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Resumo
• Esta nota discute possíveis implicações para o SUS de uma reforma no marco legal de planos de
saúde que permita a criação de planos mais acessíveis e com cobertura mais limitada.
• Em países que combinam um sistema público universal com um setor suplementar privado, estas
duas partes não podem ser pensadas como compartimentos estanques. Modificações em regras de
acesso ou de pagamento em um setor podem ter consequências importantes sobre o outro.
• Argumentamos que um aumento da cobertura dos planos, a depender dos termos propostos, não
necessariamente é uma solução para os gargalos do SUS. Se tal expansão ocorrer direcionada a
serviços de mais baixa complexidade e de menor custo, o resultado pode ser (i) um aumento na
fragmentação do sistema; (ii) uma maior sobrecarga dos serviços mais complexos e mais custosos
oferecidos pelo SUS; e (iii) um aumento da desigualdade no acesso a esses serviços a depender do
fluxo de acesso de pacientes entre setores.
• Em particular, não podemos descartar um cenário em que o SUS fique ainda mais sobrecarregado
caso ocorra uma substituição de planos mais completos por planos acessíveis e mais limitados. Dis-
cutimos também nesta nota outras possíveis implicações para o SUS via questões relacionadas a
cream skimming, financiamento e cobertura vinculada à rede local de prestadores.
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pagamento em um setor podem ter consequências na análise dos potenciais impactos de uma reforma
importantes sobre o outro. desse tipo sobre o SUS. Também discutimos a pro-
posta de vincular o tipo de cobertura à infraestrutura
Atualmente encontra-se ativa no Congresso Nacio-
e à capacidade operacional da rede privada local.
nal a Comissão Especial da Lei dos Planos de Saúde,
na qual estão em debate propostas de reforma da A Nota Técnica está organizada em mais três seções,
Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998, que instituiu o além desta introdução. Na próxima seção, como
marco legal que regula o setor de seguros de saúde pano de fundo, apresentamos uma análise da evolu-
privados no País. As propostas em discussão tra- ção dos gastos e resultados em saúde no Brasil em
tam de diferentes assuntos, dentre os quais se desta- perspectiva comparada. Discutimos então algumas
cam mecanismos de credenciamento e descredenci- das possíveis consequências para o SUS que podem
amento de prestadores privados, inclusão da cober- advir da modificação nas exigências de cobertura mí-
tura compulsória de procedimentos específicos, di- nima dos planos de saúde e da rede regionalizada.
reitos dos usuários e modalidades de planos que po- Na última seção apresentamos as considerações fi-
dem ser ofertados no mercado. Sobre o último tó- nais.
pico, discute-se a criação de planos de saúde com co-
bertura somente para procedimentos, exames diag-
nósticos e terapias de baixa e média complexidade, O Sistema de Saúde Brasileiro em Pers-
simplificando as exigências de cobertura atualmente pectiva Comparada
vigentes.2 Adicionalmente, tem sido discutida a pos-
sibilidade de criar planos com cobertura somente O sistema de saúde brasileiro tem evoluído continu-
para alguns tipos de internações e procedimentos amente e o SUS tem sido uma peça central na expan-
hospitalares, dependendo da capacidade de infraes- são do acesso aos serviços de saúde no País nos úl-
trutura no município e da capacidade operacional da timos 30 anos (Castro et al. 2019). A Figura 1 relaci-
rede particular local. Planos desse tipo, que podem ona renda per capita e expectativa de vida ao longo
ser oferecidos no mercado a preços mais acessíveis, do tempo. O gráfico 1a mostra o avanço do Brasil em
têm sido apresentados como um mecanismo para ex- anos de expectativa de vida ao nascer em compara-
pandir a cobertura da saúde suplementar e “desafo- ção a mais de 170 países. O País passou de uma posi-
gar o SUS”. ção ligeiramente abaixo da curva estimada em 1988,
indicando um desempenho inferior àquele que seria
Os desafios que a saúde suplementar enfrenta no
esperado dado o nível de desenvolvimento econô-
Brasil devem ser objeto de regulação, visando a ga-
mico naquele momento, para uma posição acima da
rantir a sustentabilidade econômica dos planos de
curva em 2019, indicando um desempenho superior
saúde e a proteção dos consumidores. No entanto,
àquele que seria esperado ao final do período. Os re-
é necessário considerar também os possíveis impac-
sultados indicam, portanto, avanços na expectativa
tos que alterações na regulação da saúde suplemen-
de vida num ritmo superior ao que seria esperado da-
tar podem trazer para o SUS.
dos os avanços observados na renda per capita. O
O objetivo desta Nota Técnica é discutir as possíveis gráfico 1b documenta a mesma relação em nível es-
implicações de uma modificação nas exigências de tadual, com uma gradual melhora da expectativa de
cobertura mínima para permitir a criação de planos vida entre 2000 e 2018, independentemente do nível
mais acessíveis e com cobertura exclusivamente para de renda per capita estadual. Esse período recente de
consultas ambulatoriais, exames diagnósticos e/ou ganhos em expectativa de vida coincidiu com a con-
tratamentos mais simples. Esta nota se concentra solidação e expansão do SUS, nas décadas que se se-
guiram à sua criação com a Constituição de 1988.
2
O tema foi apresentado em audiência pública da Comissão
Especial da Lei dos Planos de Saúde (audiência de 18/08/2021, A Figura 2 mostra que os gastos per capita em saúde
REQ 2/2021 PL741906; e REQ 4/2021 PL741906) e tem como im- no Brasil, no entanto, não cresceram tanto em re-
portante referência a proposta de um plano simplificado feita
pelo “Grupo de Trabalho para discutir projeto de Plano de Saúde
lação a outros países. A variação nos gastos foi de
Acessível”, instituído pela Portaria n. 1.482/2016, que buscava a 48,5% entre 1995 e 2017, enquanto a expectativa de
flexibilização das normas da ANS para possibilitar a oferta de pla- vida ao nascer avançou de 68,3 para 75,5 anos, uma
nos com cobertura inferior ao rol mínimo. Ofício do Ministério da diferença de 7,1 anos. Em comparação, países da
Saúde levou à criação de grupo de trabalho na ANS para mani-
festação da agência acerca da viabilidade técnica das propostas.
OCDE e da América Latina e Caribe registraram em
A avaliação final da agência consta na versão final do Relatório média ganhos menores em suas expectativas de vida
Descritivo do GT de Planos Acessíveis (ANS 2017). no período, mesmo com maiores avanços em gastos
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Figura 1. Curvas de Preston Internacionais e dos Figura 2. Ganhos em Expectativa de Vida ao Nas-
Estados Brasileiros cer (Variação entre 1995 e 2017)
Fonte: IBGE.
Nota: Elaboração dos autores. Neste gráfico estão apontados
cos, esse padrão parece surpreendente.4 De fato, o
com iniciais dos estados os dados de 2000 e 2018. Brasil destoa de países com sistemas semelhantes,
que apresentam gastos públicos não menores que
70% do total. No Brasil, esta proporção é 42%, menor
totais com saúde e no PIB per capita.3 Ou seja, em até em comparação aos Estados Unidos, onde o sis-
comparação com esses grupos de países, o avanço no tema de saúde é essencialmente privado e não existe
Brasil foi maior e se deu com base em um aporte re- um serviço nacional com cobertura universal (Rocha
lativamente menor de recursos em saúde. et al. 2021).
Além de relativamente baixa, a variação nos gastos Os pontos enfatizados nesta seção indicam que a
per capita em saúde no Brasil foi semelhante entre saúde da população brasileira tem avançado em li-
os setores público e privado (respectivamente, 51,8% nha, ou até mesmo mais rapidamente do que em ou-
e 46,3% entre 1995 e 2017). Considerando que este 4
A Estratégia Saúde da Família (ESF), por exemplo, foi criada
período foi marcado pela consolidação do SUS e por
em 1994 e teve significativa expansão na cobertura a partir de
uma forte expansão na cobertura de serviços públi- 1998, atingindo metade da população no território nacional em
2008 e 64% ao fim de 2019. Enquanto isso, a cobertura no se-
3
É necessário considerar que os ganhos de expectativa de tor privado não aumentou tanto: de 25,8% em 1998 a 29,8% em
vida dependem da etapa da transição epidemiológica na qual 2019, comparando o percentual dos adultos acima de 18 anos
cada país se encontrava no começo do período. É razoável supor com um plano de saúde, segundo a Pesquisa Nacional por Amos-
que os ganhos de expectativa de vida ao longo do período sejam tra de Domicílios (PNAD) de 1998 e a Pesquisa Nacional de Saúde
menores em países cuja expectativa de vida já era mais alta no (PNS) de 2019, respectivamente (essas estimativas excluem os
período inicial. residentes em áreas rurais da Região Norte).
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tros países, em particular se considerarmos a vari- e privado estão intimamente conectados, é preciso
ação do gasto público per capita em saúde. Nesse que questões desse tipo sejam analisadas sob uma
sentido, a motivação para quaisquer reformas no sis- perspectiva mais ampla e que leve em consideração
tema de saúde brasileiro, seja no SUS ou no seg- todo o desenho do sistema de saúde e possíveis efei-
mento privado, deve levar em conta os avanços ob- tos de mudanças desse tipo sobre o setor público.
tidos até aqui e suas implicações para o futuro da Além disso, mercados privados de saúde sofrem de
saúde no país. problemas informacionais, amplamente documen-
tados na literatura (Bhattacharya et al. 2013). Isso
implica que mudanças aparentemente positivas, que
Considerações sobre a Reforma da Lei ampliem o escopo de escolha dos consumidores, po-
dos Planos de Saúde dem acabar levando a reduções no bem-estar des-
ses mesmos consumidores, seja por efeitos negati-
Como já mencionado, as interações entre o SUS e o vos através do equilíbrio de mercado ou de uma ca-
setor privado são complexas e os dois segmentos não pacidade ampliada das firmas de extrair sua renda
podem ser considerados estanques. Discutimos a se- (através da possibilidade de “separar” diferentes ti-
guir alguns dos principais argumentos em favor de pos de consumidores em categorias de plano distin-
reformas no marco legal dos planos de saúde, bem tas).
como questões importantes associadas à desregu-
lamentação da saúde suplementar que podem tra-
zer implicações de primeira ordem para o funciona- Filas de Espera e Iniquidades Potenciais
mento do SUS. Qualquer proposta de alteração de re- Em todos os sistemas públicos de saúde com cober-
gras no setor deve levar essas questões seriamente tura universal, a regulação de filas de espera funci-
em consideração. ona como um dos principais mecanismos de controle
do acesso a serviços. Essas filas devem respeitar as-
Motivações e Argumentos Pró-Reforma pectos de equidade, necessidade e urgência, dadas
as restrições de oferta, ou seja, parâmetros que esta-
Indivíduos buscam planos privados de saúde em fun-
belecem o fluxo de pacientes na rede. No Brasil, ine-
ção de alguma insatisfação com o sistema público.
xistem mecanismos regulatórios claros organizando
Essa insatisfação pode derivar da qualidade do ser-
a migração e o acesso dos indivíduos diagnosticados
viço público, de tempos prolongados de espera, do
entre os setores. De um lado, na ausência desses
desconforto das instalações físicas, da dificuldade
mecanismos, se os exames diagnósticos realizados
geográfica de acesso, e de vários outros fatores (Pita
no sistema privado possibilitarem o acesso direto a
Barros & Siciliani 2011). A principal vantagem po-
tratamentos complexos no SUS, os planos mais sim-
tencial de uma flexibilização de planos é, portanto,
ples podem acabar funcionando como mecanismos
permitir que alguns indivíduos acessem serviços per-
para “furar a fila” de acesso a esses últimos no SUS.
cebidos como de maior qualidade a custos relativa-
Considerando que os planos de seguro privado de
mente baixos (quando comparados a planos mais
saúde são subsidiados publicamente através de di-
completos). No Brasil, o acesso a consultas com es-
ferentes benefícios tributários (Ocké-Reis 2018), pos-
pecialistas e exames diagnósticos são gargalos do
síveis impactos regressivos devem ser considerados.
SUS (Castro et al. 2019). A existência de planos priva-
Se os indivíduos que compram planos têm melhores
dos de saúde que ofereçam apenas consultas com es-
condições sociais em relação aos que permanecem
pecialistas ou exames diagnósticos pode, portanto,
cobertos exclusivamente pelo SUS, espera-se então
ser visto como um mecanismo para aliviar esses gar-
uma ampliação das desigualdades. Indivíduos aten-
galos. Na mesma linha, um argumento que tem sido
didos pelos planos privados terão acesso a diagnósti-
recorrentemente apresentado sustenta que esse mo-
cos e exames necessários previamente àqueles com
vimento de parte da população para planos com co-
as mesmas condições de saúde, mas que não têm
bertura mais limitada acabaria liberando recursos do
plano, tendo, portanto, acesso mais rápido ao setor
SUS, diminuindo assim a pressão sobre a provisão
público para procedimentos mais caros e complexos.
pública de saúde.
Do outro lado, se for exigido que o usuário com plano
Alguns indivíduos certamente podem se beneficiar privado acesse o sistema público por meio de esta-
de planos mais baratos e com cobertura restrita. Mas, belecimentos de atenção primária e refaça exames,
como discutido anteriormente, em um sistema de haverá desperdício de recursos e perda de eficiência.
saúde como o brasileiro, onde os setores público
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de saúde exclusivamente ambulatoriais aumentar, é tema, uma maior sobrecarga dos serviços mais com-
essencial avaliar as mudanças que seriam necessá- plexos e mais custosos oferecidos pelo SUS, e um au-
rias na forma como os recursos são distribuídos den- mento da desigualdade no acesso a esses serviços.
tro do SUS. Em particular, não podemos descartar um cenário
em que o SUS fique ainda mais sobrecarregado caso
Regionalização vinculada à rede de prestadores.
ocorra uma substituição de planos mais completos
Uma das questões em discussão refere-se à regiona-
por planos acessíveis e mais limitados. Independen-
lização da cobertura adaptada à disponibilidade de
temente, os pontos discutidos aqui devem ocupar
infraestrutura no município. Consiste, então, no cre-
um papel central em qualquer avaliação séria do re-
denciamento dos serviços existentes na região que
desenho da regulação no setor de saúde suplemen-
serão disponibilizados aos beneficiários de acordo
tar.
com a capacidade operacional da rede local. Para
este produto, é necessária a flexibilização do rol de Por fim, mas não menos importante, também não
procedimentos da ANS. Neste caso, é esperado que podemos desconsiderar que o SUS deverá continuar
planos com menor cobertura sejam ofertados em re- cobrindo toda a população e ofertando serviços em
giões com provisão limitada. De fato, a operação no todos os níveis de atenção, de maneira integral, uni-
setor de saúde requer escala e pode não ser rentável versal, em todas as regiões do País, assim como está
em locais isolados, sem densidade populacional su- definido na Constituição de 1988. Planos privados
ficiente e que enfrentam logística complexa de trans- não têm atribuição constitucional na oferta de servi-
porte e infraestrutura. Ainda assim, todos os pontos ços ou o papel de desafogar o SUS. Esta deveria ser
discutidos anteriormente também seriam potencial- mantida como atribuição e responsabilidade, de jure
mente magnificados em uma eventual regionaliza- e de facto, da sociedade brasileira.
ção da saúde suplementar dentro dessa lógica. Po-
deria se esperar, por exemplo, que a discricionarie-
Agradecimentos
dade na escolha pelo lado dos planos de saúde le-
vasse à seleção exclusiva de serviços e localidades Agradecemos a Arminio Fraga e Rebeca Freitas por
mais rentáveis e com custos de operação mais bai- comentários e a Helena Ciorra pelo apoio na edição
xos. e revisão deste documento.
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