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SAÚDE PÚBLICA NO

BRASIL
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

SUMÁRIO

1- PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS SUBSISTEMAS


PÚBLICOS E PRIVADOS QUE INTEGRAM O SUS 3
2- HISTÓRIA DA EPIDEMIOLOGIA 8
3- HISTÓRIA NATURAL E PREVENÇÃO DE DOENÇAS 27
4- INDICADORES DE SAÚDE 35
5- SAÚDE DA FAMÍLIA 39
REFERÊNCIAS

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1- PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS SUBSISTEMAS PÚBLICOS E


PRIVADOS QUE INTEGRAM O SUS

O Brasil conta com um dos mais completos e complexos sistemas de saúde do mundo.
E para o sucesso desse modelo, a participação do setor privado no SUS é de
fundamental importância para sua efetivação e fortalecimento.

Criado por meio da lei número 8080, de 19 de setembro de 1990, o Sistema Único de
Saúde (SUS) tornou-se modelo. Apesar das falhas que existem no sistema — e
retratadas diariamente na imprensa — ele é um sistema abrangente que atende qualquer
pessoa, desde a mera medição da pressão arterial no posto de Saúde do bairro, até um
transplante cardíaco em um dos hospitais de referência na área.

E para a população, não há custos extras — todos os procedimentos já são custeados


por meio da arrecadação de impostos. Para a manutenção e prestação dos serviços, há
parceria entre Municípios, Estados e o Governo Federal.

Como princípios básicos, o SUS tem:

Universalização

Todo cidadão tem direito ao atendimento à saúde via SUS, independentemente de


condição financeira, sexo, raça, ou ocupação.

Equidade

O SUS também atua com equidade, investindo onde há maior carência, com o objetivo
de tornar todos iguais.

Integralidade

As ações desenvolvidas pelo SUS são integradas, atuando sempre na promoção à


saúde e à prevenção de doenças.

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O papel do setor privado no SUS

Apesar dos recursos investidos, o SUS vive sobrecarregado. E diante da pandemia do


coronavírus, viu suas capacidades irem muito além do extremo. UTIs superlotadas ou
mesmo com falta de leitos, falta de profissionais, falta de medicamentos, entre vários
outros problemas.

Nesse sentido, ocorre o socorro por parte da iniciativa privada. Inclusive, na própria lei
de criação do SUS, ele já traz no artigo 4º a possibilidade da iniciativa privada participar
das ações, em caráter complementar.

Em geral, a participação do setor privado no SUS ocorre na forma de contratação de


serviços. Por exemplo, especialidades não disponíveis na rede pública são contratadas
por Prefeituras ou Governos Estaduais da iniciativa privada, e pagos com recursos
públicos.

Dessa forma, o cidadão que necessita de atendimento especializado terá seu tratamento
custeado pelo SUS, mesmo sendo atendido em um hospital ou clínica particular. Essa
contratação ocorre por meio de chamada pública ou credenciamento, permitindo a
equidade de participação entre os entes privados que oferecem o mesmo serviço.

Novamente usando os casos de internação em UTI por Covid-19, com a falta de leitos
na rede particular, foram contratados leitos particulares de UTI. Eles são custeados pelo
Governo Federal, com valores pré-definidos para todo o território nacional.

Socorro durante a pandemia

Outro exemplo da participação do setor privado no SUS vem do apoio de empresas


nesse momento de pandemia. Diversas delas fizeram doações de recursos, materiais,
respiradores, EPIs (equipamentos de proteção individual), entre outros.

Logo no início da pandemia, ainda em março de 2020, o Banco Votorantim (BV) doou
R$ 30 milhões para projetos sociais e compras de insumos hospitalares. Além disso, a
instituição financeira ofertou outros 50 respiradores e criou uma linha de crédito para
unidades hospitalares.

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A Adama, que atua na proteção de cultivos, doou R$ 100 mil a um hospital gaúcho, que
usou os recursos para a compra de EPIs. A empresa também ofereceu álcool em gel
70%, e outros materiais para sanitização de unidades hospitalares de todo o Estado.

A gigante do setor de bebidas Ambev também transformou sua linha de produção de


Piraí, no Rio de Janeiro, para produzir meio milhão de unidades de álcool em gel. Os
produtos foram doados para hospitais de vários estados. Além da produção, a empresa
se responsabilizou pela embalagem e distribuição dos produtos.

Ao longo dos meses de pandemia, diversos outros exemplos de ajuda da iniciativa


privada ao SUS surgiram. De gigantes a pequenos e microempreendedores, vários se
uniram como forma de garantir o atendimento digno e de qualidade aos pacientes
infectados pelo Covid-19.

A importância da parceria público-privada

Apesar do modelo internacional, o SUS sofre principalmente pela falta de recursos para
atendimento à população. Isso provoca a falta de medicamentos, pessoal qualificado,
estruturas adequadas e equipamentos. Na ponta, sofrem os pacientes mais carentes e
que não possuem capacidade financeira de buscar atendimento na rede privada.

Nesse sentido, a participação do setor privado no SUS por meio de parceria público-
privada, com a destinação de recursos ou incentivos fiscais às empresas, para que
prestem atendimento como credenciadas, é uma alternativa para melhoria da saúde
pública no Brasil.

Inclusive, durante a pandemia do Covid-19 a necessidade dessa parceria ficou ainda


mais evidente. Diante da falta de leitos de UTI na rede pública, e com leitos ociosos na
rede particular, o Governo Federal determinou a contratação de tais leitos para
atendimento à população, custeados com recursos do SUS.

Isso evitou a burocracia e tempo necessário para a criação e implantação de novos leitos,
permitindo que a demanda pudesse ser rapidamente suprida. E diante da possibilidade
de restabelecimento dos níveis de atendimento pré-pandemia, tais leitos montados pela
rede pública voltariam a se tornar ociosos.

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Além disso, a doação de recursos, insumos e equipamentos pelas empresas às


entidades públicas de saúde permitiu que os atendimentos à população fossem
agilizados. Como listados alguns exemplos acima, essa parceria garante atendimento
de melhor qualidade à população infectada pelo vírus.

Contratualização e contratação

Na área da participação do setor privado na saúde pública, termos como


contratualização e contratações são comuns. Eles referem-se, principalmente, à
contratação de serviços não disponíveis na rede pública da rede particular.

A contratualização ou contratação de serviços de assistência à saúde estão amparados


na na Constituição Federal, que deixa claro essa possibilidade no artigo 199. Ele
estabelece a possibilidade da iniciativa privada complementar o atendimento ao SUS,
por meio da sua contratação de serviços.

De acordo com a lei, o gestor poderá complementar a oferta de serviços de saúde


quando eles forem insuficientes para atendimento à população. Para isso, poderá
contratar tais serviços junto à iniciativa privada, observando sempre os princípios e
diretrizes do SUS.

Deve ainda sempre respeitar as legislações aplicáveis às licitações e aos limites de seu
território no planejamento das ações. Também devem ser observadas as necessidades
da oferta de serviço, as pactuações e os recursos financeiros disponíveis.

A contratação ainda deverá seguir parâmetros burocráticos, como constar a necessidade


no Plano Municipal de Saúde ou no Plano Estadual de Saúde. Além disso, a contratação
deverá contar com formalização jurídica formal, com contrato claro com direitos e
deveres de cada parte.

Manual de contratação

As orientações completas integram o Manual de Orientações para Contratação de


Serviços de Saúde, elaborado pelo Ministério da Saúde. Nele, os tipos de contratação
estão descritos, e podem ocorrer por meio de:

 Convênio com entidades privadas.


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 Licitação em que as entidades apresentam seus preços para prestação do


serviço, vencendo a que apresentar o menor valor.
 Dispensa de licitação, quando apenas uma empresa privada oferece o tipo de
serviço na região, ou em casos de urgência ou emergência.
 Inexigibilidade, quando não é possível criar uma competição entre as empresas
prestadoras do serviço.

Em cidades menores, é comum a criação de Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS),


com o objetivo de reunir uma maior demanda de pacientes para a contratação de
serviços junto à rede particular.

Dessa forma, conseguem negociar maior volume de atendimentos, reduzindo os custos.


A regulação dos atendimentos passa a ser feita pelo Consórcio, criando uma lista de
atendimento, conforme critérios como urgência, entre outros.

Participação do setor privado

Como fica evidente, a participação do setor privado no SUS é necessária. Porém, para
isso devem ser seguidas algumas regras e legislações específicas, evitando desperdício
ou mesmo desvio de recursos públicos.

É papel do gestor de saúde analisar as possibilidades e necessidades, priorizando


sempre o melhor atendimento aos pacientes, de acordo com os recursos disponíveis.
Nesse sentido, a participação do setor privado surge como alternativa.

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2- HISTÓRIA DA EPIDEMIOLOGIA

Falar em saúde no Brasil é falar no Sistema Único de Saúde (SUS), seja como realidade,
seja como utopia, com seus princípios de eqüidade, descentralização e integralidade.
Antes de tudo, o SUS é a impressão, no nosso sistema constitucional e legal, de uma
compreensão da saúde forjada em conceitos que, em longo processo, fomos
consolidando na saúde coletiva e na epidemiologia. Somente para relembrar, citarei o
artigo 196 da nossa Constituição Federal: "A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam a redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação". É importante também relembrar que uma das
leis básicas que regula este princípio constitucional, a Lei 8.080 de 1990, em seu Artigo
3o., define que: "A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros,
a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda,
a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis
de saúde expressam a organização social e econômica do país". Podemos, sem sombra
de dúvida, dizer que os princípios legais com que contamos no tocante à saúde são
extremamente progressistas. O eixo destes princípios se encontra na indissociabilidade
entre a saúde dos indivíduos e das populações e na inserção da saúde na organização
da sociedade. Acreditamos todos que a implementação plena de tais princípios
constitucionais e legais propiciará um sistema de saúde fundado nos conceitos mais
avançados da promoção da saúde. Gostaria, pois, de trazer para discussão algumas
reflexões sobre o papel da epidemiologia e dos epidemiologistas para continuarmos no
caminho desta utopia compartilhada com a sociedade brasileira.

A epidemiologia no Brasil tem uma história rica e recente, ainda em consolidação, porém
nestas últimas duas ou três décadas a velocidade dos acontecimentos com relação à
consolidação da disciplina em nosso país é monumental. Nem de longe é meu objetivo
tentar aqui apresentar uma historiografia da epidemiologia brasileira, mas como ativo
participante deste período efervescente não me furtarei a fazer minhas próprias
interpretações e comentários.

O impressionante desenvolvimento da epidemiologia no país em período recente pode


ser observado tanto no vertiginoso crescimento da sua produção acadêmica, como na

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sua crescente utilização nos serviços de saúde. Este V Congresso e os que o


antecederam são as provas mais evidentes da riqueza deste processo.

No campo da pesquisa, existem vários sinais. Análises e interpretações das bases de


dados do Diretório de Pesquisa do CNPq, trazem importantes informações1. Em 2000,
havia 176 grupos de pesquisa no país com pelo menos uma das suas linhas de pesquisa
situada no campo da epidemiologia. Isto totalizava 320 linhas, envolvendo 813
pesquisadores, dos quais 422 eram doutores. Portanto, não há dúvida de que já
constituímos uma comunidade científica de porte respeitável e com grau razoável de
maturidade, que se expressa em uma produção científica crescente em quantidade e em
qualidade.

No âmbito dos serviços, este crescimento se repete. A criação do Centro Nacional de


Epidemiologia-CENEPI, em 1990, foi uma aspiração dos epidemiologistas brasileiros.
Com a criação do CENEPI, à exceção de alguns momentos, a interlocução entre
epidemiologistas da academia e epidemiologistas dos serviços foi intensificada, o que
tornou ainda mais tênues as diferenças existentes entre estes dois mundos. O CENEPI
teve um papel relevante no incentivo ao uso dos recursos epidemiológicos nos diversos
níveis do SUS. Contamos hoje, no Brasil, com milhares de profissionais com treinamento
em epidemiologia atuando no nosso sistema de saúde. Inclui-se aí grande grupo de
mestres e mesmo diversos doutores. Atualmente, o CENEPI encontra-se em processo
de mudança da sua roupagem institucional, processo este que, apesar de necessário e
em tese apoiado por todos, está a exigir maiores discussões de certos aspectos
envolvidos nesta mudança, o que certamente será feito.

É neste rico momento do desenvolvimento recente da epidemiologia no país que tentarei


me concentrar, enfatizando a sua dupla face: por um lado, como disciplina científica,
afeita a produzir conhecimento, em constante ebulição na reafirmação das suas bases
conceituais e no refinamento dos seus métodos; por outro lado, como praxis, e portanto
com compromissos firmes no sentido de contribuir para a transformação das condições
de saúde da população.

Esta dupla inserção está bem explicitada em algumas definições clássicas da disciplina,
como aquela referida por Last2: "o estudo da distribuição e determinantes de estados e
eventos relacionados à saúde em populações definidas, e a aplicação deste
conhecimento para a resolução dos problemas de saúde".
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Deste modo, ficam definidos dois espaços interdependentes e nem sempre claramente
delimitados: o do conhecimento e o da ação. Temos uma epidemiologia
simultaneamente como disciplina científica (que estuda a saúde, a doença e os seus
determinantes) e como campo profissional da saúde coletiva (que produz e analisa
informações, desenvolve tecnologias e estratégias de prevenção). No primeiro espaço,
elaboram-se teorias, desenham-se estudos, dados são coletados e analisados,
produzem-se conhecimentos. No segundo espaço, a partir do anterior, produzem-se
informações e redefinem-se os conhecimentos, delineiam-se estratégias, concretizam-
se ações. No primeiro, os erros são de ordem teórica e metodológica e a sua correção
faz parte do processo normal da ciência. No segundo, os erros significam vidas, doenças,
sofrimentos, ou ainda custos sociais, econômicos ou políticos. Como já havia dito em
outra oportunidade3: "Na sua tensão entre disciplina científica e campo profissional, a
epidemiologia traz à tona, para os seus praticantes, independentemente de onde estejam
situados, os desafios da dialética entre o sonhar e o fazer, entre a utopia e a realidade,
entre a técnica e a política".

Harmonizar interesses, tensões, motivações e estratégias destes dois pólos, em nosso


país, tem sido uma tarefa que, com extrema paciência, sabedoria, habilidade, liderança,
autoridade e discrição vem sendo conduzida há duas décadas pela Comissão de
Epidemiologia da ABRASCO, sem nenhuma dúvida a grande tecelã deste tecido
complexo que é a epidemiologia no Brasil.

Um breve histórico

Como dissemos anteriormente, em termos históricos, a epidemiologia brasileira é um


fenômeno relativamente recente. Isto significa que, entre nós, temos uma disciplina
jovem, porém que caminha a passos rápidos para a sua maturidade.

Entendendo as deficiências que qualquer esforço de periodização sempre impõe, no


entanto, como esforço para compreender o desenvolvimento da epidemiologia no Brasil,
concebo a existência de três etapas na sua história: uma primeira, que se estende até
1984; a segunda, que abrange o período de 1984 a 1994; e a terceira, de 1994 até os
dias atuais. Dois marcos fundamentais servem de limites para tais etapas: a I Reunião
Nacional sobre Ensino e Pesquisa na Epidemiologia, realizada em Setembro de 1984,
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em Nova Friburgo4; e o encontro realizado em Olinda em abril de 1994, denominado


"Rumos da Epidemiologia Brasileira: reunião nacional de avaliação e perspectivas"5,
também apelidado de "Dez anos de Friburgo".

1a Etapa. Há muitas décadas, pioneiros nos serviços de saúde usavam raciocínios e


técnicas epidemiológicas para o controle de doenças, e nossos tropicalistas utilizavam-
se de técnicas de estudos populacionais nas suas pesquisas sobre as endemias
prevalentes no país. Nesta época de dengue, podemos relembrar Oswaldo Cruz atuando
já na primeiras décadas do século passado. Contudo, tomarei aqui, como ponto de
partida, o início da consolidação dos grupos da saúde coletiva, incluindo os
epidemiologistas, em torno principalmente de alguns núcleos de pós-graduação que se
formaram no início da década de 1970.

Vivia-se sob a forte influência dos trabalhos de epidemiologia social iniciados pelo grupo
de Xochimilco, liderado por Asa Cristina Laurell, e das idéias de Juan César Garcia.
Marcam aquela época o grande interesse pelos estudos sobre classe social e saúde6; e
uma forte influência da geografia crítica, trazida por Milton Santos e aplicada
principalmente aos estudos das endemias, sob a inspiração destacada de José da Rocha
Carvalheiro7. Chamo a atenção ainda para as preocupações com a compreensão da
causalidade, onde destaco as preciosas e originais reflexões de Sergio Arouca8 e
Guilherme Rodrigues da Silva9.

A I Reunião Nacional sobre Ensino e Pesquisa na Epidemiologia, realizada em setembro


de 1984, em Friburgo, foi sem dúvida o marco de um novo ciclo. Naquele momento,
etapa final da ditadura militar, as relações entre a comunidade acadêmica e de serviços
eram limitadas. A comunidade científica ainda era exígua e concentrava-se no eixo Rio-
São Paulo, com alguns poucos núcleos em outras regiões. O relatório final daquela
reunião4 destacava o interesse dos participantes pelas questões relacionadas ao sistema
de saúde, registrando por exemplo que "A introdução de uma nova visão do social nas
concepções e métodos da epidemiologia e sua aplicação no planejamento de serviços
de saúde foram dois tópicos que mereceram especial atenção dos participantes".
Naquela histórica reunião, foram discutidos e aprovados a constituição e os objetivos da
Comissão de Epidemiologia da ABRASCO. Sob a liderança desta Comissão, estava
preparado o cenário para a próxima etapa, já no novo contexto da redemocratização que
aconteceria no ano seguinte.

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2ª Etapa. Na periodização que proponho, a segunda etapa da história da epidemiologia


no Brasil vai de 1984 a 1994. Entendendo que a redemocratização abria largas
perspectivas de redefinição do sistema de saúde, os epidemiologistas participam
ativamente desta fase. Em maio de 1986, ocorre em Itaparica, na Bahia, o Seminário
sobre Perspectivas da Epidemiologia Frente à Reorganização do Serviços de Saúde, em
cujo relatório final10 encontra-se: "Na conjuntura político-social que o Brasil atravessa,
depois de décadas de governos autoritários e quando se coloca em discussão toda a
estrutura do sistema de saúde, na procura de um sistema unificado e mais efetivo, é
indispensável rediscutir a capacitação dos epidemiologistas e sua contribuição para a
melhoria das condições de saúde da população". Mostra-se ali a grande preocupação
dos epidemiologistas com as reformas que se projetavam na reorganização de saúde no
país e que, na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada neste mesmo ano, gerariam
o SUS.

Já sob a égide da nova constituição, realiza-se também em Itaparica, em maio de 1989,


o Seminário "Estratégias para o Desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil"11, onde é
formulado o I Plano Diretor para o Desenvolvimento da Epidemiologia no Brasil. Na sua
apresentação, o então coordenador da Comissão de Epidemiologia, Professor Sebastião
Loureiro, um dos nossos pioneiros, com a clarividência que o caracteriza, já nos dizia
que: "A maior concentração de renda de uma política econômica neoliberal em um país
capitalista periférico provavelmente agravará as condições de saúde de importantes
segmentos da nossa população. Este momento, onde se entrecruzam no campo político
projetos diversos e diferenciados para a sociedade brasileira e para o papel do Estado
na garantia do direito à saúde, poderá ser o momento estratégico que possibilitará a
incorporação da epidemiologia como eixo fundamental para a prática da saúde coletiva".
Naquele documento esboçava-se o primeiro pacto político formal para o
desenvolvimento da epidemiologia no país, envolvendo instituições acadêmicas e de
fomento científico e os serviços de saúde em propósitos comum.

Até 1984 existiam sete programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva, criados em


sua maioria na 1a metade da década de 1970, seis deles no Rio de Janeiro ou São Paulo.
Fora desse eixo, apenas o programa da Bahia. Entre 1984 e 1994 foram criados nove
novos Programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva, sendo seis deles em Estados
fora do eixo Rio/São Paulo, em um claro processo de dispersão geográfica, característica
importante da área da saúde coletiva com relação a outros campos do conhecimento,
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que mantiveram o padrão de concentração. Apenas dois destes Programas são


específicos em epidemiologia (Pelotas e UNIFESP), mas todos, sem exceção, incluem
núcleos importantes de epidemiologistas.

Ocorre a formação intensiva de epidemiologistas no exterior e nos programas nacionais.


Formam-se pelo menos 84 doutores no exterior e cerca de 250 no Brasil, que hoje se
dedicam à pesquisa epidemiológica.

Em 1990 tem lugar o 1º Congresso de Epidemiologia em Campinas, seguido do


2o Congresso em Belo Horizonte, dois anos depois. E não é sem surpresa que se
observa um imenso crescimento, não somente no número de participantes, mas também
de trabalhos submetidos para apresentação. Uma significativa proporção dos trabalhos
tem sido proveniente dos serviços de saúde.

Também em 1990 é organizado o Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI). Dentro


do CENEPI, é criado o Informe Epidemiológico do SUS, experiência pioneira de uma
revista destinada a comunicar resultados de pesquisas e outros conhecimentos para
aqueles que estão efetivamente envolvidos no Sistema de Saúde.

A 3a. etapa tem início em Olinda em 1994. O II Plano Diretor para o Desenvolvimento da
Epidemiologia, lançado em 19955, mas consolidado naquela reunião, assinalava: "O
processo de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) está levando a uma
transformação do papel da epidemiologia nos serviços com possibilidade de alterações
significativas nas práticas epidemiológicas. A atuação setorizada e particularizada da
Epidemiologia, manifestada na abordagem da Vigilância Epidemiológica de algumas
enfermidades transmissíveis, contrapõe-se hoje a um enfoque mais globalizante, sendo
a lógica epidemiológica de definição de perfis de saúde-doença na população utilizada
como parâmetro em documentos oficiais para o processo de gestão do SUS.
Paralelamente a isto, a consolidação do CENEPI como órgão de nível central,
coordenador das ações de epidemiologia no Sistema Nacional de Saúde do País, entre
outras repercussões, tem provocado maior presença da epidemiologia nos níveis
estadual e municipal, explicitando um compromisso efetivo com a descentralização das
ações".

Em 1995, em Salvador, são realizados os Congressos conjuntos (III Brasileiro, II Ibero-


Americano e I Latino-Americano) de Epidemiologia. O evento é caracterizado como o
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primeiro grande encontro de epidemiologistas de caráter internacional realizado no


Brasil. Contando com quase 3000 participantes, 500 dos quais colegas de 23 diferentes
países. Seguindo a tradição dos congressos anteriores, temas acadêmicos e questões
de serviços foram indistintamente debatidos.

Estamos, pois, vivendo um período de consolidação de núcleos acadêmicos da


epidemiologia e seu intenso e sustentado crescimento nos serviços de saúde. Em 1997
é criada a Revista Brasileira de Epidemiologia, veículo para nossa comunicação
científica que, apesar das dificuldades, vem com esforços se consolidando. Em 1998
acontece o IV Congresso Brasileiro no Rio de Janeiro, e hoje estamos aqui neste V
Congresso, que, como os anteriores, servirá de palco para discussões consistentes
sobre os mais diversos temas da disciplina, e ao mesmo tempo é intenso, participativo,
recheado de esperanças, vibrante e festivo - tal é a epidemiologia no Brasil.

As bases da epidemiologia no Brasil

Minhas reflexões neste ponto situam-se em torno dos fundamentos para o


desenvolvimento da epidemiologia em nosso país. Para isto, eu perguntaria: Que
motivações têm guiado o trabalho desta massa imensa de pesquisadores e profissionais,
que ao mesmo tempo a praticam e a reconstroem no dia-a-dia de suas atividades, quer
nas academias, quer nos serviços de saúde? Quais as especificidades da epidemiologia
no Brasil e em que bases está cimentado o seu processo de crescimento e
desenvolvimento?.

A dupla face de ciência e prática, já anteriormente comentada, cria também dois tipos de
perspectivas: uma perspectiva científica, que por natureza é universal, difusa e abstrata,
e uma perspectiva de praxis, portanto local, focal e concreta. O estabelecimento de
relações dialéticas consistentes entre a atividade científica e a praxis se dá em contextos
concretos. Acredito que deste encontro, e às vezes deste confronto, seja possível extrair
especificidades da epidemiologia em qualquer local do mundo em que esteja sendo
praticada, inclusive no Brasil.

Fiz um esforço para identificar alguns aspectos que a caracterizam entre nós. Sem
querer ser exaustivo, identifico pelo menos oito peculiaridades do desenvolvimento da
epidemiologia em nosso país:
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 No Brasil, a epidemiologia se desenvolveu, e sempre se auto-afirmou, como parte


de um movimento maior, que é o da saúde coletiva3. Ao adotar a saúde coletiva
como referência, amplia o seu sentido social e político e o faz compartilhar das
utopias e dos princípios de humanismo, justiça social e ética que têm guiado a
saúde pública através dos tempos. Articula a sua racionalidade e objetividade
científica com toda a complexa realidade sanitária do nosso país, e assim é
pressionada a concentrar seus esforços em temáticas prioritárias no que diz
respeito à saúde da população e a ampliar seus compromissos pela busca de
soluções. Não é por acaso que sempre foram minoritários em nosso meio todos
os movimentos que tentaram reduzir a epidemiologia a mero conjunto de métodos
e técnicas. Do mesmo modo, até o momento, propostas de organização de
epidemiologistas fora da ABRASCO não obtiveram maior ressonância.

 No Brasil, a epidemiologia tem sido construída com uma clara consciência de que
seu papel histórico inclui o compromisso com a transformação das condições de
saúde da população. Isto implica a construção de um sistema de saúde que
compreende o processo saúde-doença-cuidado como parte da organização
social. Já em 1986, ao renascer da democracia, no Seminário sobre Perspectivas
da Epidemiologia Frente à Reorganização dos Serviços de Saúde10, estas
preocupações estavam presentes. O relatório final daquele evento refere que: "Na
nova conjuntura político-social que o Brasil atravessa, depois de décadas de
governos autoritários e quando se coloca em discussão toda a estrutura do
Sistema de Saúde, na procura de um sistema unificado e mais efetivo, é
indispensável rediscutir a capacitação dos seus epidemiologistas e sua
contribuição para a melhoria das condições de saúde". Esta tomada de
consciência faz com que os epidemiologistas, junto com todas as demais
categorias de sanitaristas brasileiros, estejam no front das lutas que levaram à
implantação do Sistema Único de Saúde, com todos os compromissos daí
decorrentes.

 No Brasil, a epidemiologia tem se desenvolvido sob forte influência das


concepções de determinação social das doenças, originárias das profícuas
tradições da pesquisa médico-social européia do século XIX e que, na América
Latina, tiveram intenso desenvolvimento a partir da década de 1970,
evidentemente atualizado à época e ao contexto12. Em continente então assolado
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por ditaduras cruéis, por imensas desigualdades sociais, e pela miséria em que
vivia - e vive - grande parte da sua população, a epidemiologia foi - e tem sido -
um importante meio para desnudar a iníqua situação de saúde ainda prevalente.
Mas, antes de tudo, a epidemiologia tem assumido, em nosso contexto, o papel
de reconstrutora dos elos perdidos no que diz respeito ao papel da forma de
organização da sociedade na determinação das doenças. Isto que a
epidemiologia internacional, na sua vertente dita "moderna", não nos ajuda a
encontrar.

 No Brasil, a epidemiologia tem utilizado e reconstruído com senso crítico algumas


idéias contidas na teoria original da transição epidemiológica. Esta suposta teoria
foi derivada da idéia conservadora de etapas inexoráveis do desenvolvimento
social e econômico dos países periféricos, os quais reproduziriam as etapas de
transformação vividas pelos países desenvolvidos. No campo da saúde,
acreditava-se que a modernização implicava etapas lineares e precisas que nos
levariam a um mundo, num primeiro momento, livre das doenças infecciosas e,
mais tarde, talvez até livre das doenças em geral. Os países periféricos apenas
seguiriam os países centrais nestas etapas supostamente pétreas e inexoráveis.
Conectar suas críticas com os debates ocorridos no campo das ciências sociais e
da economia, que desnudavam as relações de dependência e exploração
estabelecidas entre países centrais e periféricos, permitiu a alguns
epidemiologistas denunciar os efeitos negativos desta crença em princípios
lineares e etnocêntricos contidos na teoria da transição e prever os efeitos
danosos da globalização e das políticas neoliberais na América Latina. Permitiu
antever que o quadro das condições de saúde, que já apresentava progresso em
algumas áreas, em muitas outras se agravaria, como no caso da ressurgência
das doenças infecciosas13 e no aumento da violência14.

 No Brasil, a epidemiologia tem recebido forte influência das melhores tradições


metodológicas da epidemiologia praticada em centros acadêmicos dos países
centrais. Vários de nós temos tido a oportunidade de fazer nossas formações ou
de interagir com centros acadêmicos e científicos da melhor tradição da Europa e
dos EUA. Apenas um dado basta para mostrar a importância deste fluxo: nas
décadas de 1980 e 1990, como já vimos formaram-se na Europa ou nos EUA pelo
menos 84 doutores, que hoje atuam no país em grupos de pesquisa
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epidemiológica, muitos deles em posição de liderança1. Atualmente, estudos de


desenhos e análises complexas, envolvendo o que de mais atual existe em termos
de recursos metodológicos da investigação epidemiológica, estão em curso no
país. Se mais não acontece, deve-se antes aos limites dos financiamentos do que
à capacidade para executá-los.

 No Brasil, a epidemiologia tem tido a possibilidade de gerar no seio da


comunidade um conjunto muito especial de indivíduos, híbridos de epidemiólogos-
epistemólogos, que têm contribuído com importantes reflexões sobre a
epidemiologia enquanto disciplina científica e sobre as relações que esta
estabeleceu com outras ciências e campos de prática em nosso contexto15-17. Isto
vem amplificando a nossa capacidade de entender não somente o sentido
histórico da nossa disciplina, mas também dos nossos papéis como atores sociais
na sua construção.

 No Brasil, a epidemiologia vem construindo concepções e uma prática radical de


transdiciplinaridade que, levada às últimas conseqüências, tem permitido a
confluência e o diálogo entre a epidemiologia e diversos outros campos
disciplinares18. Esta prática, executada de forma competente e partilhada,
contribui com diversas outras disciplinas para a articulação de objetivos e
métodos, na busca do entendimento de fenômenos da saúde e da doença em
toda a sua complexidade, e em consonância com as perplexidades que atingem
todos aqueles que fazem ciência nos dias atuais. Assim, os epidemiologistas
brasileiros têm aberto amplas áreas de contato, efetivamente transdisciplinares,
que vão além dos parceiros tradicionais - como os estatísticos e clínicos - para
incluir novos parceiros não menos importantes: sociólogos, antropólogos,
economistas, geógrafos, filósofos, bio-engenheiros, toxicologistas, biólogos
moleculares, matemáticos, entre outros. Este processo, que está apenas se
iniciando, com certeza terá fortes conseqüências no futuro da epidemiologia
praticada no Brasil. Após compreender o quão complexo e multifacetado é o seu
objeto, a epidemiologia lentamente parte para reconstruir seus paradigmas e
métodos, esforço que certamente ultrapassará os limites de suas atuais fronteiras
disciplinares e se alimentará deste exercício transdiciplinar;

17
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

 Por fim, queria chamar a atenção para um aspecto que, apesar do seu caráter
subjetivo, a meu ver não pode ser subestimado. Algo que vai além dos aparentes
racionalismo e objetividade de uma disciplina científica. No Brasil, seja nos
serviços ou nas academias, há entre os epidemiologistas um sentido de missão e
de compromisso que gera um claro sentimento de premência para superar ciclos
históricos e etapas ainda não vencidas do nosso processo de desenvolvimento
social e sanitário. Entretanto, isto também vai além de um engajamento político.
Eu diria que se trata da expressão de um sentimento mais profundo - uma paixão
que nos tem proporcionado reservas de energia para manter e expandir os nossos
compromissos, apesar das adversidades enfrentadas nas instituições
acadêmicas e de saúde do nosso país. Em épocas atuais, pelo menos para
alguns, talvez isto possa parecer estranho, mas não entra em conflito com as
tradições históricas da epidemiologia. Basta lembrar que ela nasceu do
enfrentamento de problemas concretos de saúde, e nós, epidemiologistas,
aceitamos, antes de tudo, o desafio de superá-los.

Em resumo, podemos dizer que se forja no Brasil uma epidemiologia por um lado
profundamente antenada com a evolução da disciplina no plano internacional, como
deve acontecer com qualquer disciplina científica que persegue a sua maturidade e, por
outro, com os pés fincados na realidade, dela procurando extrair elementos que
contribuam para amenizar os problemas de saúde da sociedade. Ao se voltar para o
processo de produção do conhecimento e de refinamentos dos seus conceitos, modelos
e métodos, tem que dialogar com outros campos disciplinares capazes de contribuir para
que isto aconteça. Ao se deter no conhecimento e na transformação de uma realidade
concreta de saúde, tem que desenvolver uma praxis que a envolva em uma dada
realidade social e sanitária, um processo que é antes de tudo político. O refinamento dos
paradigmas deste modelo de conhecimento-ação constitui um dos desafios para as
novas etapas do desenvolvimento da epidemiologia.

A epidemiologia e a consolidação do SUS - perspectivas

Voltemos ao nosso sistema único de saúde, patrimônio do povo brasileiro. A partir do


que foi dito até agora, não resta dúvida que a organização do SUS é conseqüência da
luta e do compromisso de setores progressistas deste país. Não temos dúvida também
18
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

que este compromisso é compartilhado por grande parte dos epidemiologistas. Assim,
desde 1989, os epidemiologistas brasileiros, tendo à frente a Comissão de Epidemiologia
da ABRASCO, vêm estabelecendo planos diretores qüinqüenais para o desenvolvimento
da epidemiologia no Brasil5,11,19. Estes planos têm identificado problemas, propostas e
ações em três grandes capítulos: ensino, pesquisa e serviços. O capítulo dos serviços é
todo dedicado a questões relevantes ao desenvolvimento do nosso sistema de saúde;
nos capítulos de ensino e pesquisa reafirmam-se tais compromissos através de
proposições do mais alto interesse para a sociedade e que possam resultar em
benefícios para a saúde da população, portanto em consonância com as concepções do
SUS.

No momento, estamos sob a égide do III Plano Diretor19 e é em torno dele que
desenvolverei estes comentários finais. Como todo Plano, trata-se de um pacto em torno
do possível. Como membro da comunidade de epidemiologistas brasileiros, partilho
deste pacto, porém como indivíduo tentarei expor algumas idéias complementares sobre
as perspectivas da epidemiologia no Brasil. O Plano apresenta nítidos desenvolvimentos
em relação aos anteriores. No componente da pesquisa, três eixos são destacados: a
desigualdade em saúde, as questões do ambiente e da qualidade de vida e a avaliação
do impacto das tecnologias nos níveis de saúde. No componente de serviços são
destacados: sistemas de informação de interesse epidemiológico, desenvolvimento e
utilização de metodologias para análise das situações e das intervenções em saúde,
práticas epidemiológicas nos programas de vigilância e de avaliação em saúde e,
destaco, inserção em políticas inter e intra-setoriais.

Para pensarmos as perspectivas da epidemiologia em nosso meio e em nosso tempo


temos que buscar entender, em primeiro lugar, que o quadro epidemiológico no Brasil,
ao fazer coexistir as ditas "doenças do atraso" com as "doenças da modernidade", cria
padrões epidemiológicos complexos em que novos problemas aparecem se superpondo,
sem substituir os problemas já existentes, o que amplia a carga de doenças e, como
conseqüência, faz crescer as necessidades de mais recursos para reparar os danos20.

Em segundo lugar, precisamos entender que, antecedendo a superposição das doenças,


temos uma superposição dos riscos, em que novos somam-se aos existentes.
Aumentam as chandes de ocorrência de doenças e agravos à saúde, em decorrência da
falta de solução para vários problemas estruturais e básicos, da manutenção de

19
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

condições de vida inadequados, da insuficiência nos mecanismos que regulam os danos


ao meio ambiente, do crescente aumento de tensão nas relações sociais.

Isto ocorre em um contexto que se caracteriza pela imensas desigualdades, criando


fossos de difícil superação entre as regiões, campo e cidade, bairros das grandes
cidades, classes e etnias, gêneros e gerações.

Para avançarmos na compreensão da situação, temos ainda que entender a relatividade


do tempo cronológico, a fim de elaborar uma crítica contundente e efetiva à proposta de
associar a modernidade em saúde com novas tecnologias, as quais, em geral, são
concebidas e produzidas nos complexos industriais dos países centrais. Assim, basta
olharmos muitas das nossas cidades para ver que, no tocante às condições ambientais
e de vida da maioria das suas populações, elas ainda se encontram no século XIX.
Porém, nestas mesmas cidades, as populações são induzidas a aspirar pelo que de mais
moderno existe na tecnologia biomédica, embora nem sempre elas tenham acesso a tais
modernidades. Antes de tudo, isto serve para demonstrar a mais completa ausência de
sincronia entre o tempo da moderna bio-medicina e o tempo das medidas coletivas com
respeito aos determinantes da saúde da população.

Enfim, temos de entender ainda que a busca pela saúde não constitui processo isolado,
mas um importante componente da complexa trama de dependência econômica,
científica, informacional e cultural, estabelecida entre os países centrais e periféricos.

O caso da epidemia do dengue, que nos assola neste momento, é paradigmático 21.

O Aedes aegypti, mosquito vetor do vírus da dengue, adaptou-se de forma


extremamente eficiente ao degradado ambiente urbano e aos hábitos e costumes que
se desenvolveram em nossas cidades. Neste caso, a bio-medicina até o momento não
nos oferece nada de concreto para o seu controle, inexistindo vacinas ou drogas
eficazes, e as medidas de prevenção disponíveis, direcionadas para a eliminação do seu
transmissor, o Aedes aegypti, através de controle químico, mostram-se de alto custo e
baixa efetividade. Resta-nos implementar uma estratégia de enfrentamento do problema,
que não seja apenas fundamentada em ações sobre sua base biológica, mas sim sobre
sua base socioambiental e cultural. Ou seja, precisamos em última instância reorganizar
e aplicar propostas que o conhecimento epidemiológico e da saúde pública vem
construindo há décadas.

20
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

Como evitar novas epidemias é apenas um exemplo dos desafios e prioridades que
estão colocados à epidemiologia, tanto nas academias como nos serviços. Prioridades,
existem muitas outras, porem dentre estas eu destacaria a avaliação do impacto
populacional das tecnologias em saúde, a intensificação dos processos regulatórios em
saúde e as desigualdades em saúde. Falaremos brevemente de cada uma delas 3.

Avaliação do impacto de tecnologias

A capacidade do complexo industrial de produzir e colocar em uso novas tecnologias


voltadas para o cuidado à saúde (drogas, aparelhos, procedimentos e sistemas
organizacionais para a atenção à saúde) tem crescido exponencialmente. Ao lado do
potencial de cura ou de prevenção (nem sempre confirmado) e dos efeitos indesejáveis
destas tecnologias, estão seus altos e crescentes custos, razão de preocupação de
todos aqueles com alguma responsabilidade sobre a saúde dos indivíduos ou das
populações. A visão dominante de progresso social traz consigo a idéia equivocada de
que este progresso ocorre em conseqüência da assimilação de novas tecnologias

Várias estratégias têm sido buscadas para demonstrar o quanto as tecnologias, as ações
e os serviços de saúde podem ser eficazes ou efetivos, mas há evidências de que uma
parte importante dos mesmos, apesar de já se encontrarem em uso, não foi
adequadamente avaliada.

Porém, se todo um esforço sistemático de avaliação não tem superado os problemas


inerentes à definição da eficácia das tecnologias, maiores ainda são as limitações com
relação à avaliação da sua efetividade. Mesmo obtendo níveis aceitáveis de eficácia
quando analisadas isoladamente, muitas dessas tecnologias são pouco efetivas quando
utilizadas como parte rotineira de ações, programas e serviços de saúde.

Contribuições para os processos regulatórios

É função do Estado moderno regular uma série numerosa e complexa de parâmetros


vitais que têm implicações nos níveis de saúde. Nosso modelo de modernidade nos
coloca em contato com uma série de exposições das mais diversas ordens, muitas das

21
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

quais com potenciais efeitos diretos ou indiretos na saúde, tais como: os poluentes, os
aditivos alimentares, os inseticidas diversos, as radiações etc. Além da resistência e,
muitas vezes, da violência das grandes corporações, existem grandes dificuldades
metodológicas nas investigações que buscam demonstrar o papel de muitas destas
exposições como sendo de risco à saúde, a epidemiologia dá uma contribuição marcante
e necessária neste campo. Os desafios metodológicos são grandes quando se deseja
estudar na população riscos de pequena intensidade, efeitos sinérgicos etc. Estas
dificuldades metodológicas têm mostrado a necessidade de em muitas situações
utilizarmos o princípio da precaução. Entre nós, a estruturação de órgãos reguladores
como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA deve ser destacado,
conquanto possamos também dizer que os avanços estão muito aquém dos desafios
colocados.

As desigualdades em saúde

Tem sido fartamente documentada a situação paradoxal de o Brasil apresentar


indicadores econômicos em níveis incompatíveis com seus indicadores sociais,
incluindo-se aí os de saúde (p. ex., taxa de mortalidade infantil e expectativa de vida ao
nascer). Assim, ao mesmo tempo em que se observa uma tendência de melhoria para
alguns indicadores de saúde no Brasil, a velocidade desta tendência proporciona a
persistência e mesmo a ampliação das diferenças com muitos países similares do ponto
de vista do desenvolvimento econômico.

Outra ordem, não menos importante, de desigualdades diz respeito às diferenças


observadas nos indicadores de saúde entre as regiões do Brasil. Estas diferenças
geográficas reproduzem-se nas grandes cidades, onde em suas periferias são
constatadas condições inaceitáveis de vida e saúde.

Na atualidade, novas compreensões do fenômeno das desigualdades são geradas, tanto


a partir de percepções acadêmicas como a partir de reflexões dos próprios atores sociais.
Assim, além das classes sociais, definidas de diferentes maneiras segundo as diferentes
teorias sociais, são identificadas desigualdades em saúde com relação a gênero, raça,
grupos religiosos ou culturais, e outras diferenciações históricas de cada sociedade. Há

22
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

razoáveis evidências empíricas de que as condições de saúde observáveis nas


populações acompanham a forma com que estas desigualdades se apresentam.

As desigualdades em saúde têm sido apresentadas sob duas diferentes formas. A


primeira relaciona-se ao acesso aos cuidados de saúde para aqueles que ficaram
doentes, o que, em uma sociedade de mercado, reflete a capacidade de consumo dos
seus diferentes grupos. A segunda forma de desigualdade em saúde está relacionada à
chance de ficar doente ou sofrer um agravo, o que reflete a distribuição desigual dos
determinantes sociais, culturais e ambientais das doenças. Contemporaneamente,
muitas sociedades adotam entre os seus direitos sociais (nem sempre respeitados) o
acesso igualitário do indivíduo doente aos serviços de saúde. No tocante à proteção,
existe um menor grau de consenso sobre sua constituição como direito social, a despeito
do que a Constituição Brasileira, bastante avançada neste aspecto, assegura no seu
artigo 196: a saúde como direito de todos, prevendo "acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Isto significa que o Estado, por princípio constitucional, não apenas deve assumir de
maneira equânime a responsabilidade pela cura e recuperação de qualquer indivíduo
doente, independentemente da sua posição no sistema social, mas também a
responsabilidade equânime com relação aos meios e recursos para prevenção das
doenças e para a proteção e promoção da saúde no seu sentido mais amplo. A
epidemiologia pode e deve dar importantes contribuições nos esforços de conferir
sentido a este princípio constitucional. Esta é uma da tarefa das mais urgentes e para a
qual com certeza cada um de nós pode dar contribuições.

É próprio das utopias propor a extinção pura e simples de desigualdades sociais. Porém,
no mundo real, fazem-se necessárias transformações e intervenções complexas em
esferas que, em geral, encontram-se fora da capacidade de intervenção dos
epidemiologistas ou de outros profissionais da saúde coletiva. Neste contexto, cabe à
epidemiologia, através do seu patrimônio conceitual e metodológico, desnudar as
desigualdades em saúde, transformando o conhecimento produzido em fundamentos
para estratégias que possam contribuir para a sua redução. Em decorrência do seu
compromisso com mudanças efetivas nos níveis de saúde da população, cabe à
epidemiologia a tarefa não menos importante de, sob forma convincente, informar os

23
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

diversos agentes sociais sobre as implicações morais e éticas conseqüentes à


manutenção de tais desigualdades.

Recente proposta do CENEPI de desenvolver um projeto de monitoramento das


desigualdades em saúde no país constitui passo importante e que nos ajudará a
conhecer suas tendências a longo prazo, e assim ir ampliando a compreensão dos
mecanismos que, em nosso contexto, conectam as desigualdades sociais com as
desigualdades em saúde22.

Conclusões

Da mesma forma que as causas das doenças e agravos à saúde têm suas raízes na
sociedade, as ações que buscam efetivamente melhorar os padrões de saúde da
população e, assim, reduzir a ocorrência das doenças, devem ultrapassar os limites
tipicamente definidos pelo setor e passam a exigir ações coordenadas, articulando as
diferentes esferas e níveis do governo e da sociedade. O desenvolvimento de novos
modelos de atenção à saúde tem, para o SUS, em todos os seus níveis, entre outras
implicações, buscar maneiras de pôr em prática o direito constitucional à eqüidade, não
só em relação ao acesso ao cuidado, mas também às exposições e aos riscos, ou seja
às chances de ficar doente.

Experiências vêm sendo desenvolvidas na busca da integração inter-setorial de ações,


às quais apenas faremos referência. Podemos citar a experiência das denominadas
Cidades Saudáveis. Tal modelo vem sendo utilizado em diferentes continentes e
consiste em um complexo integrado de ações visando melhorar as condições de vida e
saúde das populações urbanas23. As concepções contidas no movimento de Promoção
da Saúde incluem a perspectiva integradora de enfrentamento dos problemas de saúde.
Entre nós, o desenvolvimento do conceito de Vigilância da Saúde propõe ações amplas
de monitoramento dos problemas de saúde e dos riscos ambientais em busca de uma
perspectiva articulada das ações de saúde24. O Programa de Saúde da Família, ainda
que com concepções mais limitadas que as anteriores, pelo simples fato de estar sendo
efetivamente implementado em todo o país pode se constituir em importante elo de uma
cadeia reorganizadora do sistema de saúde25. A recente elaboração de uma agenda
nacional de saúde, ao definir prioridades e definir conjuntos organizados de ações, é
24
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

alvissareira, a despeito de uma certa timidez, limitando-se a ações setoriais para


problemas que exigem intervenções mais abrangentes e inter-setoriais, previstas
inclusive no aparato legal do SUS.

Medidas na atual gestão do CENEPI, como transferências fundo-a-fundo para ações de


epidemiologia no SUS mediante critérios epidemiológicos, e o desenvolvimento de
indicadores claros de acompanhamento e avaliação destas atividades são também
avanços importantes que devem ser destacados.

Podemos verificar que, no esforço de viabilização de novas alternativas de modelos


assistenciais compatíveis com os princípios estabelecidos pelo SUS e com as
necessidades da sociedade brasileira, faz-se necessário, de imediato e em todos os
níveis, ampliar a capacidade de monitoramento, análise, avaliação e investigação no
tocante às condições de saúde e seus determinantes. Com recursos do VIGISUS, temos
visto a abertura de uma série de editais para pesquisa científica e a organização de
Centros Colaboradores do CENEPI em áreas estratégicas e inovadoras. A ABRASCO
tem estado à frente da luta em prol da criação de uma Agência Nacional de Pesquisa em
Saúde.

Todos estes são passos importantes para que ampliemos a capacidade de visualizar e
entender os problemas que nos afligem no presente, e devemos avaliar os fatores
responsáveis pelos nossos fracassos e pelos nossos sucessos para assim podermos
projetar com mais solidez o nosso futuro. No entanto, é fundamental a difusão destas
concepções e princípios por todo o tecido social, de tal forma que os novos modelos de
atenção à saúde não sejam definidos ou aceitos como soluções profissionais ou
tecnocráticas, mas sim como partes articuladas do conjunto de políticas sociais e
econômicas, com o objetivo maior de desenvolver uma sociedade economicamente
sólida, porém social e ambientalmente justa, democrática e regionalmente equilibrada.
Dada estas condições, reduções significativas na ocorrência de uma série de patologias
infecciosas e crônicas certamente serão observadas, e esta é etapa inicial para a
construção da utopia de uma sociedade com saúde.

Por fim, não poderia concluir sem dizer que, apesar do racionalismo que me caracteriza,
ao escrever estas linhas esteve sempre se movendo em meus pensamentos a idéia
persistente de que este rico processo de que falei tem como construtores, não seres
abstratos, mas seres concretos, homens e mulheres de fibra e coragem, companheiros
25
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

fraternos que vêm dedicando suas energias e suas inteligências para a construção, no
Brasil, de uma epidemiologia digna e comprometida. Além dos dados frios que estão em
seus questionários, computadores, tabelas e gráficos, em seus corações e mentes há
sentimentos nobres e sinceros de humanismo, compaixão, paixão e clarividência que
nos fazem, neste agir epidemiológico, reafirmar o projeto histórico de contribuir para a
construção de um sistema de saúde mais justo, efetivo e equânime e, portanto, em prol
de um mundo mais saudável.

26
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

3- HISTÓRIA NATURAL E PREVENÇÃO DE DOENÇAS

CONCEITO DE EPIDEMIOLOGIA

Em meados do século passado, por ocasião de uma epidemia de cólera em Londres,


John Snow (1854), considerado o pai da epidemiologia, concluiu pela existência de uma
associação causal entre a doença e o consumo de água contaminada por fezes de
doentes, rejeitando a hipótese de caráter miasmático da transmissão, então em voga.

Costa & Costa (1990), comentando a idéia veiculada no parágrafo anterior, referem que
“... Snow desenvolveu uma teoria sobre o modo de transmissão do cólera, estudando as
epidemias em Londres em meados do século XIX, que de maneira alguma pode ser lida
como uma associação causal entre doença e o consumo de água contaminada. Ainda
que efetivamente Snow tenha descoberto que a água é o mecanismo de transmissão do
cólera, não resta também dúvida de que sua obra não se restringe a esse fato. Pelo
contrário, Snow busca precisar a rede de processos que determinam a distribuição de
doença nas condições concretas de vida da cidade londrina. A leitura restrita sobre o
trabalho de Snow fixa a atenção nos achados a respeito dos mecanismos de transmissão
em detrimento do significado do olhar do autor sobre o cotidiano, os hábitos e modos de
vida, os processos de trabalho e a natureza das políticas públicas. É pensando a doença
em todas as suas dimensões que o autor consegue integrar essas expressões do social
em seu raciocínio sobre o processo de transmissão".

Daquela época até o início do século atual, a epidemiologia foi ampliando seu campo, e
suas preocupações concentraram-se sobre os modos de transmissão das doenças e o
combate às epidemias.

A partir das primeiras décadas, com a melhoria do nível de vida, especialmente nos
países desenvolvidos, e com o conseqüente declínio na incidência das doenças
infecciosas, outras enfermidades de caráter não-transmissível (doenças
cardiovasculares, câncer e outras) passaram a ser incluídas como objeto de estudos
epidemiológicos, além do que, pesquisas mais recentes, sobretudo as que utilizam o
método de estratificação social, enriqueceram esse campo da ciência, ensejando novos
27
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

debates.

Atualmente, além de dispor de instrumental específico para análise do perfil de saúde-


doença na população, a epidemiologia possibilita aclarar questões levantadas pelas
rotinas das ações de saúde, gerando novos conhecimentos. Seu fim último é contribuir
para a melhoria da qualidade de vida e o soerguimento do nível de saúde das
coletividades humanas.

Uma definição precisa do termo epidemiologia não é fácil: sua temática é dinâmica e seu
objeto, complexo. Pode-se, de uma maneira simplificada, conceituá-la como: ciência que
estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição
e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à
saúde coletiva, propondo medidas específicas de prevenção, controle, ou erradicação
de doenças, e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento,
administração e avaliação das ações de saúde.

Esta definição pode ser aclarada pelo aprofundamento de algumas concepções nela
expressas:

a) a priori, independente de qualquer análise, pode ser dito que a atenção da


epidemiologia está voltada para as ocorrências, em escala massiva de doença e
de não-doença envolvendo pessoas agregadas em sociedades, coletividades,
comunidades, grupos demográficos, classes sociais ou quaisquer outros coletivos
formados por seres humanos;

b) o universo dos estados particulares de ausência de saúde é estudado pela


epidemiologia sob a forma de doenças infecciosas (sarampo, difteria, malária
etc.), não-infecciosas (diabetes, bócio endêmico, depressões etc.) e agravos à
integridade física (acidentes, homicídios, suicídios);

c) considerando o conjunto de processos sociais interativos que, erigidos em


sistema, definem a dinâmica dos agregados sociais, um em especial constitui o
campo sobre o qual trabalha a epidemiologia: é o processo saúde-doença.
Segundo Laurell (1983), o processo saúde-doença da coletividade pode ser
entendido como “o modo específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo
biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares à
28
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o


desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da
doença”.

Colocada neste contexto, a expressão saúde-doença é um qualificativo empregado para


adjetivar genericamente um determinado processo social, qual seja o modo específico
de passar de um estado de saúde para um estado de doença e o modo recíproco,
Descontextualizada, a expressão saúde-doença refere-se a uma ampla gama que vai
desde “o estado de completo bem estar físico, mental e social” até o de doença,
passando pela coexistência de ambos em proporções diversas. A ausência gradativa ou
completa de um destes estados corresponde ao espaço do outro e vice-versa;

d) entende-se por distribuição o estudo da variabilidade da freqüência das


doenças de ocorrência em massa, em função de variáveis ambientais e
populacionais, ligadas ao tempo e ao espaço.

e) A análise dos fatores determinantes envolve a aplicação do método


epidemiológico ao estudo de possíveis associações entre um ou mais fatores
suspeitos e um estado característico de ausência de saúde, definido como
doença;

f) A prevenção visa empregar medidas de profilaxia a fim de impedir que os


indivíduos sadios venham a adquirir a doença; o controle visa baixar a incidência
a níveis mínimos: a erradicação, após implantadas as medidas de prevenção
consiste na não-ocorrência de doença, mesmo em ausência de quaisquer
medidas de controle; isto significa permanência da incidência zero (a varíola está
erradicada desde 1977).

A Associação Internacional de Epidemiologia (IEA), em seu “Guia de Métodos de Ensino”


(1973), define epidemiologia como “o estudo dos fatores que determinam a freqüência e

29
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

a distribuição das doenças nas coletividades humanas. Enquanto a clínica dedica-se ao


estudo da doença no indivíduo, analisando caso a caso, a epidemiologia debruça-se
sobre os problemas de saúde em grupos de pessoas – às vezes pequenos grupos – na
maioria das vezes envolvendo populações numerosas”.

"1. Descrever a distribuição e a magnitude dos problemas de saúde nas populações


humanas.

2. Proporcionar dados essenciais para o planejamento, execução e avaliação das ações


de prevenção, controle e tratamento das doenças, bem como para estabelecer
prioridades.

3. Identificar fatores etiológicos na gênese das enfermidades”.

Muitas doenças, cujas origens até bem recentemente não encontravam explicação, têm
tido suas causas esclarecidas pela metodologia epidemiológica, que tem por base o
método científico aplicado da maneira mais abrangente possível a problemas de
doenças ocorrentes em nível coletivo.

Hiroshi Nakajima, diretor da Organização Mundial de Saúde, por ocasião da 12ª Reunião
Científica Internacional da Associação Internacional da Epidemiologia (1990), analisando
o alcance da epidemiologia e concentrando seus comentários sobre a epidemiologia na
AIDS, comenta que: “O descobrimento desta enfermidade devemo-lo a epidemiologia! A
AIDS foi reconhecida pela primeira vez como uma enfermidade em 1981, antes que o
vírus da imunodeficiência humana, dois anos mais tarde, fosse identificado, ou que se
suspeitasse que era o agente causador da AIDS.

A observação epidemiológica anotou a prevalência de uma combinação curiosa e


inexplicável de manifestações clínicas de outros estados patológicos: astenia, perda de
peso, dermatose, deterioração do sistema imunológico e o sarcoma de Kaposi, assim
como a presença de “infecções oportunistas”, como a pneumonia por Pneumocystis
carinii. Ainda hoje em dia, é este complexo de sinais clínicos, em combinação com o

30
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

resultado positivo da prova de HIV, o que define um “caso de AIDS”. Pode ser o HIV
positivo e, ainda assim, não ser portador da AIDS. Ademais, foi através da análise
epidemiológica que inicialmente a síndrome foi relacionada com certos grupos de
população e comportamentos de risco conexos. Se enfocamos a AIDS como um
epidemia mundial, ela se nos apresenta como algo novo e súbito; porém se o nosso
ponto de vista é a AIDS como doença, e o vírus como sua causa, concluímos que
nenhum dos dois são novos; pelo menos datam dos anos 50. Fizeram falta as
ferramentas de epidemiologia para nos dizer que enfrentávamos uma patologia discreta
e letal”.

Através da epidemiologia, Gregg, na Austrália, em 1941, descobriu a associação


existente entre malformações congênitas e rubéola adquirida pela mãe durante os
primeiros meses de gestação.

Leucemia na infância, provocada pela exposição aos raios X durante a gestação;


trombose venosa relacionada ao uso de contraceptivos orais; ingestão de talidomida e o
aparecimento de numerosos casos de focomelia; hábito de fumar e câncer de pulmão;
cegueira em crianças nordestinas subnutridas e sua relação com a avitaminose A;
mortalidade infantil e classes sociais; são alguns dentre os inúmeros exemplos de
associações estudadas pelo método epidemiológico.

A epidemiologia é o eixo da saúde pública. Proporciona as bases para avaliação das


medidas de profilaxia, fornece pistas para diagnose de doenças transmissíveis e não
transmissíveis e enseja a verificação da consistência de hipóteses de causalidade. Além
disso, estuda a distribuição da morbidade a fim de traçar o perfil de saúde-doença nas
coletividades humanas; realiza testes de eficácia e de inocuidade de vacinas desenvolve
a vigilância epidemiológica; analisa os fatores ambientais e sócio-econômicos que
possam ter alguma influência na eclosão de doenças e nas condições de saúde; constitui
um dos elos de ligação comunidade/governo, estimulando a prática da cidadania através
do controle, pela sociedade, dos serviços de saúde.

Ainda, segundo Nakajima (1990): “A epidemiologia não se limita a avaliar a situação


sanitária e sócio-econômica existente (ou passada). Se aceitarmos o critério mais amplo
do prof. Cruiskshank, teremos que insistir na necessidade de avaliação das
tendências futuras , isto é, uma epidemiologia prospectiva”. A pergunta é: o que nos
31
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

dizem as tendências atuais sobre a provável situação futura para a qual teremos que
fazer planos e tomar (ou não tomar) medidas corretivas?Qual será o provável resultado
amanhã? Por conseguinte, estamos presenciando o surgimento de uma nova dimensão
na ciência da epidemiologia, que será muito importante para o planejamento, a dotação
dos recursos, o manejo e a avaliação da saúde, e que poderia afetar o curso futuro da
história humana”.

Autores norte-americanos, europeus e latino-americanos, entre os quais se destacam


Mac Mahon (1975), Leavel & Clark (1976), Barker (1976), Lilienfeld (1976), Forattini
(1976), Belda (1976), Mausner & Bahn (1977), Rojas (1978), Colimon (1978), Jenicek &
Cleroux (1982), definem epidemiologia de modo bastante semelhante, tendo como ponto
comum “o estudo da distribuição das doenças nas coletividades humanas e dos fatores
causais responsáveis por essa distribuição”.
Esse conceito toma por base relações existentes entre os fatores do ambiente – físicos,
químicos e biológicos – do agente e do hospedeiro ou suscetível. Dentro desta
concepção, os fatores culturais e sócio-econômicos são partes integrantes do sistema,
contribuindo à sua maneira, associados a outros fatores causais, para a eclosão em
massa de doenças e agravos à saúde.
Outros autores, especialmente latino-americanos, entre os quais se salientam Uribe
(1975), Laurell (1976), Tambellini (1976), Arouca (1976), Cordeiro (1976), Breihl (1980),
Rufino & Pereira (1982), Luz (1982), Garcia (1983), Barata (1985), Marsiglia (1985),
Carvalheiro (1986), Possas (1989), Goldbaum (1990) e Loureiro (1990), avançam em
direção a uma nova epidemiologia cuja visão dialética se posiciona contra a fatalidade
do “natural” e do “tropical”. Dá-se ênfase ao estudo da estrutura sócio-econômica fim de
explicar o processo saúde-doença de maneira histórica, mais abrangente, tornando a
epidemiologia um dos instrumentos de transformação social. Essa nova epidemiologia,
também chamada de epidemiologia social, no conceito de Breihl, “deve ser um conjunto
de conceitos, métodos e formas de ação prática que se aplicam ao conhecimento e
transformação do processo saúde-doença na dimensão coletiva ou social”.
Por outro lado, mostrando ser a epidemiologia uma ciência viva, em fase de
crescimento e transformação, rica internamente em diversidades criativas, alguns
autores têm se dedicado à sua crítica sob o ponto de vista epistemológico, buscando
estabelecer fundamentos e analisar conceitos básicos ( Almeida Filho, 1989; Gonçalves,
1990; Costa & Costa, 1990; Ayres, 1992).

32
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

HISTÓRIA NATURAL DA DOENÇA


"Sob o ponto de vista do bem público, uma das implicações práticas da epidemiologia é
que o estudo das influências externas tornam a prevenção possível, mesmo quando a
patogênese da doença concernente não é ainda compreendida. Mas isto não quer dizer
que a epidemiologia seja, de alguma maneira, oposta ao estudo de mecanismos ou,
reciprocamente, que o conhecimento do mecanismo não seja as vezes crucial para a
prevenção”. (Acheson, 1979). O autor, embora sem se referir explicitamente, opina que
a prevenção se faz com base no conhecimento da história natural da doença.
História natural da doença é o nome dado ao conjunto de processos interativos
compreendendo “as inter-relações do agente, do suscetível e do meio ambiente que
afetam o processo global e seu desenvolvimento, desde as primeiras forças que criam o
estímulo patológico no meio ambiente, ou em qualquer outro lugar, passando pela
resposta do homem ao estímulo, até às alteração que levam a um defeito, invalidez,
recuperação ou morte”. (Leavell & Clark, 1976).
A história natural da doença, portando, tem desenvolvimento em dois períodos
seqüenciados: o período epidemiológico e o período patológico. No primeiro, o interesse
é dirigido para as relações suscetível-ambiente, no segundo, interessam as modificações
que se passam no organismo vivo.
Abrange, portanto, dois domínios interagentes, consecutivos e mutuamente exclusivos,
que se completam: o meio ambiente, onde ocorrem as pré-condições, e o meio
interno, locus da doença, onde se processaria, de forma progressiva, uma série de
modificações bioquímicas, fisiológicas e histológicas, próprias de uma determinada
enfermidade. Alguns fatores são limítrofes. Situam-se, de forma indefinida, entre os
condicionantes pré-patogênicos e as patologias explícitas. São anteriores aos primeiros
transtornos vinculados a uma doença específica, sem se confundir com a mesma e, ao
mesmo tempo, são intrínsecos ao organismo do suscetível. Em uma situação normal,
em ausência de estímulos, jamais se exteriorizariam como doenças. Em presença destes
fatores intrínsecos preexistentes, os estímulos externos transformam-se em estímulos
patogênicos. Dentre as pré-condições internas, citam-se os fatores hereditários,
congênitos ou adquiridos em conseqüência de alterações orgânicas resultantes de
doenças anteriores.
33
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

O homem se faz presente em todas estas etapas.


É gerador das condições sócio-econômicas favorecedoras das anomalias ecológicas
predisponentes a alguns dos agentes diretamente responsáveis por doenças. Ao mesmo
tempo, é a principal vítima do contexto de agressão à saúde por ele favorecido.
Na expressão história natural da doença, o "natural" não pode e não deve ser entendido
como uma declaração de fé de ordem filosófica, negando o social e privilegiando o
natural. Na verdade, não há como se negar que, na história da doença, o social e o
natural têm, cada qual, sua hora e sua vez.
Ao tratar a história natural de uma doença em particular como sendo uma descrição de
sua evolução, desde os seus primórdios no ambiente biopsicossocial até seu surgimento
no suscetível e conseqüente desenvolvimento no doente, deve-se ter um esquema
básico, de caráter geral, onde ancorar as descrições específicas. Este esquema geral,
arbitrário, é apenas uma aproximação da realidade, sem pretensão de funcionar como
uma descrição da mesma (Fig. 2-1). A história natural das doenças, sob este ponto de
vista, nada mais é do que um quadro esquemático que dá suporte á descrição das
múltiplas e diferentes enfermidades. Sua utilidade maior é de apontar os diferentes
métodos de prevenção e controle, servindo de base para a compreensão de situações
reais e específicas, tornando operacionais as medidas de prevenção.

34
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

4- INDICADORES DE SAÚDE

Todos os trabalhadores de saúde têm a necessidade de conhecer seu público, território,


suas interelações nesse meio ambiente, suas características sociais e muito mais. Mas
como fazê-lo? Sem essa resposta, fica difícil planejar ações que sejam efetivas na
mudança de uma dada realidade. Então, o que fazer? Onde procurar essas respostas?

Podemos definir Indicadores de Saúde como instrumentos utilizados para medir uma
realidade, como parâmetro norteador, instrumento de gerenciamento, avaliação e
planejamento das ações na saúde, de modo a permitir mudanças nos processos e
resultados. O indicador é importante para nos conduzir ao resultado final das ações
propostas em um planejamento estratégico.

Mas como escolher o melhor indicador? Como ele é construído? O que é necessário
para que esse indicador seja o mais adequado a uma situação?

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reuniu na década de 1950 um comitê que


pudesse propor um método capaz de definir e avaliar o nível de vida de uma população.
Porém, chegou-se à conclusão de que seria impossível construir um único índice. Foi
sugerido então que cada um dos 12 itens propostos deveria ser avaliado separadamente.
Conheça-os:

 1. Saúde, incluindo condições demográficas;

 2. Alimentos e nutrição;

 3. Educação, incluindo alfabetização e ensino técnico;

 4. Condições de trabalho;

 5. Situação de emprego;

 6. Consumo e economia gerais;

 7. Transporte;
35
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

 8. Moradia, incluindo saneamento e instalações domésticas;

 9. Vestuário;

 10. Recreação;

 11. Segurança social;

 12. Liberdade humana.

Para o profissional da saúde, é importante conhecer o primeiro indicador


proposto, Saúde e Condições Demográficas, no qual o Indicador de Saúde deve
expressar as condições de saúde de um indivíduo ou de uma população. Quando
falamos de Indicadores em Saúde no Brasil, é importante saber um pouco a respeito da
Rede Interagencial de Informações para a Saúde (RIPSA), criada a partir da
implementação pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em 1995 da
Iniciativa Regional de Dados Básicos em Saúde, com objetivo de difundir informações a
respeito da situação e tendências na saúde nos países da América Latina. No Brasil,
houve a criação da RIPSA por meio de um grupo de trabalho com representantes do
Ministério da saúde, OPAS e outras instituições de informação em saúde (IBGE,
ABRASCO, IPEA, FMUSP), que teve sua formalização em Portaria ministerial no ano de
1996.

A RIPSA tem como objetivo estabelecer as bases de dados e informações produzidos


no país; articular participação de instituições para produção e análise de dados;
implementar mecanismos de apoio à produção de dados e informações; promover
intercâmbio entre subsistemas de informação da administração pública; contribuir para
estudos e compreensão do quadro sanitário brasileiro; fomentar mecanismos que
promovam o uso de informação em processos decisórios na SUS. (RIPSA, 2012).

Os Indicadores disponíveis para consulta na web pela RIPSA em seu site no


link: http://fichas.ripsa.org.br/2012/ , de forma agrupada são:

 Demográficos - Medem a distribuição de fatores determinantes da situação de


saúde relacionados à dinâmica populacional na área geográfica referida;

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SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

 Sócioeconômicos - Medem a distribuição dos fatores determinantes da situação


de saúde relacionados ao perfil econômico e social da população residente na
área geográfica referida;

 Mortalidade - Informam a ocorrência e distribuição das causas de óbito no perfil


da mortalidade da população residente na área geográfica referida;

 Morbidade - Informam a ocorrência e distribuição de doenças e agravos à saúde


na população residente na área geográfica referida;

 Fatores de Risco e de Proteção - Medem os fatores de risco (por ex. tabaco,


álcool), e/ou proteção (por ex. alimentação saudável, atividade física, aleitamento)
que predispõe à doenças e agravos ou, protegem das doenças e agravos;

 Recursos - Medem a oferta e a demanda de recursos humanos, físicos e


financeiros para atendimento às necessidades básicas de saúde da população na
área geográfica referida;

 Cobertura - Medem o grau de utilização dos meios oferecidos pelo setor público
e pelo setor privado para atender às necessidades de saúde da população na
área geográfica referida. (RIPSA, 2012)

Podemos obter dados em outros locais, dentre este podemos citar o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) e o Sistema Estadual de Análise de Dados (SEAD)
são instituições que disponibilizam à população informações relacionadas à situação
demográfica, à situação socioeconômica, à saúde, ao trabalho, entre outras, sendo,
portanto, importante fonte para pesquisas relacionadas. Atualmente, com os recursos
tecnológicos existentes, não é difícil você encontrar a descrição de um indicador, sua
aplicabilidade, sua fonte de dados, suas limitações. O importante é escolher o que melhor
se aplicar ao seu objetivo.

Os indicadores de saúde são usados como ferramenta para identificar, monitorar, avaliar
ações e subsidiar as decisões do gestor. Por meio deles é possível identificar áreas de
risco e evidenciar tendências. Além desses aspectos, é importante salientar que o

37
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

acompanhamento dos resultados obtidos fortalece a equipe e auxilia no direcionamento


das atividades, evitando assim o desperdício de tempo e esforços em ações não efetivas.

Considerando a informação como subsídio para o planejamento de uma equipe de


trabalho, precisaremos escolher quais indicadores serão usados em nosso
planejamento, quando então, a partir desta escolha, vamos refletir a respeito dos
instrumentos de coleta de dados, uma vez que a "alimentação" correta destes
instrumentos é condição necessária para obtenção do resultado final do processo que
reflita as situação real, qualquer inconsistência neste resultado, comprometerá o valor
da informação, portanto, quanto mais simples e compreensível for o instrumento de
coleta, melhor será essa captação e seu resultado final.

O monitoramento deste processo, desde a captação do dado até os relatórios finais é


imprescindível, pois a confiança do usuário no indicador está relacionada à segurança
de que a informação obtida reflete uma realidade e não mera percepção não
fundamentada.

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SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

5- SAÚDE DA FAMÍLIA

O programa saúde da família

Ao priorizar a atenção básica, o PSF não faz uma opção econômica pelo mais barato,
nem técnica pela simplificação, nem política por qualquer forma de exclusão. A
tecnologia, é bom que se reafirme, é uma conquista que o setor saúde entende como
fundamental para o sistema, mas que vem sendo utilizada de forma excludente,
deixando de fora boa parcela da população. O PSF não é uma peça isolada do sistema
de saúde, mas um componente articulado com todos os níveis. Dessa forma, pelo melhor
conhecimento da clientela e pelo acompanhamento detido dos casos, o programa
permite ordenar os encaminhamentos e racionalizar o uso da tecnologia e dos recursos
terapêuticos mais caros. O PSF não isola a alta complexidade, mas a coloca
articuladamente a disposição de todos. Racionalizar o uso, nesse sentido, é
democratizar o acesso.

Com base nessas premissas, o Programa Saúde da Família representa tanto uma
estratégia para reverter a forma atual de prestação de assistência à saúde como uma
proposta de reorganização da atenção básica como eixo de reorientação do modelo
assistencial, respondendo a uma nova concepção de saúde não mais centrada somente
na assistência à doença mas, sobretudo, na promoção da qualidade de vida e
intervenção nos fatores que a colocam em risco ¾ pela incorporação das ações
programáticas de uma forma mais abrangente e do desenvolvimento de ações
intersetoriais. Caracteriza-se pela sintonia com os princípios da universalidade, eqüidade
da atenção e integralidade das ações. Estrutura-se, assim, na lógica básica de atenção
à saúde, gerando novas práticas e afirmando a indissociabilidade entre os trabalhos
clínicos e a promoção da saúde.

Assim, ao encaminhar os pacientes com mais garantia de referência e menos


desperdício, o Programa Saúde da Família amplia o acesso de todos aos benefícios
tecnológicos.

O modelo de atenção preconizado pelo Saúde da Família já foi testado em vários países,
com contextos culturais de diferentes dimensões e níveis diferenciados de
desenvolvimento socioeconômico, como por exemplo Canadá, Reino Unido e Cuba,

39
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

resolvendo mais de 85% dos casos ¾ o percentual restante destina-se a unidades mais
complexas. Além do mais, o programa permite uma forte integração entre o Ministério,
as secretarias estaduais, os municípios, a comunidade local e outros parceiros, em
benefício de todos.

Por seus princípios, o Programa Saúde da Família é, nos últimos anos, a mais importante
mudança estrutural já realizada na saúde pública no Brasil. Junto ao Programa dos
Agentes Comunitários de Saúde ¾ com o qual se identifica cada vez mais ¾ permite a
inversão da lógica anterior, que sempre privilegiou o tratamento da doença nos hospitais.
Ao contrário, promove a saúde da população por meio de ações básicas, para evitar que
as pessoas fiquem doentes. Porém, se o programa restringir-se apenas à atenção
básica, fracassará. A aposta do Brasil é no SUS, na atenção integral e em todos os níveis
de complexidade.

A estratégia do PSF propõe uma nova dinâmica para a estruturação dos serviços de
saúde, bem como para a sua relação com a comunidade e entre os diversos níveis e
complexidade assistencial. Assume o compromisso de prestar assistência universal,
integral, equânime, contínua e, acima de tudo, resolutiva à população, na unidade de
saúde e no domicílio, sempre de acordo com as suas reais necessidades ¾ além disso,
identifica os fatores de risco aos quais ela está exposta, neles intervindo de forma
apropriada.

Não apenas as unidades básicas, mas todo o sistema deverá estar estruturado segundo
a lógica da estratégia em questão, pois a continuidade da atenção deve ser garantida
pelo fluxo contínuo setorial, sem solução de continuidade nesse processo. A unidade
básica de saúde, sob a estratégia da Saúde da Família, deve ser a porta de entrada do
sistema local de saúde, mas a mudança no modelo tradicional exige a integração entre
os vários níveis de atenção.

O PSF representa ações combinadas a partir da noção ampliada de saúde ¾ que


engloba tudo aquilo que possa levar a pessoa a ser mais feliz e produtiva ¾ e se propõe
a humanizar as práticas de saúde, buscando a satisfação do usuário pelo estreito
relacionamento dos profissionais com a comunidade, estimulando-a ao reconhecimento
da saúde como um direito de cidadania e, portanto, expressão e qualidade de vida.

40
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

Uma das principais estratégias do Saúde da Família é sua capacidade de propor


alianças, seja no interior do próprio sistema de saúde, seja nas ações desenvolvidas com
as áreas de saneamento, educação, cultura, transporte, entre outras. Por ser um projeto
estruturante, deve provocar uma transformação interna do sistema, com vistas à
reorganização das ações e serviços de saúde. Essa mudança implica na ruptura da
dicotomia entre as ações de saúde pública e a atenção médica individual, bem como
entre as práticas educativas e assistenciais.

Configura, também, uma nova concepção de trabalho, uma nova forma de vínculo entre
os membros de uma equipe, diferentemente do modelo biomédico tradicional, permitindo
maior diversidade das ações e busca permanente do consenso. Sob essa perspectiva,
o papel do profissional de saúde é aliar-se à família no cumprimento de sua missão,
fortalecendo-a e proporcionando o apoio necessário ao desempenho de suas
responsabilidades, jamais tentando substituí-la.

Tal relação de trabalho, baseada na interdisciplinaridade e não mais na


multidisciplinaridade, associada à não-aceitação do refúgio da assistência no positivismo
biológico, requer uma nova abordagem que questione as certezas profissionais e
estimule a permanente comunicação horizontal entre os componentes de uma equipe.

Um dos principais objetivos é gerar novas práticas de saúde, nas quais haja integração
das ações clínicas e de saúde coletiva. Porém, não se pode conceber a organização de
sistemas de saúde que conduzam à realização de novas práticas sem que, de forma
concomitante, se invista em uma nova política de formação e num processo permanente
de capacitação dos recursos humanos.

Para que essa nova prática se concretize, faz-se necessária a presença de um


profissional com visão sistêmica e integral do indivíduo, família e comunidade, um
profissional capaz de atuar com criatividade e senso crítico, mediante uma prática
humanizada, competente e resolutiva, que envolve ações de promoção, de proteção
específica, assistencial e de reabilitação. Um profissional capacitado para planejar,
organizar, desenvolver e avaliar ações que respondam às reais necessidades da
comunidade, articulando os diversos setores envolvidos na promoção da saúde. Para
tanto, deve realizar uma permanente interação com a comunidade, no sentido de
mobilizá-la, estimular sua participação e envolvê-la nas atividades ¾ todas essas

41
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

atribuições deverão ser desenvolvidas de forma dinâmica, com avaliação permanente,


pelo acompanhamento de indicadores de saúde da área de abrangência.

Entretanto, os sistemas de saúde não dispõem, hoje, de um número satisfatório de


profissionais qualificados com esse novo perfil. Consciente dessa necessidade, o
Ministério da Saúde, pelo Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Políticas
de Saúde, tem investido na formação de Pólos de Capacitação, Formação e Educação
Continuada em Saúde da Família, com o objetivo de articular o ensino e o serviço,
estimulando-os a reformarem seus cursos de graduação e a implantarem programas de
pós-graduação (especialização e residência em saúde da família) com vistas a essa
nova realidade ¾ o que vem sendo respondido de forma sensível pelas faculdades e
escolas de saúde de todo o país.

Nos últimos dois anos, foram investidos R$12,4 milhões para a instalação dos Pólos de
Capacitação, Formação e Educação Continuada em Saúde da Família, e 54 instituições
universitárias já estão envolvidas nesses projetos de capacitação e formação dos novos
profissionais de saúde necessários. Esses esforços têm sido enviados no sentido de
apoiar a formação profissional em nível de graduação, as pesquisas e, ainda, a
constituição de programas de capacitação em serviço, num diálogo permanente entre as
universidades e o setor público de prestação de serviços. É importante ressaltar que
esse processo visa, também, a abertura de novos postos de trabalho.

Financiamento

A NOB 01/96, do Ministério da Saúde, vem contribuindo para a consolidação do


programa, pois modificou a lógica de financiamento (anteriormente baseada na produção
de serviços) passando a estabelecer o pagamento em função da cobertura populacional
e introduzindo o incentivo do Programa Saúde da Família, além de outros mecanismos
técnico-gerenciais.

Para o PSF, a Portaria nº 1.329, de 12.11.99, estabelece que, de acordo com a faixa de
cobertura, os municípios passam a receber incentivos diferenciados, conforme
demonstra a tabela a seguir:

42
SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

A diferenciação existente nos valores dos incentivos deve-se ao fato de que quanto maior
o número de pessoas cobertas pelo PSF, maior o seu impacto. Existe, ainda, um
incentivo adicional para a implantação de novas equipes, num valor de R$
10.000/equipe, pagos em duas parcelas.

As diretrizes programáticas do PSF já são bem conhecidas. A reorganização da atenção


à saúde implica numa reordenação da própria lógica de montagem das equipes. Essas
equipes devem ser compostas por, no mínimo, um médico de família, um enfermeiro, um
auxiliar de enfermagem e cinco a seis agentes comunitários de saúde ¾ outros
profissionais, tais como psicólogos, dentistas, fisioterapeutas, por exemplo, poderão ser
incorporados de acordo com as características e demandas dos serviços locais de
saúde. Cada equipe é responsável pelo acompanhamento de, no máximo, mil famílias
ou 4.500 pessoas que residam ou trabalhem no território de responsabilidade da unidade
de saúde, agora denominada "Unidade Básica de Saúde da Família".

Um dos caracteres de diferenciação desse processo é que os profissionais das equipes


de saúde devem residir no município onde atuam, trabalhando em regime de dedicação
integral. Por sua vez, para garantir a vinculação e identidade cultural com as famílias sob
sua responsabilidade, os agentes comunitários de saúde (ACS) também devem residir
nas respectivas áreas de atuação.

Responsabilidades da equipe do PSF

• As atribuições básicas de uma equipe de Saúde da Família são:

• conhecer a realidade das famílias pelas quais são responsáveis e identificar os


problemas de saúde mais comuns e situações de risco aos quais a população está
exposta;

• executar, de acordo com a qualificação de cada profissional, os procedimentos de


vigilância à saúde e de vigilância epidemiológica, nos diversos ciclos da vida;

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SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

• garantir a continuidade do tratamento, pela adequada referência do caso;

• prestar assistência integral, respondendo de forma contínua e racionalizada à


demanda, buscando contactos com indivíduos sadios ou doentes, visando promover a
saúde por meio da educação sanitária;

• promover ações intersetoriais e parcerias com organizações formais e informais


existentes na comunidade para o enfrentamento conjunto dos problemas;

• discutir, de forma permanente, junto à equipe e à comunidade, o conceito de cidadania,


enfatizando os direitos de saúde e as bases legais que os legitimam;

• incentivar a formação e/ou participação ativa nos conselhos locais de saúde e no


Conselho Municipal de Saúde.

Os números atuais

O número de equipes de Saúde da Família continua crescendo: atualmente, até junho


último, trabalham 7.991 equipes de Saúde da Família, distribuídas em 2.614 municípios
brasileiros, nas 27 unidades federadas, conferindo cobertura a mais de 27,5 milhões de
habitantes. Para dezembro desse ano, o Ministério da Saúde e seus parceiros estaduais
e municipais trabalham com a meta de implantação de 11.000 equipes.

O modelo garante maior vínculo e humanização da atenção básica mesmo em cidades


grandes, onde a relação dos hospitais com os pacientes é fria e nem sempre resolve os
problemas de quem os procura. A diversidade é a maior riqueza. Em algumas localidades
existem propostas como o uso de terapias não-convencionais ¾ plantas medicinais,
homeopatia etc.; em outras, organizam-se grupos de caminhada e apresentações
teatrais, por exemplo, sempre buscando-se ações integrais e melhores soluções para a
assistência.

Os resultados já observados em todo o país e a potencialidade do Programa Saúde da


Família fizeram com que o Ministério da Saúde refletisse a prioridade no seu orçamento.
Em 1998, o Programa Saúde da Família/Agentes Comunitários de Saúde recebeu um
orçamento de R$ 218 milhões; em 1999, esse valor subiu para R$ 380 milhões e para o
presente ano, R$ 680 milhões. Esses recursos são transferidos como forma de incentivo

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SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

aos municípios que implantam o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e as


equipes de Saúde da Família.

A meta para expansão imediata do Programa já foi anunciada e indica, para 2002, 150
mil agentes comunitários e 20 mil equipes de Saúde da Família.

Em termos percentuais, isso representará o acompanhamento, por essas equipes, de


aproximadamente metade da população brasileira. Representa, também, a decisão
política de iniciar pela atenção básica a reorientação do modelo de atenção à saúde.

Do ponto de vista político, ressalve-se que esse programa não é um projeto de um gestor,
nem mesmo de um governo. Desenvolvido nos três níveis de gestão, sua importância é
associada ao impacto identificado no desenvolvimento atual da proposta, pelos
administradores setoriais e pela própria população, donde se constata a tendência de
sua perenidade, garantindo o permanente avanço na melhoria do modelo de atenção à
saúde dos brasileiros.

A relativa novidade do modelo ainda não permite um amplo estudo de índices de impacto
dessas ações no quadro sanitário nacional. Já existem, entretanto, muitos indicadores
qualitativos, medidos em pesquisas de satisfação dos usuários e quantitativos, como o
de índices de coberturas vacinais, aleitamento materno e mortalidade infantil, que
permitem inferir as vantagens da presente proposta.

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SAÚDE PÚBLICA DO BRASIL

REFERÊNCIAS

https://nexxto.com/qual-a-importancia-da-participacao-do-setor-privado-no-
sus/<acesso em 05/04/2022>

https://www.scielosp.org/article/rbepid/2002.v5suppl1/4-17/<acesso em 05/04/2022>

https://www.psiquiatriageral.com.br/epidemiologia/conceito.htm<acesso em
05/04/2022>

https://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/pab/6/unidades_conteudos/unidade08
/p_03.html<acesso em 05/04/2022>

https://www.scielo.br/j/rsp/a/WmH6wLKd4vXgSC9gnfFkMXG/?lang=pt<acesso em
05/04/2022>

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