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Opinião

Necessidades em saúde:
uma abordagem
operacional para o nível
dos serviços de saúde
Francisco Carlos Cardoso de Campos*
“Chico Poté”

I. Introdução “necessidades de saúde” como um dos critérios


A maioria das pessoas tenderia a con- para o rateio dos recursos federais para os esta-
cordar, exceto aqueles movidos por motiva- dos e municípios, bem como para a distribuição
ções conscientemente deletérias ao interesse dos recursos estaduais para os municípios. O
público, que os serviços de saúde devam ser parágrafo primeiro do seu artigo 36 define que
organizados para atender às necessidades de os processos de planejamento e orçamento das
saúde da população. Se, por um lado, há uma regiões de saúde deverão se orientar pelas “ne-
concordância geral em torno desse deside- cessidades de saúde” da população, dando uma
rato, grau menor de consenso existe sobre o pista de que essas deverão tomar como base o
que essa expressão possa vir a significar. Seu “perfil epidemiológico, demográfico e socioeco-
caráter polissêmico é evidente, servindo aos nômico”. Em nenhum momento, no entanto,
mais diversos discursos, justificando as mais nossos textos legais definem o que entendem
diversas estratégias. por necessidade de saúde.
Cada vez mais a expressão frequenta o dis- Muitas vezes, ao defender que o sistema de
curso dos dirigentes do setor saúde e mesmo os saúde e seu planejamento devam ser orientados
conteúdos da legislação sanitária. Nesse sentido, o pelas necessidades de saúde, os atores intencio-
recente Decreto Nº 7508, de 28/06/2011, que regu- nam apenas expressar seu posicionamento po-
lamenta a Lei 8080, em seu artigo 36 º, prescreve lítico de ele não deva ser organizado pela lógica
que o Contrato Organizativo da Ação Pública de do mercado e, sim, dirigido pela intervenção
Saúde (COAP), instrumento formal que estabelece racional do Estado. O contrário da necessidade
os compromissos entre os gestores, conterá, entre seria a orientação do sistema para o lucro e para
suas disposições essenciais, a “identificação das a acumulação capitalista. O enunciado assume,
necessidades de saúde locais e regionais”. Dispõe assim, o caráter de uma senha subliminar, que
também que o “Mapa da Saúde será utilizado na classifica imediatamente quem a profere como
* Médico Sanita-
rista. Pesquisador identificação das necessidades de saúde e orienta- um defensor da intervenção estatal no setor
do Núcleo de rá o planejamento integrado dos entes federativos, saúde, sem obrigatoriamente querer sugerir
Educação em
Saúde Coletiva contribuindo para o estabelecimento de metas de que as ditas necessidades devam ser, ou possam
(Nescon) da Uni- saúde” (BRASIL, 2011). ser, de alguma maneira, quantificadas.
versidade Federal
de Minas Gerais Mais recentemente, a Lei Complementar A polissemia e a complexidade desse
(UFMG). nº 141, de 13 de janeiro de 2012, considera as conceito nos obriga, portanto, a procurar de-
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consensus | quarto trimestre 2013

fini-lo minimamente e propor aproximações o campo da intervenção se restringe a planos


operacionais que permitam utilizá-lo na prá- muito mais desagregados da realidade social
tica do planejamento e da programação dos e, mais ainda, no espaço bem mais restrito de
serviços de saúde. intervenção das organizações do setor saúde.

II. As necessidades em saúde numa III. Necessidades em saúde e


perspectiva ampliada necessidades de serviços de saúde
A saúde, se reconhecida numa perspecti- Para que se possa utilizar a noção de neces-
va ampla, é a resultante de múltiplos determi- sidade em saúde no planejamento e na progra-
nantes. Esses se confundem com as condições mação das ações e serviços de saúde há que se
necessárias, não apenas para a vida humana retirá-la desse plano genérico das necessidades
em geral, mas para expressar uma “boa vida”, humanas em geral para um contexto mais pró-
no sentido de uma existência que permita o ximo ao funcionamento real das organizações
exercício pleno das potencialidades corporais que compõem o setor saúde. Deve-se reconhecer
e sociais do ser humano. Resulta, no cálculo também que muitas políticas e as ações decor-
das condições que são necessárias à sua pro- rentes necessárias para interferir na complexa
dução e reprodução, num conjunto extrema- cadeia de determinantes sociais e econômicos
mente abrangente de condições econômicas que definem os níveis de saúde de uma coletivi-
e sociais que abarcam a maioria das necessi- dade (e talvez as mais importantes) estão sob a
dades humanas em geral. Concordando com responsabilidade de outros setores. Da comple-
John Wright, importante autor no campo da xidade do objeto saúde-doença (e do bem-estar
estimativa de necessidades em saúde, em geral) e da multiplicidade das intervenções
as necessidades de saúde incorporam amplos e atores envolvidos no enfrentamento de seus
determinantes de saúde sociais e ambientais, determinantes decorre a exigência de uma bem
como privações, moradia, alimentação, educa- articulada ( e diga-se de passagem, muito difícil
ção, emprego. Essa definição ampliada permite- de ocorrer na prática das instituições) ação in-
-nos olhar além dos confins do modelo médico
tersetorial para se conseguir mudanças signifi-
baseado em serviços de saúde, para amplas in-
fluências na saúde. As necessidades de saúde de cativas em seu status.
uma população estarão constantemente cam- Uma abordagem operacional do tema
biando e muitas não poderão ser amenizadas das necessidades em saúde obriga, portanto,
por intervenções médicas (WRIGHT, J. et all., uma redução de seu escopo, delimitando-se
1998, p. 1311).
do conjunto amplo e difuso das necessidades
Se, por um lado, compartilhamos total- humanas, aquelas que podem ser modifica-
mente essa concepção da determinação social das por cuidados de saúde (promoção da saú-
do processo saúde doença e a múltipla e com- de, prevenção de doenças, processos diagnós-
plexa interação entre os diversos determinan- ticos e terapêuticos, reabilitação, cuidados
tes, cada vez mais referendada por evidências paliativos etc.) e realizadas por serviços de
de cunho empírico (Marmot et al., 2003), por saúde (WRIGHT, J. et all., 1998, p.1311).
outro temos que constatar que as mudanças Passa-se, então, a tratar aqui, exclusiva-
necessárias à sua mudança extrapolam em mente de necessidades de serviços de saúde.
muito o setor saúde. Tal enfoque pode apoiar Mesmo esse escopo mais limitado engloba
o convencimento pelas grandes mudanças es- um amplo conjunto de questões e os pro-
truturais necessárias para se alcançar um mun- fissionais de saúde, gestores e planejadores
do mais saudável, mas informa pouco quando costumam delimitá-lo de forma diferente do
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Opinião

que seriam as expectativas das pessoas que re- O desafio para os formuladores de políticas
correm a esses serviços buscando apoio para e dos gestores deveria ser conhecer com maior
resolver uma extensa gama de problemas. Po- profundidades esses dois conjuntos e envidar
der-se-ia delimitar, grosseiramente, dois gran- esforços comunicacionais e de negociação para
des conjuntos de necessidades de serviços de aproximar e ampliar a margem de coincidência
saúde, segundo os atores que os formulem: de ambos. A fixação dos perfis de oferta de servi-
– necessidades de serviços de saúde defi- ços necessários, não somente do ponto de vista
nidos pelos usuários (por indivíduos, grupos quantitativo global, mas adequados à extrema
sociais, ou recortes sociais mais amplos); variabilidade das condições de saúde de cada
– necessidades de serviços de saúde defi- indivíduo, oferta essa que deve ser oportuna do
nidos tecnicamente com base no saber de es- ponto de vista do acesso geográfico, temporal,
pecialistas da área de saúde e em evidências econômico - custos de deslocamento, pagamen-
científicas com graus variados de consistên- to por serviços etc. - bem como da suficiência
cia e robustez (epidemiólogos, planejadores, quantitativa e qualitativa das ações, representa
profissionais de saúde etc.). um grande desafio colocados para todos os sis-
Esses dois conjuntos não coincidem necessa- temas de saúde universais. Outra crescente pre-
riamente, podendo haver necessidades dos usuá- ocupação tem sido dada ao superdiagnóstico
rios que não encontram respaldo em evidências (overdiagnosis) e ao supertratamento (overtre-
científicas, ou mesmo o contrário: necessidades atment) de diversas condições patológicas, com
percebidas pelos especialistas, que não correspon- consequências geralmente danosas para a saú-
dem às percepções subjetivas individuais ou co- de das pessoas, quando os nebulosos patamares
letivas dos usuários. Para superar essa dicotomia, das necessidades são extrapolados.
muitas iniciativas buscam envolver a pluralidade
dos atores interessados nas questões, estruturando- IV. A dimensão tecnológica das
-se espaços públicos democráticos para a busca de necessidades
consensos técnicos e políticos em torno do quê e de As necessidade de serviços de saúde
quanto o serviço de saúde deva produzir. Roteiros pressupõe a existência de uma determinada
e manuais com esse tipo de enfoque tem sido utili- tecnologia ou conjunto de tecnologias que
zados pelo Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra historicamente se mostraram efetivas para
-NHS (CAVANAGH, 2005). resolver certos problemas de saúde a um cus-
Um complicador na definição das necessi- to socialmente tolerável.
dades de serviços é que o nível de certeza esta- À incorporação de novas tecnologias, cor-
tística exigido como evidência suficiente para respondem novas necessidades de serviços,
legitimar cientificamente a efetividade das in- implicando em custos variáveis aos governos,
tervenções costuma ser fixado em patamares empresas ou famílias, sobrecarregando seus or-
muito elevados, rejeitando assim muitas ações çamentos. Isso obriga que devam ser avaliadas
que poderiam potencialmente beneficiar algu- criteriosamente para aquilatar os seus poten-
mas, ou mesmo, muitas pessoas. Para complicar ciais benefícios em comparação com as tecnolo-
ainda mais o cenário lembre-se dos poderosos gias usuais, já disponíveis nos serviços de saúde.
interesses econômicos envolvidos na introdu- Além disso, os benefícios produzidos devem ser
ção de novas tecnologias no campo da saúde e compatíveis com o seu custo, isto é, procura-se
de suas tentativas, nem sempre respaldadas em medir seu custo-benefício.
princípios éticos amplamente aceitos, de bus- Além da introdução de novas tecnolo-
car a legitimação científica de seus argumentos. gias, a mudança de concepções sociais sobre
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a saúde e o uso social do corpo induz a emer- percepções corporais culturalmente determina-
gência de novas necessidades. Por exemplo, a das, interdições religiosas, tabus etc.); e mesmo
adoção de anestesia peridural no momento do naturais (barreiras geográficas, por exemplo).
parto tornou-se corriqueira, à medida em que Os recursos de saúde, por serem escassos
as mulheres passaram a rejeitar a dor durante por definição, estão localizados em determi-
o procedimento como uma fatalidade e uma nados pontos do território que obrigam a
exigência de mortificação de cunho religioso deslocamentos muitas vezes longos e demo-
(“parirás com dor”, diz um texto sagrado). rados, que implicam em custos significativos
para a maioria das pessoas, resultando em
V. Necessidades, demanda e oferta em cálculos complexos entre a adoção das esco-
saúde: o difícil encontro dos desejos lhas possíveis.
dos indivíduos e das recomendações
“A demanda é aquela os pacientes procuram,
dos especialistas com a capacidade de são as necessidades que a maioria dos médicos
provimento pelos sistemas de saúde encontram. Os clínicos gerais têm um papel
fundamental como gatekeepers (porteiros) no
O esquema gráfico apresentado abaixo, controle dessa demanda, e as listas de espera
elaborado por Andrew Stevens e colaboradores, tornam-se um marcador e uma influência sobre
pretende mostrar as interações entre necessida- essa demanda. A demanda dos pacientes para
des, demanda e oferta de serviços de saúde. um serviço pode depender das características
Nesse esquema, constata-se que apenas do paciente ou em interesses da mídia no ser-
viço. A procura também pode ser induzida pela
uma parcela das necessidades se expressaria na
oferta: a variação geográfica nas taxas de inter-
forma de demanda, isto é, na procura objetiva nações hospitalares é explicada mais pela oferta
por serviços de saúde. Entre a percepção de um de leitos hospitalares do que pelos indicadores
problema de saúde por parte de uma pessoa e de mortalidade, as taxas de clínicos gerais de
a efetiva procura por um serviço se antepõem referência deve mais às características dos mé-
dicos do que para a saúde de suas populações
vários obstáculos ou “barreiras ao acesso”. Essas
(WRIGHT, J. et all., p. 1311).”
podem ser de diversas naturezas: econômicas
(custo de deslocamento, preços a serem pagos Apenas uma parte da demanda encon-
pelos serviços, informações limitadas quanto traria uma oferta de serviços que a atenda a
aos recursos existentes e formas de alcança-los); contento, tanto do ponto de vista da percep-
culturais (procura de especialistas de cura tra- ção dos pacientes, quanto dos profissionais
dicionais e respectivos itinerários terapêuticos; de saúde ou dos gestores do sistema. Essa de-

Atual agenda de Determinantes


pesquisas culturais e éticos
Necessidade

Influência dos Pressão política e Fonte: Stevens


A. Referty J. eds.
médicos pública Health care needs
assessment – the
epidemiologically
Influência social Demanda Oferta based needs as-
e educacional sessment reviews.
Padrões históricos, Oxford: Radcliffe
Medical Press,
Meios de comunicação inércia, tendências 1994.

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Opinião

manda não atendida é chamada, usualmente, de oferta pois seu crescimento exige altos in-
de demanda reprimida. vestimentos em infraestrutura , relativamen-
Uma característica da oferta de serviços te lentas obras físicas, tempos prolongados de
de saúde é a chamada Lei de Roemer, nome- aquisição de equipamentos e insumos, capa-
ada em homenagem a Milton Roemer, pro- citação de profissionais especialistas etc.
fessor da Universidade da Califórnia em Los Cada tipo de serviço, portanto, apresenta
Angeles, pioneiro nos estudos de economia padrões de oferta e demanda muito especiais,
da saúde, para quem “um novo serviço de que tem que ser conhecidos em detalhe para
saúde tem a capacidade de gerar sua própria o seu planejamento, introduzindo graus de
demanda, mesmo em mercados saturados”( complexidade muito elevados em compara-
DEL NERO, C. R., 2002, p.11). ção com outros tipos de serviços.
Essa propriedade dos serviços de saúde
de suscitar sua própria demanda esbarra, no VI. Necessidades em saúde e critérios de
entanto, e felizmente, em limitações diversas justiça
de recursos e de preferências das pessoas, que
optam por fazer outra coisa do que peregrinar O cálculo estimativo das necessidades
por serviços de saúde superlotados, que seria em saúde remete, inevitavelmente, a ques-
o quadro esperado em um sistema com retro- tões de âmbito filosófico, tratadas pelos diver-
alimentação positiva. sos enfoques da filosofia moral, nos quais se
Características inerentes aos serviços de intenta basear os argumentos subjacentes às
saúde também limitam sua busca e oferta escolhas distributivas em critérios de justiça.
desenfreadas. Um conceito importante para Embora essas diversas abordagens filosó-
entender essas restrições é o de elasticidade. ficas estejam longe de fundamentar escolhas
Teríamos serviços com alta elasticidade de de- num nível tão desagregado como o que se tra-
manda se essa demanda pudesse oscilar larga- balha no campo das estimativas de saúde, os
mente em resposta a um estímulo: por exem- grandes delineamentos teóricos podem orien-
plo, a procura por um determinado exame ou tar de alguma forma os processos da constru-
terapia como resposta a uma matéria jorna- ção das suas proposições operacionais.
lística inserida num programa de TV de alta Johh Rawls, um dos teóricos da filosofia
audiência ou a procura por cirurgias plásticas moral e política contemporâneos, é uma das
estéticas estimuladas pelo merchandising in- referências obrigatórias nesse campo. Em sua
serido em uma novela. Ao contrário, no caso teoria da justiça, construída em bases exclusi-
das cirurgias para apendicite aguda, observa- vamente racionais e de inspiração assumida-
-se grande estabilidade estatística, oscilando mente contratualista, conclui que as socieda-
apenas nos limites da variação probabilística, des liberais democráticas deveriam garantir
não respondendo a estímulos de preço ou de um patamar igualitário de bens primários,
uma oferta disseminada no território. um conjunto de bens e serviços nos quais es-
Pelo lado da oferta, teríamos alta elasti- tariam incluídos os serviços de saúde. A esse
cidade quando modificações na disponibili- princípio da igualdade, agrega um outro prin-
dade de serviços podem ser feitas em curtos cipio, o da desigualdade, segundo o qual um
períodos de tempo, como é o caso de um blo- indivíduo somente poderia auferir uma maior
queio vacinal que pode ser desencadeado ra- quantidade de bens ou serviços se esses fossem
pidamente para conter um surto de sarampo. destinados a suprir uma desvantagem ou uma
O comportamento da oferta de leitos de UTI, posição desfavorável em relação aos demais.
por outro lado, apresenta baixa elasticidade Esse último princípio frequentemente
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alicerça o conceito de equidade, tão utiliza- conflitantes em saúde. Controle por razoabi-
do na proposição das políticas de saúde, que lidade parece ser a resposta usada por Daniels
para enfrentar a quarta questão não resolvida
busca justificar as diferenças de alocação com
de racionamento — o problema da democracia,
base em critério de justiça distributiva. o qual questiona “quanto peso deve ser dado a
Amartya Sen vai argumentar pela insufi- julgamentos baseados teoricamente ou na in-
ciência no foco de Rawls nos bens primários, tuição em oposição a preferências expressas”. O
fundando sua teoria no que chama de capaci- processo deliberativo de controle por razoabili-
dade oferece uma solução parcial ao problema
dades básicas e funcionamentos. Os indivídu-
ao invocar condições de publicidade, relevân-
os teriam diferentes condições de aproveitar cia, instâncias de revisão e recurso, e regulação,
os bens ou serviços a eles alocados, segundo para tomada de decisão que seja convincente ao
suas capacidades para transformar esses re- desafio do desacordo razoável entre pessoas im-
cursos em realizações concretas que os bene- parciais” (BENEDICT, 2010, p.311)
ficiariam efetivamente. Esses procedimentos para o controle da
“É possível argumentar que a igualdade na razoabilidade indicam uma via de constru-
realização de certas ‘capacidades básicas’ pro- ção de arenas democráticas para a criação de
porciona um enfoque especialmente plausível consensos sobre as necessidades de saúde. Em
para o igualitarismo na presença das privações
elementares. O termo ‘capacidades básicas’ usa-
pleno acordo com esse ditame processual,
do por Sen (1980) teria a finalidade de separar a reconhece-se que o estabelecimento de esti-
habilidade para satisfazer certos funcionamen- mativas de necessidades em saúde em uma
tos crucialmente importantes até certos níveis sociedade democrática será obrigatoriamen-
adequadamente mínimos.” (SEN, 1998, 67)
te um processo político envolvendo os atores
Para que alguém se beneficie de uma interessados em amplos processos de criação
bicicleta para melhorar suas capacidades de de consenso sobre os patamares de oferta re-
escolha geradas pelo transporte mais rápido, queridos e as circunstâncias de sua flexibili-
seria, obviamente, necessário saber andar de zação e adaptação aos contextos geográficos e
bicicleta. Do contrário, o meio de transporte sócio-sanitários específicos.
lhe seria de muito pouca valia.
O enfoque procedimental de Norman VII. Estudos de utilização de serviços de
Daniels se dirige especialmente para as ques- saúde
tões suscitadas pelos serviços de saúde. Con-
Como foi dito anteriormente, as necessi-
cordando com o conceito de bens primários e
dades de serviços de saúde devem ser diferen-
com o princípio da igualdade de oportunida-
ciadas das expectativas ou desejos individuais
des de Rawls, esse autor procura enfrentar os
de utilização de serviços de saúde. O estudo
problemas de racionamento dos serviços de
de utilização de serviços de saúde denomina-
saúde, quando pessoas razoáveis podem dis-
do de ecologia do cuidado em saúde promovi-
cordar sobre a resolução alocativa de deman-
do por Kerr L. White e colaboradores em 1961,
das conflitantes em saúde, situação muito
nos Estados Unidos, e os que se seguiram apli-
frequente nas polêmicas sobre critérios distri-
cando o mesmo enfoque em outros contex-
butivos entre áreas assistenciais ou alternati-
tos, mostram um quadro instigante. Apesar
vas de investimento no sistema de saúde:
de pequenas diferenças nas questões formu-
“Chamado de controle pela razoabilidade, essa ladas e da diversidade geográfica dos países, a
estrutura teórica faz uso do processo justo para
preencher as lacunas deixadas pelo princípio de
quantidade de pessoas que reportaram algum
justiça devido à realidade que pessoas razoáveis tipo de sintoma no período de um mês e que
discordarão sobre o relativo peso de demandas consideraram a possibilidade de procurar um
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Opinião

serviço de saúde e aquelas que, efetivamente, variações entre as situações, e entre 12,0 a 19,2
o procuraram, apresenta um padrão estrutu- por cento das pessoas foram admitidos em
ralmente muito semelhante. Pronto Socorros.
Assim, entre 56,7 e 90,1% dos entrevis- Apenas para efeito de comparação, o parâ-
tados reportaram sintomas ou enfermidades metro para estimativa de necessidade de con-
no mês, mas menos da metade consideraram sultas médicas de urgência proposto pela Por-
a possibilidade de procurar cuidados médicos taria 1101 é de 15% das consultas médicas. Isso
(EUA, 2001). Aproximadamente entre 1/4 a 1/3 resultaria, aplicando-o às consultas médicas
das pessoas chegaram a procurar um médico esperadas (2 a 3 consultas médicas/ano), que en-
ou serviço de cuidados primários. Um pouco tre 30 a 45% das pessoas procurariam consultas
menos de 1/10 procurou cuidados especiali- de urgência, mais do dobro do observado nos
zados (isso em apenas mês!). Em termos per- países pesquisados. Isso talvez reflita o modelo
centuais e projetando os dados para o período centrado nos atendimentos de urgência ainda
de um ano, entre 9,6 a 16,8 por cento foram marcante no sistema de saúde brasileiro.
internados em algum hospital, com grandes A utilização de serviços hospitalares se

Utilização de serviços em um mês, em 1000 hab. Hong Kong EUA EUA Japão Noruega
(2005) (1961) (2001) (2005) (2012)

reportaram sintomas 567 750 800 862 901

consideraram possibilidade de procurar cuidado médico 512 327

procuraram cuidados primários 372 250 307 214

visitaram um consultório médico 217 232

procuraram cuidados especializados 68 88 91

visitaram um médico medicina chinesa 54 65 49 55

visitaram um serviço de urgência 16 13 10

foram hospitalizados num hospital comunitário 7 9 8 7 14

14 3

foram hospitalizados em centro médico terciário 1 1 1

visitaram um fisioterapeuta 141

visitaram um dentista 115

Taxas

Internação hospitalar (por ano, por 100 hab.) 9,6 12,0 10,8 8,4 16,8

Admissão em Pronto Socorro (por ano, por 100 hab.) 19,2 15,6 12,0

Procuraram cuidados primários (por ano, por 100 hab.) 44,6 30,0 26,0 36,8

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mostrou bem mais elevada que o observado portante referencial para o estudo de necessi-
no SUS, que apresenta uma concentração per dades em saúde. Isso porque, apesar de toda a
capita média próxima a 6% ao ano. complexidade dos fenômenos envolvidos, são
Na tabela ao lado, procurou-se resumir expressão dessas necessidades, manifestando-se
os achados desses estudos de “ecologia do cui- de forma diversa segundo os padrões culturais,
dado”. As cores foram usadas para vincular econômicos e de oferta de serviços existentes.
as questões formuladas nos estudos aos res- São também importantes meios de aferir as de-
pectivos resultados e a construção das duas sigualdades, e mesmo as iniquidades, no acesso
colunas contendo descrições de “utilização aos serviços entre os grupos sociais.
de serviços em um mês, em 1000 hab.” tentou
abranger, com uma tradução livre dos termos VIII. Estimativas de necessidade: uma
utilizados nas pesquisas, as nuances contida proposição sintética
nas questões formuladas.
Aproximações às necessidades de serviços
Apesar dos inúmeros vieses que se possa
de saúde podem ser realizadas a partir de vários
atribuir aos estudos de utilização, são um im-
enfoques. Propõe-se aqui uma metodologia que
foi desenvolvida e encontra-se em constante
Utilização de serviços em um mês, em 1000 hab. revisão e adaptação no processo de revisão dos
parâmetros da Portaria MS 1101/2002 (Brasil,
adultos reportaram um ou mais enfermidades ou agravos por 2002), coordenado pelo este autor.
mês Em nosso país, a tradição observada na
programação, isto é, nos processos de defini-
ção de quantitativos de serviços a serem rea-
consultaram médico uma ou mais vezes no mês
lizados e a consequente alocação de recursos
consultaram médico de cuidados primários para seu custeio, é centrada em meros ajustes
das séries históricas de procedimentos reali-
visitaram um ambulatório em hospital
zados pelos prestadores de serviços, públicos
visitaram complementar ou provedor de cuidado alternativo ou privados. Essa tradição remonta ao mo-
visitaram um departamento de emergência (pronto-socorro)
delo de remuneração exercido pelo antigo
INAMPS (Instituto de Assistência Médica da
adulto admitido em um hospital por mês Previdência Social), cuja modalidade de re-
receberam cuidado domiciliar muneração dos serviços predominante era o
chamado fee-for-service (pagamento por pro-
adulto referenciado para outro médico por mês
cedimento). Apesar do modelo da Programa-
adulto referenciado para um centro médico universitário po mês ção Pactuada e Integrada - PPI, de 2006, já intro-
duzir o cálculo de necessidades para um amplo
visitaram um ambulatório de um hospital universitário
leque de ações de atenção primária e das ações
de atenção especializada delas decorrentes, um
grande número de serviços ainda continua sen-
do programado com base nos critérios contidos
na Portaria 1101, muito influenciada pela lógica
de oferta e de ajustes sobre a série histórica da
época em que foi elaborada.
A mudança na lógica de programação, bus-
cando-se aproximações às necessidades de saúde,
além do mandato legal, encontra ressonância no

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Opinião

contexto mais recente de desenvolvimento eco- viços de Saúde estruturada, as possibilidades de


nômico que permite o abandono dos enfoques planejamento se reduz enormemente e o cálcu-
restritivos e puramente racionalizadores de recur- lo estimativo das ações necessárias perde toda a
sos que marcaram o período anterior. consistência;
Para a proposição de estimativas de neces- 4. Levantamento de evidências que em-
sidade de serviços, incorporadas em referências basem as intervenções
quantitativas para o seu cálculo (usualmente Recorre-se a revisões sistemáticas de pes-
denominadas de “parâmetros de programação” quisas clínicas; estudos de utilização de serviços
no jargão dos planejadores), propõe-se o seguin- de saúde; estudos de efetividade e custo-efetivi-
te percurso metodológico: dade etc. em busca de fundamentação científica
1. Definição das populações alvo para para justificar a oportunidade das intervenções
cada tipo de serviço: e os quantitativos ótimos a serem ofertados. Há
Estabelecer com clareza o grupo popula- que se reconhecer que a produção científica
cional cujas necessidades serão estimadas; nesse campo ainda é bastante incipiente, ado-
2. Identificação de subcategorias dessas po- tando-se frequentemente recomendações com
pulações com necessidades diferenciadas nível de evidência muito baixo, como a opinião
Na população alvo, identificar subpopula- de especialistas;
ções que potencialmente se beneficiam de de- 5. Levantamento de critérios de planeja-
terminadas intervenções realizadas pelos servi- mento e proposições quantitativas de siste-
ços (por exemplo, classificação dos estágios das mas de saúde centrados na atenção primária
doenças crônicas: pacientes com Doença Pul- (benchmarking)
monar Obstrutiva Crônica, nos estágios Leve, A prática de outros sistemas centrados na
Moderada, Severa, e Muito Severa); atenção primária orientados para a organização
Além das meras taxas de prevalência e inci- de redes integradas de serviços são utilizados
dência anual, para algumas doenças já foram de- como padrões de comparação para auxiliar na
senvolvidos modelos bastante complexos que definição de recomendações de parâmetros na-
as classificam em diversos estágios,segundo sua cionais, na medida em que são experimentos
história natural, com taxas de prevalência co- sociais já consolidados e que podem represen-
nhecidas para cada um deles, além das probabi- tar estágios desejados de organização sistêmi-
lidades de transição de um estágio a outro num ca. Apesar de serem referências importantes,
determinado período de tempo (em geral de um as enormes diferenças econômicas e culturais,
ano de duração), bem como as taxas de mortali- bem como as especificidades de organização
dade para cada estágio. Esses modelos, com alto dos modelos de atenção devem ser considera-
grau de elaboração, utilizam abordagens mate- das na análise. Muitas vezes o benchmarking
máticas, como as Cadeias de Markov e outras, e é a única alternativa para estimar necessidades
permitem estimativas mais refinadas da quanti- de determinadas estruturas ou equipamentos
dade de intervenções para cada estágio; sanitários que atendem uma ampla gama de
3. Propor a organização das intervenções condições de saúde (por exemplo, equipamen-
nos vários níveis de atenção. tos de exame de imagem como tomógrafos, res-
Os modelos de atenção são fundamentais sonância magnética nuclear ou ecógrafos, que
para a estimativa de necessidades de serviços de permitem diagnósticos de um sem número de
saúde. Muitas vezes não se pode prever a quan- doenças e condições clínicas).
tidade de intervenções necessárias independen- 6. Proposição de recomendações de cri-
te do modelo de atenção, isto é, num contexto térios de planejamento e parâmetros para es-
de desorganização e fragmentação dos serviços timativa de necessidades
e da inexistência de uma Rede Integrada de Ser- Ao final, fixa-se um valor de referência,
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sempre fruto de um juízo crítico sobre as evi-


dências disponíveis e a prática dos especialistas,
na medida em muito poucas pesquisas alcan-
çam o grau de detalhamento e precisão deseja-
dos para a definição dos quantitativos das inter-
venções no nível de populações. Referências bibliográficas
Os parâmetros assim propostos sempre as- 1. Benedict AL. Resenha. Just health:meeting health ne-
sumem caráter estimativo e provisório, com um eds fairly, by Norman Daniels. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008. Revista de Direito Sanitário, São
caráter de “melhor estimativa possível a partir das Paulo v. 11, n. 2 p. 310 319 Jul /Out. 2010.
informações disponíveis”, a ser obrigatoriamente
2. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 1101, de 12de
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