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Judicialização da saúde privada e a crise do


setor - Outras Palavras
por Gabriel Brito
20–28 minutes

Imagem: Matt Kenyon

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José Antonio de Freitas Sestelo em entrevista a Gabriel Brito


Terminada a pandemia, a retomada da demanda por atendimento privado colocou a
saúde suplementar numa sinuca. De 2022 para cá, as margens de lucro são tão
exíguas que mal se pode dizer que existem. E isso desemboca num fenômeno que
para alguns especialistas já era previsível: o aumento da judicialização da relação
entre seguros e seus usuários. Como resposta, as empresas desenvolveram uma
tática nefasta: a suspensão unilateral de planos de clientes que demandam
tratamentos mais caros.

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Como se pode acompanhar nas notícias, o expediente parece avançar no país. E


enquanto tenta criar uma lei de regulação dos planos de saúde, tema que já
acumulou mais de 270 projetos no Congresso Nacional, o Estado brasileiro parece
patinar na regulação de um setor que cada vez mais se nega a entregar o que
promete, em meio a um contexto onde a concentração de capital é cada vez maior.
“Eu penso que as estruturas oficiais de regulação não acompanharam as mudanças
estruturais que ocorreram no setor e ainda estão organizadas para fazer frente e
analisar uma moldura do final dos anos 1990, início dos 2000, o que atualmente
não existe mais”, explicou José Sestelo, um dos organizadores do livro Crise
global e sistemas de saúde na América Latina, lançado em 2022. “Portanto,
realmente temos um problema de macrorregulação que precisa ser enfrentado. E na
prática o que tem se observado é que os grandes grupos econômicos oligopolizados
têm uma enorme margem de controle sobre o funcionamento do setor”, alerta.
Em entrevista ao Outra Saúde, o doutor em saúde coletiva e pesquisador do Grupo
de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde, corrobora a visão
de outros críticos do setor, que confluem para a noção de que o atual modelo de
negócios da saúde privada brasileira é insustentável. Como explica, a negação de
atendimento ao usuário e a consequente judicialização desta relação se tornaram
mecanismo já normalizado de fechamento das contas.
Fatores como a inflação de diversos produtos industriais médicos e, no caso mais
recente, a aprovação do Piso Nacional da Enfermagem, indicam um cenário de
agravamento de tais contradições. Um ônus que é repassado ao Estado e também
ao cidadão médio, que vê seus gastos financeiros com saúde aumentarem sem a
devida contrapartida de melhoria nos indicadores básicos de provimento. O tema
exige tomadas de decisão política que não se anunciam no horizonte brasileiro.
“Pra dar uma ideia, os hospitais privados se tornaram lojas de venda de material
médico, de órteses, próteses e materiais especiais. É daí que vem grande parte do
faturamento dessas empresas”, explica Sestelo. ”Por exemplo, uma dieta vendida
na farmácia a 50 reais pode ser vendida no hospital por 1.000. Não se tem um
parâmetro de referência de custo e isso acaba gerando uma bola de neve que vai
sendo transferida, na prática, ao usuário final. Isso também se reflete, se olharmos
bem no nível macro, no aumento gradual do gasto total de saúde no PIB.
Atualmente, temos 9,1% do PIB em gastos totais, tanto públicos como privados.
Uma linha ascendente sem uma contrapartida de melhora correspondente nos

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indicadores de acesso à saúde, morbidade, índices sanitários gerais. Para onde está
indo esse dinheiro? Para os intermediários, o setor financeiro. É um destino final
diferente daquele estritamente relacionado com a assistência em saúde. Nosso
sistema está se tornando cada vez mais caro, mas não necessariamente mais
eficiente”.
A trama, como Sestelo faz questão de ressaltar, é das mais complexas e não se trata
de acabar com a saúde suplementar. No entanto, ela parece ter batido num teto,
inclusive em termos de capacidade de oferta de serviços. E, como descreve o
pesquisador e também autor do livro Planos de saúde e dominância financeira,
tampouco bastaria simplesmente aumentar o financiamento do SUS.
“Muito se fala que o SUS é subfinanciado. De fato é, mas é preciso observar que
nessa engrenagem complexa do nosso sistema de saúde o componente privado está
entranhado no sistema como um todo. Portanto, quando se coloca mais água nesse
moinho, da forma como ele está organizado, as empresas vão continuar faturando
alto e continuaremos tendo problemas de acesso e distribuição de recursos”, alerta
Sestelo. “A impressão é que basta colocar mais dinheiro no Sistema Único de
Saúde e não há mais nada a ser discutido. Não é bem assim. É preciso diminuir o
tamanho do privado. É preciso que o gasto total tenha um componente público
ampliado, mas que o controle sobre os fluxos de produtos e serviços de acesso seja
da esfera pública, do gestor federal, estadual, municipal. Que tenham a prerrogativa
de controlar.”
Fique com a entrevista completa.

O ano de 2023 está sendo marcado por uma alta conflituosidade entre seguros
de saúde e usuários desses serviços. Grupos de clientes de planos de saúde ou
representantes públicos denunciam até uma onda de cancelamentos
unilaterais de convênios médicos enquanto as empresas alegam combate à
fraude no uso desses planos. De todo modo, matéria do Estado de S. Paulo
informa que o número de ações na justiça contra os seguros de saúde voltou a
aumentar depois de um certo recuo durante o período da pandemia. Como
você entende esse panorama?
A judicialização é um sintoma que denota graves problemas de regulação no

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sistema de saúde. Uma situação em que as questões de assistência à saúde são


resolvidas no judiciário por si só já é um sinal de alerta, um sinal de falha
regulatória e sistêmica. A justiça não seria o lugar ideal para resolver esse tipo de
situação. O sistema de saúde deveria ter os seus próprios meios de regular preço,
acesso, qualidade, de uma maneira que a demanda judiciária não deveria ser tão
alta como é no Brasil.
Esse primeiro ponto é terrível e temos pesquisadores, a exemplo do grupo do
Mario Scheffer na USP, a apontar que a judicialização tem como principal objetivo
a negação de cobertura.
As empresas negam alguns procedimentos, principalmente aqueles de altos custos
e internação hospitalar, e os clientes vão à justiça. Na prática, significa que as
empresas ganham um tempo entre a demanda do cliente e a efetiva prestação de
serviços, e isso se tornou um mecanismo para fazer caixa. É um mecanismo
habitual, regular, já incorporado. Empresas fazem isso para procrastinar a prestação
de serviço e assim fazer caixa.
Depois da pandemia, com a retomada dos níveis habituais de demandas, dos
procedimentos eletivos que estavam reprimidas e retornaram, gerou-se um
aumento na judicialização, porque as empresas apertaram o torniquete na negação
de cobertura para manter as suas margens de lucro. Isso apesar de, na pandemia, a
margem das empresas aumentar muito, porque as pessoas continuaram pagando
sua mensalidade, mas utilizaram menos os serviços, o que gerou muito menos
despesas às prestadoras de serviços e aumentou seus lucros. Depois da pandemia os
ganhos baixaram, claro, mas com a normalização da situação os usuários não
foram compensados. Ao contrário, agora se alega dificuldades de caixa e as
empresas reclamam como se estivessem vivenciando uma crise estrutural.
A respeito desta alegação de crise estrutural do setor privado de saúde,
vivemos um tempo de muitas fusões e aquisições no setor, inclusive no sentido
da verticalização, mas de outro lado os resultados operacionais da saúde
suplementar desde 2022, e já incluído o primeiro trimestre de 2023, estão
basicamente no zero a zero. Não estamos, de fato, caminhando para uma
situação de crise estrutural do setor agora que a demanda pelos serviços se
estabilizou nos patamares normais?
Aqui são vários temas superfortes. O primeiro é a oligopolização, tendência
acentuada nos anos 2000. Quando criada a ANS, eram cerca de 2 mil empresas de

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plano de saúde e atualmente temos poucos grandes grupos econômicos que


controlam a maioria dos contratos. Devemos observar isso: quem controla os
contratos. Isso caracteriza oligopólio ou no mínimo uma tendência oligopolizante,
sem a menor dúvida. Estamos longe de um ambiente de livre concorrência, de
disputa, é um ambiente oligopolizado, onde as fusões e aquisições têm aumentado
e, portanto, a concentração.
Além disso, aumenta também o nível de interconectividade entre empresas e
subsetores diversos. Hoje se observa, por exemplo, que controladores de empresas
hospitalares também controlam empresas de plano de saúde. Fundos de
investimento que têm participações societárias em empresas hospitalares também
têm participação societária importante em empresas de plano de saúde. E seriam
setores, em tese, não fusionáveis, porque o hospital presta serviço e gera despesa
para a empresa do plano de saúde. Mas na prática os controladores desse
subsetores muitas vezes são os mesmos. É um fenômeno bastante atual, que
avançou muito desde os anos 2000.
De fato, as margens operacionais das empresas, no sentido estrito de receitas e
despesas, relacionadas com o pagamento de prestadores, sempre foram muitos
baixas, embora nunca tenham sido negativas. Basta observar o gráfico de evolução
histórica disponibilizado pela ANS. As margens, embora pequenas, sempre estão
positivas. Mas não são as margens operacionais as únicas responsáveis pelos
resultados positivos. Existe também a receita financeira, que para alguns grupos
assume posição de destaque.
Tudo isso tem de ser levado em conta na hora de se analisar o desempenho
econômico-financeiro do setor. Eu penso que as estruturas oficiais de regulação
não acompanharam as mudanças estruturais que ocorreram no setor e ainda estão
organizadas para fazer frente e analisar uma moldura do final dos anos 1990, início
dos 2000, o que atualmente não existe mais.
Portanto, realmente temos um problema de macrorregulação que precisa ser
enfrentado. E na prática o que tem se observado é que os grandes grupos
econômicos oligopolizados têm uma enorme margem de controle sobre o
funcionamento do setor.
O que caberia à ANS fazer, em termos mais práticos, para melhorar a relação
entre clientes e empresas?

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Essas empresas atuais são controladas por grupos econômicos multissetoriais. Ou


seja, transitam por diversos subsetores ao mesmo tempo, muitas vezes fora da
alçada de regulação da ANS. Assim, é uma questão política que se coloca. É uma
questão do Estado nacional brasileiro se organizar para fazer frente às necessidades
regulatórias atuais. É um assunto para se tratar no Congresso Nacional, pelo
legislativo, com iniciativa do executivo também. Mas no plano político não se
vislumbra, pelo menos no curto prazo, nenhuma perspectiva ou iniciativa nesse
sentido de alterar as regras de macrorregulação, de aumentar a capacidade
regulatória do Estado brasileiro frente a tais grupos econômicos.
À época dos debates em torno do rol taxativo, que representou uma grande
polarização entre usuários e empresas, você nos deu entrevista em que antevia
o aumento da judicialização. Será que não estamos diante de um modelo de
prestação de serviços de saúde fadado a esses limites aqui colocados?
Sim, eu penso que esse modelo de fato é insustentável. E vemos as contradições. A
judicialização é uma delas. Outra contradição é a questão do que se chama hoje de
inflação médica, um descontrole total na regulação de preços dos principais
insumos envolvidos, em especial na área de prestação de serviços hospitalares.
Pra dar uma ideia, os hospitais privados se tornaram lojas de venda de material
médico, de órteses, próteses e materiais especiais. É daí que vem grande parte do
faturamento dessas empresas. Por exemplo, uma dieta vendida na farmácia a 50
reais pode ser vendida no hospital por 1.000. Não se tem um parâmetro de
referência de custo e isso acaba gerando uma bola de neve que vai sendo
transferida, na prática, ao usuário final. O hospital apresenta uma fatura para a
empresa de plano de saúde e a empresa de plano de saúde repassa isso para quem a
financia, isto é, empresas empregadoras que contratam planos e os usuários,
pessoas físicas.
É um mecanismo perverso, uma correia de transmissão onde as margens dessa
cadeia de produção, a envolver indústria, distribuidores, prestadores,
intermediários e empresas de plano de saúde, ficam asseguradas e seu
financiamento é empurrado para a ponta, isto é, o usuário final ou o Estado
brasileiro, porque também o governo federal e os governos estaduais e municipais
são grandes compradores dos produtos e serviços dessas empresas.
Isso também se reflete, se olharmos bem no nível macro, no aumento gradual do
gasto total de saúde no PIB. Atualmente, temos 9,1% do PIB em gastos totais,

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tanto públicos como privados. Uma linha ascendente sem uma contrapartida de
melhora correspondente nos indicadores de acesso à saúde, morbidade, índices
sanitários gerais. Para onde está indo esse dinheiro? Para os intermediários, o setor
financeiro; enfim, é um destino final diferente daquele estritamente relacionado
com a assistência em saúde.
Nosso sistema está se tornando cada vez mais caro, mas não necessariamente mais
eficiente. E tem a ver com essa cadeia a rigor insustentável, mas que tem sido
mantida por uma decisão política, de diferentes governos ao longo dos anos,
Congresso Nacional, lideranças políticas, associações, lideranças sindicais, enfim,
a sociedade. Isso tem se mantido intocável. E a conta vem chegando, há um limite.
É isso que está ocorrendo, está ficando mais claro que este sistema é insustentável.
Não é uma solução estrutural para um país como o Brasil, um país tão grande, tão
desigual. Não dá para acreditar em um esquema de intermediação privativa de
planos de saúde dessa envergadura como solução de nossos problemas
assistenciais. Ao contrário, é um problema a ser equacionado. Não que que a
intermediação assistencial privativa deva deixar de existir, mas não deveria ocupar
tanto espaço e ter tanta influência política dentro do sistema de saúde como
atualmente.
Como fica o Estado neste contexto? Que estratégias de atuação pode
desenvolver para mediar as situações aqui descritas?
Precisamos falar de macrorregulação. É algo que a ANS sempre se furtou a fazer,
no máximo ela faz uma microrregulação. Mas a macrorregulação setorial, aquela
regulação que olha com uma grande angular para todos os agentes políticos e
econômicos envolvidos no sistema de saúde, não tem sido feita. As estruturas do
Estado não têm dado conta e as iniciativas políticas têm passado ao largo desse
tema, que é espinhoso, um tema que na verdade define quem vai ganhar e quem vai
perder, quem vai pagar mais, quem vai pagar menos, quem vai ter mais acesso,
quem vai ter menos acesso. É um tema espinhoso politicamente, mas que precisa
ser enfrentado.
E esse enfrentamento passaria mais diretamente pela ampliação do SUS,
inclusive com absorção de parte dos serviços e estruturas privadas pelo
Estado?
Aqui temos uma discussão sobre o que chamamos de padrão de relação público-

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privada. Temos no Brasil um padrão concentrador de recursos, um padrão


regressivo. As pessoas que têm acesso a esse sistema de intermediação assistencial
têm acesso a quatro vezes mais produtos e serviços do que a população em geral. E
isso é uma questão distributiva, uma questão de economia política.
Entretanto, muito se fala também que o SUS é subfinanciado. De fato é, mas é
preciso observar que nessa engrenagem complexa do nosso sistema de saúde o
componente privado está entranhado no sistema como um todo. Portanto, quando
se coloca mais água nesse moinho, da forma como ele está organizado, as empresas
vão continuar faturando alto e continuaremos tendo problemas de acesso e
distribuição de recursos.
É preciso realmente pensar numa reforma estrutural. A questão do piso da
enfermagem é exemplo. É um tema específico, que veio à tona agora e vemos as
empresas privadas se negando a pagar e falando que não têm dinheiro, vão falir,
teremos demissões, enfim, toda uma chantagem. E esse não é o único aspecto. Por
exemplo, nós temos uma rede de hospitais universitários, hospitais públicos,
escolas e unidades assistenciais ao mesmo tempo, que ao longo dos anos vem
sendo sucateada. Trata-se de um polo de inovações, de incorporação de tecnologia
para o sistema de saúde, que com o passar dos anos perdeu relevância.
Recentemente, o Governo Federal anunciou uma medida, ainda muito tímida ao
meu ver, mas na direção correta, de reabilitar a rede de hospitais universitários.
Mas ainda muito aquém, porque temos, por exemplo, o PROADI, programa que
favorece alguns hospitais privados considerados de excelência pelo Governo
Federal e subsidia essas empresas hospitalares a ponto de elas se tornarem
referência para incorporação de novas tecnologias, formação de pessoal em saúde,
qualificação da atenção básica, enfim, capazes de influenciar e determinar as
diretrizes do sistema.
Vejamos: são empresas privadas que têm ou passam a ter com o aval do governo,
da estrutura do Estado, enorme influência política nas diretrizes do conjunto do
sistema. É esse tipo de situação que precisa ser revista, porque obviamente os
interesses corporativos das empresas privadas não coincidem com as necessidades
assistenciais do conjunto da população brasileira. Eventualmente, podem coincidir
em alguns aspectos, mas em geral não. É preciso que se estabeleça um mecanismo
de regulação que leve em conta o interesse público, como no exemplo dos hospitais
de excelência e da rede de hospitais universitários, mas há muitos outros que

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dialogam com o padrão de articulação público-privada aqui descrito.


Mais um exemplo: dificilmente se encontra um município no Brasil onde
trabalhadores de saúde tenham um único regime de inserção laboral. Há pessoas
que são funcionárias estatutárias, com outras com CLT, com vínculos precários,
enfim, equipes de trabalho heterogêneas, o que torna difícil para qualquer gestor
estabelecer estratégias assistenciais coerentes e organizadas que possam fazer
frente às reais necessidades da população. Essa heterogeneidade do vínculo
compõe o padrão de articulação público-privada regressivo, concentrador de
recursos e repercute no setor público.
Ou seja, simplesmente aumentar o financiamento do SUS não é
necessariamente prestigiar o sistema público de saúde.
Falamos de SUS e o SUS é tudo isso, incluídos os hospitais universitários, os
hospitais de excelência subsidiados pelo Governo Federal; eles formam o pessoal
não só de nível universitário, mas de nível médio, influenciam na atenção primária,
na atenção básica. As equipes têm múltiplos vínculos, em geral são geridos por OS,
organizações sociais, que também são empresas privadas.
É todo esse mosaico que precisa ser compreendido nas suas contradições e
regulado adequadamente para que o interesse público prevaleça.
Eu não digo que haja uma solução fácil nem uma solução única para esse conjunto
de problemas que se apresenta. Mas é preciso colocar na pauta na discussão
política e isso está faltando atualmente. A impressão é que basta colocar mais
dinheiro no Sistema Único de Saúde e não há mais nada a ser discutido. Não é bem
assim. É preciso diminuir o tamanho do privado. É preciso que o gasto total tenha
um componente público ampliado, mas que o controle sobre os fluxos de produtos
e serviços de acesso seja da esfera pública, do gestor federal, estadual, municipal.
Que tenham a prerrogativa de controlar.
Vou dar outro exemplo: o preço dos leitos convencionais de UTI. Na pandemia
havia uma variabilidade muito grande de preço de leitos. Isso significa que a
autoridade sanitária no nosso país nem sequer tem a prerrogativa e a capacidade de
regular preço, acesso e qualidade de um ambiente hospitalar, componente
estratégico para qualquer sistema de saúde. Os gestores, na prática, ficaram
disputando entre si para ver quem conseguia pagar um leito de UTI em favor de
seu sistema de serviços de saúde. Foi uma situação que evidenciou a precariedade

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regulatória bem característica do nosso sistema.


É uma situação bastante complexa. É importante dizer que não há uma resposta
única, solução milagrosa, mas é preciso fazer o esforço de olhar para o sistema em
toda a sua complexidade e colocar a pauta política na direção correta, da
macrorregulação, da revisão desse padrão de articulação público-privada
extremamente regressivo e concentrador de recursos. Senão, corremos o risco de ir
na direção dos Estados Unidos, um país que tem um sistema caríssimo, gasta quase
17% do PIB com saúde e não tem indicadores sanitários e de morbidade
compatíveis com tamanho volume de gastos. Devemos usar bem os recursos
disponíveis e prover acesso equitativo à assistência em saúde.
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