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artigo Pilares Teóricos da Mediação de Conflitos

Conflict Mediation – Theoretical Groundings


Tânia Almeida
Médica e mediadora. Diretora
do Mediare – Diálogos
e Processos decisórios. RESUMO: Este artigo corresponde a um seg- ABSTRACT: This article has to do with a seg-
Mestranda em Mediação mento de minha dissertação de mestrado sobre ment of my Master’s Paper about Conflict Medi-
de Conflitos (Master Mediação de Conflitos – A Caixa de Ferramen- ation – The Conflict Mediation Toolbox: targets,
Latinoamericano Europeo tas em Mediação: objetivos, operacionalização process and expected impacts; theoretical prop-
en Mediación) pelo Institut e impactos esperados; articulações e aportes osition and input. I have selected four theoretical
Universitaire Kurt Bösh teóricos. Aqui estão selecionados quatro pilares pillars that support the scenario where Media-
(Suíça) em convênio com teóricos que sustentam o cenário onde a Media- tion develops – the ethics, the systemic thought,
a Universidade de Salta ção se desenvolve – a ética, o pensamento sis- the dialogue and reflective process. Language is
(Argentina). Short Term têmico, o processo de diálogo e os processos dealt with as the ground on which such pillars
Consultant do Programa reflexivos. A linguagem é tratada como o solo – the theoretical ones as well as the other ones
Latino-Americano de no qual esses pilares teóricos e todos os demais that sustain this practice – are built.
Mediação de Conflitos do que sustentam essa prática estão erigidos.
Banco Mundial.
Keywords: conflict resolution, dialogue, de-
mediare@mediare.com.br Palavras-chave: autocomposição de confli- bate, reflection
tos, diálogo, debate, reflexão

Recebido em 19/05/2011
Aprovado em 19/06/2011 A multiplicidade dos aportes teóricos em Mediação deve-se à contribuição de
diferentes pensadores que, ao longo do tempo, têm agregado conhecimento a
essa prática e ampliado suas intervenções em quantidade e qualidade.
Como não faz restrição à profissão de origem, a Mediação pode enriquecer-
-se com olhares e contribuições advindos de distintos saberes – caráter trans-
* Em Interdisciplinaridad
disciplinar da Mediação*. Esse dinamismo dá à caixa de ferramentas um caráter
en Educación (1994, p. multidisciplinar e de perene construção. Aberta à atualização e a novos aportes
24), Ezequiem Ander-Egg – são inúmeras e constantes as ofertas nesse sentido –, a prática da Mediação
estabelece distinções
entre multidisciplinaridade, vem sendo enriquecida permanentemente**.
interdisciplinaridade e Dos inúmeros pilares teóricos passíveis de serem selecionados para compor a
transdisciplinaridade – uma
perspectiva epistemológica
base dessa prática, elegi: os norteadores éticos, o pensamento sistêmico, o pro-
que não somente entrecruza cesso de diálogo e os processos reflexivos. O solo onde esses quatro pilares estão
e interpenetra diferentes assentados é a linguagem – cenário no qual somos aculturados e para o qual
disciplinas como apaga os
limites entre elas, integrando- contribuímos com a nossa existência.
as em um único sistema. A linguagem como forma de expressão social é assim pensada pela filosofia
pragmática da linguagem*** e não deve ser examinada em abstrato, mas sim
** O compartilhamento de
conhecimento é premissa em relação ao contexto social e cultural que a constrói e utiliza. No campo da
para um mundo sistêmico no linguística e da comunicação, a análise de discursos**** tem como objetivo iden-
qual a articulação de saberes,
sua interdependência e
tificar a natureza dos textos oriundos de diferentes pontos de vista – ideológi-
complementaridade se co, contextual, social, político e cultural, dentre outros – e os considera como
evidenciam como benéficas construções sociais, e não individuais. Refletem não exclusivamente a visão de
quando consideradas. Essa
crença motiva a educação mundo de seu autor, mas também a época e a cultura em que estão imersos.
continuada preconizada pela Assim, os contextos emolduram os textos.
Mediação, como forma de
manter seus praticantes
Movida pela crença da coautoria como base de sustentação para toda e qual-
atualizados com relação a quer expressão de pensamento teórico – são sempre o produto de articulações
novos e constantes aportes.
feitas a partir do que foi lido ou deba- ral em português (do latim moralis
– usos e costumes; do grego éthicos
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tido anteriormente com interlocuto- da mediação de conflitos
res vários –, reafirmo que este texto é – doutrina do caráter). Para alguns, Tânia Almeida

um recorte feito pelo meu olhar, pelo moral e ética guardam semelhança.
sujeito social que sou, e estimulo os Para outros, distinção. Como moral, a
leitores a ampliarem essa base de sus- cultura ocidental entende o conjunto
tentação teórica. de valores e regras de ação propostos
Na minha dissertação de mestrado a indivíduos ou grupos por contextos
foram eleitas duas referências biblio- prescritivos, como a igreja, a família,
gráficas distintas de todas as demais as instituições de ensino, dentre ou-
para cada ferramenta que compõe o tros. Esses conjuntos são validados
conjunto relativo aos temas trabalha- como códigos morais, como princí-
dos – etapas do processo de Media- pios de conduta de um determinado
ção, procedimentos, aportes de co- contexto. Também denominamos
municação e de negociação. Mantive moral o nível de obediência demons-
esse formato com relação aos quatro trado pelo comportamento dos indi-
pilares teóricos aqui destacados. As víduos relativo a essas regras ou valo-
referências seguem comentadas para res. Para os que estabelecem distinção
possibilitar ao leitor a exploração das entre ética e moral, ética é gênero e
fontes a partir também da descrição moral, espécie. Ética diz respeito, em
sumarizada de cada obra. Há nessa primeira instância, à prática interati-
proposta um incentivo à busca de dis- va com o outro.
*** A filosofia pragmática
tintas naturezas de leitura para enri- Segundo Danilo Marcondes da linguagem tem no inglês
quecer as articulações que mediado- (2007), poderíamos distinguir três John Langshaw Austin
(1911-1960) um dos
res possam fazer, quando pensarem dimensões do que entendemos como maiores representantes desta
teoricamente. ética: (i) uma de costumes e práticas, ideia. Austin foi o primeiro
não dissociada da realidade sociocul- formulador da teoria dos
atos da fala. Junto com
tural concreta; (ii) uma prescritiva Wittgenstein (1889-1951)
I. Norteadores Éticos ou normativa, contida, por exemplo, valorizou o uso concreto dos
termos e expressões em seus
nos códigos de ética profissionais, contextos habituais de fala
A ética – do grego ethos –, que sig- cristãos, kantianos etc, regidas por (ordinary language).
nifica o conjunto de costumes, há- preocupações temáticas específicas; **** Foucault (1926-1984)
(iii) e outra reflexiva ou filosófica – a dedicou-se, igualmente,
bitos e valores de uma determinada
à análise de discursos,
sociedade ou cultura, diz respeito à metaética, que examina e discute os privilegiando não o estudo
nossa experiência social cotidiana e fundamentos das práticas e os valores de um discurso já pronto,
mas sim a sua produção.
convida-nos à permanente reflexão que as sustentam, permitindo a análi- Seu método arqueológico de
sobre como agimos na interação com se crítica por seus praticantes, ou não análise envolve a escavação,
a restauração e a exposição
o outro. Assim, a liberdade huma- praticantes. de discursos com o objetivo
na ficaria restrita por valores éticos, Com a velocidade das mudanças, o de enxergá-los articulados
introduzindo uma das noções mais dinâmico avanço tecnológico e a con- com um determinado
momento histórico. Não
fundamentais da ética, a do dever sequente diversidade de valores de há em sua arqueologia a
para com o outro. Ética e Mediação referência que caracterizam esse mo- busca da origem ou de
significados secretos, e sim
são do campo da prática, motivo mento histórico, a sensação de crise a busca da compreensão das
maior da articulação aqui feita. ética emerge e nos (re)coloca em con- condições que possibilitaram
tato com a relatividade de valores e a emergência de um discurso
A tradução romana de ethos – mos,
em um certo momento
moris – deu origem à palavra mo- normas de conduta e em permanente histórico.

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conexão com a dimensão reflexiva ou ferenças pautados no discernimento e
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filosófica, mencionada por Marcon- na virtude aristotélicas. As ações éti-
des. Assim que, para não repetirmos cas baseadas nessa natureza de discer-
o estabelecido, o habitual, é preciso nimento e de virtude são resultantes
que a reflexão diuturna sobre como e de uma análise crítica interna perma-
por que agimos de uma determinada nente, no que tange à interação com o
maneira nos acompanhe. outro, independendo de uma norma-
A dimensão reflexiva ou filosófica tiva externa. Tais ações éticas estariam
citada por Danilo Marcondes foi elei- ainda pautadas na justa medida da
ta, neste artigo, como norteador de doutrina aristotélica do meio-termo,
análise dos valores éticos que atraves- aquela que evita os extremos caracte-
sam a Mediação. É uma seleção den- rizados pelo excesso e pela falta.
tre tantas outras possíveis, e tangen- Quando em Mediação nos referi-
cia o pensamento de alguns filósofos mos à boa-fé, estamos assentados na
– Aristóteles, Kant e Max Weber – que crença aristotélica de que é possível
se ocuparam do tema. aos seres humanos prescindirem de
Aristóteles é o autor do primeiro leis externas para pautarem suas con-
tratado ocidental sobre ética no sen- dutas de forma a considerar o outro
tido relacional que empregamos hoje. como legítimo em suas necessidades,
O texto-ícone, dentre um conjun- que devem ser atendidas, tanto quan-
to de textos, foi dirigido a seu filho, to as próprias, na justa medida. Um
Nicômaco, e ofereceu linhas centrais outro legítimo também em suas ver-
para as posteriores discussões ociden- sões, em suas formas de descrever o
tais sobre o tema. mundo e os eventos, que devem ser
Em Aristóteles, a ética pertence ao prestigiadas tanto quanto as próprias.
campo do saber prático,* aquele que Kant é dos mais influentes pensa-
nos norteia a agir com prudência e/ dores sobre ética da modernidade.
ou discernimento, ou seja, a deliberar Propõe uma ética baseada em princí-
bem a respeito do que é bom e con- pios e tem como tema central a razão
veniente para si e para o outro, tendo no sentido teórico e prático – como
como objetivo a felicidade e/ou reali- a razão opera e seu(s) objetivo(s). O
zação pessoal. pressuposto fundamental da ética
Para Aristóteles, a felicidade cor- kantiana é a autonomia da razão, e
responde ao bem-estar relacionado Crítica da Razão Prática é seu traba-
ao que realizamos com excelência, lho mais significativo nesse campo.
um bem final – aquele que é desejável Existiria no sujeito maduro – aquele
em si, e não por causa de outra coi- pautado no próprio entendimento –
sa. A excelência que pautaria nossas autonomia para o exercício (público)
realizações é entendida pelo filóso- da própria razão, o que caracterizaria
* Seriam três as grandes
áreas que sistematizam fo como virtude. A virtude não seria a sua liberdade.
a experiência humana: o inata, mas poderia ser ensinada e re- Está em Kant o célebre princípio do
saber teórico, ou o campo
do conhecimento, o saber
sultaria do hábito,** sendo, portanto, imperativo categórico – age somente de
prático, ou o campo da necessário praticá-la sempre para ser acordo com aquela máxima pela qual
ação, e o saber criativo, ou o internalizada. possa ao mesmo tempo querer que ela
campo da produção.
A Mediação é um instrumento que se torne uma lei universal – ou seja, o
** Hábito tem a mesma raiz
etimológica que ética. auxilia sujeitos a negociarem suas di- critério fundamental do caráter ético

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de um ato está em sua universalidade. mais adequada à tomada de decisões.
Vale ressaltar que, mesmo atendendo
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O que faço em nada deve diferir do da mediação de conflitos
que aceito que façam comigo. a essas características, a prática advin- Tânia Almeida

Agir de forma que a ação possa ser da dessa natureza ética, pelo fato de
considerada universal (válida tam- considerar resultados, não diz respei-
bém para o outro) é princípio pre- to ao oportunismo sem princípios,
sente na Mediação quando esta soli- mas sim à responsabilidade.
cita que mediandos se proponham, A Mediação pede aos mediandos
em dupla mão, soluções de benefício que avaliem seus atos e decisões pau-
mútuo, pautadas também nas neces- tados na ética da responsabilidade,
sidades e possibilidades de todos. As contrariando, por vezes, convicções
necessidades e possibilidades de to- culturais. Solicita que examinem as
dos podem ser identificadas quando consequências de seus atos para todos
há permissão interna para visitar a os direta e indiretamente envolvidos,
perspectiva do outro. assim como os meios que utilizam
Max Weber, um dos fundadores para obter o que desejam e suas fina-
das ciências sociais contemporâneas, lidades.
preocupado com a influência do pro- Ambas – ética da convicção e éti-
testantismo calvinista na formação da ca da responsabilidade – não obri-
sociedade e da cultura europeias, teve gatoriamente se excluem. Quando
como um dos temas centrais de sua as considerações das consequências,
análise social e política a questão dos pertinentes à segunda, e os compro-
limites da responsabilidade moral. missos com as convicções relativos
Weber formulou a célebre dis- à primeira entrarem em conflito em
tinção entre uma ética pautada na um processo de Mediação, a decisão
convicção e uma ética pautada na deverá ser conscientemente tomada
responsabilidade, oferecendo novos no sentido de qual dos dois nortea-
vieses para a análise das condutas in- dores deverá prevalecer.
terativas humanas.
A ética da convicção estaria assen-
tada no compromisso com valores II. Pensamento Sistêmico
associados a determinadas crenças,
religiosas ou não. Seria mais rígida e Thomas Kuhn (2006), ao investi-
dogmática e daria mais importância às gar o processo das descobertas e in-
intenções dos praticantes do que aos venções humanas, contribuiu tam-
resultados de seus atos. Vale ressaltar bém para dar destaque à ideia de
que, mesmo atendendo a essas carac- paradigma (do grego parádigma, mo-
terísticas, a prática advinda dessa na- delo, padrão): um sistema de crenças
tureza ética, pelo fato de desconsiderar que rege nossa visão de mundo, a in-
resultados, não diz respeito à irrespon- terpretação dos fatos, nossas ações e
sabilidade, mas sim à convicção. curiosidade.
A ética da responsabilidade estaria Paradigmas são construídos ao
assentada em atos cujas consequên- longo da existência a partir da micro-
cias, assim como a relação entre meios cultura familiar, do tempo, lugar, mo-
e fins, seriam avaliadas. Seria mais mento e contexto em que vivemos.
crítica, preocupada com a prática e Os paradigmas compartilhados cons-

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tituem-se base da organização social. (1986) de estado oscilatório – um
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movimento pendular entre o novo e
Na visão de Humberto Maturana,*
paradigmas funcionam como domí- o antigo paradigmas acontece até que
nios explicativos, gerando domínios o mais recente possa se instalar na
de coerências operacionais na prática cultura.
daqueles que partilham de um de- Os mediandos experimentam esse
terminado sistema de crenças – uma estado oscilatório, entre o paradigma
família, uma comunidade, um grupo da disputa e da adversarialidade e o
social ou profissional. da colaboração, durante o processo
Como os paradigmas que regem de Mediação e até mesmo após o seu
nossas descrições dos fatos corres- término. Até que consigam colocar os
pondem a construções sociais, as no- dois pés em um novo modus operan-
ções de verdade, realidade e objetivi- di, “surpreendem” o outro (e a si mes-
dade ganharam parênteses, na visão mos), intercalando mudanças em ter-
de Maturana. Esses parênteses são re- mos de comportamento e de atitudes
presentantes gráficos e simbólicos da com ações e interpretações antigas.
impossibilidade de apreensão da ver- A Mediação guarda coerência com
dade, da realidade e da objetividade, novos paradigmas e tende a se instalar
Até a primeira metade do século definitivamente na cultura ocidental
passado estivemos imersos no para- quando a oscilação entre antigas e
digma cartesiano, de natureza me- novas crenças ganhar maior estabili-
canicista e pautado na linearidade dade e, concomitantemente, quando
da relação direta entre causa e efeito. um significativo grupo social – em
Como paradigma científico – aquele termos de quantidade e credibilidade
* Humberto Maturana é um
biólogo chileno que em muito que valida conhecimentos –, a linea- – lhe der validação.
contribuiu para as visões ridade fez o papel de organizar a so- O pensamento sistêmico** veio
paradigmáticas construtivista
e construcionista social – ciedade em torno aos seus princípios. ampliar nossa visão sobre os eventos
como o homem constrói a Segmentamos o conhecimento em e sobre o mundo em que vivemos,
realidade e como se constrói
esse homem que constrói a
disciplinas, nos subespecializamos e, constituindo-se, na contemporanei-
realidade, respectivamente regidos pela equação causa e efeito, dade, pilar para todas as ciências. Ele
– a partir de análises da passamos a analisar e a lidar com os entende o mundo como um sistema,
própria constituição biológica
dos seres vivos. Ver em eventos, estreitamente regidos por o que significa percebê-lo como um
MATURANA (1995). conhecimentos específicos. É exem- todo integrado, composto de diferen-
** Ludwig von Bertalanffy plo disso a visão monocular das nos- tes elementos interdependentes que
foi um biólogo austríaco
que publicou em 1968 a sas especificidades profissionais. interferem uns nos outros em maior
Teoria Geral dos Sistemas, As mudanças paradigmáticas se ou menor proporção.
obra dedicada a identificar
os princípios gerais do
dão a partir do consenso sobre a in- Essa ideia pode ser transposta para
funcionamento dos sistema suficiência e a ineficácia do paradig- qualquer conjunto de elementos em
vivos. O paradigma sistêmico ma vigente. Por isso, mudamos as leis, convivência – em nível micro, como
rege hoje o pensamento
científico e abriga conceitos os comportamentos, uma maneira de a família, ou macro, como um país ou
como o de totalidade – o vestir etc. Essas mudanças são proces- o universo – e sustenta os processos
resultado da interação de
diferentes elementos de
suais e, por vezes, se dão a partir de de diálogo recém-inaugurados pelas
um sistema é diferente um movimento que inclui a experi- nações para cuidar dos interesses co-
da sua soma – e o de mentação do novo e visitas ao antigo muns – os mercados, a economia, a
interdependência – marco
emblemático da teoria jeito de ser ou proceder. Um ir e vir ecologia e a sustentabilidade do pla-
sistêmica. denominado por Dora Schnitman neta, dentre outros.

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O paradigma sistêmico é o gran- petitivas); cada ator é sujeito e
objeto de sua própria ação o que
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de responsável pela ideia da inter- da mediação de conflitos
disciplinaridade, pela proposta da implica administrar os benefícios Tânia Almeida

complexidade* e pela crença na cau- e as consequências dos próprios


salidade multifatorial, dentre outras atos e decisões;
visões novo-paradigmáticas. Veio nos iv. os fatores que contribuem para os
salvar da percepção estreita da visão resultados são múltiplos – multi-
monocular e nos possibilitou iden- fatorialidade – e dependem da
tificar que a eficácia de nossas atua- interação entre vários elementos
ções deve-se também ao tratamento do sistema. No caso da Mediação,
multidisciplinar que lhes possamos é preciso considerar o ambiente
conferir. Compartilhar e integrar co- do desentendimento – entorno
nhecimento tornou-se uma máxima. físico e humano – e dimensionar
A crença no paradigma sistêmico sua participação na construção
nos traz algumas importantes conse- do conflito e na sua resolução;
quências, todas passíveis de serem ar- v. uma das maiores contribuições
ticuladas com a prática da Mediação: que o pensamento sistêmico
i. os eventos com os quais lidamos oferece ao homem é o convite
são sempre parte de uma cadeia ao protagonismo e à autoimpli-
maior de ocorrências – no caso cação; como elementos de um
dos conflitos trazidos à Media- mesmo sistema, somos coauto-
ção, eles foram iniciados antes res e corresponsáveis pelo que
do recorte apresentado à mesa nos proporcionamos e pelo que
de diálogo e terão sequência para proporcionamos ao outro viver;
além da finalização do trabalho como estou contribuindo para o
de construção de consenso; que ocorre comigo e com o ou-
ii. nossas intervenções ajudam a tro é pergunta pertinente para
mudar o curso da vida dos even- mediandos e para mediadores – a
tos e das pessoas e precisam estar autoimplicação convida à corres-
pautadas no cuidado, na análise ponsabilidade;
multifatorial e em ações multifo- vi. o mundo sistêmico é o mundo
cais; implica, igualmente, em não das diferenças, uma vez que os
perdermos de vista a repercussão sistemas são compostos por dis-
que possam ter na vida dos direta tintos elementos em interação
e dos indiretamente envolvidos e que reside nessa diversidade a
na situação – nossas intervenções possibilidade de complementa- * Em Ciência com
nos escapam do controle e da ridade e de sobrevivência para o Consciência, Edgar Morin
previsão, o que demanda ainda (1996) oferece reflexões
próprio sistema; assim que, salvo sobre a interferência no
maior cuidado de atuação; por lesão à ética, todos e todas campo das ciências físicas,
iii. a interdependência entre os ato- as ideias são legítimas e passíveis biológicas e sociais da
mudança do paradigma
res do evento conflitivo é fato e, de articulação na Mediação e na da simplicidade para o da
tal como acontece com o planeta convivência. complexidade. Para o autor,
enfrentar a complexidade do
Terra, os melhores resultados de real significa considerar a
sua interação virão de atuações O protagonismo, a autoimplica- simultaneidade dos opostos,
do singular e do fortuito,
colaborativas (e não das com- ção, a colaboração dos mediandos sempre.

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na busca por consenso, o reconheci- gos produtivos – aqueles que privile-
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giam a escuta à contra-argumentação,
mento da legitimidade do outro com
suas diferenças e a consolidação de a construção de consenso ao debate, o
soluções de benefício mútuo, pressu- entendimento à disputa. É como se já
postos da prática da Mediação, assim tivéssemos nos ocupado o suficiente
como o reconhecimento de nossa de diagnosticar as mazelas dos diálo-
contribuição e participação como gos, por meio de inúmeros processos
mediadores para o que é coconstruí- de análise, e estivéssemos agora vol-
do, convertem a atuação sistêmica em tados para o objetivo de obter uma
exercício ético. conversa que gere bons frutos.
Estamos, nesse momento da convi-
vência, especialmente interessados no
III. Diálogo como Processo estudo de diálogos em situações de
crise, e temos nos valido de terceiros,
Estuda-se hoje o viés produtivo da especialistas na matéria, para auxiliar
mágica arquitetura do diálogo – uma pessoas a bem aproveitar a possibili-
prática interativa, um momento em dade transformadora das Crises. Os
que a expressão, a escuta e a indaga- Diálogos Apreciativos (Cooperrider,
ção na busca pelo esclarecimento são Whitney, Stavros, 2005) e os genera-
compartilhadas, visando um pensar e tivos (Schnitman, 2000) são recursos
um refletir juntos (Isaacs, 1999). e objeto de estudos para essa finalida-
O estudo dos diálogos possibilitou de. Inspirados no passado e no pre-
adjetivá-los, tomando em conta suas sente – diálogos apreciativos – ou no
qualidades, finalidades e princípios. futuro – diálogos generativos –, seus
Diálogos produtivos e debates, diá- mais recentes objetos de investigação
logos generativos e apreciativos, diá- são os bons resultados.
logos verbais e não verbais, diálogos Nos apreciativos, busca-se diag-
escritos e falados, reais ou virtuais, nosticar o que bem funcionou, o que
são exemplos de diferentes qualida- ao longo da convivência pretérita foi
des dessa prática da conversa. produtivo, com vistas a trazer esses
Teóricos da comunicação como elementos à consciência, de forma a
Watzlawick – Pragmática da Comu- bem aproveitá-los no presente e no
nicação Humana; filósofos como Ha- futuro, em especial nas situações de
bermas – Teoria da Ação Comunicati- crise – oportunidades de mudança e
va; Foucault – A Ordem do Discurso; de reconstrução de novas interações
ou Sócrates, com sua maiêutica; ou e ações. Resgatar aspectos positivos
ainda pesquisadores do diálogo como para alimentar o presente e o futuro
William Isaacs – Diálogo e a Arte de coloca as pessoas envolvidas no de-
Pensar Juntos –, dentre outros, nos sentendimento em contato com seu
brindam com reflexões que chamam potencial para o bem fazer.
a atenção para aspectos plurais da Nos diálogos generativos, auxilia-
construção dos diálogos. -se as pessoas a desenharem o futuro
O que sobressai nos estudos mais almejado e, a partir dessa visão pros-
contemporâneos a respeito é a busca pectiva, busca-se com elas identificar
incessante – pesquisa e prática – por o que é necessário integrar no presen-
características que tornem os diálo- te para que o objetivo futuro identi-

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ficado seja alcançado. Construir um Um reafirma o seu
Um escuta o outro
ponto de vista sem
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presente a partir de um futuro dese- para entendê-lo em da mediação de conflitos
escutar o do outro;
jado e projetado convida as pessoas a busca do consenso Tânia Almeida
ou ainda escuta o
serem ativas, coconstrutoras de novas ou somente para
outro com o objetivo
compreender o seu
realidades e atitudes, desenvolvidas a de reunir contra-
ponto de vista.
argumentos.
partir de momentos de crise.
A relação com o outro é o palco Um toma o seu
Um toma o seu ponto
ponto de vista como
que possibilita expor e ouvir ideias, de vista como verdade
possibilidade e toma a
e desqualifica o ponto
ser considerado e considerar, e preci- ideia do outro também
de vista do outro.
sa, portanto, ser bem cuidada. Como como possibilidade.

observadores, sabemos exatamente Espera-se de todos


Espera-se a
os participantes a
quais as imperfeições daqueles que irredutibilidade e a
possibilidade de
crítica à posição ou à
conosco dialogam. Como atores, não flexibilização de suas
ideia do outro.
nos damos conta das nossas inade- ideias.
quações nem nos damos conta de Busca-se a melhor
solução apresentada Busca-se a
como contribuímos para que as ina- ou aquela composta prevalência de uma(s)
dequações do outro surjam. por um mix das ideia sobre a(s)
Nos diálogos produtivos, trata-se ideias trazidas. Todos outra(s) e trabalha-se
contribuem para para excluir as ideias
bem o outro e trata-se com severida- construir parte da dos opositores.
de e seriedade as questões; neles, pon- solução.
tos de vista são oferecidos ou comple- Busca-se um comum Demarcam-se
mentados. Nas discordâncias, sem entendimento. diferenças.
que o interlocutor seja desqualifica-
do, outros pontos de vista são apre- Faz parte da competência social
sentados e validados pela diferença deste início de milênio a habilida-
que aportam e não pela competição de para conviver e bem lidar com a
com a ideia anteriormente oferecida. diferença. Diferença entre pessoas,
Nos debates, trata-se mal o outro e culturas, ideias. O mundo contempo-
relega-se a segundo plano as questões. râneo exige flexibilidade – em função
Neles é preciso atacar o outro, seus fei- da velocidade das mudanças e da di-
tos e suas ideias mais do que atacar as versidade inerente à convivência – e
questões, mesmo quando as questões demanda, consequentemente, a capa-
são o objeto de interesse e o pretexto cidade de negociar via diálogo.
para a conversa. Nos debates derruba- O resultado positivo dos diálogos
-se, elimina-se e desqualifica-se pon- é ativo intangível extremamente va-
tos de vista. E com eles seus autores. lorizado nas convivências privadas,
Segue quadro que demarca distin- comunitárias e corporativas. O rela-
ções entre o diálogo e o debate: cionamento com o outro, a capacida-
de interativa, a habilidade para com-
Diálogo Debate por redes e parceria é exigência deste
Procura-se construir Procura-se que
milênio em que a sobrevivência fica
consenso ou, haja um ponto de garantida somente se ações coopera-
genuinamente, vista vencedor; tivas puderem existir.
almeja-se uma consequentemente,
escuta respeitosa haverá um ponto
A sustentabilidade de qualquer
de entendimento de vista perdedor projeto – pessoal, comunitário, cor-
(cooperativo). (adversarial). porativo, nacional ou continental –

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alimenta-se de coautoria. A coautoria intervenções era especulativo, ou seja,
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os conteúdos das falas eram apresen-
amplia, em muito, o comprometi-
mento com a prática das ideias e a tados como possibilidades, não como
execução dos projetos. Somente o di- pareceres; como versões e não como
álogo produtivo viabiliza a coautoria. verdades. Após a escuta, a família co-
É a incessante busca pelo diálogo mentaria ou não o que havia escu-
produtivo que propicia o contínuo tado. A proposta era gerar reflexão e
redesenho de novos instrumentos não a inversão de pareceres – a famí-
de entendimento neste momento lia dizendo o que havia considerado
da nossa existência, especialmente pertinente dentre o que ouvira. A
aqueles voltados para a construção reflexão poderia ocorrer ainda ali no
de consenso entre pessoas em dis- atendimento, ou fora dele.
senso ou entre múltiplos atores com Era nova aquela proposta de tra-
significativas diferenças de qualquer balho. Era novo o lugar conferido
natureza. aos terapeutas e, consequentemente,
à família. Terapeutas com menor de-
monstração de saber e famílias diante
IV. Processos Reflexivos de versões outras sobre suas questões,
para ativamente, via reflexão, amplia-
Em março de 1985, Tom Ander- rem ou não seu entendimento, e, por
sen colocou em prática, pela primeira consequência, o curso de ações.
vez, a ideia da equipe reflexiva (2002). Tom Andersen escreveu artigos e
Havia já, pelo menos dez anos de es- livros sobre essa proposta, articulou
tudos embasando essa possibilidade, seu pensamento com o de outros
conversada internamente dentro da teóricos e deixou um suporte extre-
equipe do hospital psiquiátrico de mamente rico para reflexões futuras
Tromso, Noruega, coordenada por sobre processos reflexivos em diálogos
Tom Andersen. Uma das grandes que visem a contribuir para mudan-
questões para encaminhar um pro- ças. Aqui entra a articulação com a
cedimento diferente com as famílias Mediação.
que atendiam era: podemos conduzir A Mediação e o atendimento co-
uma entrevista sem a possibilidade de ordenado por Tom Andersen têm
fazer uma intervenção final? À épo- em comum o mútuo interesse, entre
ca, a intervenção final em trabalhos equipe de atendimento e atendidos,
daquela natureza era uma máxima em juntos gerarem um funcionamen-
e possibilitava que a família voltasse to distinto do vigente, uma vez que o
para casa com o parecer da equipe de funcionamento vigente provoca des-
atendimento sobre as questões trazi- conforto. Esse mútuo interesse de
das. propósitos possibilita que os dois sis-
A equipe reflexiva era oferecida à temas – atendido e atendente – traba-
família como possibilidade e funcio- lhem ideias que convirjam na direção
nava de forma que cada membro que do entendimento sobre as motivações
a integrava ofertava descrições outras que geram o desconforto e na cons-
que se lhes ocorriam, enquanto ou- trução de possíveis mudanças.
viam os componentes da família. A A base desse diálogo é a reflexão –
equipe falava entre si, e o caráter das atendidos refletem a partir do que es-

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cutam de si mesmos e a partir do que • trabalhar com a ideia de que as
intervenções oferecidas não são in-
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escutam da equipe atendente (per- da mediação de conflitos
guntas e novas versões possibilitadas, gênuas – Bulow-Hansen era uma Tânia Almeida

por exemplo, pelos resumos); equipe fisioterapeuta com quem Tom


atendente reflete a partir do que es- Andersen trabalhava e com quem
cuta dos atendidos e das intervenções aprendeu que as intervenções
que a própria equipe gera: (i) reflete não podem ser tão fracas que
para construir as intervenções; (ii) não sejam percebidas, nem tão
reflete sobre o fato de as terem eleito fortes que precisem ser evitadas,
para compartilhar com os atendidos; por ameaçarem a integridade. No
(iii) reflete sobre o motivo da eleição entanto, elas precisam ter a força
dessas intervenções e não de outras; adequada para serem percebidas
(iv) reflete sobre os possíveis impac- como diferença, e assim se cons-
tos provocados por essa intervenções. tituírem em informação. O mes-
Mesmo processo reflexivo que ocorre mo ocorre na Mediação. As in-
na Mediação. tervenções precisam ter a medida
Quais são os aprendizados-ba- da necessidade e da possibilidade
se que aquele grupo de estudos de das pessoas. Nem mais, para se-
Tromso, sobre processos reflexivos, rem recusadas; nem menos, para
pode oferecer para mediadores? não fazerem diferença. O termo
Muitos e significativos, por exemplo: escolhido por Tom Andersen
para descrever as intervenções
• trabalhar com a ideia de fazer que provocariam distinção sem
distinções / identificar diferenças recusa foi incomum. Nesse sen-
– Gregory Bateson (1972) con- tido, a intenção de favorecer a
tribuiu para esse pensamento, geração de informação e de mu-
ao afirmar que fazemos distinções dança deve ser acompanhada de
quando identificamos algo como intervenções que sejam percebi-
diferente de nós (do nosso meio, das como incomuns;
do que pensamos, do que perce- • trabalhar com a ideia de repertó-
bemos). Para Bateson, a ideia de rio estrutural – o grupo de Tom
fazer diferença está na base da Andersen, inspirou-se no enfo-
informação – informação é uma que biológico das ideias de Ma-
diferença que faz diferença no turana e Varela (1987), ideias que
acervo de conhecimentos. Para contaminaram as ciências sociais
o antropólogo, a mudança cor- e que afirmam: nosso repertório
responderia à incorporação de de ações e de possibilidades está
diferenças ao longo do tempo. limitado pelas estruturas biológi-
Mediadores trabalham gerando cas, ou seja, o ser humano tran-
informação, especialmente via sita pelo mundo, também den-
perguntas. Nossas perguntas pre- tro de possibilidades biológicas
cisam então levar a refletir sobre (determinismo estrutural). No
algo novo, distinto do repertório entanto, essas possibilidades po-
daqueles sujeitos, para que gerem dem ser alteradas como resposta
informação e, ao longo do tempo, a mudanças ocorridas no meio e
possíveis mudanças; no próprio sujeito. Para media-
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dores, fica a mensagem de que Refletir significa ter um diálogo
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interno, conversar consigo mesmo e
as pessoas reagem inicialmente
a propostas de mudança, dentro com as vozes internalizadas que atra-
de seu repertório. Está na variá- vessaram a nossa história – aqueles
vel tempo e nas possibilidades de com quem convivemos e/ou conver-
cada estrutura pessoal a viabilida- samos, aqueles que lemos, ouvimos e/
de de mudanças nesse repertório; ou admiramos.
• trabalhar com a ideia de lingua- A reflexão está presente em todo o
gem como base da nossa constru- percurso da Mediação, nos mediado-
ção e expressão – (i) o repertório res e nos mediandos: da capacitação à
de cada um de nós se constrói educação continuada, passando pelo
na interação social e se expressa, atendimento. O atendimento, geral-
fortemente, no agir, no pensar mente sistematizado em três momen-
e no sentir, que são articulados, tos – o antes, o durante e o depois –,
diferentemente, dependendo, está marcado por processos reflexivos
em especial, do contexto e do que incluem todos que integram o
interlocutor; (ii) significamos processo de diálogo.
de maneira distinta uma mesma Há modelos de trabalho em Media-
palavra ou situação a partir desse ção que agregam o processo reflexivo
repertório construído socialmen- de maneira mais explícita: (i) por ve-
te, ao longo da nossa existência; zes, oferecendo equipes reflexivas para
(iii) descrevemos situações quan- os mediandos, seguindo os norteado-
do ainda podemos lhes conferir res originalmente preconizados por
movimento, e explicamos situ- Tom Andersen; (ii) por vezes, pro-
ações quando o movimento foi movendo conversas informais entre a
substituído pela certeza; (iv) o equipe de atendimento, frente aos me-
que apresentamos para descrever diandos, especialmente em situações
ou explicar situações são versões de capacitação, quando essas equipes
particulares e não a expressão da incluem observadores e comediadores
verdade, que, pela singularidade – a equipe conversa a respeito do caso,
de cada observador, é inapreen- observando igualmente os propósitos
sível; (v) construímos a ideia de de oferecerem versões e não parece-
que algo é problema a partir de res, perguntas e não afirmações; (iii)
nossa percepção e visão de mun- existe, ainda, a possibilidade de uma
do; a definição de algo como dupla de mediadores, não acompa-
problema pode não ser compar- nhados por uma equipe, conversarem
tilhada em termos de qualidade entre si, tanto sobre outras versões que
e intensidade. Esse conjunto de se lhes ocorram sobre o que ouvem e
norteadores pautados na lingua- percebem quanto sobre intervenções
gem pode auxiliar mediadores na que gostariam de incluir no trabalho,
proposta de promover reflexão, optando primeiramente por negociá-
no sentido de considerarem dis- -las com a sua dupla.
tintas intervenções para diferen- A reflexão integra nosso cotidiano,
tes sujeitos e dessemelhantes res- independentemente dos momentos
postas para cada um deles, diante de atuação funcional ou profissional.
de intervenções mesmas. A ideia desse diálogo interno ser pres-

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tigiado na Mediação está assentada política e um natural veículo de ex-
pressão de poder, observaremos que
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na proposta de autoria com responsa- da mediação de conflitos
bilidade – tanto dos mediandos como se trata de uma prática que não ex- Tânia Almeida

dos mediadores. Como no diálogo clui nenhum indivíduo capaz do seu


socrático,* a reflexão precisa se dar, exercício, nem como integrante do
mesmo que o consenso obtido inclua diálogo nem como mediador. A Me-
atitudes e decisões que correspondam diação propõe o balanceamento de
ao usual, ao vigente, ao anteriormen- poder entre os mediandos e exige o
te pensado. mesmo de seus resultados. Confere
aos mediandos equiparação de par-
ticipação e os convida para trabalhar
Conclusão em busca da satisfação mútua. Por ser
um instrumento ganha-ganha,** pro-
A ética, como margem intranspo- põe um nivelamento de poder entre
nível; o pensamento sistêmico, como os mediandos e entre a importância
norteador indispensável a toda e dos seus interesses e necessidades.
qualquer atuação social; o processo O discurso da Mediação, como to-
de diálogo, como veículo único para o dos os outros, do ponto de vista da
entendimento baseado em consenso; análise de discursos, é uma construção
e os processos reflexivos, como prá- social que precisa ser entendida com
tica imprescindível nas tomadas de base no contexto histórico-social que
decisão qualificadas pela informação o reedita e contém uma construção
e a pela consideração com o ponto de ideológica. Ao partir desta perspec-
vista do outro, foram eleitos como pi- tiva, ele reflete a visão de mundo da
lares teóricos que dão sustentação ao sociedade que o instaura e o utiliza,
exercício da Mediação de Conflitos. nesse momento histórico. * O processo estruturado
Na base desses pilares, um solo A construção ideológica presente de diálogo proposto por
Sócrates – Maiêutica – tinha
constituído pela linguagem possibili- no texto da Mediação é a resolução por intenção suprema a
ta que qualquer atuação aconteça. pacífica de discordâncias por meio da reflexão. Filho de uma
parteira, Sócrates pretendia
Ao investigarmos o cenário lin- construção de consenso e da satisfa- que suas perguntas levassem
guístico da Mediação e identificar- ção mútua. Renascida na década de seus interlocutores a parir
mos o contexto sociocultural a que 1970, no cenário americano, a Me- ideias próprias, após reflexão.
Que nada fosse afirmado por
pertencem seus paradigmas e valores, diação alcançou os cinco continentes ser norma ou usual, sem que
como propõe a filosofia pragmática e vem propondo mudanças paradig- a reflexão provocasse uma
análise crítica.
da linguagem, veremos na Mediação máticas no manejo dos desentendi-
uma prática social voltada para o ma- mentos com o outro, tendo em vista ** No campo da negociação
nejo pacífico de desacordos e sua pre- as ideias da autocomposição, da auto- e da construção de
venção, para a autonomia da vontade ria e da satisfação mútua, da preser- consenso, são categorizados
como ganha-ganha os
e o exercício da autoria, para a busca vação da relação social e do diálogo. processos de diálogo
do atendimento das necessidades e Em um momento histórico no que visam à satisfação
mútua e ao benefício de
interesses de todos os envolvidos na qual a coexistência pacífica de dife- todos os envolvidos. Essa
controvérsia. renças é demanda, no qual as fron- denominação surge como
Tendo ainda a filosofia pragmáti- teiras sociais e culturais se atenuam contraponto aos métodos
perde-ganha, que viabilizam
ca da linguagem como norteador de e no qual a velocidade das mudanças que alguém perca e alguém
reflexão, se articularmos a Mediação deixa pouco espaço para pegar fôle- ganhe a razão, categorizando
dessa forma os seus
com a ideia de ela ser uma prática go para lidar com o novo, negociar e resultados.

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compor diferenças deixando margem MARCONDES, D. (2007). Textos Básicos
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da Ética – de Platão a Foucault: Rio
para discordâncias e para o singular
possibilita que necessidades várias e de Janeiro: Zahar Editores.
valores distintos sejam respeitados e MATURANA, H. (1995). A Árvore do
não unificados. Conhecimento – as bases biológicas
Filhas de sua época, as ideias novo- do entendimento humano. São Pau-
-paradigmáticas chegam para permitir lo: Editorial Psy II.
que a convivência social se dê, incluin- MATURANA, H., VARELA, F. (1987). The
do as exigências contemporâneas. Tree of Knowledge. Boston: New
Science Library.
MORIN, E. (1996) .Ciência com Consciên-
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SCHNITMAN, D. (1986). Construtivis-
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dad en Educación. Buenos Aires: Edi- terapeutico. Sistemas Familiares,
torial Magisterio del Río de da Plata. 2(1): 9-15.
ANDERSEN, T. (2002). Processos Refle- VASCONCELOS, M.J.E. (2002). Pensa-
xivos. 2. ed. ampliada. Rio de Janei- mento Sistêmico – o novo paradig-
ro: NOOS e Instituto de Terapia de ma da ciência. Campinas: Papirus
Família do Rio de Janeiro. Editora.
BATESON, G. (1972). Steps to an Ecolo- WATZLAWICK, P. (Org.) (1994). A Re-
gy of Mind. Nova York: Ballantine. alidade Inventada. São Paulo: Edi-
CAPRA, F. (1982). O Ponto de Mutação tora Psy.
– a ciência, a sociedade e a cultu-
ra emergentes. São Paulo: Editora
Cultrix. Comentários sobre a
COOPERRIDER, D.L., WHITNEY, D., STA- bibliografia por partes
VROS, J.M. (2005). Appreciative In-
quiry Handbook. Brunswick, Ohio:
Crown Custom Publishing. Parte I
ECO, H., MARTINI, C.M. (2010). Em
que creem os que não creem. Rio de MARCONDES, D. ( 2007). Textos Básicos
Janeiro: Editora Record. da Ética – de Platão a Foucault. Rio
SCHNITMAN, D.F. (2000). La resoluci- de Janeiro Editora Zahar.
ón alternativa de conflictos – un
enfoque generativo. In: SCHNIT- O livro contém uma antologia de
MAN, D.F. (Comp.). Nuevos Para- textos sobre a ética, a partir da visão
digmas en la Resolución de Conflic- de diferentes filósofos. Por ter fins di-
tos: perspectivas y prácticas. Buenos dáticos, é de fácil e objetiva leitura e
Aires: Granica. está sistematizado de forma que, ao
ISAACS, W. (1999). Dialogue and the final da exposição das ideias de cada
Art of Thinking Together. New York: pensador, o leitor encontre perguntas
Currency. que favoreçam o entendimento e a
KUHN, T.S. (2006). A Estrutura das Re- construção do conhecimento corres-
voluções Científicas. 9.ed. São Pau- pondentes, assim como a recomenda-
lo: Editora Perspectiva. ção de outras obras sobre o tema.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 40, p. 68-82, ago. 2011.


ECO, H., MARTINI, C.M. (2010). Em têmico. Um livro para o leitor leigo,
Pilares teóricos 81
que creem os que não creem. Rio de que possibilita acompanhar a in- da mediação de conflitos
Janeiro: Editora Record. fluência do pensamento cartesiano- Tânia Almeida

-newtoniano em nossas vidas e sua


A existência e a invenção de Deus, redenção a uma nova visão de reali-
assim como os fundamentos da éti- dade, o pensamento holístico ou sis-
ca, compõem os temas que motivam têmico.
o diálogo entre Eco – olhar laico – e
Martini – olhar religioso. Em forma
de carta, essa conversa encomendada Parte III
e publicada por uma revista italiana
leva à reflexão sobre valores do ho- COOPERRIDER, D.L., WHITNEY, D., STA-
mem contemporâneo e é comentada VROS, J.M. (2005). Appreciative In-
por filósofos, jornalistas, um teórico quiry Handbook. Brunswick, Ohio:
de extrema esquerda e um ex-minis- Crown Custom Publishing.
tro do partido socialista italiano.
Os autores desenvolveram uma
pesquisa no campo organizacional
Parte II e constataram que as consultorias
pautadas em diagnósticos patológi-
VASCONCELOS, M.J.E. (2002). Pensa- cos – o que não está funcionando e
mento Sistêmico – o novo paradig- precisa ser revisto – deixavam de lado
ma da ciência. Campinas: Papirus os aspectos positivos da corporação.
Editora. O diálogo apreciativo está baseado na
positividade de qualquer sistema – fa-
Maria José nos convida para a mília, empresa, comunidade. O livro
ideia de que novos paradigmas são mostra um passo a passo que orienta
construídos e adotados pela ciência na construção de diálogos dessa na-
porque existem cientistas com visão tureza e propõe uma mudança para-
novo-paradigmática. Os leitores pre- digmática no campo da facilitação de
cisam também de pensadores novo- diálogos.
-paradigmáticos que os auxiliem, em
linguagem simples, a vivenciar nos ISAACS, W. (1999). Dialogue and the
textos aquilo que lhes é narrado. É o Art of Thinking Together. New York:
que ocorre nessa obra repleta de infor- Currency.
mações. Um livro para ler e para con-
sultar. O autor integra a equipe do MIT
Dialogue Project, e o livro, baseado
CAPRA, F. (1982). O Ponto de Mutação em dez anos de pesquisa, dedica-se
– a ciência, a sociedade e a cultu- a estudar as características positivas
ra emergentes. São Paulo: Editora de processos de diálogo, destacando a
Cultrix. qualidade da expressão e da escuta,
a admissão da diferença e a genuína
Este é um clássico, também trans- curiosidade que vê o novo em temas
formado em filme (vale a pena ver), conhecidos. A imagem metafórica
sobre o pensamento holístico ou sis- que a pesquisa construiu sobre o diá-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 40, p. 68-82, ago. 2011.


logo foi levada para o título do livro para processos reflexivos em geral
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são oferecidas.
– a arte de pensar junto.

WATZLAWICK, P. (Org.) (1994). A Rea-


Parte IV lidade Inventada. São Paulo: Editora
Psy.
ANDERSEN, T. (2002). Processos Refle-
xivos. Rio de Janeiro: NOOS e ITF.. Essa obra compila textos de dife-
rentes autores, todos afeitos ao tema
Nesta segunda edição, Tom An- da impossibilidade de apreensão da
dersen agrega novas ideias e uma realidade. Recomendo, especialmen-
revisão das anteriores. Historiciza a te, a introdução, porque reúne Ernest
construção do trabalho com equipes von Glasersfeld – Introdução ao Cons-
reflexivas e oferece seu substrato te- trutivismo Radical –, e Heinz von Fo-
órico, revelando a interlocução com erster – Construindo uma Realidade.
diferentes autores e distintos pen- Ambos os autores foram referência
samentos que se constituíram base para Tom Andersen, na construção
daquele trabalho. Diretrizes para o da ideia da equipe reflexiva. São tex-
trabalho com equipes reflexivas e tos densos, mas emblemáticos.

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