo tempo absolutamente equivocada21.
são sumamente úteis à reflexão a respeito do valor epistêmico das provas Assim, pesquisas da psicologia aplicada têm se dedicado a investigar
orais e do procedimento de identificação do ofensor – as provas nas quais as fatores psicológicos que afetam a produção da memória. Há esforços com vistas
condenações aqui analisadas se fundamentam. a dissecar quais variáveis podem interferir na precisão (accuracy) da memória.
Tais pesquisas ganharam especial destaque a partir do surgimento do Nesse sentido, pesquisadores22 distinguem as 1. estimator variables entre
teste de DNA, na década de 90. De acordo com (Wells, Memon; Steven, entre 1.1. as que não estão sob o controle do sistema de justiça e que se
2006, p. 48), foi a possibilidade de se comparar o DNA do inocente conde- referem ao evento observado ou 1.2. à pessoa do observador/participante
nado com o material genético do real culpado pelos crimes em questão que (ambas de tipo estimator variables) e 2. variáveis que estão sob o controle do
rapidamente trouxe à luz uma considerável quantidade de condenações injus- próprio sistema de justiça (systemic variables).
tas. Condenações cujo fundamento residia em testemunhos e depoimentos 1.1) Entre as estimator variables referentes ao evento, apontam para: a.
equivocados16. Uma série de relatos fornecidos a partir do estado mental de Tempo de exposição, distância e iluminação; b. Presença de arma; c. Disfarce;
certeza de seus declarantes. Relatos autênticos, porém falsos: autênticos pois d. Transcurso temporal;
correspondiam-se à representação que as vítimas/testemunhas genuinamente a. Quanto maior o tempo de exposição da vítima/testemunha ao ofen-
tinham dos eventos em questão, falsos porque o conteúdo afirmado simples- sor, mais provável a acurácia da identificação; mais preciso o relato.
mente não se correspondia à realidade. Exposições rápidas incrementam os riscos de imprecisão na identifi-
[...] Foi o desenvolvimento do teste de DNA nos anos 90 que permitiu cação23; quanto maior a distância da testemunha, menos acurada a
que casos de condenações de pessoas inocentes nos Estados Unidos pudes- identificação, quanto menor a iluminação, maior o risco de impre-
sem ser em definitiva descobertos. Os advogados de defesa Barry Scheck cisões quanto aos detalhes descritos.
e Peter Neufeld, co-fundadores do Innocence Project na cidade de Nova b. A presença de uma arma tende a capturar a atenção da vítima/tes-
Iorque, tomaram a liderança e ainda são as figuras centrais na facilitação temunha, o que, por sua vez, pode comprometer a identificação do
de uso do teste de DNA para corroborar as alegações de inocência por ofensor (Loftus, Loftus; Messo, 1987);
pessoas que foram condenadas pelo Júri. Scheck e Neufeld foram rápidos
c. O uso de disfarces, ou outros fatores para modificar a aparência,
em detectar o padrão: o erro na identificação por testemunha ocular (eye-
witness-identification) estava no coração da prova usada para condenar
20. Mais de 300 outras histórias de inocentes condenados podem ser encontradas em: https://www.innocen-
a vasta maioria de pessoas inocentes. (Wells, Memon; Steven, 2006, ceproject.org
p. 48. Tradução livre). 21. É do início do século passado a denúncia feita Münsterberg da supervalorização do senso comum por
parte dos juízes. Münsterberg, 1908. O equívoco de tomar o declarado com convicção como a verdade
dos fatos é abordado pelo pesquisador. Já na contemporaneidade, pesquisas sobre “maleabilidade da
Próximo de 75% do número total de condenações rescindidas devem-se convicção” concluíram, de forma quase unânime, que a convicção pode ser manipulada pelo ofereci-
mento de feedback’s por parte dos oficiais responsáveis por um procedimento de reconhecimento, por
a erros na identificação de inocentes como culpados por parte de testemunha/ exemplo (“Bom, você identificou o suspeito!), de modo que a vítima/testemunha inocula o que ouviu
vítima (Zimmerman, Austin; Kovera, 2012, 127; Wells, Memon; Steven, de si mesma e substitui o estado mental que tinha por um estado mental de maior confiança. Douglass;
Pavletic, 2012
2006, 48). Kirk Bloodsworth17, Marvin Anderson18, Steven Barnes19 são 22. A distinção de Wells (Wells, 1978) é amplamente empregada pelos pesquisadores da psicologia, a
exemplo de Pezdek, 2012 e Zimmerman, Austin; Kovera, 2012, entre outros.
apenas alguns dos inocentes que terminaram prejudicados pela errônea 23. É incorreta a compreensão de que a memória funciona como uma “máquina fotográfica” que tira fotos e
armazena na memória (Pezdek, 2012, 114). De acordo com Memon, Hope; Bull, 2003, a probabilidade
de identificação correta varia conforme o tempo de exposição. As testemunhas do experimento assisti-
16. Em 1996, 26 dos primeiros 28 casos de revisão das condenações eram casos de erros na identificação, ram um vídeo no qual o ofensor era visível por 12s ou 45s (para algumas testemunhas, video de visibi-
Em 1998, 36 dos primeiros 40 casos; em 2000, 52 dos 62. Segundo Wells, Memon; Steven, 2006, a lidade por 12s, para outras, por 45s). 40 minutos depois, as testemunhas tinham de identificar o ofensor
proporção que envolve erro na identificação continua a tocar os 75%. numa fila (no qual ele estava presente): as taxas de acerto das testemunhas com 45s de exposição foi de
90% vs. 32% das taxas de acerto das testemunhos que viram o ofensor por apenas 12s. A probabilidade
17. https://www.innocenceproject.org/cases/kirk-bloodsworth/ de identificação incorreta em filas que não contavam com a presença do suspeito foi consideravelmente
18. https://www.innocenceproject.org/cases/marvin-anderson/ superior para os que tiveram exposição de 12s: 85% de erros vs. 41% de erros entre os que estiveram
19. https://www.innocenceproject.org/cases/steven-barnes/ exposição de 45s.
104 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 105

também pode comprometer a identificação. A obstrução de traços é aumentado pelo feedback positivo do policial e será essa certeza
da parte superior do rosto (olhos, testa, cabelo) compromete (alimentada pelo feedback positivo) que será oferecida ao julgador
mais a identificação do que a obstrução de traços da parte in- no momento da audiência.
ferior do rosto (boca, queixo, bochechas), (Davies, Shepherd; f. De acordo com estudos de Meissner; Brigham, 2001; Pezdec, Blan-
Ellis, 1979); don-Gitlin; Moore, 2003, a raça ou etnia da vítima/testemunha
d. Quanto maior seja o lapso temporal entre o evento criminoso e a também é uma estimator variable e pode interferir na acuracidade
identificação ou tomada de depoimento, maiores os riscos de impre- da identificação: a acuracidade é menor quando a pessoa a ser iden-
cisões nesses procedimentos. (Shapiro; Penrod, 1986). tificada é de raça/etnia diferente da raça/etnia da vítima/testemunha
(esse é o chamado cross-race effect, ou own-race bias. “Eles todos
1.2) Entre as referentes ao observador/participante, listam: a. Estado
(pessoas de outra raça/etnia) parecem iguais”). A análise realizada por
mental de convicção; a. Identificação de pessoa de raça diferente (cross-race iden- Meissner e Bringham indica que o onw-race bias (ORB) incrementa
tification); c. Stresse. os erros de identificação realizadas por pessoas brancas (2001, p. 21).
e. A convicção de quem fala é um aspecto muito persuasivo do dis- g. Finalmente, um alto nível de stresse também pode aumentar o risco
curso. No entanto, há razões para correlacionar certeza da verdade de identificações errôneas. Ao contrário do que a regra de experiência
com a verdade em si mesma? A partir de experimentos da psicologia segundo a qual “o stresse nos coloca mais atentos”, os estudos de psi-
aplicada nos oferece boas razões para abandonar essa tentativa. A cologia aplicada sugerem que o stresse prejudica a memória. Morgan,
meta-análise realizada por Sporer, Penrod, Read e Cutler (Sporer, Hazlett, Doran, Garret, Hoyt, Thomas, Baranoski, Madelon; South-
Penrod, Read; Cutler, 1995) debruça-se sobre a correlação entre wick, 2004 realizaram experimentos com 530 oficiais militares ativos
certeza da vítima/testemunha e acuracidade do declarado (con- (idade média de 25 anos, tempo de serviço medio, 4 anos).
fidence-accuracy). Foram examinados mais de 30 estudos sobre
Aproximadamente 12 h depois de treinamento em campo de simulação de
o tema e a conclusão foi pela correlação de apenas 8%. Significa
guerra, os participantes foram interrogados. Todos os participantes passaram
que a cada 100 identificações em que a vítima/testemunha atesta por interrogatórios com alto stress e com baixo stress, conduzidos por instru-
“ter certeza”, apenas 8 são as identificações corretas. Os autores tores diferentes. Os interrogatórios foram separados por aproximadamente
esclarecem que a correlação apresenta um incremento quando se 4 h, realizados por diferentes interrogadores, e tiveram duração igual (de 40
especifica o experimento para identificações realizadas somente por min). Para controlar a possibilidade do efeito da ordem, os sujeitos foram
choosers (aqueles que escolhem, pro-ativamente, realizar o proce- entrevistados randomicamente, de maneira que uma metade passou por in-
dimento), por já haver previamente realizado a identificação (seja terrogatorio de alto stress antes do interrogatório de baixo-stress e vice-versa.
por fila, seja por show up, em unidades policiais). Nesses casos, a (Morgan, Hazlett, Doran, Garret, Hoyt, Thomas, Baranoski, Made-
correlação passa para 41%, isto é, em 41 casos, de 100, há acerto lon; Southwick, 2004, p. 268) (tradução livre).
na identificação realizada por aqueles que atestam estado mental
de certeza de que o suspeito é o culpado. Ora, se queremos que os Um dia depois, recuperados das privações sofridas, tinham de reco-
procedimentos probatórios adotados reflitam certa preocupação nhecer seus respectivos entrevistadores em line up viva (fila com diversos
de corte epistêmico, mesmo o melhor dos mundos – de 41% de componentes e com o suspeito) ou line up fotografica (oferecimento de fotos).
correlação entre certeza e acuracidade – ainda é insuficiente. E não Entre os resultados, a taxa de respostas positivas verdadeiras (identificação
é só isso. Há estudos dedicados ao fenômeno de maleabilidade da correta) é de 62% contra 30% (baixo stress, alto stress, respectivamente);
certeza (confidence malleability), os quais confirmam que a convic-
entre respostas positivas falsas (identificação incorreta de alguém como
ção da vítima pode ser manipulada (Douglass; Pavletic, 2012,
pp.149-165); (Wells; Bradfield, 1998). Quando um delegado de suspeito), de 38% contra 56% (baixo stress, alto stress, respectivamente),
polícia oferece um feedback positivo para aquele que identificou o (Morgan et al, p. 272).
suspeito, por exemplo, ele aumenta o grau de certeza que a vítima 2) Já entre systemic variables, indicam: a. Instruções sobre a fila (line up);
tem de que o suspeito identificado era de fato o ofensor. O grau b. Seleção de componentes para a fila (line up); c. Conhecimento da identidade do
de certeza anterior à realização do procedimento de identificação
suspeito pelo oficial responsável pela fila; d. Mais de uma apresentação do suspeito.
106 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 107

h. Pesquisas da psicologia aplicada indicam que a probabilidade de falsas 4. BREVES CONCLUSÕES: A ADOÇÃO DE UM STANDARD
identificações se incrementa quando o responsável pelo procedimen-
DE PROVA (A INCLUSÃO DA MODÉSTIA INTELECTUAL
to deixa de informar que o suspeito pode estar ou não presente na
fila. Isto é, há sugestibilidade quando a vítima/testemunha infere que DOS JUÍZES EM NOSSO DESENHO INSTITUCIONAL)
o suspeito certamente está presente e, portanto, deve ser reconhecido. Vistas as diversas variáveis que podem acometer a produção e a valora-
i. Em segundo lugar, a composição da fila que será fonte de identifica- ção da prova referente à identificação pessoal do culpado, que reflexões estão
ção do suspeito também influencia a probabilidade de acertos (isto é, ao nosso alcance? Em primeiro lugar, se queremos compatibilizar o sistema
as chances de que a vítima/testemunha identifique o ofensor e apenas
de justiça penal brasileiro com algum standard racional de prova, é preciso
ele). De acordo com (Zimmerman, Austin; Kovera, 2012, p. 134,)
a fila deve ser montada de acordo com a descrição que a vítima/ afastar, de uma vez por todas, a compreensão de que o convencimento do juiz
testemunha faz do ofensor, e não conforme a semelhança que outras pode constituir, em si mesmo, prova suficiente para a condenação. Trata-se
pessoas tenham com o suspeito. Além disso, com todos os problemas de uma condição negativa que deve ser satisfeita.
que podem surgir da construção da fila, a opção por reconhecimento Pois bem, abandonada a convicção do juiz como prova suficiente, resta
com alguma fila sempre é melhor do que o reconhecimento sem fila
enumerar duas etapas necessárias para a adoção de um standard de prova
(no qual o responsável mostra somente o suspeito e ninguém mais
para a vítima). De acordo com Zimmerman e seus colaboradores, a racional. A justificação da decisão condenatória deve se fundar em provas
indicação do suspeito sozinho produz mais sugestibilidade se com- que corroborem que a hipótese da acusação é provavelmente verdadeira (o
parado ao procedimento com fila. objetivo epistêmico de se buscar reduzir erros seria atendido na medida
[...] É absolutamente claro que uma fila formada com um único suspeito em que o julgador seleciona a hipótese fática que mais provavelmente cor-
e outros membros é menos sugestiva que uma fila única, também referida responde-se à realidade objetiva). Quanto a isso, não há dúvidas de que
como showup. O showup é o procedimento no qual mostra-se à vítima/ as decisões condenatórias aqui examinadas são sobradamente deficitárias.
testemunha uma única pessoa ou uma única fotografia (invariavelmente do Nelas, inexiste fundamento probatório que alce as hipóteses fáticas acusató-
suspeito) sem mostrar quaisquer outros membros. Show up’s são sugestivas
porque a vítima/testemunha tem absoluta certeza de quem é o suspeito de rias à condição de hipóteses mais prováveis dentre as hipóteses examinadas
ter cometido o crime que ela presenciou. (Zimmerman, Austin; Kovera, em juízo. Muito pelo contrário: ao examinarmos as ferramentas conceituais
2012, 134 Tradução livre). propostas no interior da psicologia aplicada, foi possível concluir pela baixa
j. Muito embora ainda não haja consenso acerca da maior confia- confiabilidade dos reconhecimentos pessoais realizados sem a observância
bilidade do resultado de uma identificação realizada sem o prévio do artigo 226. Se sequer a fila (line up) foi realizada, não há razões para
conhecimento da identidade do suspeito por parte do responsável concluir, de maneira otimista, que os oficiais responsáveis pelo procedi-
pelo procedimento, há recomendação para que se institucionalize o mento, estiveram dispostos a não sugerir suspeitos para serem identificados,
double blind line up. Tal recomendação deve-se ao risco de o oficial ou que preocuparam-se a não produzir maleabilidade do estado de certeza
que sabe da identidade do suspeito vaze essa informação, sugira a das vítimas/testemunhas com as quais tiveram contato. A indiferença insti-
identidade do suspeito, ainda que de forma não intencional (Zim-
merman, Austin; Kovera, 2012, 135).
tucional com a qual as provas de identificação foram produzidas nos casos
k. Apresentar o suspeito em múltiplas filas (seja por foto, seja em fila
aqui examinados foi aperfeiçoada pela falta de modéstia dos julgadores, que
presencial) produz sugestão, tendência a que se identifique ele como não exitaram em valorar como suficientes as provas em razão do caráter
culpado. Abre-se oportunidade para que a memória do evento crimi- recomendatório do artigo 226 do CPP. Apoiaram-se na certeza da vítima/
noso confunda-se com a memória da fila anterior também integrada testemunha, contra o quê o Innocence Project e os experimentos da psico-
pelo suspeito (Zimmerman, Austin; Kovera, 2012140). logia aplicada aqui trazidos nos ofereceram boas razões para sermos mais
cuidadosos à hora de condenar. Em resumo, essas condenações representam
atuações que vão na contramão da realização de qualquer objetivo de corte
108 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1 JanaIna MatIda 109

epistêmico (que busque a redução de erros). Não há como se aproximar da incontornável. Reconheço tal defeito e creio, acompanhada por outros teó-
verdade desprezando as ferramentas adequadas para tanto e a mera exigên- ricos e processualistas (Fernández López, 2007; Gonzalez Lagier, 2018), que
cia de que se repita o procedimento identificatório em audiência não supre a saída mais frutífera seja concretizar requisitos que devem ser satisfeitos por
a indiferença para com a busca da verdade dos fatos. Basta pensar que a cada meio de prova se se quer afirmar a observância de um standard de prova
vítima/testemunha tem apenas de apontar para a pessoa que já se localiza exigente por determinadas decisões. Aqui tentei especificar os requisitos
sentada no banco dos réus. A sugestão não pode ser mais evidente. Mas, que tornariam mais confiáveis a prova de autoria por meio de identificação
vou além. Se a redução de erros fosse um objetivo institucional, então de pessoal. Deixariam-nos, enquanto cidadãos, menos sujeitos. No entanto, as
fato seria necessário rever as formalidades constantes do art. 226 do CPP, reflexões sobre standards probatórios (em particular) e sobre racionalidade
mas, para robustecê-las. A regra referente ao reconhecimento deveria refletir das decisões judiciais (de modo mais geral) estão longe de terminar. Es-
conhecimentos alcançados por outras ciências. Evitar a sugestão do suspeito pecificamente sobre standards, à parte o desafio de formulação, e na estratégia
por parte dos oficiais responsáveis pela identificação (obrigando-os que dê de concretização dele por intermédio de requisitos a cada meio de prova,
o aviso de que o suspeito pode estar ou não na fila), formar filas sempre ainda há que refletir sobre o desafio que os tipos penais de difícil prova re-
(eliminando show up’s), formá-las a partir das características relatadas pela presentam para a adoção de um standard de prova mais exigente em matéria
vítima/testemunha, não oferecer feedback’s de nenhum tipo (evitando, penal. Um exame da variação da gravidade das penas também sugere mais
assim, o risco de que a maleabilidade da certeza venha a contaminar o con- reflexão quanto à adoção de um único e exigente standard penal. Deixarei
teúdo do afirmado em Juízo pela vítima/testemunha) são alguns dos ajustes essas questões para serem examinadas em outra ocasião.
que deveriam ser incorporados de modo a garantir mais confiabilidade ao
resultado do procedimento. O procedimento tal como é realizado hoje não REFERÊNCIAS
Andrés Ibáñez, P., ‘Sobre el valor de la inmediación (una aproximación crítica)’ in En torno de la jurisdic-
oferece qualquer fundamento probatório confiável à hipótese acusatória e ción, Editores del Puerto, Buenos Aires, 2007.
as condenações fundadas no caráter recomendatório do art 226 do CPP, Davies, G.M.; Shepherd, J.W.; Ellis, H.D., ‘Similarities effects in face reccognition’, The American Jour-
esse somado à convicção do relatado à vítima são indiferentes à busca pela nal of Psychology vol. 92, 507-523, 1979.
verdade – para se dizer o mínimo. Douglass, A.B.; Pavletic, A., ‘Eyewitness Confidence Malleabilty’ in Conviction of the Innocent: Lessons
From Psychological Research, American Psychological Association, Washington, DC, 2012.
A corroboração da hipótese acusatória em procedimento que respeitasse Fernández López, M., ‘La valoración de pruebas personales y el estándar de la duda razonable’, Cuader-
formalidades mais robustas para um versão mais forte do art. 226, ainda não nos Electrónicos de Filosofía del Derecho vol. 15, 2007.
seria suficiente para que se pudesse dizer que em nosso sistema de justiça, a Ferrer Beltrán, J., La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007.
partir de então, teríamos passado a adotar um standard de prova racional. Goldman, A.I., Knowledge in a social world, Oxford University Press, New York, 1999.
Para isso, seria preciso que fixássemos ex ante um ponto de exigência quanto González Lagier, D., ‘Hechos y argumentos (racionalidad epistemológica y prueba de los hechos en el
proceso penal) (II)’, Jueces para la democracia vol. 47, 35-50, 2003.
às provas necessárias para a condenação. A hipótese acusatória tem de ser mais
Gonzalez Lagier, D., ‘Hechos y argumentos: la inferencia probatoria’ in Quaestio Facti: ensayos sobre
provável que a hipótese da defesa? Sim. Mas, quão mais forte ela precisa ser? prueba, causalidad y acción, Fontamara, México, 2013.
Essa decisão deve refletir uma escolha a respeito da gravidade que atribuímos ———, ‘Presunción de inocencia, verdad y objetividad’ in Prueba y razonamiento probatorio en derecho:
a condenação de inocentes quando comparada à absolvição de culpados. Na debates sobre abducción, Comares, Granada, 2014.
hipótese de que genuinamente encontramos que condenações injustas são ———, ‘Distinciones, estipulaciones y sospechas sobre los criterios de valoración y los estándares de prueba’ in
La sana crítica bajo sospecha, Ediciones Universitarias de Valparaíso, Valparaíso, 2018.
piores que absolvições injustas, devendo ser evitadas com mais intensidade,
Laudan, L., Verdad, error y proceso penal: un ensayo sobre epistemología jurídica, trans. Vázquez, C.; Agui-
então, à exigência de que a hipótese acusatória seja corroborada como a lera, E., Mardial Pons, Madrid, 2013.
mais provável, será somada a exigência de que os fatos confirmados em juízo Loftus, E.F.; Loftus, G.R.; Messo, J., ‘Some Facts About “Weapon Focus”’, Law and Human Behaviour
não sejam compatíveis com a hipótese da defesa. É certo que a formulação vol. 11, 56-62, 1987.
de um standard nesses termos ainda carece de precisão, apresenta vagueza Matida, J.; Herdy, R., ‘As inferências probatórias: compromissos epistêmicos, normativos e interpretativos’ in
110 ARQUIVOS DA RESISTÊNCIA: ENSAIOS E ANAIS DO VII SEMINÁRIO NACIONAL DO IBADPP - EDIÇÃO 1, ANO 1

Epistemologias Críticas do Direito, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016.


Meissner, C.A.; Brigham, J.C., ‘Thirty years of investigatig the own-race bias in memory for faces: A
meta-analytic review’, Psychology, Public Policy, and Law vol. 7, 3-35, 2001.
Memon, A.; Hope, L.; Bull, R., ‘Exposure Duration: Effects on Eyewitness Accuracy and Confidence’,
The British Journal of Psychology vol. 94, 339-354, 2003.
Morgan, C.A.; Hazlett, G.; Doran, A.; Garret, S.; Hoyt, G.; Thomas, P.; Baranoski, Madelon; sou- UM OLHAR AGNÓSTICO SOBRE OS SISTEMAS
thwick, S.M., ‘Accuracy of Eyewitness Memory for Persons Encountered During Exposure to Highly
Intense Stress’, International Journal of Law and Psychiatry vol. 27, 265-279, 2004. PROCESSUAIS PENAIS
Münsterberg, H., On the witness stand, Doubleday, New York, 1908.
Pezdec, K.; Blandon-Gitlin, I.; Moore, C., ‘Children’s face recognition memory: More evidence for the Renato Sigisfried Sigismund Schindler Filho1
cross-race effect’, Journal of Applied Psychology vol. 88, 760-763, 2003.
Pezdek, K., ‘Fallible Eyewitness Memory and Identification’ in Conviction of the Innocent: Lessons From
Psychology Research, American Psychological Association, Washington, DC, 2012.
INTRODUÇÃO
Shapiro, P.N.; Penrod, S., ‘Meta-analysis of facial identification studies’, Psychological Bulletin vol. 100, A inquietação que inspirou o presente artigo surgiu da necessidade aca-
139-156, 1986. dêmica de desenvolver uma abordagem crítica sobre os sistemas processuais
Sporer, S.L.; Penrod, S.; Read, J.D.; Cutler, B., ‘Choosing, Confidence, and Accuracy’, Psychological penais, uma vez que comumente o tema é trabalhado de forma abstrata e
Bulletin vol. 118, 315-327, 1995.
colonial, desconexa, portanto, da realidade a qual pretende operar, bem como
Taruffo, M., La prueba de los hechos, trans. Beltrán, J.F., Ed. Trotta, Madrid, 2002.
de maneira absolutamente maniqueísta.
———, Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos, trans. Ramos, V.D.P., Marcial Pons, São
Paulo, 2012. Nos próximos tópicos, como desenvolvimento, demonstrar-se-á a
Toulmin, S.E., The Uses of Argument, Cambridge University Press, New York, 2003. vinculação dos sistemas processuais com: a) o pensamento colonial; b) a
Wells, G.L., ‘Applied Eyewitness-testimony Research: System variables and Estimator Variables’, Journal abordagem maniqueísta; c) a relação de condicionamento recíproco entre
of Personality and Social Psychology vol. 36, no. 12, 1546-1557, 1978.
processo e controle social.
Wells, G.L.; Bradfield, A.L., ‘“Good, you identified the suspect”: feedback to eyewitness distorts their
reports of the witnessing experience’, Journal of Applied Psychology vol. 83, 360-376, 1998. Nessa linha, pretende-se esclarecer que as aproximações abstratas do
Wells, G.L.; Memon, A.; Steven, P.D., ‘Eyewitness Evidence: Improving Its Probative Value’, Psychologi- tema sistemas geram distorções no campo prático, distanciando o discurso
cal Science in the Public Interest vol. 7, no. 2, 45-75, 2006.
jurídico processual da realidade, permitindo sua cooptação pelas agências de
Zimmerman, D.M.; Austin, J.L.; Kovera, M.B., ‘Suggestive Eyewitness Identification Procedures’ in Con-
viction of the Innocent: Lessons From Psychological Research, American Psychological Association, controle, chancelando, no campo processual, a barbárie levada a cabo pelo
Washington, DC, 2012. sistema de punição.
Levando em consideração esses elementos, pretende-se sustentar a
necessidade de se desenvolver um discurso jurídico processual crítico, que
incorpore elementos da realidade a qual pretende operar, que permita a recep-
ção/desenvolvimento do sistema acusatório, evitando que este seja cooptado
e transformado em um mero slogan político.

1. PORQUE UM OLHAR AGNÓSTICO SOBRE OS SITE-


MAS?
A crítica que se pretende realizar a seguir é pautada em uma perspectiva
1. Mestrando em Direito Público (UFBA). Pós-Graduado em Ciências Criminais (Faculdade Baiana de
Direito). Pós-Graduado em Direito e Magistratura (UFBA). Professor (EMAB). Coordenador (IBA-
DPP). Advogado.

Você também pode gostar