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o ARTIGO

DESINFORMAÇÃO E CONFORMISMO
NA ÁREA DE SAÚDE:
O CASO DE BELO HORIZONTE

o trabalho é uma análise da atuação dos pro-


• ADELAIDE MARIA COELHO BAÊTA fissionais na organização dos serviços de assis-
Professora Adjuntàâo Curso de Mestrado em Adminis- tência médica em Belo Horizonte, no que diz
tração da Universidade Federal de Minas Gerais. respeito à prestação de informações que orien-
tam o paciente dentro da rede de prestação de
serviços de saúde.
Como fonte inicial de dados, foram utilizados
os documentos legais sobre o Sistema Nacional
Esteagentes
texto objetiva questionar o papel dos
e profissionais de saúde na deter- de Saúde e outros que se referem à estruturação
dos serviços de assistência médica.
minação da trajetória do paciente na rede hie-
rarquizada dos serviços de saúde. Os dados empíricos foram obtidos na pesqui-
Levando-se em conta a organização dos ser- sa sobre Hierarquização dos Serviços de Saúde,
viços proposta pelo Sistema Nacional de Saúde, realizada em 1984, considerando-se como uni-
Lei 6.229/75, e as condições de saúde da popu- verso de estudo os hospitais gerais pediátricos e
lação brasileira, procurou-se responder a algu- de adultos, envolvendo uma amostra de 31 hos-
mas indagações acerca das razões por que a po- pitais. Foram entrevistados pacientes, diretores
pulação, de modo geral, não se sente no direito clínicos, chefes administrativos, chefes de enfer-
de exigir atenção adequada, mesmo sendo ela a magem, através de questionários diferenciados
financiadora do sistema. segundo a categoria analisada.

Revista de Administração de Empresas São Paulo, 28(4) 33-40 Out./Dez. 1988 33


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Definiu-se como objeto de estudo a trajetória dos serviços são apontados como forma de via-
dos pacientes ao serem atendidos na rede hos- bilizar tal racionalização.
pitalar de Belo Horizonte. Foram utilizados da- O modelo de atendimento à saúde, adotado a
dos do prontuário médico dos pacientes para a partir da Lei 6.229/75, que instituiu o Sistema
reconstrução da sua trajetória, além das entre- Nacional de Saúde, busca eliminar a divisão en-
vistas com os pacientes e com as chefias dos tre a medicina preventiva e curativa que vigora-
hospitais. va no modelo anterior, através da criação de
A alternativa de reconstruir a trajetória do uma rede única de atendimento que integra as
paciente na Organização dos Serviços de Saúde ações preventivas e curativas. A estruturação
deve-se a que o Sistema Nacional de Saúde, cria- dos serviços de saúde, conforme o disposto na
do pela Lei 6.229/75, supõe a montagem de uma Lei 6.229, decorre da tendência crescente em es-
estrutura integral hierarquizada e regionalizada, cala mundial de se organizarem os serviços de
i.e., uma rede que integra os serviços de atendi- saúde de forma mais eficiente, mais eficaz, evi-
mento à saúde, partindo das ações mais simples tando-se a proliferação desenfreada dos serviços.
(ambulatorial e preventiva) às ações mais com- Essa tendência revela também uma participação
plexas (atendimento hospitalar), que envolvem crescente do Estado na organização e na distri-
a utilização em maior grau de medicamentos e buição dos serviços de assistência médica (1). Tal
equipamentos. Tais serviços são distribuídos estrutura obedece às normas da Organização
geograficamente numa região no sentido perife- Mundial de Saúde (O.M.S.), e, conforme disse-
ria-centro, por níveis de complexidade cres- mos mais acima, organiza a assistência médica
cente. por níveis de atenção, hierarquizados segundo a
O hospital se encontra nos níveis mais altos complexidade e intensidade do cuidado, dis-
dessa estrutura hierarquizada, uma vez que está tribuídos regionalmente no sentido periferia-
capacitado a atender os casos de cuidados mais centro por graus de complexidade crescente de
intensivos, que exigem recursos mais com- recursos. Vale dizer que os recursos são dis-
plexos. tribuídos conforme o grau de complexidade e da
Por isso mesmo, os pacientes em alta hospita- intensidade do cuidado requerido. São três os
lar atingiram a etapa final na hierarquia dos ser- níveis de cuidado: primário, secundário e ter-
viços e deveriam se encontrar em posição de ciário, configurando atividades específicas.
visualizar a rede como um todo. Embora caracterizados por atividades dife-
Dentro da complexidade de aspectos que en- rentes, esses três níveis de cuidado não se ex-
volvem as questões de saúde, pode-se destacar a cluem, ao contrário, se completam e suas ativi-
assistência médica como um dos pontos de im- dades devem ser necessariamente integradas.
portância para a compreensão dos mecanismos De acordo com a lei, todos os ministérios in-
que interferem diretamente na saúde do brasi- cluídos no sistema devem "elaborar programas
leiro. regionais observando sempre a necessária parti-
O problema da assistência à saúde é abordado, cipação de todos os 6rgãos públicos e privados
geralmente, de duas perspectivas diferentes: que atuam na região, de modo a organizá-la se-
uma técnica e outra política. gundo hierarquia técnica condizente com a área
Do ponto de vista técnico, tem sido enfatiza- assistida e os pontos de convergência para o
da a necessidade de racionalização dos recursos a atendimento de riscos especiais" (2).
fim de estender a assistência médica a um maior O Sistema Nacional de Saúde, ao propor a
número de pessoas (ampliação da cobertura). reorganização dos serviços de atenção à saúde
Já a questão política relaciona-se ao reconhe- numa rede única de atendimento integrando os
cimento da saúde como direito do cidadão e de- esforços da medicina preventiva e curativa,
ver do Estado. através da hierarquização e regionalização dos
Segundo os especialistas no assunto, a cres- serviços, pressupõe a dinamização e ampliação
cente demanda por serviços assistenciais e as dos serviços de atenção primária como forma de
mudanças nos padrões de morbidade, aliadas ao ajustar a demanda aos níveis mais complexos,
aumento significativo dos custos e à escassez re- evitando-se os gastos desnecessários com a me-
lativa de recursos, vêm impondo uma forte dicina curativa.
preocupação com a eficácia e eficiência dos ser-
viços.
A ênfase no melhor aproveitamento dos re- 1. CHAVES, Mário M. Saúde e Sistemas. Rio de Ja-
cursos disponíveis, através de uma maior ra- neiro, Fundação Getúlio Vargas, 1978.
cionalização em sua distribuição e utilização,
tem ganho força e consenso entre os planeja- 2. REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Diário
dores de saúde. Os princípios de hierarquização Oficial. Brasília-DF, 18/jul/1975.

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Essa lei, nas palavras de Marton, "apesar de recursos em função das necessidades da popu-
não lograr a eliminação das ãisiorçõe», favorece lação.
o aparecimento de programas experimentais Se, por um lado, a criação do Sistema Nacio-
que procuram modelos alternativos de organi- nal de Saúde é um salto qualitativo na colocação
zaçtIo dos serviços. Os programas de extensão da dos problemas de saúde, na medida em que
cobertura, com pressupostos de medicina comu- pressupõe a troca de influências entre o sistema
nitária, abrem um espaço para o seu desenvol- e a população, por outro lado, é possível que a
vimento, com o aval dos órgtIos oficiais res- montagem de uma estrutura hierarquizada que
ponsáveis pela política de saúde" (3). não leve em conta aspectos culturais e funcio-
Surgem, então, programas com ênfase na nais de acessibilidade aos serviços acabe por
descentralização das decisões, participação da co- manter a situação e não por mudá-la.
munidade, integração entre ações preventivas e A esse respeito, afirma Gentille de Mello (6)
curativas e regionalização dos serviços, entre que "a Lei 6.229, ao que tudo indica, pretendeu
eles o Programa de Interíorízação de Ações de delimitar as áreas de atuaçtIo de cada 6rgtIo e
Saúde e Saneamento (PIASS) e o Programa Na- cada entidade componente da estrutura sa-
cional de Serviços Básicos de Saúde (PREV- nitária ", de tal forma "que se anulem a compe-
SAÚDE) em 1980, e, mais recentemente, o Pro- tiçtIo, as rivalidades e as lutas entre instituiçi1es
grama de Ações Integradas de Saúde (AIS). que prestam serviços de saúde" . E mais adiante
O desenvolvimento dos dois primeiros pro- diz ele: "Não constituiu surpresa, para os que
gramas, conquanto não tenham eles passado de trabalham no setor, o fato significativo de que,
projetos experimentais, contribuiu para apontar decorrido um ano de vigência da Lei 6.229, não
as dificuldades na operacíonalízação do sistema, haja sinais de alteraçi1es substanciais no sistema,
sobretudo no que diz respeito à integração dos que prossegue incoordenado e caótico" (7).
serviços e à sistematização da demanda. Do ponto de vista administrativo, a aborda-
A adoção do modelo sistêmico na organí- gem sistêmica representou relativo avanço, na
.zação dos serviços de saúde significou um passo medida em que possibilitou não apenas a .
adiante na própria concepção de saúde, uma vez análise relacional das várias partes da organi-
que encara as medidas curativas como comple- zação, mas também e principalmente porque
mentares ou secundárias à atenção primária. permitiu relacionar a organização e o ambiente.
Isto supõe a transposição dos limites de um con- Considerando as influências recíprocas, estabe-
ceito restrito de saúde, puramente biológico, que lece como condição de eficácia o feedback, isto é,
vê a saúde como simples ausência de enfermi- a comunicação entre o ambiente e o sistema.
dade, em direção a um conceito mais amplo que Desse modo, o Sistema de Saúde não pode
entende a saúde como um estado de equilíbrio prescindir de mecanismos que realizem essa tro-
com o meio, ou, nas palavras de Luz, "como um ca de informações, ou seja, de um eficiente
conceito que ultrapassa a meâicalização preven- processo de informação para garantir o
tiva ou curativa e inclui as condiçi1es de vida equilíbrio (homeostase) entre as partes do siste-
globais em uma sociedade" (4). ma e adaptá-lo às exigências da realidade. Ad-
A grande importância de se enfocarem as mite-se que os sistemas têm uma tendência a se
ações de saúde como sistema deriva do fato de adaptarem, a fim de alcançarem um equilfbrío
serem elas integradas à busca do objetivo co- interno face à mudança do ambiente (8). Contu-
mum, ou seja, a manutenção da saúde da popu-
lação.
3. MARTON, A.M. et alii. "Realização dos serviços
"Para evitar a tradicional justaposição e du- de saúde no Brasil". In: Revista de Administração
plicaçtIo de serviços que a divistIo estanque de Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
trabalho tem produzido na saúde, o Sistema Na- voI. 17, n" 3; jul/set., 1983, pp. 121-149.
cional de Saúde tenta prever a implantação de
serviços municipais, com ações médicas hierar- 4. LUZ, Madel Terezinha. As Instituiçé1es Médicas
quizadas, segundo graus de sofisticaçtIo, tecnolo- no Brast? Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 164.
gia, abrindo espaço para uma atenção médica 5. Idem, ibJdem, p. 163.
primária generalista, mais de acordo com as ne-
cessidades médicas imediatas de grande parte da 6. GENTI4E DE MELLO, Carlos. Saúde e assisthr-
população brasileira" (5). da médica no: Brasil. São Paulo, CEBES-HUCITEC,
Entretanto, as análises recentes sobre a 1977, p. 193.
atuação do Sistema Nacional de Saúde têm de- 7. Idem, ibidem, idem.
monstrado a fragilidade da administração
pública em coordenar efetivamente o sistema, 8. BERTALANFFY, Ludwig von. General systems
de modo a promover a utilização adequada dos theory. New York, George Brasilier, 1968.

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do não se podem desconhecer as dificuldades de De acordo com a hieraquia dos serviços, os


se concretizar a idéia de sistema "aberto". A pacientes hospitalizados são encaminhados
prática da análise de sistemas tem revelado uma àquele serviço.
certa irracionalidade (fechamento) porquanto, A associação das variáveis diagnóstico,
na maioria das vezes, o sistema se volta princi- exames realizados e tempo de permanência no
palmente para a administração de seus conflitos hospital com o elevado percentual de inter-
internos, mais do que para questões relaciona- nações na especialidade de clínica médica confir-
das às necessidades e demandas externas. mam que, na grande maioria dos casos, os pro-
Neste sentido, pode-se deduzir que a inter- blemas de saúde apresentados pelos pacientes
venção estatal deveria estimular o processo de entrevistados poderiam ser atendidos a nível de
informação entre a organização de saúde e a po- cuidado primário, não justificando a utilização
pulação, como forma de garantir a adequação dos serviços hospitalares.
dos serviços às necessidades da população, à Tais constatações evidenciam uma prática in-
medida que tome público os objetivos e o fun- correta de encaminhamento dos pacientes den-
cionamento do sistema, reorientando a deman- tro da rede de serviços e o mau funcionamento
da pelos serviços e favorecendo a fiscalização do sistema em relação aos objetivos de hierar-
dos mesmos. quização dos serviços em Belo Horizonte.
Tomando por suposto que a implantação e Considerando que entre os entrevistados a
operacionalizacão da organização sistêmica dos categoria previdenciária concentrou em sua
serviços de saúde é afetada pelas condições que a maioria pessoas de baixa renda, pode-se supor
população tem de se informar e de se expressar que, vivendo em condições precárias de mora-
dentro da rede de serviços, buscamos conhecer o dia e alimentação, essas pessoas submetam-se à
processo de informação na prática da organi- internação mesmo quando não necessitem fazer
zação dos serviços em Belo Horizonte. Acredita- uso de recursos mais complexos, com vistas aos
mos que as conclusões que podem ser tiradas a serviços de hospedagem e relativo conforto,
partir deste caso podem, em princípio, aplicar-se uma vez que, como beneficiárias do seguro so-
à situação dos serviços de saúde nas demais cial, têm garantido o acesso ao hospital.
regiões metropolitanas brasileiras. Tal suposição Por outro lado, dentre as múltiplas causas da
decorre do reconhecimento do fato de que o Sis- demanda por serviços hospitalares, inclui-se "0
tema Nacional de Saúde, com os vícios e vir- interesse de certos profissionais de saúde, espe-
tudes que o caracterizam, funciona basicamente cialmente no setor privado, em manter as estru-
do mesmo modo em todo o país. turas funcionando, não somente no que se re-
fere à capacidade instalada, como a equipamen-
RESULTADOS DA PESQUISA (9)
tos dispendiosos que necessitam ser utilizados
Para conhecer o processo de informação na para que possam ser economicamente viáveis.
prática da organização dos serviços de saúde Agrega-se a este quadro a remuneração diferen-
procuramos levantar tipos e agentes de infor- ciada que a tradição, os padrões culturais e a tec-
mações a que o paciente tem acesso no processo nificação da assistência à saúde impuseram en-
de atendimento na rede de prestação de serviços tre os cuidados curativos e aqueles que visam à
em Belo Horizonte. promoção da doença. Por outro lado as cir-
Os dados da pesquisa demonstraram que a cunstâncias que geram a necessidade de cuida-
grande maioria, isto é, 80% da amostra dos pa- dos curativos não raro trazem em si elementos
cientes atendidos na rede hospitalar de Belo de urgência e dramaticidade, o que faz com que
Horizonte são cobertos pela Previdência Social. estes sejam supervalorizados pelos agentes de
Coerentemente, os dados levantados junto às saúde, pelos familiares do doente e pela própria
Chefias dos 31 hospitais constantes da amostra sociedade" (10.
confirmam que a maioria dos hospitais aten- Segundo o mesmo autor, a esse elenco de
dem predominantemente os pacientes previ-
denciários. 9. Os dados da pesquisa se encontram na disser-
Uma vez constatado que a clientela atendida tação de mestrado Rede Hierarquizada de Saúde em
nos hospitais de Belo Horizonte é predominan- Belo Horizonte: mito e desinformação, apresentada
temente previdenciária de baixa renda, buscou- ao Departamento de Ciência Política da Faculdade de
se identificar as razões do atendimento hospita- Ciências Humanas da UFMG em novembro de 1986,
lar através das variáveis tempo de permanência, de autoria de Adelaide Maria Coelho Baêta.
diagnóstico, exames e tratamento a que os pa- 10. AZEVEDO, A. C. de. "Otimização das ações de
cientes se submetem. Esta análise leva em conta saúde a nível nacional". In: Revista de Administração
que o hospital está equipado preferencialmente Pública, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
para o atendimento de nível secundário. vol. 15, extra, 1981,p.59.

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condições, somam-se aspectos subjetivos que de- em vista o elevado custo do atendimento hos-
sempenham papel relevante na medida em que pitalar.
podem levar os indivíduos a simularem con- Segundo os dados da pesquisa, a prática de
dições patológicas, como a enfatizar sintomas, a hospitalização em Belo Horizonte tem-se reali-
fim de gozarem de pequenas gratificações so- zado indiferentemente ao objetivo de hierarqui-
ciais, psicológicas e familiares relacionadas com zação previsto pelo sistema.
a doença (dispensa de trabalho, comiseração e Essas considerações nos levam a questionar o
atenção especial de familiares e pessoal de papel da administração pública na organização
saúde, entre outras) (11). dos serviços de saúde. Ao contrário do que se
Como nos lembra Azevedo "a moderna me- propôs, a intervenção estatal no setor não tem
dicina supertecnificada impõe à sociedade con- conseguido a integração dos serviços ou a utili-
temporânea um ritmo de desenvolvimento de zação adequada dos mesmos, o que evidencia
serviços e paârõe» de utilização que estão mais que não tem logrado, portanto, corrigir as dis-
relacionados a necessidades intrínsecas do setor torções na aplicação dos recursos.
do que propriamente às carências reais da popu- Segundo Rodrigues Filho "a intervenção
lação" (12). governamental concentrou-se mais na admi-
Segundo Rodrigues Filho, "as hospitalizações nistração financeira das contribuições previ-
da população urbana no Brasil aumentaram de denciárias, pagas compulsoriamente pelos con-
uma em cada 18 pessoas, no início da década de tribuintes, as quais são em parte repassadas ar-
70, para uma em cada nove pessoas, no final da bitrariamente para os produtores dos serviços,
mesma década" (13). sem qualquer fiscalização por parte da socie-
Segundo esse autor, a expansão dos atendi- dade" (1).
mentos hospitalares não retrata forçosamente
necessidades da população, já que a utilização 11. Idem, ibidem.
hospitalar está associada à oferta de leitos, que
cresceu significativamente nos últimos anos, 12. Idem, ibidem, p. 59.
em decorrência da expansão do seguro social.
Vários estudos têm comprovado a grande in- 13. RODRIGUES FILHO, José. "O mercado de ser-
fluência da disponibilidade de leitos sobre a hos- viços médicos". In: Revista de Administração Pública,
Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, voI. 19, nll
pitalização. Shain & Roemer, nos EUA, con- 1, jan/mar., 1985, p. 101.
cluíram ~ue "Hospital beds that are built tend to
be used" ( ~) e Forsyth & Logan, na Inglaterra, de- 14. SHAIN,M. & ROEMER, M.I. "Hospital Costs
monstraram que "ihe number of beds is the Relate to the Supply of Beds". In: The Modem Hospi-
number aoailable" (15). tal, Chicago, Crin Communications, voI. 92, nll 4,
Também no Brasil, o estudo de Rodrigues 1959, pp. 71-73 apud RODRIGUES FILHO, José, "O
Filho (16), no Estado da Paraíba, constatou esta as- mercado de serviços médicos", op. cit., p.l02.
sociação de disponibilidade de leitos e utilização 15. FORSYTH, L. & LOGAN, R.F.L. The Demande
hospitalar. for MedicaI Care. London, Oxford University Press,
Outros estudos confirmam a existência de in- 1960 apud RODRIGUES FILHO, José, "O mercado de
ternações desnecessárias principalmente na área serviços médicos", op. cit., p. 102.
de clínica médica, "já que as internações de
clínica médica não são operacionalmente defini- 16. RODRIGUES FILHO, José. "O INAMPS e a
das, a exemplo das internações das clínicas 'eficiência' dos hospitais privados lucrativos". In: Re-
vista de Administração, São Paulo, Instituto de Ad-
cirúrgicas e obstétricas" (17). Forsyth & Logan,
ministração da Faculdade de Economia e Adminis-
citados por Rodrigues Filho, evidenciaram que tração da Universidade de São Paulo, vol, 18, nll 4,
1/4 dos pacientes de clínica médica hospita- 1983, pp. 93-97.
lizados na Infilaterra ocupavam leitos desneces-
sariamente (8); e nos EUA a porcentagem de 17. RODRIGUES FILHO, José. "O mercado de ser-
internações desnecessárias em 1978 (19) era de viços médicos". Op. cit., p. 102.
14,3%. Vale mencionar o que diz o médico
18. Idem, ibidem, idem.
Jayme Landmann: "Não há propriamente
escassez de capital para o setor saúde, mas mau 19. Conforme: Time. New York, June 12, 1978, p. 9.
uso" aO).

Em Belo Horizonte, o elevado percentual de 20. LANDMANN, Jayme. Evitando a saúde e pro-
internações no setor de clínica médica, com movendo a doença. Rio de Janeiro, Achiamé, 1982, p.
22.
diagnósticos relativamente simples, indica que a
organização dos serviços não tem alcançado os 21. RODRIGUES FILHO, José. "O mercado de ser-
objetivos de racionalização dos recursos, tendo viços médicos". Op. cit., p. 104.

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Não obstante o preço da hospitalização seja Pelos dados obtidos, 44,9% dos pacientes in-
-zero para o consumidor no ato do atendimento, ternados passaram antes por um posto de saúde
este se sente compelido ao consumo, uma vez ou consultório médico de onde foram encami-
que pagou antecipadamente, e pretende o me- nhados ao hospital pelo médico ou outro profis-
lhor atendimento. Não importa o preço; nem a sional de saúde.
sua real necessidade, e o melhor está sempre as- Entretanto, dentre as razões que os levaram
sociado ao mais sofisticado, pois também o pa- àquele hospital, 17,4% buscaram o hospital por
ciente não escapa ao fascínio pela tecnologia. indicação de amigos e parentes, 11,0% porque o
Observou-se ainda que os pacientes não ape- hospital tinha fama de confortável e ainda 9,7%
nas desconhecem as condições da hospitali- porque ficava próximo de sua residência. Um
zação, mas também nem sabem a quem recorrer pequeno número (8,4%) procurou o hospital
para obter informações, como constatado em por razões financeiras, provavelmente aqueles
39,47% dos casos. Enquanto 37,1% dos pacientes atendidos em hospitais públicos ou fi-
conhecem os serviços do hospital por experiên- lantrópicos.
cia própria, isto é, porque já estiveram interna- As razões apontadas nos sugerem que mes-
dos ali anteriormente, 21,9% consultaram ami- mo aqueles pacientes que passaram por outro
gos e parentes, nem sempre devidamente escla- serviço de saúde, pelo que a pesquisa eviden-
recidos para opinarem sobre o assunto. ciou, também não se acham preparados para es-
Diferentemente dos pacientes, as chefias dos clarecer e orientar corretamente outros pa-
hospitais, embora afirmem não saber a quem os cientes.
pacientes recorrem para obter informações, Por outro lado, na grande maioria dos casos,
apontam como a melhor fonte de informação os não se identificou, entre os papéis exigidos para
funcionários do hospital (83,3%) e, em segundo a internação, a guia de referência. Isto nos faz
lugar, o telefone do INAMPS (11,1 %). suspeitar de que os agentes de serviços de saúde
Não se constatou esforço algum por parte da não dão a devida importância ao sistema de re-
organização em prover a população de infor- ferência ou não são suficientemente informados
mações sobre o funcionamento do sistema. Há sobre a hierarquização dos serviços.
uma despreocupação evidente da organização Nem mesmo o tipo de serviço que o hospital
em orientar o paciente quanto à utilização dos oferece é de conhecimento da maioria (61,3%).
serviços. O paciente parece perceber esta situação Dentre os 38,7% que afirmam ter algum conhe-
e reage ignorando a organização como fonte de cimento sobre o hospital, 31,1 % já estiveram in-
informação. ternados ali. Menos da metade dos pacientes ti-
Indagados como fazem normalmente para nha conhecimento da competência profissional
obter informação sobre os serviços de saúde, os do pessoal do hospital e das condições de atendi-
pacientes apontaram os amigos e parentes como mento.
os mais consultados (28,4%); outra fonte de in- A falta de orientação e o desconhecimento
formação mais freqüente foi o próprio serviço tanto dos agentes quanto dos usuários geram
de saúde (27,1 %). Dos pesquisados, 16,8% não contradições e obstaculizam inevitavelmente a
souberam responder à indagação e apenas 6,1% adequação dos recursos e o funcionamento do
procuraram simplesmente o hospital mais sistema.
próximo de seu domicílio. Se a informação é imprescindível ao bom
O que se depreende deste quadro é a indife- funcionamento da organização, ela é também
rença generalizada com relação à transferência relevante para o usuário na sua condição de en-
de dados sobre o sistema para o usuário. Mesmo fermo. Para Heller (22), o paciente carece sobre
nos casos em que o paciente passou por outros tudo de confiança, mais do que de piedade. Ele
serviços antes de chegar ao hospital, não há evi- precisa ser informado e motivado sobre o cuida-
dência de que tenha recebido esclarecimento ou do que deve receber. "Isto lhe dará confiança du-
orientação sobre os serviços. . rante o tratamento e ele cuidará de segui-lo da
Sabendo-se que a organização sistêmica dos melhor maneira" (23).
serviços de saúde estabelece que o paciente, ao Pode-se concluir, portanto, que conhecer o
dar entrada no sistema, passa por um posto de funcionamento da rede de serviços é impres-
saúde ou ambulatório e só então deve ser enca-
minhado aos níveis superiores, através do-
22. HELLER, John R. "What does the patient un-
processo de referência, procuramos identificar
derstand as Comprehensive Health Care?" In: Ar-
quem encaminhou o paciente ao hospital, quais chives 01 Physical Medicine and Rehabilitation. New
as razões que o levaram àquele hospital e que York, volSO, oct., 1969.
informações o paciente obteve ao se dirigir a tais
serviços. 23. Idem, ibidem, pp. 563-565.

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cindível para atuar e caminhar dentro dela. E implantação do sistema e a conseqüente utili-
até mesmo por uma questão de justiça e solida- zação adequada dos recursos.
riedade, a informação deve ser divulgada.
A regionalização é outra categoria importante CONCLUSÃO
do modelo de organização sistêmica dos ser-
viços de saúde, do ponto de vista da racionali- Pode-se concluir, pelos dados da pesquisa que
zação e distribuição de recursos. Interfere direta- fundamentou este trabalho, que realmente
mente sobre a sistemática da demanda, o que ocorre em Belo Horizonte uma distorção da de-
procuramos verificar ao reconstruir a trajetória manda com relação aos objetivos de hierarqui-
do paciente. Tomou-se importante, por isso, es- zação e regionalização.
tabelecer as relações entre a distribuição espacial Comprovou-se que o sistema não provê a p0-
dos serviços (no caso, dos hospitais) e o domi- pulação de dados necessários à utilização ade-
cílio do paciente atendido, além da relação quada dos serviços e nem mesmo os agentes de
número de hospitais por população regional. saúde estão preparados para a função de infor-
Os dados da pesquisa refletiram a concen- mar e divulgar as normas de funcionamento da
tração de hospitais na Região Centro de Belo rede hierarquizada.
Horizonte, com excessiva concentração do aten- Ora, se àqueles' a quem mais interessa o fun-
dimento hospitalar nessa região. cionamento correto do sistema não é dado co-
É a Região Central da cidade que absorve a nhecer e, conseqüentemente, avaliar a prática da
maior demanda, pois aí se localizam os hospi- organização, que garantias existem para a im-
tais mais altamente especializados; as demais plantação do mesmo?
regiões, embora contem também com número A superação da atual forma de organização
de hospitais superior ao padrão teórico, têm de- descoordenada por outra que institua uma ad-
manda bem inferior. ministração pública sobre todas as instituições,
Em decorrência da prática da referência e con- direta ou indiretamente relacionadas ao setor
tra referência ser pouco freqüente em Belo Hori- público e com todas as suas atividades integra-
zonte, o previdenciário se dirige preferencial- das no sentido de dar respostas, de forma orga-
. mente aos níveis secundários de atendimento, o nizada, às necessidades prioritárias da popu-
que evidentemente desestimula a sistemati- lação, 'requer, entre outras medidas, a partici-
zação da demanda. pação popular e a preparação adequada dos re-
Considerando que a regionalização implica a cursos humanos para o desempenho de suas
descentralização do atendimento de forma hie- funções na condução do processo.
rarquizada, apesar de a distribuição espacial dos Tudo isso só será possível se se fizer um es-
serviços hospitalares em Belo Horizonte ser re- forço de homogeneízação do entendimento cor-
lativamente descentralizada, não se tem aí atin- reto do significado da proposta e sua difusão.
gido os objetivos da regionalização. Fica claro, portanto, que qualquer mudança im-
A efetiva descentralização do atendimento plicará necessariamente o esclarecimento não só
deverá implicar. maiores esclarecimentos aos dos profissionais de saúde, mas também e prin-
profissionais de saúde e à população sobre as cipalmente da população.
condições do atendimento, dando ênfase à O reconhecimento da saúde como direito de
prática da referência. cidadania e dever do Estado implica, na prática,
Se é certo que uma proposta de regionalização reconhecer o seu caráter de serviço público e o
e hierarquização só se pode realizar quando to- papel do Estado' no exercício da administração
dos os níveis de atenção estiverem intima- pública.
mente relacionados, é evidente que a ausência Isso significa que caberá ao Estado atuar sobre
do processo de informação, ainda que restrito à o Sistema Nacional de Saúde - incluindo os se-
prática de encaminhamento, toma o sistema, no tores filantrópiços e privados - de modo a reeo-
mínimo, instável. locá-lo no exercício da substancialidade de seus
A população não é informada sobre as con- objetivos, a saber, a melhoria das condições sa-
dições de funcionamento do sistema. Não se nitárias da população.
constataram canais formais de informação sobre Há que se considerar que a reformulação do
a utilização dos serviços para os usuários. Sistema Nacional de Saúde, conforme proposta
Ao desinteresse e despreparo dos agentes pela 81 Conferência Nacional de Saúde, requer
quanto às normas de funcionamento da rede não só a reordenação de um sistema plural, ha-
em Belo Horizonte, junta-se o descompromisso bitado por inúmeros conflitos de interesses e
da intervenção estatal com as reais necessidades por diferenciadas demandas de necessidades,
da população e a ausência de informações que mas também a ação no sentido de redírecíonã-lo
facilitem a trajetória do paciente concretizando a para o cumprimento de suas reais finalidades, o

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o ARTIGO

que só será possível com o apoio e a participação assume relevância estratégica na reformulação
consciente da população. do Sistema Nacional de Saúde.
De acordo com Paim, "a transparência dos Em primeiro lugar, porque um fluxo de in-
aparelhos do Estado à informação do público, o formações corretas entre as várias partes da or-
conhecimento público dos serviços estatais e a ganização sistêmica é condição de eficácia do sis-
administração pública das instituições (mesmo tema; e em segundo lugar, porque somente a
privadas) é que poderão contracenar com os ris- partir do conhecimento sobre a utilização ade-
cos do 'estatismo autoritário' ou da' democracia quada dos serviços poderá a população dirigir-se
autoritária'" (24). à organização de forma consciente e exercer o
Deve-se guardar a clareza de que o processo seu direito à assistência médica para fazer rei-
de reformulação e redirecionamento do sistema, vindicações específicas.
tendo em vista as reais necessidades da Entretanto, o caráter mais importante do
população, é um processo de construção social, processo de informação é de ser instrumento de
de luta política e que requer, por isso mesmo, conscientização sobre a realidade de saúde, capaz
a definição de uma estratégia de implemen- de desenvolver uma opinião pública com vistas
tação de projetos com um sentido pré- à superação da atual situação sanitária da socie-
estabelecido t25). dade brasileira, em direção ao conceito ampliado
Como bem nos lembra esse autor, "agir es- de saúde.
trategicamente exige o abandono de uma atitude Nunca é demais reafirmar a proposta do dis-
puramente normativa que pressupõe que, pelos curso inaugural da Organização Mundial de
conteúdos de racionalidade ou de justiça social Saúde, em 1945: "Uma opinião pública bem in-
que uma proposta de reformulação contenha, formada e uma cooperação ativa por parte do
ela garanta 'a priori' sua viabilização" (26). público são de importância capital para a me-
Para fugir a uma posição ingênua deve-se ter lhoria de saúde do povo" (28).
claro que, qualquer proposta de mudança, por Torna-se, pois, imprescindível que os pro-
mais democrática que seja, sofrerá antagonis- fissionais e agentes de saúde sejam devida-
mos de grupos que terão seus interesses contra- mente conscientizados da importância da infor-
riados. mação correta e atualizada para a eficácia do sis-
Será, pois, preciso usar a imaginação política, tema.
alimentada pela participação popular no sentido Para garantir a qualidade da informação sobre
de "um movimento que simultaneamente acu- os serviços há que se preparar os agentes com
mule poder e, gradativamente, permita a reali- relação ao funcionamento e aos objetivos do sis-
zação de transformações democratizadoras que tema.
irão colocar a saúde como direito de cidadania e Para que a população tenha acesso ao conhe-
dever do Estado" (27). cimento necessário para a utilização adequada
Nesse sentido, ao questionar a operacionali- dos serviços de saúde, a comunicação deve se
zação do SNS - Sistema Nacional de Saúde- pautar pela clareza e objetividade.
acredita-se que precedendo as mudanças estru- Os postos de saúde devem ser também postos
turais há uma série de acertos internos à organi- de informação capacitados a orientar e esclarecer
zação dos serviços que precisam ser tentados. a população sobre os serviços. O
São muitas vezes as providências de cunho ad-
ministrativo destinadas a aumentar a eficiência 24. PAIM, Jairnilson Silva. Direito t) Saúde, Cida-
e a eficácia na utilização dos recursos, através de dania e Estado. 8· Confer2ncia Nacional de Saúde, Rio
uma comunicação mais estreita entre o sistema de Janeiro, 1986, p. 25 (mimeo).
e o usuário, tendo em vista o papel do paciente
na determinação de sua trajetória dentro da rede 25. VILLAÇA MENDES, Eugênio. Reordenamento
de prestação de serviços de assistência médica do Sistema Nacional de Saúde. 8· Conierência Na-
como fator de melhor atendimento às necessi- cional de Saúde, Rio de Janeiro, 1986 (mimeo).
dades da população.
Para adquirir a consciência de seu direito à 26. Idem, ibidem, p. 35.
saúde, a população brasileira deverá exercitar
uma prática consciente na utilização dos ser- 27. Idem, ibidem, p. 36.
viços de assistência médica, de tal modo que a
consciência da prática se desenvolva no sentido 28. ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE
de instrumentalizar a praxis política renovadora SAÚDE. Discossiones Técnicas de la XXII Reunión del
indispensável à conquista dos direitos sociais. Consejo Directivo de la O.P.S. Boletín de la Oficina
Isto posto, convém ressaltar que a informação Sanitaria Panamericana, Washington, 1974, p. 01.

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