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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Direito Processual Penal

A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DO PROCESSO

⭐ Natureza Jurídica do Processo

Ainda que esta questão não tenha hoje a importância teórica e prática do passado, a dada altura
surgiram várias teorias que tentaram explicar as relações existentes entre os sujeitos intervenientes
no processo, que vale a pena referir brevemente.

⇒ Teoria da relação jurídica:

Criada por OSKAR VON VULOW, em 1868. Segundo esta teoria, entre o juiz, o acusador e o arguido
estabelece-se uma relação jurídica processual de direito público com direitos e obrigações de
natureza processual recíprocas entre o acusador e o arguido e destes com o juiz.

Esta relação é distinta da relação jurídica material preexistente, pois os direitos e obrigações derivados
da relação jurídica processual são também de natureza estritamente processual, distintos dos direitos
e obrigações de natureza substantiva cuja existência e conformação é o que se discute no processo.

Para BULOW, a relação entre os sujeitos da relação jurídica processual é unitária, de caráter evolutivo
e com estrutura triangular.

⇒ Teoria da situação jurídica:

Criada por GOLDSCHMIDT, em 1925. Esta teoria criticou a anterior, sobretudo pelo seu caráter
estático, explicando-o agora como um conjunto de situações processuais.

Os sujeitos processuais, perseguindo uma decisão com força de caso julgado, encontram-se numa
situação essencialmente dinâmica, constituída pelo conjunto das expectativas, possibilidades, ónus
e libertações de ónus processuais, que se vai referindo à pretensão de tutela jurídica. Este estado de
expectativa de uma sentença favorável ou de uma possibilidade de sentença desfavorável ao arguido
em que se encontram os sujeitos é que os induz a atuar no processo e que origina os vínculos jurídicos
que se estabelecem entre eles.

⇒ Teoria da instituição jurídica:

Criada por JAIME GUASP. Este concebe o processo como uma instituição jurídica, ou seja, um
complexo de atividades relacionadas entre si pelo vínculo de uma ideia comum objetiva: a
satisfação da pretensão. Seria esta complexidade de relações que caracterizaria a instituição jurídica.

A instituição compõe-se de dois elementos fundamentais: (i) a ideia objetiva, situada fora e por cima
da vontade dos sujeitos e que se traduz na satisfação ou denegação da pretensão, e (ii) o conjunto de
vontades que aderem àquela ideia para obter a sua realização, que são as vontades dos diversos

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sujeitos do processo, entre os quais a ideia objetiva do processo cria uma série de vínculos de caráter
jurídico.

Intimamente associada à ideia de instituição surge a de hierarquia dos sujeitos processuais, o que
tem constituído o “calcanhar de Aquiles” desta teoria, porquanto muitos têm entendido que ela
traduz uma ideia de subordinação dos demais sujeitos processuais ao juiz, o que refletiria uma visão
burocrático-administrativa do processo.

⇒ Estrutura do processo penal português:

As várias teorias complementam-se na explicação da estrutura do processo e, por isso,


acompanhando a mais moderna doutrina espanhola e italiana, GMS também considera que o
processo tem uma natureza bivalente:

i) Funcionalmente, é um método legal para aplicação do direito penal ao caso concreto;


ii) Estruturalmente, é uma relação jurídica pública de caráter triangular que se desenvolve
em sucessivas situações jurídicas processuais.

A relação jurídica processual constitui-se no momento em que o MP promove a abertura do


inquérito (arts. 48º e 53º), mas até à constituição de arguido um dos sujeitos da relação jurídica
processual é indeterminado.

A partir do momento da constituição do arguido (arts. 57º a 59º), a relação triangular está
definitivamente estabelecida, pois se a intervenção do juiz de instrução é apenas eventual, certo é que
tem desde logo poderes/deveres de intervenção por promoção do MP ou requerimento do arguido.

A partir da acusação ou do requerimento instrutório inicia-se a fase jurisdicional do processo e desde


então a relação triangular é clara e todos os sujeitos e o objeto da relação jurídica têm de estar
definitivamente estabelecidos (ainda que na fase da instrução o objeto esteja sujeito a comprovação
pelo juiz que o pode limitar em conformidade com uma das “acusações” deduzidas).

A relação jurídica processual pode ser caracterizada como:

i) Autónoma, porque é independente da relação jurídica material. Mesmo quando o tribunal


absolve o arguido, afirmando a inexistência dos factos, houve processo: a relação jurídica
processual iniciou-se, desenvolveu-se e extinguiu-se validamente sem que tivesse existido
relação jurídico-material.
ii) Complexa, porque contém dentro de si uma série de relações jurídicas secundárias
decorrentes da principal, compreendendo um conjunto de direitos, obrigações,
faculdades, ónus e poderes que vão surgindo à medida que a relação principal se vai
desenvolvendo.
iii) Progressiva e unitária, porque, por um lado, atravessa várias fases (inquérito, instrução,
julgamento, execução, recursos) que mantêm entre si um sentido de continuidade, com o
intuito de prosseguir um fim; por outro lado, em todas as suas fases se mantém uma

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unidade fundamental: não mudam nem os sujeitos nem o objeto do processo, ainda que
no inquérito possa existir alguma indefinição quanto ao objeto e quanto ao arguido.

⭐ Pressupostos Processuais

Estes são, na perspetiva funcional, requisitos de admissibilidade, condições prévias para a tramitação
de uma relação processual e, na perspetiva estrutural, são elementos constitutivos da relação jurídica
processual, que devem verificar-se para que possa proferir-se no processo uma decisão.

Estes pressupostos são:

o Órgão dotado de jurisdição;


o Objeto;
o Partes.

Note-se, contudo, que a existência destes requisitos não tem de ocorrer simultaneamente nem em
todas as fases do procedimento. Mas a falta de pressupostos processuais, quando exigida, conduz a
inexistência do processo.

Estes distinguem-se, assim, dos requisitos de validade da relação processual e dos requisitos de
validade dos atos processuais, cuja falta determina apenas a nulidade ou a irregularidade do
processo ou do ato processual:

- A falta do número de juízes ou a violação das regras de competência, que constituem


requisitos de validade do processo, apenas determinam a sua nulidade (art. 119º), mas a falta
de juiz investido de jurisdição penal impede a constituição da própria relação e por isso
determina a inexistência da relação jurídica.
- A ausência de arguido, nos casos em que a lei exige a sua presença, é também requisito de
validade do processo, mas a existência de arguido, a partir do momento em que a lei exige
a sua constituição, é um pressuposto processual e, por isso, a sua inexistência determina
também a inexistência da relação.
- A falta de promoção pelo MP, nos termos do art. 48º, bem como a sua ausência a atos
relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência, constitui nulidade (art. 119º/b)).
Esta nulidade é apenas consequência da ilegalidade da promoção do processo pelo MP, por
falta de queixa, nos crimes semipúblicos e particulares, ou de acusação particular nos crimes
particulares, ou de outra irregularidade na promoção do processo. Já a usurpação de funções
do MP determinará a inexistência.

Muitos autores indicam ainda os pressupostos da validade do processo: não basta que a relação
processual se constitua, é necessário também que se desenvolva validamente/legalmente. Daí os
pressupostos da existência, que GMS denomina simplesmente pressupostos processuais por
contraposição aos pressupostos de validade, que denomina como requisitos de validade.

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⭐ Princípios Fundamentais do Processo Penal

⇒ O processo justo ou processo equitativo:

São frequentes as referências a este princípio: a CRP (art. 20º/4), a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem (art. 6º) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 14º) assim o
impõem.

O princípio do processo justo ou equitativo é estruturalmente vago e, por isso, aberto à ponderação
se no processo em concreto foram efetivamente assegurados todos os meios de defesa, o que pode
ser objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, já que os direitos, liberdades e garantias são
diretamente aplicáveis (art. 18º/1 CRP).

O atributo equitativo ou justo traduz a ideia de equilíbrio, de uma paridade entre a acusação e a
defesa (igualdade de armas), que aqueles sujeitos processuais possam, em paridade, expor em forma
contraditória as suas razões perante o tribunal de modo a proporcionar uma decisão justa.

A densificação do princípio há de fazer-se através de normas positivas que o desenvolvem, quer


normas de natureza constitucional (art. 32º CRP), quer de fonte internacional (art. 9º CEDH), quer de
normas ordinárias, assim como através de decisões judiciais (na medida em que o princípio tem um
valor autónomo).

O art. 6º CEDH dispõe que qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa
e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, estabelecido por
lei. Também o art. 14º PIDCP dispõe no mesmo sentido.

O conteúdo mínimo de um processo equitativo corresponde ao que a jurisprudência norteamericana


designa por due process of law, que se traduz em três exigências:

i) Adequate notice – informação ao acusado, de modo detalhado, acerca da natureza e dos


motivos da acusação, para que ele se possa defender;
ii) Fair hearing – procedimento leal, sem influências externas na formação do juízo;
iii) Juiz imparcial – como projeção subjetiva do fair hearing, que exerça a função em posição
de terciaridade relativamente aos interesses objeto do processo e que não dê a alguma das
partes tratamento de favor/desfavor.

O art. 32º CRP dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa. A fórmula deste
artigo não traduz uma norma meramente programática: ela significa antes que há de ser perante as
circunstâncias concretas de cada caso que se hão de estabelecer os concretos direitos de defesa, no
quadro dos princípios estabelecidos por lei.

A exigência de processo equitativo e de garantia de todos os meios de defesa não se deve colocar
como um princípio autónomo em paralelo com os demais; antes constitui a síntese de vários desses
princípios.

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⇒ Princípios atinentes à estrutura do processo:

1. Princípio da presunção de inocência

Encontra-se consagrado no art. 32º/2 CRP, no art. 11º DUDH, no art. 6º CEDH e no art. 14º § 2.º
PIDCP.

Atualmente, a afirmação deste princípio representa um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de
toda a sociedade livre. Note-se que a presunção de inocência não é uma presunção em sentido
técnico-jurídico (art. 349º CC).

Deste princípio resulta que não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e
publicamente julgado culpado por sentença transitada. Além disso, implica a inadmissibilidade de
qualquer espécie de culpabilidade por associação ou coletiva; a estreita legalidade, subsidiariedade e
excecionalidade da prisão preventiva; a limitação à recolha de provas em locais de caráter privado,
etc..

Segundo a jurisprudência do TEDH, o princípio é oponível a todas as autoridades que direta ou


indiretamente tenham intervenção no processo penal, devendo estes abster-se de criar no público a
convicção da culpabilidade dos investigados, nomeadamente através de declarações públicas.

Podemos assim distinguir dois aspetos deste princípio:

i) Intraprocessual – respeita à proteção da dignidade do imputado no decurso de todo o


processo e à formação do próprio juízo pelo tribunal, que deve afastar todo o tipo de
pressões da opinião pública;
ii) Extraprocessual – prendem-se com aspetos extraprocessuais, como a imagem do
imputado, i.e., o respeito da sua honra e reputação por parte de todos.

Questão que gera discussão é a de saber a quem é oponível a presunção de inocência. O art. 18º/1
CRP dispõe que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são
diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

Porém, o art. 32º/2 CRP parece confinar a presunção de inocência ao âmbito processual penal. Neste
plano, a presunção de inocência pode considerar-se como o fundamento de todos os direitos
processuais do arguido:

a. A ser tratado como possível inocente;


b. A ser absolvido se não for feita prova bastante da sua responsabilidade;
c. A defender-se como entender, nomeadamente não se pronunciando sobre os factos que lhe
são imputados;
d. A ver protegida a sua honra e reputação.

A ser assim, mais facilmente se compreende o problema de compatibilização desta garantia com o
direito de liberdade de expressão e informação e a garantia de liberdade de imprensa e meios de
comunicação social (arts. 37º e 38º CRP).

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Na opinião de GMS, é preciso resistir à tentação de hierarquizar os direitos em causa, competindo ao


legislador e ao juiz a arte difícil de os conciliar e não classificar.

No plano processual, este princípio constitui um dever de tratamento do arguido: este deve ser
tratado processualmente como possível inocente.

Este dever de tratamento sofre, porém, muitas limitações, o que só se explica e justifica pela presunção
de culpa que recai sobre o presumido inocente: a imposição ao arguido de uma grande soma de
deveres a partir do momento em que lhe é conferido o direito a ser presumido inocente (art. 61º/2
CPP), nomeadamente a sujeição a diligências de prova e a medidas de coação e de garantia
patrimonial, incluindo a prisão preventiva (arts. 196º e ss. CPP).

Torna-se ainda necessário garantir que a pendência do processo não tenha efeitos extraprocessuais
gravosos e frequentemente irreparáveis. Desde logo, impõe-se a celeridade, e também que as
medidas cautelares, que têm um fim exclusivamente processual, sejam limitadas o mínimo
necessário.

2. Princípio da jurisdição e do juiz natural ou legal

a) Princípio da jurisdição

A pedra angular do processo penal num Estado de Direito democrático é a tutela efetiva dos direitos
individuais e gerais, que hão de considerar-se na perspetiva individual e coletiva, para o que se impõe
uma visão harmónica que combine e concilie as três missões básicas do processo:

i) Jurídica – instrumento para realização do direito objetivo;


ii) Política – garantia do arguido;
iii) Social – pacífica convivência social.

É essencial a separação de poderes e a atribuição ao poder judiciário de um poder independente do


legislativo e executivo, de competência para dirimir as controvérsias entre os cidadãos e o Estado.

O art. 202º CRP reserva aos tribunais a competência para reprimir a violação da legalidade
democrática e a aplicação definitiva e coerciva da lei criminal é-lhes também reservada (art. 29º CRP).
Esta reserva de competência para aplicação da lei penal aos casos concretos não é, porém,
incompatível com a comparticipação da acusação e da defesa na própria determinação da medida
penal a aplicar ou que a atuação do tribunal esteja condicionada pelo impulso processual inicial ou
sucessivo de outros sujeitos processuais.

O princípio da jurisdição deve ser visto no contexto das garantias orgânicas dos tribunais e dos
magistrados, de modo a orientar a inserção do tribunal e do juiz no marco institucional da
independência, pressuposto da imparcialidade (art. 203º CRP). A legitimidade democrática dos
juízes não é política, mas constitucional, baseada na democracia substancial e o seu fundamento é
unicamente a garantia dos direitos fundamentais.

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À ideia de jurisdição está a ideia de juiz imparcial: este apenas deve estar interessado na realização
da justiça, devendo ser indiferente ao resultado do processo, i.e., a qual das posições em confronto
fala vencimento.

Foi muito discutido na doutrina o alcance do art. 32º/4 CRP, segundo a qual “toda a instrução é da
competência de um juiz”:

 GMS entende que o atual conteúdo constitucional do conceito de instrução é o de garantia


processual de salvaguarda dos direitos do arguido ao esclarecimento dos factos, com a sua
participação, em ordem à decisão de o submeter a julgamento. E a forma de conformar esta
participação do arguido e do juiz pode variar, mas parece ao Autor que, quando estiverem
em causa direitos das pessoas, a definição do direito no caso é reservada ao juiz.

b) O juiz natural ou legal

Encontra-se consagrado no art. 32º/9 CRP, que dispõe que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal
cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Este princípio tem por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para resolver
um caso determinado. Para se alcançar o correto sentido desta garantia é necessário relacioná-la com
o art. 209º/4 CRP, que proíbe a “existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de
certas categorias de crimes”, exceção feita para os tribunais militares durante a vigência do estado de
guerra (art. 213º CRP).

Pelo menos em teoria, a imparcialidade do juiz alcança-se pela prévia fixação dos critérios objetivos
gerais de repartição da competência. É geralmente entendido que a prévia fixação por lei de critérios
objetivos gerais de repartição da competência para os processos criminais se concretiza por duas vias:

i. Só a lei poder instituir o juiz e fixar-lhe a competência (dimensão positiva) – porém, não
parece razoável uma interpretação desta via que conduza a entraves a qualquer reforma
da organização judiciária.
ii. A fixação do juiz e da sua competência ter de ser feita por lei anterior à prática do facto
que será objeto do processo (dimensão negativa) – GMS entende o que importa é que, em
razão daquela causa ou de categoria de causas a que ela pertence sejam criados post factum
tribunais de exceção, ou a definição individual da competência, ou do desaforamento
discricionário de uma certa causa, ou por qualquer outra forma discricionária que ponha
em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial.

Devendo a competência ser definida de modo geral e abstrato, questão é saber quando o deve ser.
Estando o princípio do juiz natural diretamente ligado ao princípio da legalidade criminal, poderia
porventura pensar-se que o ponto de referência temporal deveria ser, em observância da proibição
de retroatividade inerente ao nullum crimen sine lege, o momento da prática do facto. Uma ideia que
poderia ainda ser sugerida pelo teor literal do art. 32º/9 CRP, na parte em que faz referência à fixação
da competência por “lei anterior”.

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Na opinião de FIGUEIREDO DIAS, não deve ser esta a amplitude temporal a conceder ao princípio
do juiz legal. Do que nele se trata é de prevenir que as regras gerais de competência sejam
desvirtuadas por intervenções arbitrárias ad hoc que desviem o processo do juiz a quem deveria ser
distribuído. Uma teleologia que não resulta comprometida pela possibilidade de a competência vir
a ser regulada por normas posteriores à prática do facto; obstando apenas a tal que a atribuição de
competência seja feita através da criação de um juízo ad hoc (isto é, de exceção), ou do desaforamento
concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer outra forma
discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente
e imparcial. De outro modo, aliás, em face das inultrapassáveis dificuldades que um princípio do juiz
natural levado àquele extremo levantaria, cairiam por terra quaisquer pretensões de reforma da
organização judiciária, com o inerente risco de fossilização do sistema processual.

Destinatários do princípio do juiz natural são todos os juízes penais, em todas as fases processuais.
Embora o texto do art. 32º/9 CRP possa abrir a porta a um entendimento restritivo que circunscreva
o funcionamento do princípio às fases do julgamento e do recurso, as razões que justificam a sua
existência, maxime a necessidade de garantir a independência e a isenção do juiz e a confiança da
comunidade na realização da justiça penal, valem por inteiro nas fases preliminares do inquérito e
da instrução. Também nestas é reservada ao juiz de instrução a prática de atos materialmente
jurisdicionais, atenta a sua imediata relevância para a esfera dos direitos de liberdade das pessoas
atingidas, pelo que não se compreenderia que a competência do juiz (de instrução) escapasse aí aos
ditames do princípio do juiz legal.

3. A estrutura acusatória

a) Princípio acusatório

O art. 32º/5 CRP dispõe que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de
julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.

O modelo teórico puro de sistema acusatório procura a igualdade de poderes de atuação processual
entre a acusação e a defesa, ficando o julgador numa situação de independência, apenas interessado
na apreciação objetiva do caso que lhe é submetido pela acusação. O processo inicia-se com a acusação
pelo ofendido ou quem o represente e desenvolve-se com pleno contraditório entre o acusador e o
acusado, pública e oralmente, perante a passividade do juiz que não tem qualquer iniciativa em
ordem à aquisição de prova, recaindo o encargo da prova sobre o acusador.

Por oposição, no modelo de sistema inquisitório, o juiz intervém ex officio, sem necessidade de
acusação, investiga oficiosamente com plena liberdade na recolha das provas, pronuncia e julga com
base nas provas por si recolhidas – o juiz é o dominus do processo e o suspeito é objeto e não sujeito
do processo. O processo decorre em segredo, sem contraditório, e é totalmente escrito.

As mais recentes reformas do processo penal têm sido dominadas pelo acentuar das garantias de
defesa do arguido, o que passa pelo reconhecimento da sua condição de sujeito processual durante

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todo o processo para assegurar a mais ampla contraditoriedade. É nesta perspetiva que
frequentemente se identifica o processo do tipo acusatório com o processo democrático.

Como afirma FIGUEIREDO DIAS, a consagração na CRP da estrutura acusatória do processo


representou uma das mais significativas inovações e traduziu um programa de reforma do processo
penal. Efetivamente, o CPP veio a consagrar:

i) A acusação como condição processual de que depende sujeitar-se alguém a julgamento;


ii) Os arts. 57º e ss. definem o momento e o modo da obtenção da qualidade de arguido no
processo e os arts. 60º e ss. os direitos processuais que resultam da obtenção desse estatuto;
iii) O art. 62º dispõe que o arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo
e o art. 63º que o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido.

O CPP não consagra, porém, uma estrutura acusatória correspondente ao modelo de processo
acusatório teoricamente puro:

 A igualdade de armas só tem lugar na fase de instrução formal e na de julgamento, mas já


não na fase do inquérito; o inquérito é dominado pelo MP e a sua estrutura tem natureza
predominantemente inquisitória e não acusatória.
 O princípio da investigação constitui igualmente uma limitação ao acusatório puro.
 Outra limitação é a possibilidade de aplicação ao arguido de medidas privativas e restritivas
da sua liberdade com base exclusivamente nas provas recolhidas pela acusação, sem que
tenha efetiva oportunidade de as ilidir antes de lhes sofrer os efeitos.

4. Princípio da igualdade de oportunidades

O processo deve estar estruturado em termos que permitam que a acusação e a defesa disponham de
idênticas possibilidades para intervir no processo para demonstrarem perante o tribunal a validade
das suas alegações.

Para haver verdadeira isonomia importava que a acusação e a defesa pudessem dispor dos mesmos
meios de investigação, mas essa igualdade não existe na prática. Na fase do inquérito, o MP tem ao
serviço da investigação todo o aparelho policial e a lei confere-lhe meios de coação que pode usar
para esse fim, mas o mesmo não se passa com os particulares, sejam arguidos ou acusadores, a quem
a lei limita as possibilidades de investigação, mesmo a privada.

Assim, esta igualdade apenas se verifica (e, ainda assim, só tendencial e formalmente) nas fases
jurisdicionais e nos incidentes jurisdicionais.

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5. Direito de ampla defesa

a) Defesa técnica e pessoal

O processo tem como função essencial a garantia dos direitos do acusado (em sentido amplo:
suspeito, imputado, arguido ou acusado). O art. 32º/1 CRP dispõe que o “processo criminal assegura
todas as garantias de defesa”. O direito de defesa é complexo, constituído por ações e omissões não só
do acusado e do seu defensor, mas também do MP e do Tribunal.

O fundamento do direito de defesa é simplesmente a busca da verdade dos factos que constituem o
objeto do processo. É do interesse da Justiça que o arguido possa desenvolver a mais ampla defesa,
em plena liberdade, o que pressupõe conhecimento da tramitação processual e das consequências dos
seus atos no processo, pois o que se busca no processo é acima de tudo a realização da Justiça.

Há que distinguir entre:

i. Defesa formal – a cargo do próprio arguido e do seu defensor.


ii. Defesa material – abrange também a atividade do próprio tribunal em benefício do
arguido, enquanto dirigida à realização da justiça (arts. 53º, 262º, 323º e 340º).
iii. Defesa pessoal – exercida pessoalmente pelo arguido (arts. 141º, 143º, 292º/2, 343º e 361º).

Defesa pessoal positiva:

Nesta, o arguido defende-se atuando, ou seja, praticando atos processuais. É o caso da resposta do
arguido às perguntas nos interrogatórios, do MP ou dos órgãos de polícia criminal (arts. 141º, 143º,
292º, etc.).

Defesa pessoal negativa:

Nesta, o arguido defende-se recusando-se a dar qualquer contribuição para os atos probatórios.

O direito ao silêncio está expressamente consagrado no art. 61º/1 d) CPP. Este direito deve ser
comunicado ao arguido pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal perante as quais
seja obrigado a comparecer (art. 61º/1 h)), sob pena de as declarações feitas pelo arguido constituírem
prova proibida por intromissão na vida privada (arts. 32º/8 CRP e 126º/3 CPP). Este direito é uma
natural consequência do princípio da presunção de inocência.

O direito à não autoinculpação fundamenta-se também na presunção de inocência. O acusado não


pode ser obrigado a contribuir para a sua própria condenação, carreando para o processo meios de
prova que o incriminem ou prejudiquem a sua defesa. Este princípio significa que o arguido não pode
ser coagido a apresentar provas contra si, mas já não que não possa ser meio de prova desde que
respeitadas as garantias que a CRP e a lei estabeleçam em razão da intangibilidade da sua dignidade
(art. 61º/3, al. d) CPP).

iv. Defesa técnica – exercida através ou com a assistência do defensor (arts. 98º, 302º, 339º,
360º, 423º).

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O art. 32º/3 CRP concede ao arguido o direito à assistência de defensor em todos os atos do
processo. Assim, o art. 62º CPP dispõe que “o arguido pode constituir advogado em qualquer altura do
processo”. O art. 64º especifica os casos em que a assistência é obrigatória e o art. 63º que o defensor
exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido e são indicados no art. 61º.

6. Princípio da lealdade

A lealdade não é uma noção jurídica autónoma, mas antes de natureza essencialmente moral,
traduzindo uma maneira de agir no desenvolvimento da atividade processual em conformidade com
o respeito dos direitos e da dignidade de todas as pessoas que participam no processo e com os
deveres funcionais.

As nulidades são sanções que atuam a posteriori: o princípio da lealdade pretende imprimir a priori
toda uma atitude de respeito pela dignidade das pessoas e da Justiça e, em matéria de prova, é o
fundamento do que a lei processual qualifica como métodos proibidos de prova e proibições de
prova (arts. 32º/8 CRP e 118º/3 e 126º CPP).

É neste contexto que encontramos algumas disposições da DUDH, como a do art. 5º que proíbe
qualquer tipo de tortura ou de penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, e a do art.
12º que proíbe qualquer intromissão arbitrária na vida privada.

É absolutamente inadmissível qualquer afrontamento das garantias individuais e à dignidade


humana, que são elemento essencial do ideal democrático e elementos estruturais da República
Portuguesa (art. 1º CRP). Sobrepor a eficácia da justiça ao respeito devido pela dignidade dos
suspeitos/arguidos e aos direitos humanos garantidos pela CRP revela desamor por aquele ideal e a
opção por métodos totalitários.

⇒ Princípios relativos à promoção processual:

1. Princípio da oficialidade

Este princípio significa que a iniciativa e a prossecução processuais pertencem ao Estado. O Estado
não tem unicamente a pretensão material, mas também o direito e o dever de perseguir criminalmente
os criminosos e realiza a sua pretensão penal por si mesmo, i.e., sem consideração pela vontade dos
ofendidos. O Estado intervém ex officio em todos os factos puníveis.

Assim, o art. 271º dispõe que o MP adquire notícia do crime por conhecimento próprio, por
intermédio dos OPC ou mediante denúncia, e o art. 262º determina que a notícia de um crime dá
sempre lugar à abertura do inquérito. Também o art. 48º dispõe que o MP tem legitimidade para
promover o processo penal.

Este princípio tem limites: quando o procedimento criminal depender de queixa, é necessário que o
titular do direito de queixa a apresente ao MP para que este promova a abertura do processo; quando

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o procedimento depender de acusação particular, é necessário que o titular do respetivo direito se


queixe, se constitua assistente e deduza acusação particular (arts. 49º e 50º).

Este princípio é extremamente importante:

i) Toda a investigação pré-acusatória é pública (através do inquérito, da competência do


MP);
ii) Salva a exceção dos crimes particulares, a acusação nos crimes públicos e semipúblicos
pertence ao MP;
iii) Os assistentes só podem acusar formalmente desde que o MP tenha previamente acusado
(arts. 284º e 285º).

2. Princípios da legalidade e da oportunidade

Correlativo do princípio da oficialidade é o princípio da legalidade, segundo o qual o MP deverá


proceder sempre que se verifiquem os pressupostos jurídico-factuais da incriminação e processuais
da ação penal. Este princípio encontra-se consagrado, entre outros, nos arts. 262º/2 e 283º.

Porém, note-se que este princípio não é de realização automática; antes implica a formulação de
juízos por parte do MP, desde logo sobre a suficiência dos indícios de se ter verificado crime e de
quem foi o seu agente e sobre outros pressupostos exigidos por lei. Esses juízos são, contudo, apenas
de subsunção dos factos à lei: verificando-se os pressupostos, o MP não pode deixar de promover o
processo, sob pena de ilegalidade de atuação, de omissão de um dever que pode mesmo constituir
crime (crime de denegação de justiça – art. 369º CP).

Assim se compreende a possibilidade de controlo da atuação do MP, que se pode fazer por duas vias:
(i) hierárquica, através de reclamação hierárquica para o superior hierárquico ou através de
intervenção oficiosa deste (arts. 278º e 279º) ou (ii) judicial, através de fiscalização, como pode suceder
com o requerimento para abertura da instrução feito pelo assistente relativamente a factos objeto de
notitia criminis e pelos quais o MP não tiver deduzido acusação (arts. 286º e 287º).

O princípio da legalidade tem como contraponto o princípio da oportunidade, segundo o qual o MP


pode ou não promover o processo em razão do juízo que formule sobre a sua conveniência.

A discussão sobre o valor de cada um dos sistemas de legalidade ou oportunidade é clássica e


permanece atual. A formulação atual do art. 219º CRP atribui ao MP a função de “exercer a ação penal
orientada pelo princípio da legalidade”, parecendo claro que o legislador constituinte quis acentuar
a subordinação a este princípio no exercício da ação penal pelo MP, mas sem o considerar princípio
absoluto.

Note-se que o princípio da legalidade não significa que a realização da justiça penal no caso passe
necessariamente pela submissão a julgamento de todos quantos sejam indiciados pela prática de um
crime; a tutela dos bens jurídicos penalmente protegidos e a ressocialização dos delinquentes pode
ser alcançada, em certos casos, por outros meios (como a suspensão provisória do processo – art. 281º

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- ou o processo sumaríssimo – art. 392º) que não apenas as penas criminais ou a necessária submissão
a julgamento, mesmo que se verifiquem os pressupostos legais da acusação.

Na busca da solução justa para o caso concreto, a discricionariedade não equivale a arbítrio; é uma
discricionariedade de acordo com a finalidade da realização da justiça. Ora, para melhor realização
da justiça no caso concreto, a lei pode atribuir aos órgãos a quem cabe a aplicação da lei o poder de
escolher entre as várias medidas legalmente admissíveis a que lhe parece mais adequada.

3. Princípio da acusação

A jurisdição não intervém oficiosamente nem pode alargar o seu poder de julgar a pessoas e factos
distintos daqueles que são objeto da acusação: a função específica de julgar tem de ser solicitada
através de um pedido de intervenção – a acusação.

O princípio da acusação limita o objeto da decisão jurisdicional e essa limitação é considerada uma
garantia da imparcialidade (dado que o Tribunal apenas terá de julgar os factos objeto da acusação)
e de defesa do arguido (na medida em que, a partir da acusação, sabe de que é que tem de se defender,
não podendo ser surpreendido com novos factos ou novas perspetivas dos mesmos factos).

⇒ Princípios relativos à prossecução processual:

1. Princípio do contraditório

Traduz o direito que tem a acusação e a defesa de oferecer provas para provar as suas teses
processuais e se pronunciarem sobre as alegações, as iniciativas, os atos ou quaisquer atitudes
processuais de qualquer delas. Encontra-se consagrado no art. 32º/5 CRP.

Este princípio traduz-se na estruturação da audiência em termos de um debate ou discussão entre a


acusação e a defesa. Se as provas devem ser objeto de apreciação em contraditório na audiência, fica
excluída a possibilidade de decisão com base em elementos de prova que nela não tenham sido
apresentados e discutidos (arts. 327º, 355º, 348º e 360º).

A fase da instrução no CPP vigente não é plenamente contraditória: só o debate instrutório e a


produção de prova que ocorra durante o debate são contraditórias (arts. 298º e 301º/2). Verifica-se,
assim, o propósito de desvalorizar a fase eventual da Instrução para valorizar a fase do Julgamento
e, por isso, a instrução destina-se essencialmente a permitir a comprovação pelo juiz da legalidade da
decisão do MP de acusar ou de arquivar o inquérito e da acusação do Assistente.

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2. Princípio da investigação

Traduz o poder-dever que incumbe ao tribunal de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para
além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando o próprio
tribunal as bases necessárias à sua decisão.

Este poder-dever que impende sobre o tribunal de investigar e esclarecer oficiosamente o facto
submetido a julgamento não impede ou limita a atividade probatória do MP, do assistente e do
arguido, e o seu total aproveitamento pelo tribunal, mas significa que o tribunal também não fica
limitado na sua busca da verdade pela contribuição dos demais sujeitos processuais.

Este princípio é muitas vezes criticados por representar uma limitação à estrutura acusatória pura do
processo, considerando os críticos que a participação do juiz na produção da prova pode pôr em
causa a igualdade das partes e a imparcialidade do juiz.

 GMS considera este um princípio muito importante, porque no estádio atual da sociedade
portuguesa não lhe parece estarem materialmente garantidos todos os direitos de defesa,
sendo por isso que o poder de iniciativa probatória possa contribuir para assegurar uma
defesa efetiva dos arguidos e não só. Não podemos esquecer que muitas vezes os arguidos
não têm meios financeiros para custear as despesas com a preparação da sua defesa. O
importante é que se estabeleça um equilíbrio entre os limites ao poder judicial de conformar
o objeto do processo e o dever de procurar alcançar a verdade histórica, independentemente
ou para além da contribuição da acusação e da defesa.

3. Princípio da suficiência

Consagrado no art. 7º CPP, significa que “o processo penal é promovido independentemente de qualquer
outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”.

4. Princípio da celeridade e da economia processuais

a) Princípio da celeridade

É uma exigência que decorre do art. 32º/2 CRP e do art. 6º CEDH.

A celeridade na conclusão do processo é do interesse do arguido, mas é também do interesse do


ofendido e da comunidade. O arrastar-se de um processo durante longo tempo pode significar, e
frequentemente significa o condicionamento da vida pessoal e profissional do arguido e até mesmo
da sua liberdade, em razão da sua sujeição medidas de coação. É a dignidade do arguido que
frequentemente é ofendida pelo arrastar do procedimento penal.

Da ótica do ofendido, quanto mais cedo for concluído o processo pela decisão justa, mais cedo
também o ofendido retomará confiança na sociedade que lhe fez justiça.

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Da ótica da sociedade, a paz social assenta em grande parte na certeza de que os criminosos são
condenados e os inocentes absolvidos, mas se o processo se arrasta por tempo demasiado, gera-se
frequentemente a ideia da impunidade e o descrédito na justiça.

Porém, apesar de a celeridade ser um valor constitucional, tem de ser compatível com as garantias
de defesa.

A lei estabelece como regra um prazo de duração de cada fase processual, mas não sanciona a violação
desses prazos, considerando-os como meramente ordenadores. Essa natureza dos prazos faz com
que o Poder não tenha a preocupação de dispor os meios necessários ao seu cumprimento e facilita
também o incumprimento por parte das autoridades judiciárias e OPC. A lei consagra instrumentos
administrativos em ordem à fiscalização do cumprimento dos prazos (arts. 105º/2 e 108º e ss.), mas
que se têm revelado pouco eficazes.

b) Princípio da economia processual

Significa simplesmente que não devem ser praticados atos inúteis, e vale para todas as fases do
processo. Deve procurar-se o máximo rendimento processual com o mínimo custo.

No inquérito devem praticar-se apenas os atos relevantes para a descoberta da verdade. Na instrução
apenas os atos indispensáveis para comprovar a subsistência dos pressupostos da acusação ou do
requerimento instrutório, devendo indeferir-se os que não interessarem à instrução ou servirem
apenas para protelar o andamento do processo (arts. 290º e 291º).

Também no julgamento só devem ser produzidos os meios de prova cujo conhecimento seja
necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa, devendo ser indeferidos os requerimentos
e provas irrelevantes ou supérfluas, de obtenção impossível ou com finalidade meramente dilatória
(art. 340º).

⇒ Princípios relativos à prova:

1. Princípio da presunção de inocência. Princípio in dubio pro reo

Na perspetiva da prova, o princípio da presunção de inocência tem como corolários o princípio in


dubio pro reo e os direitos ao silêncio e à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere).

a) Princípio in dubio pro reo

Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Isto significa que
o arguido tem o direito a ser absolvido, a ser declarado inocente, se não for feita prova plena da sua
culpabilidade.

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E isto porque a dúvida sobre a responsabilidade é a própria razão de ser do processo: o processo
nasce porque uma dúvida está na sua base, e uma certeza deveria ser o seu fim.

b) Direito ao silêncio

Se o arguido se presume inocente, tem também de presumir-se que possa não saber nada de relevante
sobre os factos que constituem o objeto do processo.

Acresce ainda que, no plano ético, não é exigível que o agente confesse factos que são censuráveis,
que não dignificam quem os praticou.

c) Direito à não autoinculpação

Não é humanamente exigível que qualquer pessoa contribua voluntariamente para a sua condenação.

2. Princípio da prova livre

Outra questão que se tem entendido abrangida também no âmbito do art. 32º/2 CRP respeita à
eventual desconformidade com a CRP das normas de processo penal que estabelecem limites à
apreciação direta dos factos pelo juiz, como é o caso da prova resultante de documentos autênticos e
autenticados (art. 169º CPP), do caso julgado civil e outras presunções legais. Para alguns, o princípio
da presunção de inocência implica o princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador.
GMS não concorda com esse entendimento.

É hoje reconhecido que a convicção íntima não é por si critério de verdade e também é erro grosseiro
pensar que as regras legais quanto ao valor das provas são necessariamente arbitrárias. Elas assentam
na experiência comum e representam a estratificação de conhecimento empírico obtido através dos
séculos. Aliás, a própria lei manda atender na apreciação da prova às regras da experiência (art. 127º
CPP).

O princípio da livre convicção ou da prova moral significa que o julgador tem a liberdade de formar
a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas no juízo que se fundamenta
no mérito objetivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi
exposto e adquirido representativamente no processo.

Ora, a liberdade que é referida no art. 127º não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a
decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte à fundamentação e à
comunicação.

É este do sentido dos arts:

 365º/3 CPP, a propósito dos termos de deliberação do tribunal;

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 374º/2, 375º/1, 379º/1, al. a) e 425º/4 CPP, quando às exigências de fundamentação da


sentença, com a cominação da nulidade da decisão por inobservância de tais exigências;

 410º/2 CPP, que alarga os fundamentos do recurso aos vícios em matéria de facto aqui
previstos.

a. Prova testemunhal: não são identificáveis, regra geral, quaisquer limitações ao princípio,
podendo dizer-se que este é o seu campo de eleição (art. 128º). Com efeito, as declarações de
testemunhas são apreciadas segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade
competente para as colher. No entanto, já não pode ser afirmado o mesmo quanto ao
depoimento indireto ou testemunho de ouvir dizer ou relativamente às vozes públicas e
convicções pessoais (arts. 129º e 130º).

Quanto ao depoimento indireto, estabelece a regra que tal depoimento não pode servir como meio de
prova, estabelecendo uma proibição de valoração da prova. Porém, o juiz poderá chamar a depor
pessoas a quem se ouviu dizer e, no limite, se tal não for possível por morte, anomalia psíquica
supervenientemente ou impossibilidade de serem encontradas, valorar o depoimento indireto. Já
haverá uma proibição de valoração da prova absoluta se quem depõe se recusar ou não estiver em
condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.

Quanto às vozes públicas e convicções pessoais, a regra é a de que não é admissível como depoimento
a reprodução de vozes ou rumores públicos, bem como a manifestação de meras convicções pessoais
sobre factos ou a sua interpretação.

b. Declarações do arguido sobre os factos que lhe são imputados: há que considerar, em
concreto, o comportamento deste sujeito processual:

i. Se o arguido negar os factos, vale em pleno o princípio da livre apreciação da prova.


ii. Se o arguido confessar de forma parcial ou com reservas os factos que lhe são imputados,
bem como se confessar de forma integral e sem reservas de tais factos, valerá também
este princípio.
iii. Valerá também quando o crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos – art.
344º/3, als. a) e c) e 4.
iv. Não valerá o princípio em caso de confissão livre, integral e sem reservas do arguido,
por crime punível com pena de prisão até 5 anos, uma vez que lhe correspondem os
efeitos previstos no art. 344º/2, nomeadamente a renúncia à produção da prova relativa
a factos imputados e consequente consideração destes como provados e a passagem de
imediato às alegações orais e, se o arguido não dever se absolvido por outros motivos, à
determinação da sanção aplicável (als. a) e b) daquele n.º 2). No entanto, tal como denota
MARIA JOÃO ANTUNES, na verdade, o princípio continua a valer aqui. Isto porque o
valor que a lei atribui aqui às declarações do arguido abrange somente os casos em que
a confissão também é livre – art. 344º/3, al. b), valendo integralmente o princípio da livre
apreciação da prova quando o arguido confessa a prática de um crime punível com pena
até 5 anos.

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v. Quanto ao silêncio do arguido, há na lei uma verdadeira limitação à livre apreciação


pela entidade competente, na medida em que, de acordo com ela, o silêncio nunca pode
desfavorecer o arguido (arts. 61º/1, al. d), 141º/4, al. a), 343º/1 e 345º/1 in fine). Trata-se
do exercício do direito à não autoincriminação (arts. 32º/1 e 2 CRP), que é assumido pela
lei, no art. 141º/4, al. b) CPP.

c. Apreciação de prova pericial: segundo o art. 163º/1, o juízo técnico, científico ou artístico
inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, o que representa
o abandono do entendimento de que o juiz é o perito dos peritos. Assim, o julgador apenas
poderá divergir do juízo contido no parecer do perito, fundamentando devidamente a
divergência, se puder fazer uma apreciação também técnica/científica/artística ou se se tratar
de um caso inequívoco de erro (art. 163º/2). Note-se, porém, que caberá ainda ao julgador o
juízo jurídico e de manter a sua liberdade de apreciação no que se refere à base de facto
pressuposta pelo perito, podendo contrariar tal base e desta forma retirar validade ao juízo
do perito.

d. Quanto aos factos constantes de documentos, vale o princípio da livre apreciação da prova,
ainda que se trate de um documento autêntico ou autenticado, uma vez que autenticidade do
documento ou a veracidade do seu conteúdo podem ser fundadamente postas em causa (art.
169º). O tribunal pode mesmo declarar um documento falso (art. 170º).

3. Princípio da investigação ou da verdade material

Como vimos, definido o objeto do processo pela acusação e delimitado o objeto do julgamento, o
tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios
processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da
contribuição da acusação e da defesa. Contrariamente ao que sucede no processo civil, não existe
ónus da prova no processo penal.

Assim, o tribunal pode e deve ordenar oficiosamente toda a produção de prova que entenda por
necessária ou conveniente para a descoberta da verdade. E isto porque ao processo penal não basta
uma verdade formal, é ainda necessária uma verdade material (histórica).

⇒ Princípios relativos à forma:

O conceito de forma dos atos processuais é um dos mais obscuros na doutrina processualista, não
tendo ainda sido precisado com rigor.

Para GMS, consideram-se elementos formais do ato processual os requisitos de caráter instrumental
exigidos por lei para que se produzam os efeitos jurídicos dos atos e, em geral, a sua própria
admissibilidade.

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1. Princípio da publicidade

Está consagrado nos arts. 86º e ss. CPP.

Nos termos do art. 86º/6, a publicidade do processo implica os direitos de:

i) Assistência, pelo público em geral, à realização do debate instrutório e dos atos


processuais na fase de julgamento;
ii) Narração dos atos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de
comunicação social;
iii) Consulta do auto e obtenção de cópias, extratos e certidões de quaisquer partes deles.

O processo pode, porém, ser submetido a segredo de justiça na fase do inquérito para acautelar a
eficácia da investigação e os direitos dos sujeitos e participantes processuais (art. 86º/2 e 3).

É de referir a publicidade mediata, que se obtém mediante a interposição de um qualquer meio de


comunicação social entre os atos processuais e o público. Esta questão é complexa e delicada:

- Por um lado, a narração objetiva dos atos processuais pelos meios de comunicação social
realiza também a função política própria da publicidade do processo;
- Por outro lado, a narração parcial, acompanhada de juízos de opinião, muitas vezes
disfarçados de simples narração dos factos, pode ser extremamente negativa, não só para a
confiança na Justiça, mas sobretudo como criminosa violação dos direitos do arguido e mesmo
dos demais intervenientes processuais.

De qualquer modo, sendo a publicidade necessária para salvaguardar a qualidade da justiça, como
garante da sua legitimidade democrática e como meio essencial para educar o público em matéria de
justiça penal, os meios de comunicação social são indispensáveis porque são a verdadeira alma da
publicidade.

2. Princípio da oralidade

Significa essencialmente que só as provas produzidas ou discutidas oralmente na audiência de


julgamento podem servir de fundamento à decisão. Este princípio visa assegurar a transparência na
administração da Justiça e reforçar a confiança comunitária nesta função do Estado.

A oralidade favorece também a descoberta da verdade.

Note-se que o princípio da oralidade não exclui que os atos praticados oralmente fiquem
documentados para servir o controlo da assunção de prova, nomeadamente em matéria de recursos.

O princípio da oralidade tem consagração processual no art. 96º/1.

Não obstante, a jurisprudência tem limitado o alcance da oralidade, considerando-o apenas na


perspetiva da produção da prova pessoal perante o tribunal de julgamento (imediação), não

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

atribuindo relevância ao fator publicidade da audiência, fazendo uma interpretação restritiva do art.
206º CRP.

 Princípio da imediação

Significa essencialmente que a decisão jurisdicional só pode ser proferida por quem tenha assistido à
produção das provas e à discussão da causa pela acusação e pela defesa, mas significa também que
na apreciação das provas se deve dar preferência aos meios de prova que se encontrem em relação
mais direta com os factos probandos (ex: preferência das testemunhas presenciais às de “ouvi dizer”)
e seja feita o mais brevemente possível, logo que finda a audiência de julgamento.

Este princípio foi limitado pela Lei n.º 20/2013 de 21 de fevereiro, que alterou os arts. 356º e 357º, que
permitem agora a leitura em audiência de declarações prestadas em fases anteriores perante o MP ou
juiz.

 Forma escrita e língua dos atos processuais

Nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade
(art. 92º/1). Quando tiver de intervir no processo pessoa que não conhece ou não domina a língua
portuguesa, é nomeado intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao ato ou qualquer dos
participantes conheça a língua por aquela utilizada.

3. Princípio da concentração

Os atos processuais devem, sempre que possível, praticar-se numa só audiência ou em audiências de
tal modo próximas no tempo que as impressões do juiz colhidas na audiência não se apaguem da sua
memória.

Este princípio está consagrado nos arts. 328º e 365º/1.

4. Princípio da proibição de perseguição penal múltipla (ne bis in idem)

O art. 29º/5 CRP dispõe que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
Este princípio representa uma garantia de segurança individual própria de um Estado de Direito.

Geralmente, é expresso segundo uma de duas fórmulas:

i) Sentido material – sanção penal (ninguém pode ser castigado várias vezes pelo mesmo
facto). Esta é mais adequada a permitir o recurso de revisão, pois o que proíbe é que pelo
mesmo facto o agente sofra mais do que uma pena.
ii) Sentido processual – a utilizada pela CRP. Esta é mais adequada a impedir a renovação
do procedimento penal, pelo menos em prejuízo da mesma pessoa.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A ideia base é a de que não é permitido repetir um processo com o mesmo objeto de processo anterior
e o critério de delimitação do objeto consiste em que tudo o que poderia ter sido decidido em
processo anterior não pode ser repetido.

LEI PENAL NO TEMPO

⭐ Princípio da legalidade, seus corolários e retroatividade in melius: conceito amplo de lei


penal e de norma penal positiva

A Professora MARIA FERNANDA PALMA adota um conceito amplo de normas penais positivas. A
esta luz, considera normas penais positivas as relativas a condições de procedibilidade; as que
estabelecem os prazos de prescrição do procedimento criminal; ou que definem causas de suspensão
ou interrupção desses prazos (arts. 120º e 121º CP).

⇒ Normas sobre prescrição:

A favor de um conceito amplo de norma penal e da consequente submissão ao princípio da legalidade


e seus corolários pronunciou-se também o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 205/1999, em cujo ponto
8 se lê: “a proibição da analogia em matéria prescricional, nomeadamente quanto às causas de interrupção da
prescrição”, justifica- se “pelo controlo do poder punitivo do Estado através do Direito que criou, de modo que,
sem a verificação de factos previstos em lei penal (objeto de reserva de lei e inerente controlo democrático) como
indiciadores de uma efetiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado, não será possível
estabelecer causas interruptivas da prescrição”.

Explica MFP: as normas que alargam o prazo de prescrição do procedimento criminal revelam uma
alteração da necessidade de punir e uma intensificação da necessidade punitiva. Logo, a sua aplicação
imediata a crimes anteriormente cometidos implicaria uma apreciação, à luz do presente, da
necessidade de punição de um crime praticado no passado, o que enfraqueceria a limitação do Estado
pelo Direito que criou num determinado momento, não assegurando a autolimitação própria do
Estado de Direito.

⇒ Normas relativas a condições de procedibilidade:

Já os preceitos legais relativos a condições de procedibilidade (queixa ou acusação particular) não


têm, no entender de MFP, natureza apenas penal substantiva, de modo que não é possível referir
integral e exclusivamente, nem em todos os casos, as normas que as regulam aos princípios da
legalidade criminal e da imposição de retroatividade in melius. Tais normas assumem natureza mista
(penal, processual e até extra-penal). Com efeito, o direito de queixa é influenciado pelo princípio
vitimológico, à luz do qual, embora a proteção penal de certo bem jurídico seja socialmente
importante, o procedimento criminal é deixado na dependência de uma manifestação de vontade
do seu titular, por se entender prevalecente o valor da disponibilidade desse bem pelo seu titular.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 Publicização de crime semipúblico ou particular:

No caso de conversão de um crime semipúblico (cujo procedimento depende de queixa – art. 49º CPP)
ou particular (cujo procedimento depende de queixa do ofendido, da sua constituição como assistente
no processo e da respetiva acusação particular – art. 50º CPP) em um crime público, sem que tenha
sido apresentada queixa antes da alteração da natureza do crime, é o princípio da legalidade (no seu
corolário de proibição de retroatividade in pejus) que impede a aplicação da lei nova a factos
anteriormente cometidos, sob pena de violação do princípio da objetividade e da vinculação do
Estado ao seu Direito (neste sentido, MFP e TAIPA DE CARVALHO).

Porém, se tal alteração se der na pendência de um processo-crime, subsequente à apresentação de


queixa pelo ofendido, pelo menos o art. 5º/2, maxime al. a) CPP obstará à aplicação da lei nova
desfavorável. Agora já será necessário convocar, ao lado do princípio da legalidade e seus corolários,
o Código de Processo Penal e os princípios processuais penais para resolver o problema da sucessão
no tempo de normas sobre condições de procedibilidade.

Logo, se findo o inquérito por um crime particular, o ofendido não deduzir acusação nos termos do
art. 285º CPP, o MP deverá arquivar o inquérito por não ser legalmente admissível o procedimento
criminal à luz da lei em vigor no momento da prática do crime (arts. 277º/1, in fine, CPP; 3º, 2º/1 e 4,
1ª parte, CP; 29º/4, 1ª parte CRP).

Da mesma forma, na situação de pendência de processo-crime por crime semipúblico aquando da


alteração legislativa, deve manter-se a possibilidade de desistência de queixa do ofendido (arts.
116º/2 CP e 51º CPP), apesar da publicização do crime em causa, por essa ser uma faculdade
concedida ao ofendido-queixoso pela lei do tempus delicti (arts. 5º/2 CPP, 3º e 2º/1 e 4, 1ª parte, CP;
29º/4, 1ª parte, 20º/4 e 32º/1 CRP).

 Despublicização de crime público:

Ao invés, na hipótese de despublicização de dado crime que passa a semipúblico ou particular,


defende MFP que deve aplicar-se imediatamente a lei nova (mais favorável ao agente – arts. 29º/4,
2.ª parte CRP; e 2º/4 CP), mas simultaneamente assegurar-se ao ofendido a oportunidade
(porventura processual) de exercer o direito de queixa (estando já pendente o processo-crime), em
lugar do arquivamento automático deste (graças à aplicação imediata da lei nova mais favorável,
apenas com base no art. 29º/4, 2ª parte CRP, que atende exclusivamente aos interesses do agente do
crime ou do arguido), ou da impossibilidade de exercício do direito de queixa por via da
ultra-atividade da lei antiga, que qualificava o facto como crime público e estava em vigor no
momento do início do processo (art. 5º/1, 2.ª parte, e 2 b) CPP).

Também TAIPA DE CARVALHO distingue a ratio da prescrição do procedimento criminal e da pena


(predominantemente político-criminal, respeitante à desnecessidade da pena numa ótica de
prevenção geral e especial) da ratio da queixa e acusação particular, na qual confluem razões
(públicas) político‐criminais e razões pessoais do ofendido. Por isso, conclui que, ressalvado o
princípio da aplicação retroativa da lei nova mais favorável, é razoável consagrar uma solução que

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

também contemple a posição pessoal do ofendido, posição que o legislador também teve em atenção
ao estabelecer a exigência da queixa.

Contudo, TAIPA DE CARVALHO propõe para os casos de despublicização do crime uma solução
diferente da preconizada por MFP: parte da distinção, no âmbito dos institutos da queixa e acusação
particular, entre (i) normas exclusivamente processuais (as dos arts. 49º- 52º CPP: legitimidade do
MP para promover o processo penal e condições de procedibilidade) sujeitas ao princípio da
aplicação imediata consagrado no art. 5º/1 CPP; e (ii) normas processuais penais materiais (as
constantes dos arts. 113º- 117º CP: titularidade do direito de queixa e acusação particular, prazo para
o exercício do direito de queixa, renúncia e desistência da queixa ou acusação particular) às quais se
aplicariam os arts. 3º (tempus delicti) e 2º/4 do CP (proibição de retroatividade in pejus e imposição de
retroatividade in melius, tomando como ponto de referência o tempus delicti definido no art. 3º CP).

Em face disto, TAIPA DE CARVALHO sustenta que, se o processo penal já foi instaurado ao abrigo
da LA – que qualificava o crime como público – quando entra em vigor a LN convertendo-o em crime
semipúblico, não se justifica a notificação do ofendido para vir ao processo apresentar queixa. Assim
sucede porque, sendo a queixa mera condição de procedibilidade (conditio sine qua non do início do
processo) e não permanente condição de prosseguibilidade do processo-crime, esgota os seus efeitos
jurídicos na criação do pressuposto da promoção da ação penal pelo MP. Ou seja, quando entra em
vigor a LN deixa de haver lugar e necessidade para a apresentação de uma queixa cujos (possíveis)
efeitos jurídicos já não poderiam produzir-se ao abrigo da LN, pois o processo-crime iniciou-se
validamente ex officio.

Assevera o Autor: a queixa constitui somente condição para o início do procedimento criminal, nada
tendo a ver com a legitimidade e titularidade da ação penal, as quais são sempre do MP (art. 219º/1
CRP). Ora, a competência e legitimidade do MP para iniciar e prosseguir o procedimento criminal
é definida pela lei em vigor no momento em que se inicia o processo (art. 5º/1 CPP). O MP só perde
legitimidade para prosseguir com a ação penal, iniciada ao abrigo da LA, se o ora titular do direito
de queixa quiser pôr termo ao processo, exercendo o seu direito de “desistência de queixa” nos
termos do art. 116º CP.

A apresentação de queixa só será necessária se o processo criminal ainda não tiver sido iniciado
pelo MP aquando da despublicização do crime, hipótese em que nem se suscita a aplicação do art.
5º/1 CPP.

Na opinião de TQB, mesmo admitindo a validade da distinção entre queixa (condição ou pressuposto
do início do procedimento-criminal), regulada pelo art. 5º CPP, e desistência de queixa (causa de
extinção do procedimento criminal), submetida aos arts. 3º e 2º/1 e 4 CP, a verdade é que nem sempre
a competência e legitimidade do MP para iniciar e prosseguir o procedimento criminal se define
pela lei em vigor no início do processo. Basta pensar na hipótese de conversão do crime público ou
semipúblico em crime particular, na pendência do processo-crime, mas antes de deduzida a acusação
pública. Então, como reconhece TAIPA DE CARVALHO, o processo só pode prosseguir com a
dedução de acusação particular (art. 285º CPP), porque a acusação particular (ao contrário da queixa)
é condição de prosseguibilidade do procedimento criminal. Bem nota FIGUEIREDO DIAS que nos

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

crimes particulares o titular do direito de queixa e de acusação torna-se, após o inquérito, no


verdadeiro dominus do processo e o instrumento indispensável de realização do ius puniendi estatal.

Por isso, concorda com GMS ao afirmar que a legitimidade do MP não é imutável, antes se há de
aferir a cada momento do processo, em relação a cada ato que se vá praticando, em função das
disposições legais aplicáveis. Também MFP sublinha que, na aplicação da lei processual penal, o
critério de aferição da anterioridade e da retroatividade não é necessariamente o do tempus delicti (art.
3º CP), mas o da prática do ato processual, pois este, em geral, não interfere de modo essencial com a
previsibilidade, como sucede com as leis penais. MFP explica o princípio da aplicação imediata da lei
processual penal aos processos pendentes pela natureza adjetiva e instrumental do Processo Penal e
pela necessidade de adaptar o processo penal a soluções novas mais eficientes, necessidade
instrumental da realização da justiça.

⭐ Normas processuais penais materiais vs normas processuais penais formais

TAIPA DE CARVALHO define as normas processuais penais materiais como aquelas que
condicionam a efetivação da responsabilidade penal ou contendem diretamente com os direitos
do arguido ou recluso, das quais seriam exemplo as referentes a condições de procedibilidade;
prescrição; espécies de prova e respetivo valor; organização e competência dos tribunais penais; juízo
de culpabilidade; determinação concreta da pena e respetiva fundamentação; graus de recurso;
liberdade condicional; e reformatio in pejus.

A estas contrapõe as normas processuais penais formais ou meramente técnico‐processuais, que se


limitam a regulamentar o desenvolvimento do processo, sem produzirem os efeitos jurídico‐
materiais próprios das primeiras. Dá como exemplos de normas processuais penais formais as
relativas a formas e prazos de citação ou convocação; redação dos mandados judiciários ou dos autos
de notícia; formas de audição e registo das intervenções dos intervenientes processuais; formalidades
e prazos dos exames periciais; formalidades e horários das buscas.

Parece claro a TQB que algumas destas normas meramente processuais podem contender com
direitos fundamentais do arguido ou recluso: basta pensar nas relativas aos prazos para o exercício
do direito de defesa pelo arguido (sob a forma de requerimento para abertura de instrução ou de
interposição de recurso); a horários de buscas domiciliárias (art. 34º/3 CRP); às formas de registo do
primeiro interrogatório de arguido detido (arts. 141º/4 b) e n.º 7, 355º e 357º/1 b) CPP) ou da prestação
de declarações para memória futura por parte de uma testemunha ou da vítima (arts. 271º, 355º,
356º/2 a) e 364º CPP).

Em sentido próximo se pronuncia FIGUEIREDO DIAS, que começa por reconhecer que o conteúdo
de certos pressupostos processuais, como a queixa ou a acusação particular, contende com o direito
substantivo, pois a teleologia e as intenções político‐criminais que os regem têm ainda a ver com
condições de efetivação da punição e nesta encontram o seu fundamento e razão de ser. Daí que o
regime desses pressupostos seja essencialmente regulado na Parte Geral do CP, embora no capítulo
relativo às consequências jurídicas do crime.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⭐ Normas processuais penais materiais positivas e determinação da lei temporalmente


aplicável

MFP distingue dois tipos de limites à aplicabilidade imediata da nova lei processual penal material:

i) Princípio constitucional da proibição de retroatividade in pejus (arts. 29º/4 1ª parte CRP) –


aqui se enquadram as normas processuais penais substantivas que tenham uma conexão
fundamentadora da responsabilidade do arguido, na medida em que delimitem direta e
exclusivamente a relação jurídica punitiva (quanto à sua existência e conteúdo, como normas
relativas à prescrição do procedimento criminal), ou que se prendam com os meios de
aplicação processual das normas incriminadoras (ex: normas respeitantes às condições de
procedibilidade).

Relativamente a estas, o momento‐critério de determinação da lei temporalmente competente, ou


seja, o “termo a quo” de aplicação das normas processuais penais ou o ponto de referência da
proibição de retroatividade in pejus seria sempre definido pelo tempus delicti (art. 3º CP).

ii) Subprincípio contido no art. 5º/2 a) CPP, que constitui expressão das garantias de
previsibilidade e proibição de arbítrio subjacentes ao princípio da legalidade – aqui incluem-
se as normas que contendam de modo essencial com a posição processual do arguido na
relação jurídica punitiva na sua fase processual. Na opinião de MFP, trata-se de normas que,
não respeitando à existência ou ao conteúdo fundamental da relação jurídica punitiva, afetam
a possibilidade de o arguido realizar os direitos que lhe são reconhecidos no processo penal,
como o direito de defesa. Aqui se enquadram as normas processuais penais relativas aos
meios de obtenção de prova, graus de recurso, prisão preventiva, liberdade condicional ou
reformatio in pejus, cuja aplicação pressupõe a prévia existência de um processo-crime.

Quanto a estas, o momento‐critério de determinação da lei temporalmente competente, o termo a quo


de aplicação das normas processuais penais ou o ponto de referência da proibição de retroatividade
in pejus seria definido pelo início do processo penal, para o qual parece apontar o corpo do n.º 2 do
art. 5º CPP.

⇒ Exemplo de distinção entre normas processuais penais materiais na jurisprudência do TC:

O Ac. do Tribunal Constitucional n.º 247/09 distingue dois tipos de normas processuais penais
materiais: aquelas que condicionam a aplicação das sanções penais (ex: as respeitantes à prescrição;
ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa; e, ainda, à reformatio in pejus) e aqueloutras
que podem afetar o direito à liberdade do arguido (ex: as relativas à prisão preventiva) ou que
asseguram os seus direitos fundamentais de defesa.

Quanto às primeiras, lê-se no Ac., “a subordinação às regras do artigo 29º C.R.P., (...) resulta duma simples
operação de subsunção, uma vez que elas se inserem claramente no âmbito de previsão daquele preceito
constitucional, atenta a sua influência direta na punição criminal”.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Diferentemente, no caso das normas processuais que podem contender com o direito à liberdade do
arguido ou que asseguram os seus direitos fundamentais de defesa, a sua aplicação imediata a
processos em curso resulta sempre na atribuição duma eficácia retroativa imprópria. Nestas
situações, tal como ocorre com as normas de direito penal, a necessidade de proteção dos direitos,
liberdades e garantias do cidadão, como emanação do princípio do Estado de direito democrático
(art. 2º CRP), exige a proibição da aplicação com efeitos retroativos, mesmo que impróprios, de
normas que, dispondo em matéria de direitos, liberdades e garantias constitucionais do arguido,
agravem a sua situação processual, de modo a evitar‐se um possível arbítrio ou excesso do poder
estatal. Com esta proibição impede‐se que o poder legislativo do Estado diminua de forma
direcionada e intencional o nível de proteção da liberdade e dos direitos fundamentais de defesa dos
arguidos, em processos concretos já iniciados. Nesta lógica se situa, aliás, a proibição expressa de
atribuição de efeito retroativo às normas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, imposta no
art. 18º/3 CRP.

⇒ Doutrina contrária à distinção entre normas processuais penais materiais:

Em sentido contrário à distinção entre normas processuais penais materiais manifesta-se TAIPA DE
CARVALHO, sustentando que a ratio de garantia política do cidadão face a possíveis decisões
legislativas ou judiciais arbitrárias ou mesmo persecutórias que levou à consagração constitucional
da proibição de retroatividade in pejus determina a sua aplicabilidade às normas processuais penais
materiais. Também nestas os direitos do arguido e do recluso estão em causa, existindo sempre a
possibilidade de o poder punitivo tentar servir‐se de alterações legislativas posteriores ao tempus
delicti para agravar retroativamente a situação jurídica do arguido ou recluso.

Por isso, em seu entender, a sucessão de leis processuais penais materiais rege-se pelos princípios
constitucionais da proibição de retroatividade in pejus e da imposição de retroatividade in melius,
consagrados no art. 29º/4 CRP.

Quanto ao art. 5º/1 a) CPP, o autor considera tratar-se de um preceito inútil, pois o aí disposto não
deveria constar do art. 5º, por estar em causa uma questão que, por exigência constitucional e do
Estado de Direito, se submete ao princípio da proibição da retroatividade da lei penal desfavorável
e, portanto, é abrangida pelo art. 2º/4 CP. Ou seja: todas as normas processuais penais materiais são
exclusivamente perspetivadas a partir do Direito Penal e, afinal, reconduzidas a normas penais
substantivas, de modo que o momento‐critério de determinação da lei temporalmente competente é
sempre o do tempus delicti e não o momento em que se inicia o processo.

Assevera TAIPA DE CARVALHO: todo o art. 5º CPP somente se aplica às normas processuais
penais formais, cujo princípio geral é o da aplicação imediata, configurando-se como excecional a
aplicação da LN tão só aos processos iniciados depois da sua entrada em vigor, ou seja, a
ultra-atividade da LA.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ O conteúdo de garantia do princípio da legalidade no processo penal e o art. 5º/2 a):

FIGUEIREDO DIAS rejeita que o princípio da legalidade só tenha incidência substantiva e não
processual. Pelo contrário, entende que o princípio jurídico‐constitucional da legalidade se estende
em certo sentido a toda a repressão penal, e abrange, nesta medida, o próprio direito processual penal.
Importa que a aplicação da lei processual penal a atos ou situações que decorrem na sua vigência,
mas se ligam a uma infração cometida no domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o
conteúdo de garantia conferida pelo princípio da legalidade. Logo, não deve aplicar‐se a nova lei
processual penal a um ato ou situação processual que ocorra em processo pendente ou derive de um
crime cometido no domínio da lei antiga, sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição
processual do arguido ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa.

Parece então que no pensamento de FD o art. 5º/2 a) CPP dá guarida a todas as normas processuais
penais materiais, sem impor relativamente a todas que o momento-critério de determinação da lei
temporalmente competente ou o termo a quo de aplicação das normas processuais penais seja o do
início do processo-crime, podendo e devendo ser (ao menos em relação a algumas delas: as que se
configuram como normas penais positivas) o do tempus delicti.

Mas esse preceito também não impede que, mesmo quanto às normas processuais penais materiais
do segundo tipo (que afetem de modo essencial a posição processual do arguido na relação jurídica
punitiva, na sua fase processual), esse momento seja o do tempus delicti – e não forçosamente e sempre
o do início do processo.

Com efeito, parece dever separar-se a pendência de um processo-crime como pressuposto necessário
de aplicação das normas processuais penais do segundo tipo, da definição da lei temporalmente
aplicável, ou melhor, do termo a quo de aplicação daquelas normas. Este, em teoria, tanto pode ser o
do início do processo-crime (que se dá com o começo da investigação criminal contra pessoa
determinada – arts. 272º/1, 58º/1 a) e c) e 59º CPP) como o do tempus delicti (art. 3º CP).

⇒ O carácter lacunar do art. 5º/2:

Note-se que, em rigor, a única solução para que inequivocamente aponta o corpo do n.º 2 do art. 5º
CPP é a da não aplicação imediata da LN desfavorável à posição processual do arguido, maxime ao
seu direito de defesa. Dele não resulta de modo isento de dúvidas um qualquer termo a quo de
aplicação das normas processuais penais materiais. Ou seja: determina que lei não se aplica, mas não
indica que lei é aplicável.

Quanto a esta questão pode falar-se de uma verdadeira lacuna do CPP, a integrar nos termos do
respetivo art. 4º: na ausência de disposição reguladora de caso análogo no próprio CPP e de normas
do processo civil que se harmonizem com o processo penal, há que recorrer aos princípios gerais do
processo penal, a começar por aqueles que se encontram vertidos no art. 32º CRP.

Em face disto, o momento-critério de determinação da lei temporalmente competente, mesmo quanto


às normas processuais penais materiais do segundo tipo, pode ser, na lógica do sistema jurídico, o do

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

tempus delicti e não necessariamente o do início do processo, sempre que a aplicação deste último
momento-critério se traduzir na violação de princípios constitucionais, maxime das garantias de
previsibilidade e proibição de arbítrio subjacentes ao princípio da legalidade (MFP) ou dos
princípios gerais do processo penal (designadamente do processo justo e equitativo e da plenitude
das garantias de defesa – arts. 20º/4 e 32º/1 CRP).

⭐ Normas processuais penais materiais respeitantes à posição processual do arguido ou


recluso e termo a quo da sua aplicação

⇒ Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.02.2010, proc. n.º 380/08.0JAAVR-A .C1,


Relator: Esteves Marques:

O caso que foi objeto deste Acórdão constitui um bom exemplo de uma situação em que, apesar de
estar em causa uma norma processual penal material de segundo tipo (referente aos meios de
obtenção de prova legalmente admissíveis), tanto o Tribunal recorrido como o Tribunal de recurso
tomaram como ponto de referência na determinação da lei temporalmente competente, ou do termo
a quo de aplicação das normas processuais penais, o tempus delicti (art. 3º CP) – e não o início ou
a mera pendência do processo-crime (art. 5º/1 CPP).

Estava em causa a investigação dos crimes de burla informática (art. 221º CP) e de acesso ilegítimo
(art. 7º Lei n.º 109/91, de 17/8 – anterior Lei da Criminalidade Informática), cometidos por meio de
sistema informático no final do ano de 2008.

Na pendência do inquérito, o MP, ao abrigo da Lei 109/2009, de 15/09 (atual Lei do Cibercrime),
requereu ao Juiz de Instrução que ordenasse à TV Cabo Portugal a identificação do cliente “(nome,
Mac adress e local de instalação)” que tinha atribuído o IP no dia 14­12­2008, entre as 22h e 8m e as
23h e 17m, por considerar tal diligência imprescindível à investigação em causa. Tratava-se de uma
diligência que, à data dos factos, não era permitida, mas que passou a sê-lo graças à Lei n.º 109/2009,
entretanto entrada em vigor. O Juiz de Instrução indeferiu tal requerimento, por entender que “não
sendo admissível a diligência à data da prática dos factos, não era de aplicar o regime previsto na Lei 109/2009,
porquanto tal acarretaria uma diminuição sensível da posição processual do visado nos termos do art. 5º/1 a)
CPP”.

Inconformado o MP recorreu, alegando que o Juiz de Instrução realizara uma interpretação incorreta
do art. 5º/2 a) CPP. “Desde logo porque não existe arguido constituído nos autos, mas apenas um mero
suspeito”. Logo, “a diligência requerida não consubstancia qualquer prejuízo, muito menos grave, da sua
posição processual”. Aliás, “no caso em concreto não há qualquer expectativa processual a salvaguardar”. E
concluía que o Juiz de Instrução teria violado o disposto no art. 5º/1 CPP ao não ter aplicado
imediatamente a Lei n.º 109/2009.

O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, argumentando: “a possibilidade de


obtenção de prova comprometedora do agente quanto à prática dos crimes investigados, através da realização da
requerida diligência – a qual só agora é permitida pela Lei do Cibercrime –, agrava de forma sensível a sua
posição processual”. Efetivamente, o agente será colocado na “posição de ter de se defender de uma prova,

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

obtida por esse meio [e] que lhe pode ser desfavorável, e que, caso o referido diploma não existisse, não” poderia
ser alcançada. Ou seja: a aplicação imediata da nova Lei do Cibercrime agravaria irreversivelmente a
sua posição processual. Portanto, está-se perante “matéria que contende com o direito de defesa [do
arguido], agravando de forma sensível a sua situação processual”.

O Tribunal da Relação de Coimbra esclareceu ainda: “não se argumente (...) que, não havendo ainda
arguido, não há limitação do direito de defesa”. Na verdade, o legislador, ao aludir a ‘arguido’, não quis
incluir “apenas aqueles que estão [formalmente] constituídos como tal, pois, contendo‐se a norma do art. 5º nas
disposições Preliminares e Gerais do Código, essa referência terá de ser entendida de uma forma ampla e não
restrita, abrangendo aqueles contra quem são dirigidas diligências de averiguação ou investigação, no âmbito
de um processo penal” (art. 1º e) e 187º/4 a) CPP).

Este caso permite também perceber a necessidade de destrinçar a existência de um processo em curso,
enquanto pressuposto necessário de aplicação das normas processuais penais materiais relativas à
posição processual do arguido ou recluso, do problema da determinação do termo a quo de aplicação
de tais normas. Este problema terá de ser resolvido, não com base num critério formal como o início
ou a pendência de um processo-crime, mas à luz das ponderações subjacentes aos princípios
constitucionais do Estado de Direito democrático (art. 2º CRP), da legalidade (art. 29º/1 e 4 CRP), do
processo justo e equitativo (art. 20º/4 CRP) e da plenitude das garantias de defesa no processo penal
(art. 32º/1 CRP) por ser esse o procedimento imposto para a integração de lacunas do CPP pelo
respetivo art. 4º.

⇒ O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 551/2009 (Relator: Vítor Gomes):

Neste Acórdão discutiu-se a aplicabilidade aos processos em curso da nova redação do art. 400º/1 f)
CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, que veio determinar a irrecorribilidade para o STJ
dos acórdãos condenatórios, proferidos em recurso pelos Tribunais da Relação, quando confirmem
decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. Segundo a redação anterior, só
eram irrecorríveis os acórdãos condenatórios, proferidos em recurso pelas relações, que
confirmassem decisão de 1ª instância, em processo por crime a que fosse aplicável pena de prisão não
superior a oito anos. Portanto, a nova redação atende à pena concretamente aplicada pelo Tribunal da
Relação e não à pena abstrata legalmente prevista.

No caso dos autos, o arguido tinha sido condenado em 1ª instância por dois crimes de homicídio
tentado, em concurso efetivo, ao qual tinha sido aplicada a pena única de 5 anos de prisão (art. 77º
CP). Ao abrigo da norma vigente no início do processo e da sua constituição como arguido (no ano
de 2005), este interpôs recurso para o STJ, por estarem em causa dois crimes de homicídio tentado
puníveis, cada um deles, com pena de prisão superior a oito anos. O recurso não foi admitido por
força da nova redação do art. 400º/1 f) CPP, alegadamente aplicável aos processos penais em curso
nos termos do art. 5º/1 CPP.

Então, o arguido reclamou para o Presidente do STJ, sustentando que o Ac. da Relação de Lisboa seria
recorrível ao abrigo do art. 400º/1 f) CPP, na redação anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007,
pois este deveria ser o regime aplicável nos termos do art. 5º/2 a), por ser aquele que estava em vigor

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

quando o processo foi instaurado. O arguido alegou ainda a inconstitucionalidade dos arts. 5º e 400º
CPP quando interpretados no sentido de que a lei aplicável seria a vigente no momento da prolação
da decisão em 1ª instância, por limitar um direito constitucionalmente consagrado no art. 32º/1 CRP
(o direito ao recurso).

Esta Reclamação foi indeferida por se ter entendido que “estando em causa o exercício de direitos
processuais de um sujeito processual, que são inerentes e se confundem com a própria fase de recurso, o momento
relevante” para a aferição dos respetivos pressupostos “será aquele que primeiramente define no processo
a situação do sujeito interessado suscetível de ser objeto do recurso”. Ou seja, o direito ao recurso do arguido
só nasce com a prolação da decisão condenatória em 1ª instância, tal como decidiu o Ac. n.º 4/2009
do STJ, de Fixação de Jurisprudência. Este Ac. apenas considerou aplicável a anterior redação do art.
400º/1 f) CPP aos casos em que a decisão de 1ª instância tivesse sido proferida anteriormente ao início
da vigência da Lei n.º 48/2007.

Em face disto o arguido interpôs recurso para o TC, alegando a inconstitucionalidade dos arts. 5º/1
e 2 a), e 400º/1 f) (nova redação) CPP, tal como interpretados pelo STJ, por violação, designadamente,
dos princípios constitucionais do Estado de Direito (art. 2º CRP), da reserva de lei em matéria de
restrições aos direitos, liberdades e garantias (art. 18º/2 CRP), do acesso à justiça (art. 20º/1 CRP), da
proteção da confiança (art. 18º/3 CRP), da proibição do excesso (art. 18º/2 CRP), do processo justo e
equitativo (art. 20º/4 CRP) e da plenitude das garantias de defesa no processo penal (art. 32º/1 CRP).

Perante o que acima se deixou exposto, TQB afirma que mal parece ter andado o Ac. do TC n.º
551/2009 quando, na linha do já referido Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2009,
considerou que o art. 400º/1 f) CPP, elege como critério de determinação da lei aplicável, em matéria
de recorribilidade do acórdão da Relação para o STJ (norma processual penal material do segundo
tipo), o momento da prolação da sentença condenatória de 1ª instância, que vem a ser confirmada
pelo acórdão de que se pretende recorrer para o Supremo.

Assim sucede, lê-se no Ac., porque “só com a sentença fica definida a resposta judicial à pretensão punitiva
do Estado”. Logo, apenas nesse momento o direito de recorrer das decisões desfavoráveis (art. 61º/1
j) CPP) “passa a integrar o estatuto do arguido”, pois tal direito somente “se define perante uma concreta
decisão que lhe seja desfavorável. Até aí o direito de recorrer, o âmbito do recurso e a sua extensão na hierarquia
dos tribunais constituem mera potencialidade no estatuto do sujeito processual”, ignorando-se “se virá a
concretizar‐se e em que termos”.

Assevera o Ac. do TC n.º 551/2009: perante esta incógnita, não se verifica o risco de um possível
arbítrio do legislador na diminuição “direcionada e intencional” do “nível de proteção da liberdade e dos
direitos fundamentais de defesa dos arguidos em processos concretos já iniciados”. Além disso, “a eleição do
momento em que é proferida a sentença condenatória, como factor de determinação do regime de admissibilidade
dos recursos para o Supremo, acautela suficientemente os direitos de defesa”, permitindo ao arguido “adequar
a sua estratégia processual aos meios legais existentes no momento em que exerce” o seu direito ao recurso,
pois só perante aquela sentença “surge, em concreto, o interesse em recorrer e se define o seu âmbito
possível”. A tutela da confiança do arguido quanto aos graus de recurso disponíveis só seria negada
caso a escolha da lei a aplicar fosse relegada para momento posterior, “designadamente o do acórdão da

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

relação”. Isto basta para preservar os direitos de defesa, “não sendo legítimo que o arguido confie em que
o sistema de recursos vigente no momento em que o processo é instaurado se mantenha inalterado”.

Este Ac. constitui um bom exemplo da tendência para considerar o tempus delicti como um conceito
com “significado e alcance variáveis em função da especificidade do instituto a que pertencem as leis em
conflito”. Ao invés, é em função da razão de ser da proibição de retroatividade in pejus (ou seja, a
ratio de garantia política contra o exercício arbitrário ou persecutório do ius puniendi pelo legislador,
pelo juiz do facto ou pelo juiz de execução de penas) que o momento‐critério tem de ser fixado.

Ora, tanto a ratio de garantia política subjacente ao princípio da legalidade (também aplicável ao
processo penal – art. 2º CPP) quanto o art. 5º/2 a) CPP – já para não falar do princípio da plenitude
das garantias de defesa, incluindo o processo justo e equitativo (arts. 20º/4 e 32º/1 CRP) – impõem
que o termo a quo de aplicação das normas processuais penais materiais seja, nos termos da lei, um
de dois: o do tempus delicti (art. 3º CP) ou o do início do processo (art. 5º/2 CPP), e não qualquer
outro, ao sabor do arbitrário entendimento judicial da ratio e das características de cada um dos
institutos relativamente aos quais se suscite um problema de sucessão de leis no tempo (arts. 18º/2,
29º/1 e 4 1ª parte e 165º/1 c) CRP; e 2º/1 e 4 1ª parte CP).

Apesar da admissibilidade expressa do recurso à analogia (pelo art. 4º CPP), diferentemente do que
sucede quanto à lei penal (art. 1º/3 CP), deve entender-se que o princípio da legalidade criminal (art.
29º/1 CRP) se estende, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, já que a
este cabe assegurar ao arguido todas as garantias de defesa (art. 32º/1 CRP). Logo, não é
constitucionalmente admissível a aplicação de normas por analogia sempre que tal aplicação venha
a traduzir‐se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do
arguido (desfavorecimento do arguido ou analogia in malam partem).

Enfraquecimento da posição processual do arguido e dos seus direitos processuais que todos os Acs.
citados do TC não tiveram qualquer pejo em assegurar, optando arbitrariamente pelo momento da
prolação da sentença condenatória da 1ª instância como termo a quo de aplicação de normas
processuais penais materiais (como são as relativas aos graus de recurso admissíveis) – em lugar do
momento-critério do início do processo (art. 5º/2 a) CPP) – realizando, assim, uma ponderação
constitutiva de soluções jurídicas que constitui apanágio do legislador democrático.

⭐ Conclusões (TQB)

O princípio da legalidade e seus corolários, bem como a ratio de garantia contra o arbítrio (do
legislador e dos tribunais) que lhes subjaz impõem um conceito amplo de lei penal e de norma penal
positiva (aquela que estabelece ou agrava “critérios positivos de punibilidade”), incluindo nesta
categoria algumas das chamadas normas processuais penais materiais.

Mas isso não significa que todos os problemas de sucessão no tempo de normas processuais penais
devam ser resolvidos aplicando direta, integral e ilimitadamente os princípios do Direito Penal
substantivo que regem esta matéria (arts. 29º/1 e 4 CRP e 2º/1 e 4 CP) por estes visarem
exclusivamente a preservação dos interesses do agente do crime, importando antes, em sede do

31
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Direito Processual Penal, atender também, por exemplo, aos interesses do ofendido, da celeridade e
economia processuais ou da unidade do processo penal.

Daqui decorre que a solução das questões suscitadas pela sucessão no tempo de normas processuais
penais deve decorrer da lei (quando exista) e, ainda e sempre, da consideração dos direitos, liberdades
e garantias de todos os cidadãos, dos princípios inerentes ao Estado de Direito democrático e ainda
dos princípios gerais do processo penal.

Para o comprovar basta pensar, por um lado, que o art. 5º CPP não resolve os casos de sucessão de
normas processuais penais materiais (ex: prazos de prescrição do procedimento criminal ou
condições de procedibilidade) prévia à existência de um processo-crime. Todavia, tal preceito já será
aplicável a esse tipo de normas processuais penais quando a sucessão se dá no decurso do
processo-crime, embora isso não signifique que a solução completa do problema resulte em exclusivo
da sua regulamentação.

Com efeito e por outro lado, o art. 5º/2 CPP é lacunoso quanto à determinação do termo a quo de
aplicação das normas processuais penais, admitindo duas respostas possíveis:

i) O tempus delicti tal como definido no art. 3º CP;


ii) O início do processo penal (art. 5º/2, maxime al. b) CPP).

A única certeza que esse preceito nos permite alcançar é a da impossibilidade de aplicação imediata
da LN aos processos em curso e aos atos processuais em causa, contrariamente à regra tempus regit
actum consagrada no art. 5º/1.

Na ausência de disposição análoga do CPP e de normas do processo civil que se harmonizem com o
processo penal, tal lacuna deve ser integrada de acordo com os princípios gerais do processo penal
de um Estado de Direito democrático (art. 4º CPP).

Nesta linha de pensamento, importa considerar que, nos termos do art. 5º/2 CPP, as normas
processuais penais insuscetíveis de aplicação imediata são definidas pelos seus efeitos (agravamento
sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu
direito de defesa, ou quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo). Logo, perante cada
nova norma processual penal (independentemente da sua classificação como norma processual penal
material ou puramente formal), há que averiguar da eventual produção de um desses efeitos.

Se a resposta for positiva, a LN não pode ser aplicada ao processo em curso, nem pode reger o ato em
causa. Se estiverem em causa normas processuais penais que produzam os efeitos previstos no art.
5º/2 b) CPP, esses mesmos efeitos permitem identificar o momento-critério de determinação da lei
temporalmente competente: o início do processo-crime.

Porém, no caso de sucessão de normas processuais penais materiais na pendência de um


processo-crime, o art. 5º/2 a) CPP, per se, não permite identificar o termo a quo da sua aplicação: tempus
delicti ou início do processo-crime?

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A resposta a esta questão começa por depender da distinção entre pendência do processo penal –
pressuposto necessário de aplicação das normas processuais penais materiais relativas à situação
processual (em termos de direitos e garantias) do arguido ou recluso (ex: prazos da prisão preventiva,
graus de recurso ou meios de obtenção de prova legalmente admissíveis) – e determinação do termo
a quo de aplicação das normas processuais penais.

Nem mesmo nesse segundo tipo de normas processuais penais materiais o momento-critério de
determinação da lei temporalmente competente tem de coincidir necessariamente com o do início do
processo-crime. O que vimos suceder no caso que foi objeto do Ac. do TRC, referente à aplicação dos
meios de obtenção de prova previstos na nova Lei do Cibercrime a um inquérito-crime em curso.
Situação em que tanto o Tribunal recorrido como o Tribunal de recurso entenderam (com toda a
razão) que o termo a quo de aplicação das normas processuais penais em causa deveria ser o do tempus
delicti (art. 3º CP).

Já no caso objeto do Ac. do TC n.º 551/2009, em que se discutia a aplicação da nova redação do art.
400º/1 f) CPP a um processo em curso, eliminando assim a possibilidade de recurso para o STJ, a
decisão correta teria sido a de tomar o início do processo como ponto de referência na determinação
da lei temporalmente válida; ou, o mais tardar, o momento da constituição como arguido por estar
em causa o direito deste ao recurso das decisões que lhe sejam desfavoráveis (art. 61º/1 j) CPP), caso
se entenda (o que é muito duvidoso) que a aquisição de todos os direitos processuais previstos no art.
61º CPP depende da constituição formal como arguido.

Contudo, em qualquer um dos casos referidos, qual deveria ter sido o critério de decisão quanto ao
termo a quo de aplicação das normas processuais penais materiais? Uma vez mais, esse critério terá
de buscar-se considerando o efeito a que o art. 5º/2 a) CPP pretende obstar: “o agravamento sensível e
ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa”, por
força das garantias de objetividade, previsibilidade e proibição de arbítrio subjacentes ao princípio
da legalidade e também vigentes para o processo penal. Portanto, a questão que importa colocar em
ordem a determinar o termo a quo de aplicação das normas processuais penais materiais é a de saber
qual dos momentos-critério (o do tempus delicti ou o do início processo-crime) consegue evitar o tal
agravamento sensível da situação processual do arguido ou recluso.

No caso das normas processuais penais materiais de segundo tipo (respeitantes à posição processual,
em termos de direitos e garantias do arguido), o princípio-regra quanto ao termo de referência de
proibição da retroatividade in pejus é o do início do processo; contudo, há casos em que, se aplicarmos
a lei em vigor no início do processo, vai produzir-se o efeito que o art. 5º/2 a) CPP pretende evitar
(essa situação é clara relativamente à aplicação da lei do cibercrime). Assim, nestes casos, temos de,
subsidiariamente, recorrer a outro termo de referência: momento da prática do facto. Conclui-se que,
quanto a estas normas, o momento-critério de identificação da lei temporalmente será o do início do
processo-crime ou do tempus delicti, conforme seja um ou outro aquele que permite obstar ao
“agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido”.

Já no caso das normas processuais penais materiais de primeiro tipo (que se enquadram no conceito
de normas penais positivas lato sensu por de algum modo ainda fundamentarem ou agravarem a
punibilidade), o momento-critério de determinação da lei temporalmente competente de modo a
obstar à retroatividade in pejus é sempre o do tempus delicti. Ao invés, em se tratando de assegurar

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

a retroatividade in melius de uma norma processual penal material do mesmo tipo, posterior ao início
do processo-crime, essa pode e deve ser de aplicação imediata, não por força da regra tempus regit
actum mas por imposição dos princípios da igualdade entre os agentes do mesmo crime (art. 13º CRP),
da estrita necessidade da intervenção penal (art. 18º/2 CRP), do acesso ao direito e aos tribunais (art.
20º/1 CRP), do processo justo e equitativo (art. 20º/4 CRP) e da plenitude das garantias do processo
penal (art. 32º/1 CRP).

O que não pode aceitar-se é uma flutuação ad hoc dos termos a quo de aplicação das normas
processuais penais materiais, ao sabor do entendimento judicial da ratio e das características
específicas de cada instituto relativamente ao qual se suscita um problema de sucessão de leis no
tempo, sob pena de violação do princípio da separação entre os poderes legislativo e judicial, das
garantias de objetividade, previsibilidade e proibição de arbítrio subjacentes ao princípio da
legalidade processual (art. 2º CPP) e dos princípios gerais do processo penal (maxime, do processo
justo e equitativo e da plenitude das garantias de defesa).

De forma simples:

o Em princípio, as normas processuais penais formais ou puras são de aplicação imediata:


aplicam-se aos processos futuros e aos processos pendentes; só não se aplicam imediatamente
quando possam produzir o efeito que o art. 5º/2 visa evitar. Quanto a estas, o termo de
referência para a proibição da retroatividade in pejus é sempre a lei em vigor no momento da
prática do facto (art. 3º CP).
o Quanto às normas processuais penais substantivas já não vale o princípio da aplicação
imediata, entrando em vigor o art. 5º/2 a): nestes casos temos de ver caso a caso qual é a norma
processual penal que vai ser aplicada, sendo certo que o encontro dessa norma vai ser feito
mediante o recurso aos princípios penais, sendo o objetivo o de evitar o agravamento sensível
e ainda evitável da situação processual do arguido. Nestes, o termo de referência será, em
princípio, o do início do processo, mas se a aplicação dessa norma conduzir ao efeito do art.
5º/2 a), tem de se aplicar a lei em vigor à data da prática do facto.

TRAMITAÇÃO DO PROCESSO PENAL

⭐ Pluralidade de Formas de Processo

A forma de processo comum apenas se aplica se não se aplicar uma forma de processo especial. Os
processos especiais podem assumir forma abreviada, sumária e sumaríssima.

⇒ Processo comum e processo especial:

Uma primeira distinção possível assentaria no próprio objeto do processo penal:

(i) Verificação do facto criminoso e determinação da responsabilidade penal, por um lado,


ou verificação da perigosidade e aplicação de medidas de segurança por outro – no
primeiro caso, cuidar-se-ia de averiguar se foi cometido algum crime e de aplicar, sendo

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

caso disso, a pena correspondente; no segundo, averiguar da existência de estado de


perigosidade criminal e aplicação de medida de segurança.

A distinção entre processo penal e processo de segurança não está consagrado no CCP, que no seu
art. 2º dispõe que a aplicação das penas e medidas de segurança criminais só pode ter lugar em
conformidade com as disposições do Código e nele não se prevê qualquer forma de processo que
tenha exclusivamente por objeto a perigosidade criminal e aplicação de medidas de segurança. Na
verdade, a aplicação de medidas de segurança tem lugar, as mais das vezes, em consequência da
condenação pela prática de crimes (arts. 100º e ss. CP), exceção feita aos inimputáveis, mas mesmo
relativamente a estes o legislador entendeu não se justificar uma forma de processo especial.

A classificação legal das formas de processo é a que distingue o processo comum e os processos
especiais.

No Livro III do CPP estão contemplados três tipos de processos especiais:

 Processo Sumário – arts. 381º a 391º CPP.

 Processo Abreviado – arts. 391º-A a 391º-F CPP.

 Processo Sumaríssimo – arts. 392º a 398º CPP .

Fora do CPP encontram-se consagradas outras formas de processo especiais: é o caso do processo
penal militar e do processo penal tributário.

Sempre que a lei não estabeleça processo especial, é aplicável o processo penal comum, sendo as
disposições do CPP também subsidiariamente aplicáveis, salvo disposição legal em contrário, aos
processos de natureza penal regulados em lei especial (art. 3º CPP).

As formas de processos especiais previstas no Código distinguem-se do processo comum não em


razão da natureza dos crimes, mas da ocorrência de circunstâncias especiais – por exemplo, a
detenção em flagrante delito, no sumário; o consenso relativamente à pena a aplicar, no
sumaríssimo; e a simplicidade da prova, no abreviado.

Não costuma distinguir-se, ao contrário do que sucede no processo civil, o processo declarativo do
processo executivo. A execução das decisões condenatórias penais afiguram-se como uma fase
normal do processo em que se julga a responsabilidade. Esta fase corre, em princípio, nos próprios
autos e no tribunal em que o julgamento em 1ª instância tiver ocorrido (art. 470º), mas o
acompanhamento da execução das penas e medidas privativas da liberdade é da competência do
tribunal de execução de penas.

A execução em processo penal distingue-se essencialmente do processo civil executivo na medida em


que este pode ser autónomo da fase declarativa, podendo mesmo ocorrer sem prévio processo
declarativo, o que nunca sucede no processo penal.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Processos de transgressões e de contraordenações:

Os processos de transgressões e contraordenações não são formas de processo penal; o processo


penal é apenas aplicável aos crimes, embora seja também subsidiariamente aplicável àqueles tipos
de processos.

Não tem sido uniforme o entendimento dos tribunais sobre a aplicação subsidiária do direito
processual penal ao processo de contraordenações. As divergências resultam, segundo GMS, do facto
de o art. 41º do Regime Geral das Contraordenações mandar aplicar, subsidiariamente, “devidamente
adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal” e o art. 66º dispor que “salvo disposição em
contrário, a audiência em 1ª instância obedece às normas relativas ao processamento das transgressões e
contravenções, não havendo lugar à redução da prova a escrito”.

Verifica-se um regime com certa complexidade. São aplicáveis as normas específicas do regime das
contraordenações, que remetem para o regime do julgamento no processo de transgressões, sendo
subsidiariamente aplicáveis as normas de processo penal. O regime está desfasado: não é razoável
que para o julgamento de contraordenações, a que são aplicadas coimas de milhões de euros e sanções
acessórias gravíssimas (suspensão de exercício de atividade), seja aplicável um processo simplificado.
GMS entende mesmo que, com a evolução do regime das contraordenações, o processo de
transgressões aplicável se revela inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.

⇒ Fases do processo penal comum:

 Fase de inquérito – primeiro, é preciso obter processualmente a notícia do crime e esclarecê-


la, recolhendo os meios de prova pertinentes em ordem à formulação fundamentada da
acusação, sendo caso disso.

 Fase de julgamento – depois é necessário proceder à discussão em causa, demonstrando ao


tribunal a verdade das alegações de facto constantes da acusação e da defesa, produzindo e
discutindo as provas e o direito aplicável.

 Acrescem outras fases de caráter eventual – a execução da sentença, se for condenatória; a fase
de instrução que tem por fim a decisão sobre a acusação, findo o inquérito; e a fase de recursos
que visa a reapreciação de uma decisão judicial por outro tribunal de hierarquia superior.

Os atos do processo podem agrupar-se em obediência a dois critérios:

i. Critério cronológico, no sentido em que são agrupados diferentes atos em razão do momento
processual em que são (ou devem ser) praticados;

ii. Critério lógico, que atende à finalidade imediata para que tende um determinado grupo de
atos processuais.

A distinção não é absoluta: para delimitar na sequência processual períodos em razão do tempo da
prática de atos (critério cronológico), torna-se necessário, em última instância, atender ao critério
lógico, pois a delimitação temporal há de fazer-se em razão do conjunto dos atos que obedecem a
uma mesma finalidade imediata. Deste modo, é sempre possível separar na sequência do processo

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

períodos cujos atos são moldados sobre a mesma ideia dominante. Todavia, nada impede (e assim
acontece de facto) que em certo período se pratiquem, por antecipação, atos que pertençam à ideia
dominante doutro período.

Por outras palavras, a fase entendida segundo o critério cronológico será materialmente compacta
(pois só abrange atividades contíguas no tempo), mas funcionalmente heterogénea (pois
compreende algumas atividades não pertencentes à ideia dominante no período considerado);
segundo o critério lógico, será rigorosamente homogénea, mas pode ser dispersa por incluir atos que
podem situar-se em períodos temporais diversos.

(i) O processo começa com a notícia do crime:

Para que o MP possa promover a abertura de um processo (iniciar o procedimento), é necessário que
obtenha informação de que foi eventualmente perpetrado um crime.

O MP pode obter a notícia de diversos modos: por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos
de polícia criminal ou mediante denúncia (art. 241º).

Todavia, a distinção legal pode reduzir-se à obtenção por conhecimento próprio ou mediante
denúncia, uma vez que a lei trata o conhecimento obtido através dos órgãos de polícia criminal como
uma espécie de denúncia. Na verdade, os órgãos de polícia criminal podem obter a notícia por
conhecimento próprio ou através de denúncia de terceiros.

O seguimento a dar à notícia do crime pode consistir na instauração ou não do procedimento:

o Face à notícia, se a lei não obrigar à instauração de inquérito (como sucede no caso das notícias
informais ou em que o denunciante careça de legitimidade), o MP pode considerar que não se
trata de notícia de qualquer crime, pelo que não lhe dará seguimento.
o Pode também tratar-se de notícia que não seja punível, porque o procedimento está prescrito
ou crime foi amnistiado, casos em que também não se deve dar seguimento à notícia porque
também agora não se trata de notitia criminis, conforme a definição da al. a) do n.º 1 do art. 1º.
o Isto sem prejuízo de o MP dever proceder ao registo de todas as denúncias que lhe forem
transmitidas, independentemente do seguimento que lhes der (art. 247º/2).

Assim, perante a notícia de um crime ainda eventualmente punível, duas atitudes podem ser tomadas
pelo MP: (i) abrir inquérito ou (ii) promover o julgamento em processo sumário ou abreviado ou a
aplicação da pena em processo sumaríssimo.

O MP abre necessariamente inquérito (art. 262º/2) se o julgamento não puder realizar-se em


processo sumário ou abreviado nem puder haver lugar a aplicação da pena em processo sumaríssimo.
Com efeito, o art. 262º/2 dispõe que, “ressalvadas as exceções previstas neste código, a notícia de um crime
dá sempre lugar à abertura de inquérito”. Essas exceções são:

a) Ilegitimidade do MP (no caso de crime dependente de queixa ou de participação);


b) Julgamento em processo sumário ou abreviado com eventual aplicação de pena em processo
sumaríssimo.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O inquérito inicia-se por um ato do MP a determinar a sua abertura; este despacho é o primeiro ato
do procedimento e sem ele o processo é juridicamente inexistente.

Como referido, a aquisição da notícia pode suceder de três formas distintas:

1. Aquisição da notícia por conhecimento próprio – abrange qualquer meio que não aqueles
expressamente disciplinados pela lei, i.e., aquele que não é provocado por intermédio dos
órgãos de polícia criminal ou por denúncia.

O conhecimento próprio do crime pelo MP pode resultar da sua perceção direta dos factos
constitutivos do crime ou indireta, ou seja, através do rumor público, de notícia na comunicação
social, de informação reservada ou de qualquer outra informação que não revista as características de
denúncia.

2. Aquisição da notícia por denúncia – cabe aqui distinguir:

a. Denúncia obrigatória:

A lei, no art. 242º/1, impõe a todas as entidades policiais o dever de denunciar ao MP todos os crimes
públicos de que tomarem conhecimento e para os funcionários públicos (na aceção do art. 386º CP)
quanto aos crimes públicos de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa
delas.

No que respeita às entidades policiais, o dever de denunciar os crimes públicos de que tomarem
conhecimento abrange não só os de que tomarem por conhecimento direto, mas também os que
tomarem conhecimento por denúncia de terceiros.

A omissão de denúncia obrigatória constitui crime (art. 367º CP), desde que verificados os respetivos
elementos constitutivos do crime de favorecimento pessoal.

b. Denúncia facultativa:

Qualquer pessoa pode denunciar os crimes públicos de que tiver conhecimento (art. 244º); neste caso,
a denúncia consiste simplesmente numa declaração de ciência, já que basta a notícia para que o MP
deva promover o procedimento criminal.

Relativamente aos crimes semipúblicos e particulares, a legitimidade para proceder à denúncia


(queixa) é limitada. Aqui é necessário que determinadas pessoas manifestem vontade de que seja
promovido o procedimento (arts. 113º e 117º CP). A queixa não é senão a notícia de um crime
semipúblico ou particular e a manifestação de vontade da pessoa legitimada de que seja instaurado
o processo crime.

A queixa distingue-se da denúncia, na medida em que, enquanto a denúncia é uma mera


manifestação de ciência (transmissão ao MP do conhecimento da prática de crime), na queixa esta

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

declaração é uma manifestação de vontade de que seja instaurado processo, já que a denúncia tem de
ser realizada por quem, segundo a lei, tenha legitimidade para tal.

3. Aquisição da notícia através de órgãos de polícia criminal

Para facilitar as denúncias, a lei admite que estas possam ser feitas a entidades diversas do MP. Desta
forma, podem ser feitas denúncias aos órgãos de polícia criminal, caso em que estes a devem
transmitir ao MP no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias (arts. 245º e 248º).

A notícia do crime também pode ser adquirida diretamente pelos órgãos de polícia criminal, por
conhecimento próprio (art. 248º/1), caso em que também a devem transmitir ao MP no mais curto
prazo, que não pode exceder 10 dias.

Os OPC também podem agir ao nível de medidas cautelares (arts. 248º e ss.).

 Legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo:

Compete ao MP adquirir a notícia do crime, abrir e dirigir o inquérito, deduzir acusação e sustentá-
la na instrução e no julgamento, interpor recursos e promover a execução das penas e medidas de
segurança (art. 53º/2).

Por isso, o art. 48º dispõe que o MP tem legitimidade para promover o processo penal. Todavia,
relativamente a alguns crimes – semipúblicos ou particulares –, a atuação do MP está condicionada
pela queixa (art. 49º) ou queixa e acusação particular (art. 50º).

Quando o preceito que prevê o tipo de crime nada refere, o crime em apreço é público (é o que sucede
na maioria dos casos); quando se indica que o procedimento criminal “depende de queixa” (dos
ofendidos ou de outras pessoas), estamos perante um crime semipúblico; quando a lei refere que o
procedimento criminal depende de “acusação particular” dos ofendidos ou de outras pessoas (além
da queixa), o crime é particular. Ou seja, nos crimes particulares, para que o MP possa exercer ação
penal, é necessário que o titular do direito de acusação particular se queixe e se constitua assistente
para que o MP possa promover o inquérito e acuse para que o procedimento possa prosseguir (art.
50º).

NOTA: relativamente a alguns crimes públicos, há limitações à atuação do MP. É o que sucede com
os crimes praticados pelo Presidente da República no exercício das suas funções em que é necessária
a deliberação da Assembleia da República, a quem cabe a iniciativa do procedimento (art. 130º CRP).

O 113º/5 CP admite que, não obstante o procedimento criminal depender de queixa, o MP pode
instaurar o procedimento sem queixa sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e:

i) Este for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance do significado do
exercício do direito de queixa;

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

ii) O direito de queixa não puder ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao agente
do crime.
A instauração do processo pelo MP sem prévia queixa nos crimes particulares ou semipúblicos
constitui nulidade insanável.

Legitimidade do MP no caso de concurso de crimes públicos e crimes semipúblicos e particulares


(art. 52º):

 O MP promove imediatamente o procedimento para aquele(s) crime(s) para que tenha


legitimidade, se o procedimento criminal pelo crime mais grave não depender de queixa ou
de acusação particular, ou se os crimes forem de igual gravidade.

 Se o crime pelo qual pelo qual o MP pode livremente promover o procedimento for de menor
gravidade, as pessoas a quem a lei confere o direito de queixa ou de acusação particular são
notificadas para declararem, em cinco dias, se querem ou não usar desse direito. Se declararem
que não pretendem apresentar queixa, ou nada declararem, o MP promove o processo pelos
crimes que puder promover; se declararem que pretendem apresentar queixa, considera-se
esta apresentada.

NOTA: a gravidade dos crimes determina-se pelo limite máximo mais elevado da pena aplicável e
em caso de igualdade pelo limite mínimo mais elevado. A pena de prisão é sempre mais elevada do
que a pena de multa.

Dito isto, o art. 52º suscita outra questão: sendo notificados os titulares do direito de queixa ou de
acusação particular para declararem se querem ou não usar desse direito e nada declararem, perdem
o direito de fazê-lo posteriormente?

O art. 115º CP dispõe que o direito de queixa se extingue no prazo de seis meses, a contar da data
em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores. Por sua vez, o art. 116º/1 CP estabelece
que o direito de queixa não pode ser exercido se o titular expressamente a ele tiver renunciado ou
tiver praticado factos de onde a renúncia necessariamente se deduza.

Ora, para GMS, não parece que a norma tenha a virtualidade de encurtar o prazo e por isso a não
resposta à notificação no prazo assinalado não deve ser necessariamente interpretada no sentido
de renúncia ao direito de queixa.

Ao lado da queixa e da acusação particular, a lei substantiva exige também relativamente a alguns
crimes a participação (art. 188º/1 b) CP) – é o caso dos arts. 188º/1, 198º, 319º e 324º CP.

Em que consiste a participação e quem tem legitimidade para participar?

Em primeiro lugar, o art. 49º/4 CPP equipara à queixa a participação de qualquer autoridade. Por
isso deve entender-se que os trâmites e efeitos da participação são os mesmos da queixa. Assim,
diferentemente do que sucedia no regime anterior, pode haver renúncia e desistência.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A participação, de modo análogo à queixa, é a manifestação de vontade de que seja instaurado o


procedimento e distingue-se da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o
procedimento. Esta é a entidade ofendida pelo crime, o titular do interesse que a lei especialmente
quis proteger com a incriminação, salvo disposição expressa em contrário.

O CP pode referir expressamente os crimes relativamente aos quais o procedimento criminal depende
de participação – é o caso dos art. 319º (infidelidade diplomática) e 324º (crimes contra Estados
estrangeiros e organizações internacionais), que impõem a participação do Governo português. Mas
a lei também pode não indicar quem tem legitimidade para participar o crime, devendo, nestes casos,
entender-se que se trata da autoridade ofendida.

São várias as razões de política criminal que levam o legislador a exigir que para haver procedimento
criminal seja necessário a queixa ou acusação particular dos ofendidos nuns casos e não as exigir
noutros. São essencialmente razões atinentes à gravidade das infrações, à natureza dos interesses
ofendidos, às consequências para o próprio ofendido da instauração do processo crime donde pode
resultar que a publicidade inerente agrave o dano que o crime causou.

Existe ainda uma questão que levantou controvérsia: o art. 16º/3 concede ao MP uma faculdade de
determinação da competência concreta do tribunal, i.e., estamos perante crimes que seriam da
competência do tribunal coletivo (constituído por 3 juízes). Este tribunal assegura uma apreciação
plural da prova e da questão de direito, que não é garantida pelo tribunal singular. Este artigo vem
permitir ao MP desafetar crimes que seriam da competência do tribunal coletivo em razão do
critério quantitativo (medida da pena – superior a 5 anos: art. 14º/2 b)). Será que este artigo viola a
estrutura acusatória do processo penal? Está o juiz vinculado à promoção do MP? Ou seja, o juiz do tribunal
singular é obrigado a aceitar a promoção do MP?

O que acontece é que o art. 16º/3 permite ao MP que, em função de um juízo de prognose quanto à
pena concreta a aplicar ao arguido, desafete aquele crime da competência original do tribunal coletivo
e a difira à competência do tribunal singular.

E se o MP lançar mão desta faculdade sem fundamentar devidamente um diferimento da competência ao tribunal
singular? Poderíamos pensar que estávamos perante uma mera irregularidade (art. 118º/1 e 2 – a
nulidade está sujeita a um princípio de tipicidade). A irregularidade está sujeita a arguição num prazo
muito curto (art. 123º), pelo que este regime seria manifestamente insuficiente para solucionar a falta
de fundamentação do MP.

Discute-se se não há violação de um princípio constitucional neste caso – o princípio do juiz legal ou
natural (art. 32º/4 CRP):

 NUNO BRANDÃO vai neste sentido.


 PINTO DE ALBUQUERQUE entende que o superior hierárquico do MP tem a possibilidade
de fazer o controlo da legalidade processual e substantiva, mas o tribunal singular só pode
controlar a legalidade substantiva. O MP deve usar a faculdade do art. 16º/3 na própria
acusação ou posteriormente, mas apenas quando seja superveniente o conhecimento do
concurso. Quando o MP quer recorrer ao processo abreviado, temos de atender ao disposto
no art. 391º/b).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 TQB entende que nesse caso o juiz do tribunal singular deve declarar a sua incompetência,
que constitui uma nulidade insanável (art. 119º/e)), de conhecimento oficioso e remeter o
processo para o tribunal coletivo (arts. 32º e 33º).

 Titulares do direito de queixa e de acusação particular:

Para simplificação, refere-se apenas direito de queixa, mas o regime é aplicável ao direito de acusação
particular, por força do disposto no art. 117º CP.

O titular do direito de queixa é, em primeiro lugar, a pessoa ofendida, considerando-se como tal o
titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (art. 113º/1 CP).
Portanto, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime.

Nem todos os crimes têm ofendido particular; só aqueles em que o objeto imediato da tutela jurídica
é um interesse ou direito de que é titular um particular (o interesse jurídico mediato é sempre o
interesse público).

Nem sempre é fácil apurar se a incriminação tutela ou não imediatamente interesses particulares e,
por isso, reveste grande importância a determinação do bem jurídico tutelado pela incriminação.

De acordo com o art. 113º/4, se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado
a ela, o direito de queixa pertence sucessivamente às pessoas a seguir indicadas, salvo se alguma
delas houver comparticipado no crime: (i) cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas
e bens, descendentes, adotados e ascendentes e aos adotantes; e na sua falta (ii) irmãos e seus
descendentes.

Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o
significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às
pessoas acima referidas. O ofendido maior de 16 anos pode exercer pessoalmente o direito de queixa.

Se o ofendido for menor de 16 anos e o direito de queixa pelo crime não for exercido nos termos do
n.º 4, nem for dado início ao procedimento nos termos da al. a) do n.º 5, o ofendido pode exercer o
direito de queixa a partir da data em que perfizer 16 anos (art. 113º/6). Este direito só se extingue no
prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos (art. 115º/2).

Se o ofendido for uma pessoa coletiva, a queixa deve ser exercida pela pessoa coletiva através dos
seus representantes legais no momento da apresentação da queixa.

(ii) Instauração de inquérito de acusação:

Adquirida a notícia do crime, é instaurado um inquérito e mesmo que já haja investigações em curso
feitas pela polícia no âmbito, o MP pouco após tem de fazer um despacho que ordena a instauração
de inquérito e ele tem de ir para os autos.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O inquérito constitui uma fase preliminar do processo, e compreende o conjunto de diligências que
visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e
descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a execução (art. 262º/1).

É a fase por excelência de investigação, e investigação significa instrução (art. 32º CRP). Esta fase é
obrigatória no processo comum e no abreviado.

 Direção do inquérito:

O inquérito é dirigido pelo MP (arts. 48º e 263º). O CPP entrega a direção do inquérito ao MP, que é
também quem orienta a ação penal (art. 219º CRP), o que levanta alguma discussão.

Em princípio, o MP pratica todos os atos de inquérito, salvo os que são da competência do JIC. Com
efeito, a outra face do inquérito é a garantia da salvaguarda dos direitos dos cidadãos que estão a ser
investigados, daí que existam atos que têm de ser praticados pelo JIC. Este último intervém como um
juiz das liberdades, quanto a atos que podem restringir os Direitos Fundamentais - arts. 92º, 93º, 98º,
268º e 269º.

Regra geral, o MP pode delegar nos OPC o encargo das diligências probatórias. Por razões de eficácia,
os OPC auxiliam o MP com diligências criminais e policiais (art. 263º/2) – assim, o MP pode ter a
direção efetiva do inquérito e contar com a colaboração dos OPC (que têm a formação de
investigação). Note-se, contudo, que mesmo quando OPC realizam diligências de atos de
investigação, fazem-no na dependência do MP. Os OPC têm assim autonomia técnica e tática, mas
sob a orientação do MP.

Há também atos que só podem ser praticados pelo MP (art. 92º) e atos que só podem ser praticados
pelo MP, mas que podem ser delegados (arts. 93º, 96º e 270º). Note-se que pode também haver
delegação genérica atendendo aos tipos de crime e duração da pena (arts. 98º e 270º/4).

A lei nada impõe quanto aos métodos de investigação nem às diligências a efetuar em ordem ao
esclarecimento da notícia do crime, para além do que estabelece sobre os procedimentos probatórios.
Assim, cabe ao MP essa decisão.

A falha de certos atos de inquérito gera nulidade relativa (art. 190º/3, al. c)).

 Há uma grande discussão sobre se o PGR pode dar ordens e instruções relativamente a
processos concretos que estão nas mãos dos magistrados do MP; e isto porque o MP é uma
magistratura hierarquizada: está sujeito a uma hierarquia, o que significa que os magistrados
devem obediência a ordens e instruções dos seus superiores hierárquicos.

E esta discussão surge com a aprovação do novo Estatuto do MP, em agosto de 2019. À luz
deste, não é muito claro se as instruções são genéricas ou se podem ser dirigidas a processos
concretos.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O MP é de facto uma magistratura, autónoma do poder político mas não independente, dada
a hierarquia. Mas tem um estatuto de defesa da legalidade democrática, tendo de ser
imparcial.

Existem exceções previstas na lei quanto à obrigatoriedade de abertura de inquérito, que se prendem
com a existência de crimes semipúblicos e crimes particulares, nos quais, para que o MP inicie a ação
penal, não basta que obtenha a notícia do crime, sendo ainda necessário que obtenha queixa por parte
de quem tem titularidade do direito de queixa.

 Publicidade e segredo de justiça:

A revisão de 2007 substituiu o princípio do segredo por um princípio de publicidade do inquérito


(art. 86º/1), o qual não tem paralelo em quaisquer outros ordenamentos jurídicos. A doutrina foi,
assim, muito crítica.

De acordo com PSM, esta mudança veio para ficar e trouxe algumas alterações na prática da
investigação criminal; não trouxe, contudo, danos à investigação criminal, na medida em que na
generalidade dos processos a prova já está adquirida e não há riscos de obtenção de prova (que é o
que justifica o secretismo da investigação). Além disso, pode sempre haver a decretação de
secretismo, pois publicidade em fase de inquérito pode ser contraproducente.

Apesar da estranheza do novo regime-regra da publicidade do inquérito, este acabou por ser
incorporado de forma pacífica na prática da investigação criminal.

Note-se, contudo, que esta solução é uma coisa distinta daquela que encontramos no art. 89º, que rege
a questão do acesso ao conteúdo de atos ou documentos.

Assim, após o fim do processo, o processo é público. Nos termos do art. 89º/6, o prazo máximo do
segredo de justiça é o prazo máximo de inquérito. E o que é o prazo indispensável? A segunda prorrogação
é uma carta branca para prolongar? PSM sustenta que a prorrogação está limitada a 3 meses (3 meses
iniciais + 3 meses prorrogado). Pelo contrário, a jurisprudência tem entendido que a prorrogação não
está limitada (3 meses iniciais + qualquer prazo).

 Insuficiência do inquérito:

A insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, é cominada
com a nulidade pelo art. 120º/2, al. d).

Se o MP não fizer nada e quando chegar ao fim do inquérito arquivar o processo:

o Se na fase de inquérito não foram realizadas diligências de prova relevantes, então deve
pedir-se uma intervenção hierárquica – faz-se intervenção hierárquica e não RAI, pois o que
se quer é a produção de prova, que não foi feita.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

o Na fase da instrução não se repete a prova feita em inquérito. A intervenção hierárquica serve
tipicamente para a realização de diligências probatórias que deviam ter sido feitas.

Findo o inquérito, o MP pode tomar uma das seguintes opções:

i) Arquivamento do inquérito (art. 277º) – arquivamento assertivo vs arquivamento


meramente dubitativo. Num caso ou no outro, o inquérito pode sempre ser reaberto (art.
279º), quando surjam novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados
pelo MP para o arquivamento, ou quando haja intervenção hierárquica que ordene a
reabertura do inquérito (art. 278º).

PSM sustenta que aquela é uma posição teórica e sem apoio jurisprudencial, que causa uma situação
de insegurança face ao arguido, pelo que, atendendo ao art. 32º CRP (quanto às garantias de defesa),
não deveria estar fora da hipótese a possibilidade do arguido requerer a abertura de instrução (art.
287º/1 b)). O autor considera que ainda há interesse processual de um arguido de fazer RAI mesmo
que o inquérito tenha sido arquivado, pois só com a instrução e julgamento é que pode haver caso
julgado.

Note-se, contudo, que para não se violar o princípio do ne bis in idem, só pode haver reabertura do
inquérito quando haja novos elementos de prova – após o arquivamento, o inquérito só pode ser
reaberto se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo MP
no despacho de arquivamento.

ii) Suspensão provisória do processo (art. 281º).

iii) Determinação da tramitação do processo sob a forma comum, caso haja razões para crer
que os prazos de julgamento em processo sumário não poderão ser respeitados (art.
382º/4).

iv) Acusação (arts. 283º ou 285º) – GMS: a acusação é formalmente a manifestação da


pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado
crime e por ele condenado com a pena prevista na lei e/ou requerida pelo MP. É um
pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objeto do
julgamento, à partida.

O art. 283º/2 contém as duas componentes da caracterização legal dos indícios:

(a) Grau de convicção do MP para deduzir acusação: para o MP deduzir acusação, tem de o fazer
com a mesma exigência de prova e de convicção probatória, i.e., a mesma exigência de “verdade”
requerida pelo julgamento final, apenas com a diferença de que o material probatório recolhido
pelo MP na fase de inquérito não é, por definição, tão completo quanto as provas disponíveis no
momento do julgamento, não tendo ainda sido sujeitas a contraditório. CASTANHEIRA NEVES
entende que o grau de convicção do MP para acusar tem de ser o mesmo que o juiz para acusar.
Assim, apenas se o MP estiver francamente convicto é que pode deduzir acusação, tendo um
juízo categórico sobre o assunto e não um mero juízo probabilístico.
(b) Possibilidade razoável de o arguido ser condenado: o MP tem de ficar convencido da culpa do
arguido com grau de convicção próximo da certeza, ainda que qualificada como elevado grau

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

de probabilidade - tem de estar convencido de que se houver julgamento o arguido será


condenado. Não se trata de uma avaliação do crime, mas sim de uma prognose de condenação. O
MP tem que ter reunido acervo de provas suficiente para entender que, no momento da acusação,
face aquelas provas, o arguido possa vir a ser condenado. A doutrina alemã interpreta esta regra
no sentido em que o MP, titular do processo na fase de julgamento, quando chegar o momento
das alegações finais, tem de estar disponível para pedir a condenação – juízo de probabilidade
no sentido de antever que seja mais provável pedir a condenação em sede própria de julgamento.
 Por exemplo, o MP está convencido que o arguido cometeu homicídio porque ele confessou
em fase de inquérito, mas não há mais provas. Neste caso, o MP não deve acusar, pois antevê
que se o processo for para julgamento não haverá condenação porque não há mais provas (se
o arguido ficar sempre em silêncio).

Os crimes particulares têm um regime especial:

- Existem quatro condições de procedibilidade.


- Quando o inquérito termina, havendo assistente constituído, o MP não pode acusar nem
arquivar. O MP notifica o assistente para ele, querendo, deduzir acusação particular; assim, a
prossecução do processo fica inteiramente dependente do assistente.
- Em 2007 tentou alterar-se esta situação, mas não passou.
- A resposta à questão de saber o pode o MP fazer depende de: haver assistente constituído; o
assistente tenha sido notificado de que o inquérito terminou; o assistente tenha acusado (ou
não).
- A acusação particular do assistente é a acusação principal.
- O MP não tem de seguir a acusação particular – pode deduzir acusação subordinada.

(iii) Pode haver lugar a uma fase de instrução:

A instrução é uma fase de investigação, dirigida por um juiz de instrução assistido por OPC, mas em
que está muito presente a oralidade e o contraditório, daí que seja obrigatório o debate instrutório,
previsto nos arts. 297º e ss.

A instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de


inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo
do MP de existência de indícios suficientes.

Apesar de a instrução ter caráter facultativo, a lei não permite que o requerente da instrução possa
desistir da mesma em qualquer momento, uma vez que a desistência da instrução onde já tivesse sido
produzida prova em sentido desfavorável ao requerente da instrução constituiria uma fraude à lei,
i.e., uma fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o seu juízo de
valoração sobre a prova produzida.

Note-se que a Lei n.º 48/2007 veio alterar radicalmente a natureza da instrução em três aspetos:

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

a. O art. 86º/1 a 3 põe fim ao segredo de justiça na instrução, vigorando sem exceção a regra da
publicidade que vale para o julgamento;

b. O art. 289º/2 determina que o MP, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado podem
assistir aos atos de instrução por qualquer deles requeridos e suscitar pedidos de
esclarecimento ou requerer que sejam formuladas as perguntas que entenderem relevantes
para a descoberta da verdade, tal como acontece na produção de prova na fase de julgamento;

c. O art. 303º/3 e 4 prevê que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no
RAI não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em
curso, nem implica a extinção da instância, tal como se prevê para a audiência de julgamento.
A comunicação da alteração substancial dos factos ao MP vale como denúncia para que ele
proceda pelos novos factos somente se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do
processo.

Todas estas alterações vão no sentido de aproximar a instrução do julgamento, invertendo o sentido
da ideologia do CPP, que procurava aproximar a instrução do inquérito. Esta opção política tem uma
consequência óbvia na natureza do despacho final da instrução: não pode mais dizer-se que a decisão
instrutória não acrescenta nem retira nada de substancial à acusação ou ao arquivamento do MP.

A instrução acrescenta ao inquérito uma discussão pública, contraditória e vinculada tematicamente


da matéria de facto e de direito, com confronto da prova da acusação e da defesa diante de um juiz.
O art. 298º dispõe que o debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral
e contraditória sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e
elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento. É este o
objetivo da instrução: é como um pré-julgamento. O acervo probatório que foi recolhido no inquérito
e durante a instrução vai ser debatido durante o debate instrutório, tal como acontece na fase do
julgamento. Vigora aqui o princípio da oralidade e da imediação da prova.

Ou seja, no debate instrutório pretende saber-se se há prova suficiente para sujeitar alguém a
julgamento. E isto porque não podemos esquecer que a mera constituição de arguido tem um caráter
discriminatório, afetando a sua reputação e bom nome.

Assim, o despacho de não pronúncia não tem o mesmo valor que o arquivamento ordenado pelo
MP e esse “valor jurídico acrescentado” do despacho de não pronúncia saiu ainda mais reforçado
pela aproximação operada pela Lei n.º 48/2007, entre a instrução e o julgamento.

A direção da instrução cabe ao juiz de instrução, assistido pelos OPC (art. 288º/1), investigando o
juiz autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do RAI, a
que se refere o art. 287º/2 (art. 288º/4).

 Requerimento de abertura de instrução (RAI) do arguido – art. 287º/1, al. a):

O arguido só pode requerer abertura de instrução quando tiver sido acusado (pelo MP nos crimes
públicos e semipúblicos e pelo assistente nos crimes particulares). Não pode haver limites à abertura

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

desta fase de instrução, sob pena de se violar o preceito constitucional que diz que a instrução visa a
garantia dos direitos de defesa.

Segundo GMS, o RAI está limitado pelos factos da acusação formulada e tem por fundamento a sua
discordância relativamente a ela, por razões de facto ou de direito, visando a sua rejeição.

O RAI parece circunscrever-se à discussão dos factos (“relativamente a factos”). GMS afirma, assim,
que só se pode apresentar RAI para discutir factos ou direito associado a factos. Assim, poderia o
arguido, não discordando dos factos, requerer abertura de instrução, só para discutir o direito tal como
resulta do despacho de acusação? A letra da lei parece vedar essa hipótese. Ainda assim, valeria a pena
apresentar RAI para discutir direito? É que o juiz não está obrigado a seguir as qualificações
jurídicas. Mesmo que o arguido consiga reverter uma qualificação jurídica através da instrução, nada
garante que essa qualificação se mantenha na fase do julgamento – o juiz pode interpretar o direito e
qualificar como entender.

Por seu turno, PSM duvida que se possa fazer separação tão vincada entre questões de facto e direito
e que se possa negar no geral o interesse do arguido em discutir questões de direito. Efetivamente,
atendendo à igualdade de armas, não faz sentido que o assistente possa discutir sempre questões de
direito (na acusação subordinada) e o arguido não.

Assim, este autor sustenta que o arguido pode fazer RAI para discutir questões de direito, por ser
esta a única forma de haver igualdade de armas entre arguido e assistente (que tem sempre a
oportunidade de discutir só questões de direito e pode proceder a qualificações diversas do MP). Esta
é, contudo, uma faculdade que deve ser usada com muito cuidado, pois há sempre o risco de uma
decisão de confirmação da acusação; se um processo avança para julgamento numa situação de
“dupla conforme” – duas decisões concordantes de duas entidades diferentes (MP e JIC) – tal cria
uma inércia contrária ao interesse do arguido na fase de julgamento.

 Requerimento de abertura de instrução do assistente – art. 287º/1, al. b):

O assistente pode apresentar RAI, quer tenha havido arquivamento do inquérito, quer tenha havido
despacho de acusação.

Não se aplica aos crimes particulares: não faz sentido RAI, pois foi o assistente que acusou.

Arquivamento: requer-se a abertura da instrução para que haja despacho de pronúncia que leve o
processo a julgamento.

Acusação: requer-se que se acrescentem novos factos ao objeto do processo. Fala-se em novos factos
independentes ou aqueles que sejam de alterações substanciais de facto:

- Para o assistente acrescentar factos que não configuram ASF, deve fazer acusação
subordinada (art. 284º):
▪ Art. 1º, al. f);

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

▪ Para sabermos o que é facto processual temos de atender à dogmática; para sabermos o que
é uma alteração de factos também temos de recorrer à dogmática.
▪ O Código apenas explicita quando a alteração é substancial.

- Para factos que não cabem no art. 1º, al. f), não apresenta RAI e sim acusação subordinada. O
assistente pode entender que havia factos pelos quais o MP não acusou e devia ter acusado.
Estes podem ser factos diversos dos que constam da acusação (saí a instrução poder servir
para reformular o objeto do processo). Assim, só apresentará RAI quando quiser deduzir
factos que não estavam na acusação do MP (para alargar o objeto do processo).

- Se o assistente requerer a abertura da instrução relativamente a factos que não constam da


acusação do MP, embora tenha havido acusação, o JIC terá de debruçar-se sobre os factos que
constam da acusação do MP e os factos que constam do RAI do assistente, podendo assim,
no final da instrução, proferir um despacho de pronúncia que incida sobre todos estes factos,
o que constitui um objeto mais vasto do que aquele que constava já da acusação do MP.

AUJ 7/2005: Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de
instrução (apresentado nos termos do art. 287º/2 CPP), quando for omisso relativamente à narração
sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

Pode o assistente requerer a abertura da instrução com base numa discordância acerca da qualificação jurídica
dos factos feita pelo MP na acusação?

A maioria da doutrina entende que não – se os factos forem os mesmos, o assistente terá sempre a
faculdade de acusar também (art. 284º), aí fazendo a qualificação. O RAI do assistente só deve poder
existir relativamente a factos que constituam uma alteração substancial do objeto do processo, já não
quanto a factos novos que constituam uma alteração não substancial.

O assistente deve indicar no RAI as razões de facto e de direito da discordância relativamente à


acusação ou não acusação do MP. O juiz investigará os factos descritos no RAI, mas não há lugar a
uma nova acusação; o RAI do assistente atuou como acusação, respeitando formal e materialmente a
acusatoriedade do processo.

 Produção de prova:

Quanto ao regime da produção de prova na fase de instrução, importa desde logo atender ao art.
289º, que determina que a instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda
dever levar a cabo e é formada, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, que
visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória sobre se, do decurso do
inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a
submissão do arguido a julgamento (art. 298º).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O art. 290º/2 admite a possibilidade de delegação nos OPC de certas diligências, mas não de outras.

Já o art. 291º/1 e 2 dispõe que é o JI quem determina a ordem dos atos de instrução, pela ordem que
reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. É também este quem indefere os atos
requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento
do processo. Deste despacho cabe apenas reclamação, exceto no caso das diligências obrigatórias (art.
292º/2), caso em que, além da reclamação, pode recorrer-se do despacho de indeferimento (arts.
120º/2 d), 399º e 410.º/1 e 3).

 Encerramento da instrução (arts. 307º e ss.):

Se o juiz de instrução decidir que o arguido não deve ser submetido a julgamento, profere um
despacho de não pronúncia; caso contrário, profere um despacho de pronúncia. Este despacho pode
ser sujeito a recurso, podendo a decisão ser alterada.

 Crise da instrução:

FD tem sido mentor que a instrução devia ser eliminada, sendo tal possível apenas mediante uma
revisão constitucional (art. 32º/4 CRP).

Em 2007, ponderou-se se não se deveria extinguir a fase de instrução no processo penal português.
Segundo FD, devia substituir-se uma fase de instrução por apenas um despacho, uma vez que esta
fase apenas prolonga algo e não leva a julgamento.

Por seu turno, PSM entende que, apesar de a fase de instrução ser uma singularidade do sistema
processual penal português, tal não justifica que a instrução seja eliminada e/ou substituída por um
mero debate instrutório. A instrução é indispensável para o arguido poder requerer a realização de
diligências de prova. Assim, se a instrução fosse transformada num mero debate instrutório, seria um
adereço processual inútil que se transformaria num simulacro da audiência de julgamento, quando o
que verdadeiramente interessa ao arguido é a possibilidade de colmatar uma investigação
deficiente através da realização de específicas diligências probatórias que poderiam e deveriam
ter sido realizadas.

A instrução é ainda indispensável para o assistente poder requerer o alargamento do processo, de


modo a integrar factos que constituam uma alteração substancial relativamente aos factos que
constam da acusação do MP.

Não vale assim o argumento que a instrução pode ser desviada pelo arguido para finalidades
meramente dilatórias, dado o poder-dever do JIC de impedir quaisquer expedientes dilatórios.

(iv) Despacho de acusação: ver o descrito supra.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

(v) Julgamento (arts. 311º e ss.):

Concluída a instrução com pronúncia ou esgotado o prazo para requerimento da instrução, os autos
do processo são remetidos ao tribunal competente para a fase de julgamento.

Esta fase tem 3 subfases:

1. Atos preliminares:

Saneamento do processo – art. 311º: após distribuição, quando for caso disso, vai o processo concluso
ao juiz para o despacho preliminar do art. 311º.

Há sempre lugar à apreciação judicial da verificação dos necessários pressupostos da fase julgamento.
Trata-se aqui da verificação pelo juiz das nulidades e outras questões prévias ou incidentais, que
acontece quer tenha havido instrução ou não, não obstante tais questões já deverem ter sido conhecidas
pelo JIC no despacho de pronúncia (art. 308º/3).

o Se tiver havido instrução, o juiz de julgamento apenas saneia o processo, decidindo as


nulidades e demais questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do
mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer. Contudo, a apreciação dessas questões
tem lugar quer tenha havido ou não instrução.
o Se não tiver havido instrução, o juiz, neste ato preliminar de saneamento do processo, terá
ainda de se debruçar sobre o fundamento da acusação.

No art. 311º/2, al. b), o que o juiz verifica é a legitimidade do MP e do assistente para deduzir
acusação.

Por seu turno, o art. 311º/3 não esclarece suficientemente quando uma acusação pode ser considerada
manifestamente infundada:

 FREDERICO COSTA PINTO – é frequente a afirmação de que a rejeição de uma acusação não
é uma decisão de mérito. Contudo, PSM afirma que não se vê como poderia o presidente
rejeitar uma acusação sem fazer uma apreciação crítica dos indícios recolhidos nos autos e a
qualificação jurídica dos mesmos. E isto não é colmatar a falta de instrução, já que o presidente
não pode ordenar diligências de investigação.

Se houver certezas quanto à improcedência da acusação, o juiz tem de a recusar, com base no dever
de objetividade que levaria um JIC a proferir um despacho de não pronúncia. Assim, o juiz presidente
tem de fazer a triagem dos casos em que há insuficiência crassa da própria acusação, ainda que tais
insuficiências só tenham a ver com a matéria de direito.

Também se inclui aqui os casos em que o MP não teve direção efetiva do inquérito e as diligências
probatórias foram realizadas pelos OPC sem a determinação e orientação direta pelo MP.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O art. 311º/3, al. d) abrange todos os problemas relativos à definição do crime e à aplicação da pena,
exigindo-se apenas que esses problemas se verifiquem com tal evidência que se possa declarar, fora
de qualquer dúvida razoável, que falta no caso concreto um pressuposto da pena ou da punibilidade
do agente. São os casos de atipicidade da conduta, justificação do facto ou exclusão da culpa do
agente, falta de condições de punibilidade, prazos de prescrição, etc..

No caso de haver rejeição judicial da acusação por esta sofrer de nulidades que podem ser eliminadas
mediante a repetição de certos atos (art. 122º/2), o juiz remete o processo para a fase de inquérito para
que o MP possa proceder ao seu saneamento, prosseguindo posteriormente. Já quando haja lugar a
rejeição judicial da acusação que põe termo ao processo por ser inadmissível, a decisão final produz
efeitos de caso julgado material (e não apenas caso julgado formal).

O despacho que rejeita a acusação é recorrível, nos termos do art. 399º.

Quanto à data da audiência – arts. 312º e 313º.

Relativamente à contestação e rol de testemunhas – art. 315º e 316º: a contestação não é obrigatória e
nada impede que o arguido apresente só a contestação ou só o rol de testemunhas.

2. Audiência de julgamento (arts. 321º e ss.):

A audiência de julgamento obedece ao princípio da publicidade (arts. 321º/1 CPP e 206º CRP); é uma
garantia do arguido contra a arbitrariedade na aplicação do direito. Existem, contudo, restrições a
este princípio em processo penal, mas só durante a fase investigatória (art. 86º/1).

A audiência de julgamento obedece ainda ao princípio do contraditório (art. 327º/2 CPP).

São ainda relevantes, nesta sede, os princípios da concentração, da imediação, da oralidade e da


identidade do juiz.

O julgamento pode ser feito por tribunal singular (um juiz); tribunal coletivo (com três juízes) ou
tribunal de júri (três juízes, quatro jurados populares efetivos e quatro suplentes).

3. Sentença (arts. 365º e ss.):

Nos termos do art. 365º, a imediatividade da deliberação após a discussão é uma consequência da
oralidade e da concentração da fase de audiência. Importa então que a deliberação seja tomada
enquanto está fresca na memória a recordação das provas produzidas oralmente e prevenir situações
de impedimento dos membros do tribunal, que o decurso do tempo naturalmente favorece.

Este preceito diz tanto respeito à decisão do juiz singular como às decisões colegiais.

A sentença tem ainda de obedecer aos requisitos do art. 374º CPP, avaliando também a questão da
culpabilidade, pelo art. 368º.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A sanção é obtida pelo art. 369º.

Os requisitos da sentença encontram-se plasmados no art. 374º, preceito que PSM afirma ser muito
bem estruturado e inspirado no CPP italiano.

Pontos críticos do Julgamento; Direito ao Confronto:

 Declarações das Testemunhas:

Segundo GMS, quanto à leitura permitida de autos e declarações:

i. Art. 356º/1 – leitura sempre permitida.


ii. Art. 356º/2 – leitura condicionada de declarações do assistente, partes civis e testemunhas
prestadas perante o juiz.
iii. Art. 356º/5 – leitura condicionada de declarações prestadas perante o juiz ou MP.
iv. Art. 356º/7 – leitura proibida de depoimento prestado em inquérito ou em instrução por
testemunha que se tenha validamente recusado a depor em audiência.

O art. 355º CPP é um normativo que condensa vários princípios do processo penal:

o Princípio da imediação – são inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em
audiência. Isto não é apenas uma garantia da defesa, mas sim uma garantia da própria
sentença que protege quer o arguido, quer o assistente (Ac. do TC n.º 1052/96).

O art. 356º CPP é uma norma excecional face ao art. 355º/1, e dá-nos os casos em que é permitida a
leitura de declarações das fases anteriores na altura do julgamento – trata-se, por isso, de uma exceção
ao princípio da imediação, em que o tribunal valora declarações não prestadas a eles.

O art. 6º/3, al. d) CEDH determina que o acusado tem o direito de inquirir ou fazer inquirir as
testemunhas de acusação e obter a convocação e a inquirição das testemunhas de defesa nas mesmas
condições que as testemunhas de acusação. Segundo PSM, este preceito parece consagrar, em sentido
técnico, o princípio do contraditório.

NOTA: o contraditório e o confronto não têm o mesmo o conteúdo – o direito ao confronto é mais
limitado no âmbito de aplicação e tem a ver com o direito do acuso ou a sua defesa técnica se
confrontarem direta e pessoalmente com as testemunhas arroladas pela outra parte.

 Declarações do Arguido:

Segundo o entendimento de GMS, é permitida a leitura de declarações do arguido (art. 357º).

O CPP autonomiza a prova que tem como fonte o arguido relativamente à prova testemunhal em
sentido amplo. A ideia é a de que o arguido não é uma testemunha. PSM acrescenta que não se

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reconhece um direito de mentir, mas há uma total irrelevância da mentira no seu estatuto. Tem um
estatuto processual diferente do da testemunha.

No estatuto do arguido encontram-se duas marcas distintivas:

a) Proteção do arguido contra a autoincriminação, ainda que voluntária – há cuidado que haja
consciência do arguido quando prestem declarações autoincriminatórias.
b) Responsabilização do juiz pelo interrogatório do arguido – não segue o mesmo regime de
inquirição de testemunhas (em que as partes podem interrogar); aqui tudo é canalizado pelo
juiz.

PPA entende que a proibição legal do art. 355º também é violada se o juiz valorar declarações
anteriores do arguido sem que tenha procedido à sua leitura na audiência nos termos previstos na
lei, mesmo que delas não retire quaisquer juízos negativos ou que possam influenciar o seu
convencimento sobre as declarações prestadas na audiência (Ac. do STJ de 13/12/00). E assim é pois
é ao arguido que a lei atribui a faculdade de ajuizar sobre a utilidade da leitura das suas anteriores
declarações (art. 357º/1, al. a)), quando elas tenham sido feitas perante outra autoridade que não o
juiz. Assim sendo, o juiz não pode substituir-se-lhe, mesmo quando as anteriores declarações pudessem
ser favoráveis ao arguido.

Esta matéria mudou muito e o ponto de viragem foi a reforma do CPP de 2013:

- Antes de 2013: a reprodução em audiência das anteriores declarações processuais do arguido


apenas era admitida por sua própria solicitação ou quando, tendo sido feitas perante o juiz,
houvesse contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência.
- Após 2013: art. 357º.

As declarações prestadas no âmbito do art. 143º podem ser reproduzidas/valoradas no julgamento? Importa
aqui o princípio da imediação (art. 355º): só o que se passa no julgamento é que interessa. Contudo, o
art. 355º/2 tem exceções, onde se incluem as declarações do arguido no inquérito.

E podem, no julgamento, ser lidas declarações do arguido perante OPC? Se o arguido pedir, sim (art. 357º/1,
al. a)).

Note-se que podem sempre ser lidas declarações perante o MP (art. 357º/1, al. b)).

Relativamente à alteração de 2013, PSM diz que essa é inconstitucional, pelo que há que repristinar
o regime anterior. Sendo assim, só podem ser admitidas as declarações prestadas a JIC,
acompanhado por defensor, e só se falasse no julgamento – dizendo coisa igual ou diferente
(exercício do direito ao silêncio). Pelo contrário, se o arguido nada diz, não podem ser lidas. Ainda
que sejam lidas em julgamento, não valem como confissão nos termos do art. 344º.

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⭐ Processos Especiais

⇒ Processo sumário:

Encontra-se regulada nos arts. 381º a 391º.

Este é o processo tradicionalmente mais apto a proporcionar respostas céleres e adequadas à pequena
e média criminalidade, quando ocorra detenção em flagrante delito do seu agente.

 Requisitos:

1. Exigência de detenção em flagrante delito do arguido (art. 381º/1):

Este requisito exclui, desde logo, a possibilidade de aplicação desta forma de processo quer às pessoas
coletivas (neste sentido, PPA e DSR), quer às pessoas singulares no caso de estarem em causa crimes
de natureza particular (art. 255º/4). A atualidade da infração e a evidência da prova concomitantes
ao flagrante delito impõem uma resposta célere por parte do sistema penal, que precisamente
justificam a eliminação ou redução do prazo de investigação, a supressão da fase de instrução e a
simplificação da fase de julgamento.

A celeridade, contudo, não pode deixar de ser compatibilizada, por um lado, com uma correta visão
dos factos que impeça a punição de parcelas isoladas de uma conduta criminosa mais complexa e,
por outro, com as garantias de defesa do arguido, que deverão ser tanto mais amplas quanto mais
grave for o crime imputado e as respetivas consequências sancionatórias.

Este requisito abrange não só o flagrante delito em sentido próprio (art. 256º/1 primeira parte), mas
também o quase flagrante delito (art. 256º/1 segunda parte) e a presunção de flagrante delito (art.
256º/2). Enquanto o primeiro não levanta particulares dificuldades (pois pressupõe a atualidade e
visibilidade na prática do facto criminoso), as últimas duas prestam-se a maiores dificuldades na
respetiva concretização prática:

o Estas dificuldades são, todavia, temperadas no caso dos crimes permanentes e duradouros,
com o disposto no art. 255º/3, que restringe o flagrante delito aos casos em que é visível o
envolvimento do agente na prática do facto.

2. A detenção em flagrante delito tenha sido realizada por autoridade judiciária ou entidade
policial (art. 381º/1 a)) ou por outra pessoa (desde que num prazo que não exceda 2 horas, o
detido tenha sido entregue a uma autoridade judiciária ou entidade policial, tendo esta
redigido auto sumário de entrega – art. 381º/1 b)).

Apesar da exigência da detenção em flagrante delito para o desencadeamento da aplicação da forma


de processo sumário, o CPP não impõe a manutenção da situação de detenção, pelo que o processo
tenderá a prosseguir com o arguido em liberdade (art. 385º/1 e 3).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A audiência deverá realizar-se no prazo máximo de 48 horas (art. 387º/1), salvo nos casos de
adiamento previstos no art. 387º/2, 6 e 7. Após a reforma de 2007, tem-se entendido que o não
cumprimento das 48 horas gera apenas irregularidade (art. 123º); neste sentido, PPA.

3. Estar em causa crime cuja penal legal abstratamente aplicável não exceda os 5 anos de prisão
(art. 381º/1) ou, caso exceda esse limite, que o MP entenda que não deve ser aplicada, em
concreto, pena de prisão superior a 5 anos (art. 381º/2):

Foi a reforma de 2007 que tornou obrigatório o julgamento em processo sumário de todos os crimes
puníveis com pena de prisão até 5 anos, mesmo em caso de concurso efetivo, e ainda com pena
superior desde que o MP, na acusação, entenda que não deve ser aplicada, em concreto, pena de
prisão superior a 5 anos – conquanto, naturalmente, verificados os demais requisitos.

Antes da reforma de 2010, retirava-se do então art. 386º um requisito implícito de dever ser
competente para o processo sumário o Tribunal Singular. A redação constante da parte final das
als. a) e b) do n.º 2 do art. 14º e da al. c) do n.º 2 do art. 16º, resultante da reforma de 2013, permite
concluir que competente para o julgamento em processo sumário será o Tribunal Singular.

 Tramitação:

O processo sumário é uma forma de processo menos solene e menos pesada do que a forma comum,
o que decorre da acrescida facilidade da prova em casos de detenção em flagrante delito.

Por este motivo, é possível passar rapidamente para a fase de julgamento sem ser necessário prever
a possibilidade de abertura da fase da instrução, a qual é, nesta forma de processo, totalmente
sacrificada.

Com efeito, em processo sumário, o suspeito detido em flagrante delito começará por ser constituído
arguido (art. 58º/1 c)), apresentado imediatamente ao MP para interrogatório sumário, se este o
julgar conveniente (art. 382º/2), e, de seguida, apresentado ao tribunal competente para julgamento,
caso o MP não promova, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido ou do assistente, o
arquivamento em caso de dispensa de pena ou a suspensão provisória do processo (art. 382º/2 e
384º/1 e 2).

Tendo em conta a celeridade induzida por esta tramitação, costuma dizer-se que no processo sumário
não há inquérito (neste sentido, PPA): utiliza-se o auto de notícia (art. 389º/1 e 2). Mas a lei aceita a
realização de inquéritos sumários, já que esta forma de processo admite, por exemplo, que, quando
precise de tempo para reunir mais provas, o MP possa realizar diligências de investigação que
considere essenciais (art. 387º/4), mantendo-se a forma de processo sumário se for respeitado o prazo
de 15 dias a contar da detenção para a realização da audiência (art. 387º/2 b) e c)).

Além disso, embora a tramitação da audiência de julgamento obedeça às normas do processo comum,
em processo sumário estas normas são “adaptadas ao mínimo indispensável ao conhecimento e boa decisão
da causa, em ordem a garantir a celeridade do processo” (art. 386º/2).

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O art. 390º prevê taxativamente as situações em que, por força da necessária ponderação de valores,
o tribunal procederá, por decisão irrecorrível (art. 391º), ao reenvio dos autos para outra forma de
processo; são os casos de:

(i) Não verificação dos pressupostos especiais ou gerais do processo sumário;


(ii) Necessidade de resolução de questões prejudiciais que requeiram a suspensão do processo;
(iii) Necessidade de realização de diligências adicionais que imponham a ultrapassagem dos
prazos previstos nos n.ºs 9 e 10 do art. 387º;
(iv) Excecional complexidade da causa.

Entendeu já o TC, porém, que essa remessa – feita, no caso da pronúncia, ao abrigo do art. 390º/b) –
não viola o princípio ne bis in idem (art. 29º/5 CRP), mesmo que tenha sido já produzida toda a prova
em audiência e tenha sido já marcada data para a leitura de sentença. Considerou o TC que “não
existindo, ainda, qualquer sentença (condenatória ou absolutória) a pronunciar-se sobre os factos que
são imputados ao arguido, não pode ver-se na simples ordem de remessa dos autos para serem
tramitados sob a forma de processo comum – por a prova produzida em audiência revelar a
necessidade, para a descoberta da verdade, da realização de diligências probatórias adicionais
insuscetíveis de serem levadas a cabo dentro do prazo máximo previsto para o processo sumário –
uma situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo art. 29º/5 CRP”.

⇒ Processo abreviado:

Foi introduzido pela reforma de 1998 e está regulado nos arts. 391º-A a 391º-F.

A celeridade acrescida que esta forma de processo prossegue encontra justificação na especial
simplicidade e evidência da prova, da qual resultem indícios suficientes da verificação do crime e
da identidade do seu agente.

 Requisitos:

1. Crime punível – ou crimes, em caso de concurso de infrações – com pena de multa ou com
pena máxima abstratamente aplicável não superior a 5 anos de prisão (art. 391º-A/1):

Adicionalmente, quando se trate de crimes puníveis com limite máximo superior a 5 anos de prisão,
poderá esta forma de processo ser aplicada, desde que não estejam em causa crimes da competência
do Tribunal Coletivo, sempre que o MP entenda, na acusação, que não deverá ser aplicada, em
concreto, pena de prisão superior a 5 anos (art. 391º-A/2).

2. Existência de provas simples e evidentes, suficientemente indicadoras do crime e da


identidade do agente (art. 391º-A/1 e 3):

Estas tornarão desnecessário prolongar a investigação pré-acusatória. Assim, importa que, tendo em
conta os elementos de prova disponíveis, possa concluir-se pela possibilidade razoável de ao arguido
vir a ser aplicada em julgamento, por força daqueles, uma pena criminal.

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No n.º 3 do art. 391º-A consta uma enumeração taxativa (desde 2010) das situações em que se
considera haver provas simples e evidentes:

(i) Casos de detenção em flagrante delito quando não deva haver julgamento em processo
sumário;
(ii) Casos de prova documental com grande força probatória;
(iii) Casos de prova testemunhal presencial com versão uniforme.

Anteriormente, a lei contemplava, como requisito, a necessidade de ser deduzida acusação no prazo
máximo de 90 dias após o crime. Contudo, essa exigência encontra-se hoje relegada para o art. 391º-
B/2, que estabelece que o inquérito terá uma duração máxima de 90 dias, cuja ultrapassagem é
geradora de mera irregularidade (art. 123º).

Diferentemente do que sucede geralmente no processo sumário, o processo abreviado, por não
pressupor uma situação de flagrante delito, pode ser utilizado quando estejam em causa pessoas
coletivas, mas, tal como no processo sumário, não é admissível quando estejam em causa crimes da
exclusiva competência do Tribunal Coletivo.

 Tramitação:

Atualmente constata-se que a fase de inquérito não é obrigatória, pois a acusação pode ser deduzida
com base na mera notícia do crime (neste sentido, PPA). Caso, porém, o MP determine a realização
de inquérito, existe um prazo de 90 dias, contado a partir da notícia do crime ou da apresentação da
queixa, para deduzir acusação (art. 391º-B).

A suspensão provisória do processo, podendo durar entre 2 e 5 anos, é incompatível com o processo
abreviado, pelo que, se for determinada, os autos terão de seguir a tramitação comum.

Além disso, o processo abreviado não contempla a fase de instrução. Com a reforma de 2007,
desapareceu a referência no art. 391º-C ao debate instrutório, ao despacho de pronúncia e à aplicação
de artigos da fase de instrução.

 Alguma doutrina (nomeadamente, PPA) considera que a supressão da instrução sumária


anteriormente prevista é desconforme com a CRP, mesmo em face da anterior jurisprudência
do TC, invocando que, ao contrário do que sucede em processo sumário (que tem a garantia
clássica da possibilidade de reenvio para a forma de processo comum quando faltem os
pressupostos legais), no processo abreviado essa possibilidade não existe, o que poderá
determinar a inconstitucionalidade dos arts. 286º/3 e 391º-C por violação do art. 32º/3 CRP.

⇒ Processo sumaríssimo:

Está regulado nos arts. 392º a 398º e assenta na procura de uma solução consensual motivada por
razões de simplificação, eficácia e de economia processual.

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 Requisitos:

1. Crime (ou crimes em concurso) punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou
punível apenas com pena de multa (art. 392º/1).
2. Sempre que a aplicação desta forma de processo não surja por iniciativa do arguido, deverá
o mesmo ser ouvido pelo MP em momento prévio à sua promoção junto do tribunal (art.
392º/1).
3. O MP entenda que deve ser aplicada, em concreto, pena ou medida de segurança não
privativas da liberdade (art. 392º/1), nomeadamente, multa, suspensão de execução da
pena de prisão, proibição do exercício de profissão, função ou atividade, prestação de
trabalho, interdição de atividades, etc..

 Tramitação:

O requerimento do MP não pode basear-se apenas no auto de notícia (art. 394º), antes devendo:

(i) Fazer referência ao requerimento ou audição do arguido;


(ii) Conter uma enunciação sumária das razões de facto e de direito pelas quais se justifica a
não aplicação de pena efetiva de prisão ou de medida de segurança de internamento;
(iii) Incluir a fundamentação factual e jurídica da escolha da pena concreta ou da medida de
segurança proposta e da determinação do seu quantum concreto;
(iv) Conter as sanções propostas pelo MP;
(v) E, eventualmente, incluir referências às particulares exigências de proteção da vítima do
crime que imponham o arbitramento oficioso da reparação, com indicação da quantia
exata a arbitrar.

Nesta medida, o processo sumaríssimo deve incluir a fase preliminar de inquérito, ou seja, a prova
indiciária dos factos e da sua autoria ou comparticipação e ainda os elementos de facto para a escolha
da concreta pena ou medida de segurança não privativa da liberdade. Tal implica a constituição do
suspeito como arguido e a realização do respetivo interrogatório. Já nos crimes particulares, o MP
deverá obter previamente a concordância do assistente antes de encerrado o inquérito.

Apresentado o requerimento pelo MP (art. 394º), pode o requerimento (que é uma simples proposta),
ser rejeitado pelo juiz, sempre que este entenda que é legalmente inadmissível o procedimento, que
o requerimento é manifestamente infundado (art. 311º/3), ou quando a sanção proposta seja
manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição
(art. 395º/1). Quando, porém, o único fundamento de discordância do tribunal para com a proposta
seja a inadequação ou insuficiência da sanção, poderá o tribunal, em alternativa ao reenvio do
processo para outra forma, fixar sanção diferente, quer na sua espécie, quer na sua medida, desde
que para tal obtenha a concordância do MP e do arguido.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Se o requerimento não for rejeitado, o arguido é notificado para dizer se se opõe ou não à aplicação
da sanção:

o A aceitação da sanção proposta não se compadece, porém, com a imposição de condições ou


a cumulação com uma oposição parcial, mas antes deverá ser global e não condicionada (neste
sentido, ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR; em sentido contrário, PPA). Se tiver aceitado a
sanção proposta pelo MP, o juiz poderá estar impedido de intervir no julgamento subsequente
de arguido que se oponha ao requerimento do MP, de acordo com uma interpretação dos arts.
40º, 43º/2 e 398º CPP conforme ao art. 32º/1 e 5 CRP.
o Se o arguido não se opuser, o juiz profere despacho aplicando sanção e condenando nas custas
do processo. Este despacho vale como sentença condenatória e não admite recurso ordinário,
sem prejuízo da arguição de nulidades (art. 397º/1, 2 e 3).
o Se o arguido se opuser ao requerimento, o processo será reenviado para outra forma. Caso o
processo deva prosseguir na forma comum, o arguido é notificado para, querendo, requerer
a abertura da instrução (art. 398º).

⇒ Promoção da aplicação dos processos especiais:

A utilização da forma de processo sumário depende, em princípio, da promoção do MP. Essa


promoção é, aliás, obrigatória quando estejam reunidos os pressupostos e requisitos para o recurso
a esta forma de processo especial. É com o intuito de assegurar a verificação desses pressupostos e
requisitos que o legislador prevê a realização, pelo MP, do interrogatório sumário (art. 382º/2).

Por seu turno, o processo abreviado só pode ser promovido pelo MP (art. 391º-A). Todavia, tratando-
se de crimes particulares, deverá o MP indicar expressamente ao assistente que irá deduzir
acusação em processo abreviado, sendo certo que, caso o assistente opte por deduzir acusação noutra
forma de processo que não a de processo abreviado, o MP pode deduzir acusação própria no processo
abreviado, a qual prevalecerá sobre a do assistente.

Ademais, independentemente da necessidade de impulso do MP para aplicação desta forma de


processo, a verdade é que o juízo que precede a apresentação do requerimento não é de
discricionariedade ou mesmo de oportunidade, mas antes de legalidade, dado que o MP se encontra
vinculado a aplicar esta forma de processo quando se verificam os seus pressupostos legais (neste
sentido, PPA).

Ao abrigo da Lei-Quadro da Política Criminal, aprovada pela Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, o
legislador poderá reforçar a utilização das formas de processo especiais, desde logo consagrando o
dever legal de privilegiar estas formas de processo em detrimento da forma de processo comum.

Recorde-se, nesta matéria, que a nulidade insanável prevista no art. 119º/f), é aplicável apenas
quando seja utilizada forma de processo especial fora dos casos previstos na lei. Já quando, por
hipótese, seja utilizada a forma de processo comum nos casos em que devesse ser aplicada uma forma
de processo especial, a consequência será antes a nulidade dependente de arguição prevista no art.
120º/2 a). A diferença entre ambos os regimes é facilmente compreensível, pois enquanto a aplicação

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

indevida da forma de processo comum apenas implica um aumento das garantias processuais do
arguido, em prejuízo da celeridade do processo, já a aplicação indevida de uma forma de processo
especial quando os seus pressupostos não se verifiquem, implica um prejuízo intolerável para o
arguido, que se vê julgado em circunstâncias mais desfavoráveis do que aquelas que a lei impõe que
lhe sejam aplicadas.

⭐ Detenção

A detenção trata-se de um meio processual privativo da liberdade constitucionalmente previsto – art.


27º/3 a), b) e f) CRP.

A detenção tem em vista:

i. A apresentação do detido a julgamento sob forma sumária (arts. 254º/1 a) e 381º e ss.);

ii. A apresentação do detido ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial (arts.
254º/1 a) e 141º);

iii. A apresentação do detido ao juiz competente para aplicação ou execução de uma medida de
coação (arts. 254º/1 a) e 194º);

iv. Assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, do detido, perante
a autoridade judiciária em ato processual (arts. 254º/1 b) e 116º/2). Neste caso, o detido pode
também ser um terceiro, por exemplo, uma testemunha, o que faz da detenção um meio
processual que não é privativo do suspeito ou do arguido.

Se a detenção tiver esta última finalidade, a privação da liberdade não pode ser superior a 24 horas
(arts. 254º/1 b)). Nos restantes casos, a apresentação do detido terá de ocorrer no prazo máximo de
48 horas (arts. 254º/1 a) e 28º/1 CRP).

 Nos termos do art. 28º/1 CRP, a detenção será submetida, no prazo máximo de 48 horas, a
apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação
adequada. Por seu turno, o art. 254º/1 a) dispõe que a detenção é efetuada para, no prazo de
máximo de 48 horas, o detido ser presente a juiz competente para primeiro interrogatório
judicial.

Coloca-se a questão de saber qual o sentido útil do estabelecimento deste prazo máximo: refere-se
apenas à apresentação ao juiz? Dele decorre também que o interrogatório judicial se inicie no mesmo prazo?
Impõe-se que este interrogatório termine dentro daquele prazo? A decisão que aprecia tem de ser tomada naquele
prazo máximo?

O Tribunal Constitucional, confrontado com esta questão, entendeu que da norma constitucional
decorre “um prazo máximo de prisão administrativa, que não poderá exceder as 48 horas”. Deste
modo, o interrogatório judicial poderá iniciar-se além deste prazo, dentro dele e terminar depois das
48 horas. Poderá também iniciar-se e acabar dentro deste período, mas haver decisão de apreciação
da detenção além das 48 horas (Acs. n.ºs 565/2003; 135/2005 e 589/2006).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Assim, não parece existir limite temporal para uma privação da liberdade em relação à qual não há
ainda a garantia de que respeita o regime constitucional de restrição do direito à liberdade,
nomeadamente a exigência da necessidade (art. 18º CRP).

Por outro lado, põe-se a questão de identificar a lei que permite a restrição do direito, uma vez que
a privação da liberdade além das 48 horas não corresponde à aplicação de uma medida de coação
legalmente prevista, nem tão-pouco se enquadra nos casos em que é legalmente admissível a
detenção (arts. 191º/1 e 254º).

⇒ Detenção em flagrante delito:

Há três conceções de detenção em flagrante delito (art. 256º):

i. Flagrante delito em sentido próprio – é a atualidade do crime, o agente é surpreendido a


cometer o crime.

ii. Quase flagrante delito – o agente já não está a cometer o crime, mas é surpreendido logo
no momento em que findou a execução, mas sempre ainda no local da infração em
momento no qual a evidência da infração e do seu autor deriva diretamente da própria
surpresa.

iii. Presunção de flagrante delito – o agente é perseguido por qualquer pessoa, logo após o
crime, ou é encontrado a seguir ao crime com sinais ou objetos que mostrem claramente
que o cometeu ou nele participou.

Esta noção de flagrante valoriza a circunstância de o agente ser surpreendido na prática do crime ou
com sinais que evidenciem a sua participação nele, o que facilita a prova e explica a permissão de
detenção imediata por qualquer autoridade, entidade policial ou qualquer do povo e a submissão
do agente a processo sumário, quando se verifiquem os demais pressupostos para adoção desta
forma de processo especial; há uma relação de simultaneidade entre a atualidade da execução do
crime e a sua constatação por terceiro.

O quid proprium do flagrante delito consiste na atualidade e evidência probatória. Note-se, porém,
que o flagrante delito não é uma qualidade ou requisito constitutivo do próprio crime. A atualidade
e a presença de testemunhas na execução do crime é que caracterizam o flagrante delito. Por isso, se
o crime foi presenciado, mas o agente não foi imediatamente detido, não pode sê-lo ulteriormente
com fundamento em flagrante delito.

Em flagrante delito, e tratando-se de crimes públicos e semipúblicos puníveis com pena de prisão,
o presumível agente deve ser detido por qualquer autoridade ou entidade policial que estiver
presente e pode ser detido por qualquer pessoa, se uma daquelas entidades não estiver presente nem
puder ser chamada em tempo útil (art. 255º/1 a) e b)).

Só os crimes públicos e semipúblicos puníveis com pena de prisão admitem a detenção em


flagrante delito. Acresce que, relativamente aos crimes semipúblicos, a detenção só se mantém
quando, em ato a ela seguido, o titular do direito de queixa apresentar a queixa (arts. 255º/3 CPP e
113º CP).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de acusação particular, não pode ter lugar a
detenção em flagrante delito, mas apenas a identificação do infrator (art. 255º/4). Note-se que GMS
não entende a razão pela qual se admite a detenção relativamente aos crimes semipúblicos e não
àqueles que dependam de acusação particular; parece-lhe que seria razoável que o tratamento fosse
idêntico, na medida em que também relativamente aos crimes semipúblicos o queixoso pode desistir
da queixa posteriormente e a distinção entre uns e outros não assenta na gravidade do crime.

NOTA: não pode haver processo sumário em crimes particulares, porque a detenção em flagrante
delito é um requisito do processo sumário, ou seja, um dos requisitos não está cumprido e por isso
não pode haver processo sumário em crime particular (art. 381º).

Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efetuada por mandado do juiz. A lei reserva
expressamente este ato ao juiz, uma vez que pode haver detenção independentemente da gravidade
do crime e haver detenção de qualquer pessoa independentemente da qualidade de suspeito ou de
arguido (arts. 257º/1 primeira parte, 255º/1 b) CPP e 27º/3 f) parte final CRP).

Pode ainda haver detenção em flagrante delito, por mandado do juiz, quando:

(i) Se considerar que o visado não se apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária
no prazo que lhe foi fixado (havendo fundadas razões para tal);

(ii) Quando se verifique, em concreto, alguma das situações previstas no artigo 204.º, que apenas
a detenção permita acautelar;

(iii) Ou se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima – art. 257.º/1 CPP.

Excecionalmente, a detenção pode ser efetuada por mandado do MP, nos casos em que for
admissível prisão preventiva:

o Quando houver fundadas razões para considerar que o visado não se apresentaria
voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe foi fixado;

o Quando se verifique, em concreto, alguma das situações previstas no art. 204º, que apenas a
detenção permita acautelar;

o Ou se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima – art. 257º/1.

De forma ainda mais excecional, as autoridades de polícia criminal podem ordenar a detenção, por
iniciativa própria, quando se tratar de caso em que é admissível a prisão preventiva, existirem
elementos que tornem fundados o receio de fuga ou de continuação da atividade criminosa e não for
possível, dada a situação de urgência e de perigo na demora, esperar pela intervenção de autoridade
judiciária (arts. 1º/d) e 257º/2).

NOTAS:

 Em caso de inobservância destas regras, haverá nulidade (art. 258º);

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 Há um dever que impende sobre qualquer entidade que tiver procedido à detenção, de a
comunicar de imediato ao juiz ou ao MP (art. 259º);

 O poder-dever de qualquer entidade, que tiver ordenado a detenção ou a quem o detido for
presente, tem de proceder de imediato à sua libertação, logo que se tornar manifesto que a
detenção foi efetuada por erro sobre a pessoa ou fora dos casos em que era legalmente
admissível ou que a medida se tornou desnecessária (art. 261º CPP).

OS ELEMENTOS DO PROCESSO PENAL

⭐ Sujeitos do Processo

⇒ Participantes processuais:

Os sujeitos processuais tem a sua regulação prevista no Livro I (arts. 8º a 84º).

BELING dizia que estes são as figuras sem as quais um processo não é pensável como possível –
pensamento causal. Para este autor, tem de haver um réu (arguido), uma entidade acusadora (o
Ministério Público) uma entidade julgadora (o Tribunal).

São eles o tribunal, o Ministério Público, o arguido, o defensor do arguido e o assistente. São
sujeitos processuais pela influência que têm no processo, pelos poderes de conformação ativa do
processo penal que têm, podendo influenciar o conteúdo da decisão final.

FIGUEIREDO DIAS, pensando já no CPP e na sua reforma, disse que os sujeitos processuais são
aqueles participantes que têm um poder através da sua intervenção no processo de conformar um
processo como um todo.

 Defensor:

FD entende que sujeitos com capacidade conformadora não são apenas o arguido, o tribunal e o
Ministério Público, mas sim também o defensor, que pode ser constituído pelo arguido ou de forma
oficiosa (arts. 32º/3 CRP e 61º/1 e) e 62º CPP).

E porque é que considera o defensor como sujeito do processo penal? Porque não é um mero representante
do arguido, sendo antes o seu mandatário judicial com poderes autónomos de conformação do
processo, mesmo contra a vontade do arguido. O poder de conformação mais dramático são os casos
em que o arguido está a ser julgado na sua ausência.

O defensor é, então, o sujeito processual através do qual (ou com o auxílio do qual) pode, e nalguns
casos deve, ser exercida a função defensiva do arguido. No âmbito da função defensiva, o defensor
exerce a defesa técnico-jurídica.

A defesa consiste na atividade destinada a fazer valer no processo os direitos subjetivos e outros
interesses jurídicos do arguido. É uma atividade complexa e unitária que abrange a autodefesa pelo
próprio arguido e a defesa técnica exercida pelo defensor.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O arguido pode constituir mais do que um defensor, sendo as notificações feitas àquele que for
indicado em primeiro lugar no ato de constituição (art. 62º/2). Nestes casos, porém, GMS entende
que cada intervenção processual é feita por um só, i.e., o mesmo ato processual não pode ser
praticado por mais de um defensor.

A defesa pode ser formal, material, pessoal e técnica – remetemos para as páginas 9 e ss. desta sebenta.

O defensor é um elemento essencial à administração da justiça (arts. 208º CRP e 114º LOFTJ), o que
significa que exerce também uma função pública, de interesse geral, que ultrapassa o interesse
particular do arguido. Cabe, assim, ao defensor o encargo de promover o esclarecimento da verdade
relativamente a factos e aspetos jurídicos comprobatórios ou indicativos da inocência ou menor
responsabilidade do arguido.

Como sujeito processual, o próprio defensor é titular de direitos e sujeito de deveres processuais,
mesmo em confronto com o arguido, mas nunca em seu prejuízo. Note-se que a autonomia do
defensor é limitada à técnica do processo; quanto à política do processo o arguido guarda o seu
poder de se defender como entender (art. 63º).

As situações de obrigatoriedade de assistência de defensor constam do art. 64º/1.

O advogado constituído pelo arguido pode ser substituído, sendo-lhe revogado o mandato, e pode
renunciar ao mandato, ocorrendo justa causa. Também o defensor nomeado cessa as suas funções
logo que o arguido constitua advogado (art. 62º/2) e pode ser dispensado do patrocínio se alegar
causa que o tribunal julgue justa ou ser substituído a requerimento do arguido, também por justa
causa (art. 66º/2 e 3).

 Assistente:

Também o assistente é um sujeito processual, que se distingue do ofendido e do lesado. O assistente


é aquele que tem legitimidade para se constituir no processo como sujeito processual. Tem de
requerer a sua constituição no processo como assistente e aí passa a ter poderes de conformação
processual.

O Código não dá qualquer definição de assistente, indicando apenas a sua posição processual e
atribuições (art. 69º). Pode no entanto definir-se o assistente como o sujeito processual que intervém
no processo como colaborador do MP na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em
virtude da sua qualidade de ofendido, de especiais relações com o ofendido pelo crime ou pela
natureza do próprio crime (art. 68º/1).

 Ofendido:

O ofendido não é sujeito processual, salvo se se constituir assistente. Enquanto titular dos interesses
que a lei incriminadora especialmente quis proteger com a incriminação (art. 68º/1 a)), sendo maior
de 16 anos, o ofendido pode constituir-se assistente, mas enquanto não se constituir não é sujeito

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

processual. O ofendido é a vítima crime, no sentido de que é o titular dos interesses que a lei penal
visa proteger.

Existem três conceitos de ofendido para efeitos do art. 68º/1 a):

a. Restrito: apenas abrange o especialmente protegido com a incriminação, que será aquele
direta, imediata e primordialmente protegido, e não aquele que é apenas reflexa ou
mediatamente tutelado (Ac. TC n.º 579/2001). Obriga à distinção entre objeto imediato e objeto
mediato da tutela penal.

De acordo com esta posição, o lesado pelo crime de violação do segredo de justiça não poderá
constituir-se assistente, na medida em que não será considerado ofendido, pois este será apenas
indireta ou reflexamente tutelado pela norma incriminadora.

Os partidários desta conceção sustentam que é a que melhor observa a natureza pública do processo
penal e a regra, a ela conforme, de que a titularidade da ação penal cabe ao MP (art. 219º/1 CRP), na
medida em que reduz o protagonismo dos particulares como sujeitos processuais; que é a que melhor
assegura a distinção entre ofendido e lesado pela prática do crime, o último dos quais pode intervir
no processo apenas como parte civil; por fim, que não é incompatível com a CRP, pois esta não contém
ou impõe um conceito de ofendido, concedendo ao legislador uma certa margem de conformação.

b. Restrito-alargado: a proteção de um interesse público não impede que seja também


imediatamente protegido um outro interesse de titularidade individual, diretamente
afetado pela prática do crime (Ac. STJ/FJ 1/2003 + PSM + PPA).

PPA sustenta que a constituição como assistente não pode ser excluída em função da natureza pública
do bem jurídico protegido pela incriminação, antes se há de admitir sempre que esse bem jurídico
puder ser encabeçado num portador concreto. Este constitui, aliás, o conteúdo mínimo da garantia
constitucional de intervenção do ofendido no processo penal para os efeitos do disposto no art. 32º/7
CRP.

O Ac. STJ/FJ 1/2003 estabeleceu que o vocábulo “especialmente” não deve ser compreendido como
“exclusivamente”, mas sim como “particularmente”, de forma a que quando os interesses
imediatamente protegidos pela incriminação sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares, a
pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tenha legitimidade para se constituir
assistente.

c. Amplo: interesse abrangido pelo âmbito de tutela, i.e., que integra, exclusiva ou
concomitantemente, o objeto jurídico tutelado, incluindo os bens jurídicos da sociedade
civil, de titularidade intersubjectiva (i.e., enquanto membro de um grupo ou coletividade) e
objeto indivisível. Bens que, no plano processual, deram origem ao conceito de interesse
difuso, vítima difusa e bens jurídico-pessoais difusos. Exemplos: denegação de justiça (art.
369º/ 1 a 3 CP), saúde pública, ambiente, qualidade de vida, a proteção do consumo de bens

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

e serviços, património cultural e domínio público (arts. 52º/3 CRP; 1º-3º, 14º e 25º, Lei 83/95;
43º DL 28/84) – é também a posição sustentada por SILVA DIAS.

SILVA DIAS afirma que a moderna vitimologia veio recomendar uma ampliação da participação
processual da vítima como uma forma de melhor conseguir a pacificação social, uma finalidade que
é consensualmente cometida ao processo penal.

SILVA DIAS sustenta ainda que o conceito restrito não é coerente com o sistema processual penal
vigente, que consagra uma fase de instrução não obrigatória, que visa o controlo da atuação do MP
durante o inquérito, mais exatamente da sua decisão de acusar ou arquivar (art. 286º/1); ora, a adoção
de um tal conceito significa uma diminuição sensível das possibilidades desse controlo. A ausência
de um ofendido imediato impede que possa ter lugar a abertura da instrução. Deste modo, um
conceito restrito de ofendido, além de frustrar o objetivo que levou à criação daquela fase processual,
coarta um meio de ação penal particularmente adequado para a proteção do interesse em jogo e quiçá
o direito a um processo equitativo (art. 20º/3 CRP).

Consentâneo com uma conceção ampla de “ofendido” é ainda o art. 86º/2 e 3 CPP que descortina os
interesses tutelados pela decretação do segredo de justiça.

 Vítima:

Será a vítima um sujeito processual? As ordens jurídicas estão sobretudo preocupadas com proteger os
direitos fundamentais das vítimas. Têm estas poderes autónomos? Não é nada claro na lei.

A noção de vítima do art. 67º-A é muito alargada. Esta alteração veio produzir modificações no resto
do CPP, atribuindo poderes à vítima – arts. 212º/4 e 292º/2.

A Lei n.º 130/2015 veio aprovar o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos
direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.

Podemos concluir que a vítima pode coincidir com o ofendido (al. a) i) do art. 67º-A) ou não (al. a) ii)
do art. 67º-A). Sendo assim, a vítima pode constituir-se assistente, como aliás resulta dos arts. 212º/4
parte final e 292º/2.

Todos os ofendidos são vítimas, mas nem todas as vítimas são ofendidos. Há ainda uma
sobreposição entre o conceito de vítima e assistente: existem casos em que a vítima não se constituiu
ou não se pode constituir como assistente (não é um sujeito processual), mas acaba por ter poderes
de intervenção ativa e de conformação no procedimento (art. 67º-A/4 e 5).

Note-se ainda que surge do art. 292º/2 CPC a obrigação do juiz de instrução de ouvir a vítima na fase
da instrução quando ela o requerer.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 Queixoso:
A figura processual do assistente também não se confunde com a do queixoso, nem quanto aos
pressupostos da sua legitimidade, nem quanto aos seus poderes processuais.

- Nos crimes semipúblicos e particulares, a promoção do procedimento pelo MP está


condicionada pela queixa das pessoas para tal legitimadas; sem a queixa, o MP carece de
legitimidade para promover o processo. Este poder de condicionar a promoção do
procedimento cabe aos titulares do direito de queixa, indicados no art. 113º CP.

O queixoso, independentemente de se constituir ou não como assistente, tem o poder de a todo o


tempo, até à publicação da sentença da 1ª instância, pôr termo ao procedimento, desistindo da queixa,
desde que não haja oposição do arguido (art. 116º/2 CP). Este direito de promoção do processo e de
lhe pôr termo, ainda que indiretamente, não integra o estatuto do assistente, mas simplesmente o do
queixoso.

- Nos crimes particulares, dada a necessidade de constituição de assistente para que o


procedimento seja instaurado com a abertura do inquérito, pode parecer que há plena
identificação de posições processuais a partir do momento em que o queixoso é constituído
formalmente como assistente, mas não é inteiramente assim. No caso de morte ou
incapacidade do assistente, o titular do direito de queixa que lhe suceda pode desistir da
queixa apresentada, sem necessidade de assumir o estatuto de assistente.

O queixoso não é sujeito processual enquanto não for constituído assistente. A sua intervenção
processual é muito restrita, embora de grande importância para a promoção e prossecução do
procedimento, e os seus direitos limitam-se à formulação da queixa, à desistência dela e ao direito de
se constituir assistente.

O direito de queixa e de acusação particular têm natureza substantiva; constituem uma condição de
punibilidade. Por isso é que a sua regulamentação consta do CP (arts. 113º a 117º). O assistente é um
instituto de natureza processual, constituído por um conjunto de poderes de intervenção processual.
É por isso que o estatuto do assistente consta do CPP (arts. 68º a 70º).

⇒ Intervenientes no processo penal:

Também chamados participantes processuais, estes são aqueles a quem cabe a prática de atos
processuais. Estes podem ser peritos, testemunhas, órgãos de polícia criminal (OPC), agentes de
polícia ou simplesmente particulares.

Nos sistemas de common law, o perito é uma testemunha técnica. Estes já são intervenientes do
processo penal; os peritos são imparciais, nomeados pelo tribunal e as testemunhas têm acesso aos
factos através dos sentidos.

Existe ainda o OPC (órgão de polícia criminal), que vem definido no art. 1.º CPP (termo técnico),
tendo o seu estatuto legal de ser consultado em ordem a sabermos quais as entidades abrangidas.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Assim, os meros intervenientes têm a sua intervenção limitada a um ou mais atos processuais, cuja
função é apenas trazer elementos informativos ao processo. As partes civis (arts. 71º e ss.) são
intervenientes porque não conformam a tramitação (art. 129º CP), e são elas:

i) O lesado (legitimidade ativa – art. 74º CPP). O lesado, enquanto tal, nunca pode constituir-
se assistente, mas apenas parte civil para efeitos de deduzir pedido de indemnização civil.

O lesado, sendo aquele que sofreu danos com o crime, pode coincidir e coincide muitas vezes com o
ofendido e, por isso, pode também constituir-se assistente (por isso, se o lesado for simultaneamente
assistente, o prazo para deduzir o pedido de indemnização civil é diverso do do simples lesado – art.
77º), não por ser lesado, mas por ser ofendido. Em razão da sua qualidade de lesado, pode apenas
intervir no processo como parte civil, no pedido de indemnização civil.

ii) O demandado (legitimidade passiva – art. 73º CPP) – um exemplo são as seguradoras.

⭐ Tribunal

Exerce a função jurisdicional (arts. 110º/1 e 202º/1 CRP) e está sujeito aos princípios constitucionais
de administração da justiça, que visam garantir a objetividade e a imparcialidade do julgamento.
Como refere PSM, a jurisdição penal é dos tribunais comuns/judiciais (art. 211º/1 CRP).

FD e NUNO BRANDÃO entendem que no Processo Penal os Tribunais são os únicos órgãos
competentes para, como representantes da comunidade jurídica e do poder oficial do Estado em que
aquela se constitui, decidirem os casos jurídico-penais que processualmente sejam levados à sua
apreciação, aplicando o direito penal substantivo (arts. 27º/2 e 202º/2 CRP).

A jurisdição penal assenta em dois princípios:

(i) Princípio do juiz natural;


(ii) Princípio da jurisdicionalidade da matéria penal.

⇒ Competência:

1. Competência em função da jurisdição:

São competentes os tribunais portugueses (arts. 202º e 211º CRP + 8º CPP + 2º/1 LOSJ).

2. Competência funcional:

Trata-se da determinação do Tribunal competente em função da fase processual:

i. Inquérito e Instrução

Regra geral: Tribunal de Competência Especializada Criminal (arts. 17º e 18º CPP), nomeadamente:

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

a. Tribunal de Instrução Criminal (arts. 81º/3 f), 116º e 119º);


b. Tribunal Central de Instrução Criminal (arts. 83º/3 b), 116º e 120º/1 LOSJ + 47º/1 Lei n.º 47/86
15 Out.).

Especialidade: em função das qualidades do arguido, será competente nesta fase:

a. STJ (arts. 11º/7 CPP + 53º h) LOSJ);


b. Tribunal da Relação (arts. 12º/6 CPP + 73º g) LOSJ).

ii. Julgamento

Regra geral: serão competentes os tribunais judiciais de 1ª instância, salvo de for competente o STJ
ou os TR (a contrario sensu dos arts. 11º e 12º CPP + arts. 31º a 33º LOSJ).

Especialidade:

(i) STJ:

- Julgar o PR, o Presidente da Assembleia da República e o PM pelos crimes praticados no


exercício das suas funções (art. 11º/3);
- Julgar processos por crimes cometidos por juízes do STJ, julgar recursos que não sejam da
competência do pleno das secções, conhecer dos pedidos de revisão, decidir do pedido de
atribuição de competência a outro tribunal da mesma espécie e hierarquia, nos casos de
obstrução ao exercício da jurisdição pelo tribunal competente (arts. 11º/4 CPP e 53º). Conjugar
com o art. 55º b) e c) LOSJ.

(ii) Tribunal da Relação:

- Julgar os crimes cometidos por juízes de direito, julgar recursos, julgar processos judiciais de
extradição, julgar processos de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira (art. 12º/3
CPP). Conjugar com o art. 73º b) e c) LOSJ.

iii. Recurso

b. STJ – arts. 11/3 b) + 11º/4 b) CPP e 53º b) + 55º a) LOSJ.


c. Tribunal da Relação – arts. 12º/3 b) CPP e 73º a) LOSJ.

iv. Execução de penas

É competente o Tribunal de Execução de Penas (arts. 18º CPP + 114º, 115º e 117º LOSJ).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

3. Competência material:

Trata-se da determinação do Tribunal competente em função da natureza das causas a resolver, de


maneira que às particularidades decisivas na matéria ou na natureza dos assuntos a tratar
correspondam órgãos jurisdicionais com uma organização e um formalismo que lhes sejam
adequados.

Delimita a jurisdição penal em função de várias categorias:

i. Matéria em causa (rationae materiae):


o Natureza/gravidade do crime – critérios qualitativos (arts. 11º/4 c) CPP + 55º/d)
LOSJ) – STJ.
o Gravidade da pena aplicável – critérios quantitativos

ii. Qualidade dos agentes (rationae personae) – arts. 11º/3 a) CPP + 53º/a) LOSJ: STJ.

Competência residual – Tribunal de Comarca, de competência genérica (art. 80º/1 LOSJ).

Tribunais de competência especializada criminal (art. 81º/c) a e) LOSJ):

(i) Tribunal do Júri (arts. 207º CRP + 13º CPP + 136º e 137º LOSJ) – tem competência em
matéria de criminalidade grave se, e apenas se, a sua intervenção for requerida pelo
Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido (art. 13º CPP).

Compete ao juiz do júri julgar processos:

i. Que respeitarem a crimes contra a paz e a humanidade, contra a segurança do Estado e


previstos na Lei Penal relativa à Violação do Direito Internacional Humanitário (art. 13º/1);
ii. Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, for superior a oito anos de prisão, desde que não
devam ser julgados pelo tribunal singular (art. 13º/2) – critério quantitativo.

Excetuam-se os crimes de terrorismo e os que se refiram a criminalidade altamente organizada (arts.


137º LOSJ + 1º/2 CPP).

O requerimento para intervenção do tribunal do júri é irretratável e deve ter lugar no prazo para a
dedução da acusação, quando for do MP ou do assistente, e no prazo para requerimento da instrução,
quando for o arguido (art. 13º/4). Havendo instrução, o requerimento do assistente que não tenha
deduzido e do arguido devem ter lugar devem ter lugar no prazo de 8 dias a contar da notificação da
pronúncia (art. 13º/3).

(ii) Tribunal Coletivo (arts. 14º CPP + 133º e 134º a) LOSJ) – o tribunal coletivo de 1ª instância
tanto pode ser tribunal de competência genérica (tribunal de comarca) como tribunal de

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

competência especializada (instância central de competência especializada). Cabe-lhe


julgar processos:

ii. Que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes contra a
paz e a humanidade (arts. 293º a 246º CP) e contra a segurança do Estado (arts. 308º
a 346º CP);
iii. Que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem:
o A crimes dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a
morte de uma pessoa e não devam ser julgados em processo sumário; e
o A crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, for superior a cinco anos
de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o
limite máximo correspondente a cada crime – critério quantitativo.

(iii) Tribunal Singular (arts. 16º CPP + 132º LOSJ): competência para:

i. Crimes que não couberem na competência dos tribunais de outra espécie – competência
residual (nomeadamente, crimes puníveis com pena diferente da pena de prisão ou a que
seja aplicável medida de segurança);
ii. Crimes previstos no Cap. II Tít. V do Livro do CP;
iii. Crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável for igual ou inferior a cinco anos de
prisão – critério quantitativo.
iv. Crimes da competência normal do tribunal coletivo ou júri, em razão da pena aplicável,
quando o MP entender que não deve ser aplicada, em concreto, mesmo em caso de
concurso, pena de prisão superior a cinco anos.

4. Competência territorial:

Visa determinar-se qual o tribunal que, dentre os da mesma espécie materialmente competente, deve
ser chamado à jurisdição no caso concreto.

Regras gerais: lugar da consumação do crime (art. 19º/1), o que encontra justificação no facto de ser
assim mais fácil a recolha de prova e da exemplaridade que se consegue pela reafirmação do direito
no próprio lugar em que se verificou a lesão do bem jurídico tutelado.

Sucede, porém, que frequentemente a consumação do crime ocorre em lugar muito diverso e distante
do local em que os atos de execução foram praticados, como sucede, por exemplo, num crime de
homicídio em que a vítima morre no hospital situado em lugar distante daquele onde os atos de
execução ocorreram. Por isto foi introduzido o art. 19º/2, que diz que, tratando-se de crime que
compreenda como elemento tipo a morte de uma pessoa, é competente o tribunal em cuja área o
agente atuou ou, em caso de omissão, deveria ter atuado.

Há que distinguir:

(a) Se o crime se consuma por um só ato que se prolonga no tempo, caso em que é competente
o tribunal em cuja área tiver cessado a consumação (art. 19º/3).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Trata-se dos crimes permanentes em que a execução e consumação perduram enquanto não for posto
termo à violação permanente do bem jurídico tutelado. É exemplo o sequestro (art. 158º CP).

(b) Se o crime se consuma por atos sucessivos ou reiterados, casos em que é competente o
tribunal em cuja área se tiver praticado o último ato (art. 19º/3).

Trata-se de um crime que (i) consiste na execução por uma sucessão de factos; (ii) ou em que cada um
dos factos realiza parcialmente a execução e a produção de um evento parcial do crime.

São exemplos os crimes de favorecimento pessoal (art. 368º CP) e lenocínio (art. 170º).

(c) Tratando-se de crime continuado, o lugar determinante da competência territorial é o do


último crime que integra a continuação. O crime continuado é o crime que resulta do
agrupamento de várias condutas que integram o mesmo crime, sendo considerado um só
para efeitos de punição. Para efeitos processuais, deve considerar-se o crime continuado
como um crime que se consuma por atos sucessivos, sendo aplicável diretamente o art. 19º/3.

Se o crime não tiver chegado a consumar-se, é competente para dele conhecer o tribunal em cuja área
se tiver praticado o último ato de execução, ou, em caso de punibilidade dos atos preparatórios, o
último ato de preparação (art. 19º/4). Se não foram praticados sequer atos de execução, mas foram
praticados atos preparatórios puníveis (art. 21º CP), o tribunal territorialmente competente é o da área
onde foi praticado o último ato de preparação.

Regras subsidiárias/especiais (arts. 20º a 23º):

o Crime cometido a bordo de navio ou aeronave (arts. 4º/b) CP + 20º CPP)


o Crime de localização duvidosa ou desconhecida (art. 21º)
o Crime cometido no estrangeiro (arts. 5º CP + 22º/1 CPP)
o Crime cometido parte em Portugal e parte no estrangeiro (arts. 7º CP + 23º/2 CPP)
o Processo respeitante a magistrados (art. 23º)

5. Competência por Conexão?

O princípio geral de que parte o CPP é o de que a cada crime corresponde um processo para o qual é
competente o tribunal definido em função das regras da competência material, funcional e territorial.

A lei processual permite, porém, que um só processo abranja uma pluralidade de crimes, desde que
entre eles exista uma ligação que torne conveniente para a melhor realização de justiça que todos
seja apreciados conjuntamente. Isto porque nestes casos se presume que o esclarecimento de todos os
crimes em conjunto será mais fácil e evitará possíveis contradições de julgamento.

São três as hipóteses de conexão de processos estabelecida por lei:

1) Conexão subjetiva (arts. 24º/1 a) e b) e 25º) – vários crimes perpetrados pelo mesmo agente.

73
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O art. 24º refere-se a casos em que o mesmo agente tenha cometido vários crimes e se verifique uma
das condições previstas nas alíneas a) ou b):

i. Forem todos cometidos através da mesma ação ou omissão (art. 24º/1 a)) – ex: o agente
comete vários crimes de homicídio através da explosão de uma bomba;
ii. Forem cometidos na mesma ocasião ou lugar (art. 24º/1 b)) – ex: o agente injuria várias
pessoas na mesma ocasião;
iii. Sendo uns causa ou efeito dos outros (art. 24º/1 b)) – ex: o agente comete crime de roubo
e posteriormente homicídio porque a vítima denunciou o roubo;
iv. Destinarem-se uns a continuar a ocultar os outros (art. 24º/1 b)) – ex: o agente comete
crime de ocultação de cadáver depois de ter morto a pessoa.

As razões justificativas desta conexão são (i) a possibilidade de melhor apreensão da prova e (ii)
economia processual, uma vez que é de admitir que, existindo entre os crimes uma tal ligação, a prova
de um deles seja também relevante para os demais.

O art. 25º prevê outra hipótese de conexão subjetiva – o mesmo agente tenha cometido vários crimes
cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca. As razões
subjacentes a esta solução são as de (i) economia processual e (ii) permitir que o agente seja julgado
conjuntamente pelos vários crimes para efeitos de aplicação da pena única em razão do concurso dos
crimes (art. 77º).

NOTA: todas estas hipóteses são de concurso de crimes, mas para que haja conexão de processos é
necessário que se verifiquem as condições de que a lei faz depender a conexão processual. O mero
concurso de crimes não determina a conexão e, por isso, as regras de competência não se alteram em
função do concurso. O que é necessário é que a final seja proferida uma única sentença, que poderá
ser uma nova sentença. O tribunal a julgar o último crime, se tiver competência material para fazer o
cúmulo, fá-lo-á; se não tiver, proferirá a sentença pelo crime que julgou e remeterá o processo ao
tribunal materialmente competente da mesma comarca.

2) Conexão objetiva (art. 24º c), d) e e)) – são as seguintes situações:

i. O mesmo crime ter sido cometido por vários agentes em comparticipação (art. 24º/1 c)) –
esta hipótese abrange coautoria, instigação e cumplicidade no mesmo crime.

Será possível incluir nesta alínea os casos de autorias paralelas?

TQB e GMS defendem que sim. A Professora entende que onde a lei diz “comparticipação” não existe
o mínimo de correspondência na lei que permita colocar lá as autorias paralelas; assim, não se trata
de uma interpretação extensiva, mas antes de uma aplicação analógica, que deve entender não ser
proibida, porque esta só é proibida quando se trate de normas restritivas compressoras de DLG. Esta
já não será proibida; pelo contrário, o art. 4º CPP indica a aplicação analógica de normas processuais
penais. A regra será a possibilidade de aplicação analógica das normas processuais penais, a não ser
nos casos em que essa aplicação analógica se traduza no alargamento de uma restrição a um DLG.

74
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A conexão de processos prevê a contradição de julgados, que permite a economia processual e facilita
a prova. Assim, TQB diz que é possível aqui defender uma aplicação analógica do art. 24º/1 c) às
situações de autorias paralelas.

ii. Vários agentes tiverem cometido vários crimes em comparticipação, na mesma ocasião ou
lugar, sendo uns causa ou efeito de outros, ou destinando-se uns a ocultar os outros (art.
24º/1 d)) – de acordo com GMS, não basta esta conexão objetiva de crimes cometidos por
diversos agentes na mesma ocasião ou lugar, mas é necessário também a conexão
subjetiva, i.e., uma ligação entre esses crimes cometidos em comparticipação que não a
mera unidade de tempo ou lugar. Daí que para o autor esta seja uma hipótese de conexão
mista.
iii. Vários agentes terem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou
lugar – nestes casos, o ofendido de um crime é por sua vez o agente do crime em que o
agente do primeiro toma nele a posição de ofendido. Note-se que é ainda necessário que
os crimes cometidos reciprocamente o sejam na mesma ocasião ou lugar.

Competência para determinar a conexão:

1. Pode haver conexão na fase de inquérito e, nesse caso, a competência para determinar a
conexão pertence ao MP, enquanto os inquéritos não forem presentes ao juiz de instrução.
2. Nas fases de instrução e julgamento, a competência por conexão é fixada pelo juiz de
instrução e pelo juiz presidente, respetivamente.
3. Não pode ser determinada a conexão na fase dos recursos (art. 24º/2).

⇒ Limites à conexão:

Mesmo que preenchidos os pressupostos do art. 24º/1 e 25º, a conexão não opera entre processos que
sejam e processos que não sejam da competência de tribunais menores (art. 26º).

Existem ainda em legislação extravagante outros casos em que a conexão também não opera:

o Crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos no exercício das suas funções (art.
42º Lei n.º 34/87) – a instrução e o julgamento de processos relativos a crimes de
responsabilidade de titular de cargo político cometido no exercício das suas funções far-se-ão,
por motivos de celeridade, em separado dos relativos a outros corresponsáveis que não sejam
também titulares de cargo político.
o A conexão também não opera entre processos que sejam e processos que não sejam de
natureza estritamente militar (Código de Justiça Militar).

A conexão também só opera relativamente aos processos que se encontrem simultaneamente na


fase de inquérito, de instrução ou de julgamento (art. 24º/2).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Competência determinada pela conexão:

a) Competência material e funcional determinada pela conexão (art. 27º) – se os processos


conexos forem da competência de tribunais de diferente hierarquia ou espécie, é competente
para todos o tribunal de hierarquia ou espécie mais elevada.

A mais elevada espécie de tribunal define-se em função da sua estrutura e que em regra se reflete na
competência em razão da pena aplicável ao crime. Assim, deve entender-se que o tribunal coletivo
e o de júri são de espécie mais elevada que o tribunal singular.

Mas entre o tribunal coletivo e o tribunal de júri já será mais discutível. Para GMS, embora de espécies
diferentes, não há entre estes tribunais um grau de elevação; são paritários. Assim, se os processos
conexos devessem ser uns da competência do tribunal coletivo e outros da competência do tribunal
do júri, é competente este último, não por força do disposto no art. 27º, mas do art. 30º/2. Já para
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE e LOPES MAIA GONÇALVES, o tribunal de júri é de espécie
mais elevada que o tribunal coletivo.

b) Competência territorial e regras subsidiárias:

Se as regras sobre competência por conexão estabelecidas no art. 27º não forem suficientes, de modo
a não ser possível através delas determinar a competência de tribunais com jurisdição em diferentes
áreas ou com sede na mesma comarca, a competência do tribunal afere-se nos termos do art. 28º CPP.

Para determinação da competência em caso de conexão: articulação dos arts. 27º e/ou 28º CPP
(cumulativos ou disjuntivos).

⇒ Separação de processos:

Para todos os crimes determinantes da conexão processual organiza-se um só processo ou, se já


tiverem sido instaurados processos distintos, procede-se à apensação de todos àquele que respeitar
ao crime determinante da competência por conexão (art. 29º).

Dito isto, o tribunal pode fazer cessar a conexão dos processos e ordenar a separação de algum ou
alguns, nos termos do art. 30º/1, sempre que:

a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido,


nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o
interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou
d) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns
dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.

Compreendem-se as razões que determinam a separação dos processos: se da sua junção puder
resultar maior dano que benefício, então cada processo deve seguir em separado.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Note-se que, determinada a competência do tribunal em razão da conexão, a separação de processos


não faz cessar a competência do tribunal competente em razão da conexão (art. 31º/b)).

Também pode haver lugar a separação de processos conexos quando algum ou alguns dos arguidos
tiverem requerido a intervenção do tribunal do júri, desde que a separação seja requerida por outro
ou por outros arguidos nos 8 dias posteriores à notificação do despacho que tiver admitido a
intervenção do júri (art. 30º/2 e 3).

A competência para determinar a separação de processos conexos pertence ao juiz de instrução ou


de julgamento, conforme a fase judicial em que o processo se encontre. Se o processo se encontrar na
fase de inquérito pertence ao MP (art. 264º/5).

Se não houver pluralidade de Tribunais competentes e se verificarem os demais requisitos, haverá


apensação (art. 29º) sem necessidade de determinar a competência por conexão (tema para discussão).

⇒ Prorrogação da competência:

Perante uma hipótese de conexão, pode suceder que o tribunal venha a considerar improcedente a
acusação relativamente ao crime ou ao arguido que serviram para fixar a sua competência. Sustentar
que, neste caso, todo o processo deveria ser remetido para o tribunal material e territorialmente
competente para conhecer das acusações que ainda podem proceder significaria desatender, sem
vantagem para o processo e para os seus sujeitos, todas as razões que justamente levaram a lei a
estabelecer a conexão.

A solução correta estará, pois, em manter a competência do tribunal previamente designado. Assim,
nos termos do art. 31º, a competência determinada pela conexão mantém-se:

a) Mesmo que, relativamente ao crime ou aos crimes determinantes da competência por


conexão, o tribunal profira uma absolvição ou a responsabilidade criminal se extinga antes do
julgamento;
b) Para o conhecimento dos processos separados nos termos do n.º 1 do art. 30º.

Tratando-se de separação de processos por força do art. 30º/2 a solução da prorrogação de


competência não pode ser a mesma e suscitam-se algumas dificuldades de interpretação. Neste caso,
o tribunal competente não pode ser o mesmo, pois a razão de ser da separação é precisamente a
atribuição de algum processo inicialmente conexo ao tribunal do júri. Qual será então o tribunal
competente para julgamento dos restantes crimes subtraídos ao tribunal de júri? De acordo com GMS, será
competente o tribunal coletivo que integra o júri.

São assim exigidos quatro requisitos para a conexão:

♢ Pluralidade de processos (real ou hipotética);


♢ Pluralidade de Tribunais competentes;
♢ Verificação de uma situação típica de conexão (art. 26º CPP);
♢ Tramitação concomitante.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

NOTA: a conexão determina a competência de um determinado tribunal que será o material,


funcional e territorialmente competente para cada fase do processo. A regra do art. 31º aplica-se em
cada fase do processo. Assim, se por efeito da conexão for fixada a competência de um determinado
tribunal de instrução criminal, será este o competente para todos os crimes até ao fim da fase de
instrução, mas a competência do tribunal de instrução não determina por si a competência do
tribunal do julgamento.

⭐ Declaração de Incompetência

⇒ Efeitos da incompetência dos tribunais:

O art. 119º/e) dispõe que a violação de regras de competência do tribunal constitui nulidade
insanável e a nulidade torna inválido o ato em que se verificou, bem como os que dele dependerem
e aquela possa afetar (art. 122º/1).

Por sua vez, o art. 33º determina que, declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido
para o tribunal competente, o qual anula os atos que não se teriam praticado se perante ele tivesse
corrido o processo e ordena a repetição dos atos necessários para conhecer da causa.

Assim, a incompetência não determina a nulidade do processo, mas apenas dos atos que não teriam
sido praticados se o processo tivesse corrido perante o tribunal competente.

O tribunal declarado incompetente pratica os atos processuais urgentes (art. 33º/2). São urgentes os
atos:

i. Cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição e conservação da prova ou para a
descoberta da verdade, nomeadamente a tomada de declarações para memória futura (art.
320º).
ii. Cuja demora possa causar dano ao arguido, ao ofendido, assistente ou ao Estado, como será
o caso de não apreciação de requerimento de suspensão de prisão preventiva ou demora na
aplicação de medida de garantia patrimonial – as medidas de coação e de garantia
patrimonial ordenadas pelo tribunal incompetente conservam eficácia mesmo após a
declaração de incompetência, mas devem, no mais breve prazo, ser convalidadas ou
infirmadas pelo tribunal competente (art. 33º/3).

Caso os tribunais portugueses não sejam competentes para conhecer do processo, o processo é
arquivado (art. 33º/4). Não se trata verdadeiramente de um caso de incompetência, mas sim de falta
de jurisdição.

⇒ Conhecimento e dedução da incompetência:

A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida
pelo MP, pelo arguido e pelo assistente (art. 32º).

Os intervenientes no pedido civil não têm legitimidade para deduzir a exceção de incompetência do
tribunal, mas podem suscitar a questão, já que ela é de conhecimento oficioso pelo tribunal.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A dedução e declaração da incompetência tem lugar:

a) Até ao trânsito em julgado da decisão final, tratando-se de incompetência material ou


funcional (art. 32º/1);
b) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução, ou até ao início da
audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento, quando se trate de
incompetência territorial (art. 32º/2).

O Código refere-se expressamente apenas à incompetência do tribunal, mas também a propósito da


competência funcional dos juízes nos tribunais com composição plural a questão se pode suscitar:

1) Se a sentença não for elaborada pelo presidente (art. 372º), GMS afirma que parece ser de
considerar que a violação das regras de competência funcional entre os juízes do tribunal de
composição plural constitui mera irregularidade processual.
2) Questão muito complexa diz respeito à discordância de algum ou alguns membros do
tribunal plural sobre os termos da sentença – a sentença deve ser assinada por todos os
membros do tribunal, sob pena de irregularidade (art. 374º/3 e)). Ora, pode suceder que
algum ou alguns dos membros do tribunal não concorde com a redação dada pelo membro
que a redige, recusando-se a assiná-la. GMS entende que nestes casos os atos da audiência de
julgamento devem ser invalidados por impossibilidade da sua conclusão com a prolação da
sentença na forma legal: não sendo admissível a revelação das posições dos participantes no
ato de deliberação (art. 367º), não parece que seja viável aplicar-se por analogia o disposto na
lei sobre o conflito de competência.

⭐ Conflitos e Remoção de Competência

⇒ Casos de conflito de competência e sua cessação:

Pode acontecer que dois ou mais tribunais se declarem todos competentes (conflito positivo) ou todos
incompetentes (conflito negativo). O conflito cessa logo que um dos tribunais se declarar competente,
no caso de conflito negativo, ou quando um só se declarar competente, no caso de conflito positivo
(art. 34º/2).

O conflito cessa por decisão dos próprios tribunais envolvidos no conflito. Só se os próprios
tribunais envolvidos não resolverem eles próprios o conflito é que intervém um outro órgão
jurisdicional competente para o decidir (arts. 11º e 12º).

⇒ Denúncia e resolução do conflito:

O conflito de competência pode ser suscitado pelo MP, pelo arguido ou pelo assistente, mediante
requerimento dirigido ao órgão competente para a resolução e deve ser suscitada oficiosamente pelo
tribunal logo que se aperceba da existência do conflito.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Em qualquer dos casos deve remeter-se ao órgão competente para decidir o conflito cópia dos atos e
todos os elementos necessários à sua resolução, com indicação do MP, do arguido, do assistente e dos
advogados respetivos (art. 35º/1).

O órgão competente para dirimir o conflito de competência é:

a) O Presidente do STJ relativamente aos conflitos entre secções do STJ (art. 11º/1 a));
b) Os presidentes das secções criminais do STJ relativamente aos conflitos entre relações, entre
estas e os tribunais de 1ª instância ou entre tribunais de 1ª instância de diferentes distritos
judiciais (art. 11º/6 a));
c) Os presidentes das secções criminais relativamente aos conflitos entre tribunais de 1ª
instância do respetivo distrito judicial (art. 12º/5 a)).

Recebida a denúncia, o órgão competente para dirimir o conflito envia os autos com vista ao MP e
notifica os sujeitos processuais que não tiverem suscitado o conflito para, em todos os casos, alegarem
no prazo de 5 dias (art. 36º/1). Seguidamente, depois de recolhidas as informações e as provas que
reputar necessárias, o órgão competente resolve o conflito (art. 36º/1).

A decisão sobre o conflito de competência é irrecorrível (art. 36º/2).

⇒ Recorribilidade da decisão sobre competência:

Sucede frequentemente que não se suscita qualquer conflito, mas se discute a questão da competência
do tribunal. Assim, por exemplo, o arguido suscita a questão da incompetência territorial e o tribunal
decide não se considerar incompetente. Neste caso não se suscita qualquer conflito a resolver nos
termos dos arts. 34º a 36º, mas da decisão do tribunal que conheça a questão da nulidade cabe recurso
nos termos gerais (art. 399º).

⇒ Remoção da competência:

Um dos casos em que a competência territorial é desviada para outro tribunal é o previsto no art. 23º.
Alguns outros casos estão previstos na lei – arts. 426º-A e 457º.

Em todos estes casos a remoção da competência é determinada para salvaguarda da imparcialidade


exigível aos tribunais.

É ainda com esta preocupação que o CPP prevê a possibilidade de remoção da competência dos
tribunais normalmente competentes para outros da mesma espécie e hierarquia: agora é em razão
de graves situações locais idóneas a perturbar o normal desenvolvimento do processo que se há de
proceder à transferência da competência do tribunal impedido para outro tribunal onde a obstrução
não exista.

Esses casos são os previstos no art. 37º:

a) O exercício da jurisdição pelo tribunal competente se revelar impedido ou gravemente


dificultado;
b) For de recear daquele exercício grave perigo para a segurança ou a tranquilidade públicas; ou

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

c) A liberdade de determinação dos participantes no processo se encontrar gravemente


comprometida.

Nestas situações, a competência é atribuída a outro tribunal da mesma espécie e hierarquia onde a
obstrução previsivelmente não se verifique e se encontre o mais próximo possível do tribunal
obstruído.

O pedido de remoção da competência pode ser da iniciativa do próprio tribunal obstruído, do MP,
do arguido, do assistente ou das partes civis. A decisão é da competência das secções criminais do
STJ (art. 38º/1).

A CRP estabelece que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada
em lei anterior (art. 32º/9 CRP), não impedindo, portanto, o desaforamento desde que o
condicionalismo em que pode verificar-se e o tribunal para que é removida a competência estejam
fixados em lei anterior à prática do facto, como sucede nos arts. 37º e 38º.

⭐ Impedimentos, Recusas e Escusas

A organização judiciária está estruturada na busca da independência do juiz e tutela do direito de


defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objetiva imparcialidade da jurisdição.

Para dar consistência efetiva à garantia de imparcialidade, além de estruturar o processo penal de
acordo com o princípio da máxima acusatoriedade possível, o legislador ordinário estabeleceu um
conjunto de impedimentos (arts. 39º e 40º) e suspeições (art. 43º), fundados em razões de dúvida de
diversa ordem sobre a imparcialidade da atuação do juiz e com regimes jurídicos distintos:

- Impedimentos – verifica-se a pura e simples impossibilidade de o juiz intervir num certo


processo penal, mediante previsão de circunstâncias que, sem mais e necessariamente, ditam
o seu afastamento, as quais são portanto declaradas independentemente de qualquer objeção
suscitada pelos participantes processuais à atuação do juiz no caso concreto;
- Suspeições – é apenas concedida aos sujeitos processuais a possibilidade de afastarem a
intervenção do juiz, nomeadamente, quando haja o risco de esta ser considerada suspeita,
por existir motivo, grave e sério, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

⇒ Impedimentos:

Os impedimentos encontram-se especificados nos arts. 39º e 40º com base em três ordens de razões:
a relação pessoal do juiz com algum sujeito ou participante processual; a intervenção anterior no
processo, como juiz ou noutra qualidade; e a necessidade de participar no processo como testemunha.

Tem-se entendido entre nós que a indicação dos motivos de impedimento é taxativa, por constituírem
eles exceções à regra da competência do juiz. Não revelará, no entanto, por exemplo, o art. 39º CPP lacunas
que devam ser preenchidas por recurso às normas paralelas do CPC, designadamente, as do art. 115º? Contra
a ideia pode logo avançar-se o argumento formal de que o CPP regulou a matéria expressamente, não
podendo pois falar-se aqui com propriedade de “lacunas”. Certo é, no entanto, que o art. 115º CPC é
mais lato, em alguns dos seus comandos, do que o art. 39º CPP; e não pode duvidar-se, por outro

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

lado, de que a necessidade de confiança comunitária nos juízes se faz sentir com muito maior força
em processo penal do que em processo civil.

Como se verá, a regulação processual penal não cobre expressamente variados casos em que o risco
de falta de parcialidade é tão gritante – por exemplo, a hipótese em que o juiz é o próprio ofendido –
que seria chocante, e não raro inconstitucional, conceber o catálogo dos impedimentos consignados
no CPP como taxativamente esgotante. Parece, pois, que uma razão tão premente como a da boa
administração da justiça penal e uma leitura do regime legal conforme com o previsto no art. 32º/5
CRP vivamente aconselham a que se integre, nesta parte, o CPP pela regulamentação contida no
CPC e que se mostre em concreto aplicável; como aconselha ainda a que se interpretem o mais
latamente possível os fundamentos referidos pelo art. 39º CPP (neste sentido, FD).

Deparamo-nos então com cinco distintas circunstâncias que ditam o impedimento do juiz para
intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coação prevista nos arts. 200º a 202º:

Tendo o juiz aplicado as medidas de coação de proibição e imposição de condutas (art. 200º), de
obrigação de permanência na habitação (201º) ou de prisão preventiva (202º) fica necessariamente
impedido de conhecer da causa em julgamento, recurso ou pedido de revisão.

Terá considerado o legislador que um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz que as aplica
um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade
do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em
julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.

Na opinião de FD, +ara além de esta premissa de que o legislador arranca ser destituída de sentido,
continuamos a confrontar-nos com um quadro teleologicamente contraditório e racionalmente
insustentável. Custa a entender que a ratio legis se considere ausente em caso de manutenção, e
não de aplicação, de alguma das medidas de coação constantes dos arts. 200º a 202º; ou, por
exemplo, na hipótese de aplicação de uma caução não por inexistência de fortes indícios do crime
imputado, mas porque o juiz concluiu que nenhuma daquelas medidas seria concretamente
necessária para responder às exigências de natureza cautelar postas pelo caso.

É ainda incompreensível a ausência de uma delimitação – como a introduzida pelo art. 134º da Lei
3/99, mas inexplicavelmente eliminada na revisão de 2007 do CPP – de tal aplicação às fases do
inquérito e da instrução, com o que, sem uma interpretação restritiva da norma, fica aberta a porta
ao absurdo de considerar impedido o juiz de julgamento que, pela primeira vez, aplica ao arguido
uma das medidas de coação previstas pelos arts. 200º a 202º.

b) Presidido a debate instrutório:

Por definição, o juiz de instrução que preside ao debate instrutório é aquele que tem a seu cargo a
prolação da decisão instrutória, com a qual se encerra a fase da instrução. Via de regra, competir-lhe-
á proferir despacho de pronúncia ou de não pronúncia do arguido, aí conhecendo do objeto do
processo e manifestando a sua posição sobre a probabilidade da condenação do arguido caso seja
submetido a julgamento.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Compreende-se, por isso, que a partir daí deixe de poder ser encarado como estando habilitado a
intervir em condições de plena neutralidade e isenção nas fases subsequentes do processo, onde se
joga diretamente a questão da condenação do arguido.

c) Participado em julgamento anterior:

A redação atual da al. c) do art. 40º parece ter pretendido substituir o segmento inicial da versão
originária do preceito – “Nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão
que tiver proferido ou em que tiver participado” –, através do qual, por razões óbvias, se visava impedir
que, em recurso, um tribunal ad quem integrasse um juiz que houvesse composto o tribunal a quo.

Essa preocupação elementar mantém-se acautelada na versão vigente do preceito, da qual se


depreende que não pode intervir no recurso o juiz que proferiu a decisão recorrida. Mas é agora
patente – até pelo paralelismo que pode traçar-se em relação à al. d) e pelo que se prevê no art. 426º-
A – que a al. c) procura cobrir um espectro mais amplo de participações anteriores no processo,
nomeadamente, a intervenção em julgamento de um juiz que haja participado em julgamento
anterior. Fá-lo, todavia, através de uma formulação com um significado literal tão lato que se
transforma em fonte de inarredáveis dúvidas e dificuldades, propiciando o aparecimento de
posições jurisprudenciais totalmente desencontradas.

Deste modo, numa compreensão teleológica da norma que atenda à ratio de salvaguarda da
imparcialidade que lhe deve estar subjacente e a compatibilize com a necessidade de garantir a
harmonia dos atos do processo entre si correlacionados, parece a FD que deve ela ser interpretada
restritivamente no sentido de apenas levar ao impedimento do juiz de 1.ª instância que depois de,
em sentença, ter conhecido do mérito da causa seja confrontado com um cenário de repetição
integral da audiência de discussão e julgamento.

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do


objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a al. a), ou proferido
ou participado em decisão de pedido de revisão anterior:

À semelhança do que se prevê na alínea c), esta alínea d) começa por dirigir-se àquelas situações em
que um juiz de um tribunal superior deva decidir, em recurso, questão relativa a um processo com
que já teve contacto em recurso anterior, tenha este recurso incidido i) sobre o mérito do decidido, a
final, na 1.ª ou na 2.ª instância, quanto ao objeto da causa, ii) sobre a decisão instrutória ou iii) sobre
a aplicação de uma das medidas de coação previstas nos arts. 200º a 202º CPP. Dirige-se ainda, em
segundo lugar, aos casos em que um juiz tenha intervindo num recurso de revisão anterior (art. 449º
e ss.).

Pela sua afinidade com a regulação das alíneas a) e c), voltam a suscitar-se aqui as perplexidades e as
dificuldades a que estas dão azo, devendo quanto a esta al. d) adotar-se uma abordagem restritiva
paralela àquela que FD sustenta para tais alíneas. Assim, por exemplo, não há razão para que devam
considerar-se impedidos os juízes da Relação que, conhecendo do objeto do processo, começaram por
confirmar a condenação proferida pela 1.ª instância e depois se veem de novo confrontados com a

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

causa, na sequência de anulação do seu acórdão pelo STJ com fundamento em omissão de pronúncia
ou de vício de fundamentação.

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma


sumaríssima por discordar da sanção proposta:

Introduzida na revisão de 2007 do CPP, esta última al. do art. 40º estabelece o impedimento do juiz
em três hipóteses que podem colocar-se no encerramento do inquérito e que reclamam uma
intervenção judicial. Embora o arquivamento em caso de dispensa de pena e a suspensão provisória
do processo possam ser decretados também na fase da instrução (arts. 280º/2 e 307º/1,
respetivamente), a sua eventual aplicação terá aí lugar na decisão instrutória, pelo juiz que presidiu
ao debate instrutório, cujo impedimento decorre já diretamente da al. b). A al. e) tem assim em vista
intervenções prévias do juiz no âmbito da fase do inquérito, especificamente daquelas que se
traduzam i) na recusa do arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º/1), ii) na recusa da
suspensão provisória do processo (art. 281º/1) ou iii) na recusa da forma sumaríssima do processo
por discordância em relação à sanção proposta pelo MP (art. 395º/1 c)).

A declaração de impedimento é feita pelo próprio juiz impedido por despacho nos autos,
oficiosamente ou a requerimento do MP, assistente ou do arguido ou das partes civis (art. 41º/1 e 2).
O despacho em que o juiz se declare impedido é irrecorrível. Do despacho em que ele não conhecer
impedimento que lhe tenha sido oposto cabe recurso com efeitos suspensivo (art. 42º/3).

Os atos praticados pelo juiz impedido são nulos, salvo se não puderem ser repetidos utilmente e se
verificar que deles não resulta prejuízo para a justa decisão do processo (art. 41º/3).

O impedimento acarreta apenas a incapacidade pessoal do juiz, não atingindo a competência do


tribunal e, por isso, a jurisdição no respetivo processo passa para o substituto legal do juiz (art. 46º).

⇒ Suspeições:

A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada não apenas pela categoria dos
impedimentos, como ainda também, complementarmente, pelo instituto das suspeições, que podem
assumir a natureza de recusa ou de escusa (arts. 43º a 45º):

- Recusa – suspeição oposta à intervenção do juiz pelo MP, pelo arguido, pelo assistente ou
pelas partes civis (art. 43º/3).
- Escusa – não estando o juiz autorizado a recusar-se a si próprio, declarando-se
voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante, conferida a possibilidade de suscitar perante
outro tribunal a suspeição que admite que possa recair sobre si, para assim ser dispensado de
intervir no processo (art. 43º/4).

Na densificação do que deva considerar-se uma suspeição determinante de afastamento do juiz do


processo deve atender-se à cláusula geral enunciada no n.º 1 do art. 43º: “a intervenção de um juiz no

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave,
adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

A cláusula geral de suspeição revela que a preocupação central que anima o regime legal é prevenir
o perigo de a intervenção do juiz ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade. Para
que a suspeição se atualize num afastamento do juiz, não é, com efeito, necessário demonstrar uma
sua efetiva falta de isenção e imparcialidade, sendo suficiente, atentas as particulares circunstâncias
do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa
ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial.
Consagra-se, desta forma, um critério que, com a generalidade da jurisprudência e doutrina alemãs,
pode qualificar-se como “critério individual-objetivo” de suspeição. Deparamos, portanto, com uma
solução eminentemente objetiva, mas direcionada à concreta atuação do juiz e/ou aos
condicionalismos que a rodeiam.

Na interpretação e aplicação da cláusula geral de suspeição, a jurisprudência nacional tem adotado


um crivo particularmente exigente e apertado, que, além do mais, atende à “quebra simbólica na
confiança que decorre da dúvida sobre a consistência do valor” da imparcialidade. Estando em causa
o princípio do juiz natural e a eficiência do funcionamento do sistema processual penal, não é
qualquer dúvida que possa eventualmente ser oposta em relação às condições do juiz para exercer a
sua função de modo isento e imparcial que, sem mais, deve ditar o seu afastamento. Como prevê o
n.º 1 do art. 43º, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave. Numa análise
casuística da nossa experiência jurisprudencial nesta matéria é possível identificar várias constelações
de suspeições que recorrentemente são submetidas à apreciação dos nossos tribunais superiores.

Muito frequente é a suscitação da recusa e sobretudo da escusa com fundamento no relacionamento


do juiz com outros sujeitos ou participantes processuais ou seus familiares.

A existência de uma amizade entre o juiz e o arguido ou o assistente é, via de regra, considerada razão
adequada a gerar desconfiança sobre a sua isenção. Já o mesmo não sucederá naqueles casos em que
o interveniente é um familiar próximo de um amigo do juiz. Ainda que o juiz não tenha uma relação
de amizade com um sujeito processual, se com ele manteve contactos a propósito do processo e lhe
prestou aconselhamento isso será, em princípio, suficiente para que não permaneça nesse processo.

Constituem outras causa de suspeição as atitudes dos magistrados reveladoras de prejuízo sobre a
culpabilidade do arguido, quer sejam manifestadas nos atos do procedimento (ex: quando o juiz diz
ao arguido ou testemunha que estão a mentir ou manifestar impaciência perante os atos de defesa ou
da acusação, quando estes se contenham dentro dos limites da lei) quer à sua margem (ex: juiz faz
declarações à comunicação social sobre a eventual culpabilidade do arguido ou se comporta em
termos que revelem influências exteriores) e bem assim as manifestações de inimizade ou
desconsideração por parte do juiz relativamente a qualquer dos sujeitos processuais ou seus
advogados.

Por último, o art. 43º/2 prevê expressamente como fundamento de recusa a intervenção do juiz
noutro processo ou em fases anteriores do mesmo, desde que, obviamente, essa intervenção possa
constituir motivo adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

O requerimento de recusa e o pedido de escusa devem ser apresentados, dentro dos prazos definidos
no art. 44º, perante o tribunal imediatamente superior àquele que é integrado pelo juiz em causa ou

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

perante a secção criminal do STJ, tratando-se de juiz a ele pertencente (art. 45º/1). Tratando-se de
uma recusa, é ouvido o juiz visado (44º/3) e deve o incidente ser decidido no prazo máximo de 30
dias sobre a sua apresentação (44º/5), sendo tal decisão irrecorrível (44º/6). No caso de ser declarada
a suspeição, o juiz recusado ou escusado remete de imediato o processo ao juiz que deva substituí-lo
(art. 46º).

O OBJETO DO PROCESSO

⭐ Conceito

O objeto do processo é, à semelhança do que sucede em processo civil, a matéria ou assunto de que o
processo trata que, por sua vez, é o crime (art. 1º/1 a) CPP).

Em processo penal, a questão da delimitação do objeto do processo atende às especialidades da


sequência processual e à natureza do pedido. Antes de formulada a pretensão em juízo (acusação), é
no próprio processo (inquérito) que o órgão titular do direito de ação penal investiga a notícia do
crime para procurar esclarecer o que se terá passado e, só depois, se tiver recolhido indícios de que
um crime foi praticado e quem foram os seus agentes, deduz uma acusação em juízo, uma pretensão
a que se costuma chamar ação penal.

A acusação em processo penal consubstancia a formulação de uma pretensão e a indicação da causa


dessa pretensão: a causa da pretensão é a alegação de que o acusado praticou um determinado facto
(um crime) e a pretensão é o pedido feito ao tribunal para aplicar ao acusado a sanção prevista na lei.
O tribunal há de julgar se os factos alegados na acusação foram ou não praticados pelo acusado
(apuramento dos factos) e verificada a existência dos factos aplicará depois ao acusado a medida
penal prevista para quem os tiver praticado.

Assim, o objeto do processo penal é constituído pelos factos alegados na acusação e a pretensão
nela formulada. Contudo, esta afirmação só é válida a partir da acusação, e antes dela já há processo.
Acontece, porém, que o objeto do processo antes da acusação é mais fluido, pode variar com o
decurso da própria investigação.

O objeto do processo pauta-se ainda por certos princípios:

o Princípio da identidade – o objeto do processo deve manter-se idêntico desde a acusação até
ao trânsito em julgado.

o Princípio da unidade e indivisibilidade – o objeto do processo deverá ser conhecido e julgado


na sua totalidade, unitária e indivisivelmente. Este princípio impede um fracionamento
artificial dos factos que são objeto do processo para, com eles, constituir processos autónomos.

o Princípio da consunção – a decisão sobre o objeto do processo definiu jurídico-criminalmente


e processualmente a situação em tudo o que podia e devia ser conhecido. Não pode, assim,
ser repetido. Está relacionado com os princípios do caso julgado e do ne bis in idem.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

o Princípio da vinculação temática – o juiz está vinculado pelos factos que constam do objeto da
acusação, apesar dos seus poderes de conformação. Este princípio é indispensável num
processo de estrutura acusatória.

⭐ A Estrutura Acusatória e o Objeto do Processo

No processo penal com estrutura acusatória, é pela acusação que se define o objeto do processo nas
fases jurisdicionais.

O processo de tipo acusatório caracteriza-se essencialmente por ser uma disputa entre duas partes –
a acusação e a defesa –, disciplinada e decidida por um terceiro – o juiz ou tribunal – que, ocupando
uma situação de independência relativamente ao acusador e ao acusado, não pode promover o
processo, nem condenar para além da acusação. A definição do thema decidendum pela acusação é,
pois, uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.

O art. 283º/2 dispõe sobre o formalismo que há de revestir a acusação, sob pena de nulidade. A acusação
tem de conter:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;


b) A narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma
medida de segurança e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção
que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis.

Em julgamento, se resultar provado que o arguido praticou os factos descritos na acusação e se se


verificarem os demais pressupostos de que depende a aplicação ao acusado de uma medida penal, o
tribunal decide sobre a espécie e medida da sanção a aplicar (art. 369º/2) e condena o arguido nessa
sanção – arts. 71º e 79º.

Temos assim que na acusação são indicados os factos que são submetidos a julgamento e aos quais o
tribunal fica vinculado e que a pretensão é formulada de modo genérico: pede-se ao tribunal que,
provados os factos acusados, aplique, em conformidade com a lei, a sanção que ao caso couber.

Refira-se que o pedido pode ser mais concretizado pela imposição de um limite máximo da sanção a aplicar
pelo tribunal, o que representa uma manifesta limitação aos poderes do tribunal.

⇒ Requisitos formais da acusação:

A doutrina tradicional dominante entendia e entende que o objeto do processo penal era composto
por comportamentos humanos concretos, sendo, pelo menos em princípio, irrelevante a qualificação
jurídica que lhes fosse dada, como irrelevante seria a pretensão formulada na acusação
(nomeadamente, CAVALEIRO FERREIRA).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

GMS, contudo, não crê que seja assim no CPP vigente, embora a jurisprudência e a doutrina
dominantes continuem fieis à orientação tradicional. Entende aquele autor que a pretensão da
acusação tem relevância na delimitação do objeto do processo. A partir da acusação, o objeto do
processo é a pretensão que se caracteriza quanto ao seu conteúdo substancial por duas dimensões:
uma dimensão qualitativa e uma dimensão quantitativa:

- Dimensão qualitativa – faz-se através da pessoa acusada, do arguido e dos factos típicos
descritos. Note-se que quando haja pluralidade de arguidos no mesmo processo, há tantas
pretensões autónomas, tantos objetos processuais quantos os arguidos.

- Dimensão quantitativa – faz-se pela pena pedida para o caso, pedido que é formulado
expressamente pela indicação concreta da sanção proposta (art. 394º/2), ou implicitamente na
acusação (neste caso, mediante a indicação das disposições legais incriminadoras aplicáveis)
ou em requerimento posterior, nos termos do art. 16º.

O MP pode, subsidiariamente, usando da faculdade que lhe é conferida pelo art. 16º/3, concretizar o
pedido, não apenas pela remissão para as disposições legais aplicáveis, como é regra, mas pela
determinação dos limites máximos da pena de prisão a aplicar no caso, quando esta seja em abstrato
superior a 5 anos. Também a pena proposta é concretamente indicada no requerimento de decisão
em processo sumaríssimo (art. 394º).

A aplicação de uma pena para além do pedido, nos casos em que esta pode ser concretizada, constitui
nulidade, por incompetência do tribunal, nulidade que pode ser conhecida até ao trânsito em julgado
da decisão final (arts. 32º/1 e 397º/3).

 A qualificação jurídica dos factos objeto da acusação:

Entre os requisitos da acusação estabelecidos no art. 283º/3, o CPP impõe, na al. c), a indicação das
disposições legais aplicáveis.

O objeto do processo corresponde à matéria sobre que ele versa, ao quid sobre que recai. O processo,
nas suas fases declarativas, recai também sobre a qualificação jurídica dos factos. A valoração ou
qualificação jurídica vai-se progressivamente elaborando no decurso do procedimento, sendo um tanto
fluida (como, aliás, a matéria de facto) até à acusação, mas devendo estabilizar-se na acusação (arts.
283º a 285º) ou no requerimento de instrução do assistente (art. 287º/2).

Da qualificação jurídica constante da acusação vai depender a pena aplicável e que é objeto da
pretensão constante da acusação.

Em função dessa qualificação feita na acusação é que se determina a competência material do tribunal
(arts. 13º a 16º). Também por força no disposto no art. 16º/3, o limite máximo da pena a aplicar pode
ser formulado na pretensão formulada pela acusação do MP, passando então o processo a ser da
competência do tribunal singular, mesmo que em razão da qualificação jurídica dos factos a pena

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

aplicável seja superior a 5 anos de prisão e, em consequência, segundo as regras gerais, o processo
devesse ser da competência do tribunal do júri ou do tribunal coletivo.

Outra importante consequência da qualificação jurídica dos factos feita na acusação é a possibilidade
concedida ao acusado de confessar integralmente e sem reservas, nos termos do art. 344º, o que implica
a renúncia à produção de prova relativamente aos factos imputados e passagem de imediato às
alegações orais e decisão sobre a sanção aplicável.

Pode a qualificação jurídica constante da acusação ser alterada livremente? Pode o tribunal alterar a qualificação
e aplicar pena mais grave do que a que resultava aplicável em função da qualificação feita pelo MP na acusação?

A doutrina maioritária tem considerado irrelevantes estas dificuldades, invocando geralmente o art.
358º/3, que equipara à alteração não substancial dos factos a alteração da “qualificação jurídica dos factos
descritos na acusação ou na pronúncia” e o art. 339º/4, que dispõe que a discussão da causa tem por
objeto os factos alegados e os que resultarem da prova produzida em audiência, “bem como todas as
soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou
da pronúncia”.

À dificuldade resultante de a alteração da qualificação jurídica implicar a competência do tribunal do


júri, uns autores omitem a objeção e outros consideram-na irrelevante com o argumento de que o
tempo próprio para requerer o júri ocorre necessariamente antes da alteração da qualificação
(nomeadamente, PPA). No entanto, afirma GMS, deste modo o erro de qualificação na acusação ou
na pronúncia condicionam o direito do arguido a requerer a intervenção do júri, dado que a
competência é fixada em função daquelas qualificações. Não entende assim este último autor como
é que o erro da acusação possa legitimar a privação de um direito do arguido.

Quanto à alteração da competência material, parece que a consequência lógica seria o tribunal
declarar-se incompetente, nos termos dos arts. 32º/1 e 33º (neste sentido, PPA). Contudo, GMS sustenta
que tal solução oferece dificuldades lógicas, porque então seria o tribunal materialmente
incompetente a formular um juízo de qualificação. Ou seja, o tribunal é materialmente incompetente
para julgar o crime a que corresponda em abstrato uma determinada pena, mas já é competente para
julgar que àqueles factos corresponde outra qualificação jurídica que determina uma pena para a qual o
tribunal é incompetente. Por outras palavras, o tribunal é materialmente incompetente para julgar os
factos com a nova qualificação, mas seria competente para julgar que os factos devem ser qualificados
de modo a que o tribunal seja incompetente.

Também em resposta à dificuldade relacionada com a confissão do arguido (art. 344º), PPA não vê
que exista qualquer incongruência, porque “a confissão do arguido reporta-se aos factos e não à qualificação
jurídica dos mesmos, pelo que não há um direito do arguido à imodificabilidade da qualificação jurídica
dos factos após a acusação”. GMS responde que a objeção é formalmente correta, mas esquece que a
confissão não tem de corresponder à verdade dos factos, mas à conveniência do arguido que, por
isso, só pode confessar em razão da pena aplicável resultante da qualificação na acusação ou na
pronúncia.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

É verdade que a norma incriminadora é exterior ao facto, mas é por referência à norma que se
determina o sentido de desvalor do comportamento. Os tipos garantem a segurança, não permitindo
a punição de factos que lhe não correspondam, e determinam o valor que lhes cabe na apreciação
jurídica.

A referência ao tipo legal incriminador constante da acusação representa, assim, a significação jurídica
do facto imputado ao arguido e que dele deve conhecer ou não desconhecer censuravelmente.

A culpa, por sua vez, pode ser considerada como o facto jurídico que contraria a norma jurídica na
sua função imperativa; a formar a culpa concorre a consciência do facto típico, mas ainda a
consciência da antijuridicidade, revelada, num primeiro momento, pelo tipo incriminador. É por
isso que também a consciência da ilicitude do facto imputado é objeto de julgamento, como é objeto
de julgamento a culpa do arguido, o que pode pressupor a consciência do sentido da norma.

Dúvidas não restam de que a admissibilidade sem limites da alteração da qualificação representa
uma grave limitação aos direitos de defesa e a frustração de direitos constitucionalmente
garantidos, como o de ser julgado pelo tribunal do júri. É por isso que GMS sustenta uma
interpretação restritiva do art. 16º/3, que passa pela limitação da pena à que era consentida pela
qualificação jurídica inicial.

⭐ A Limitação dos Poderes Cognitivos do Tribunal pelos Factos e sua Qualificação Jurídica
constantes da Acusação

É pacífica a aceitação da limitação dos poderes de cognição do tribunal aos factos constantes da
acusação, como exigência da defesa. É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos
na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos arts. 358º e
359º (art. 379º).

Já no que respeita à significação jurídica dos factos que faz também parte do objeto do processo,
muitos entendem que a limitação do tribunal à qualificação que lhes determina o sentido valorativo
violaria princípios fundamentais da jurisdição, nomeadamente de valor constitucional.

Já na defesa da solução consagrada no art. 447º do antigo Código, BELEZA DOS SANTOS entendia
que “seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de
apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e
vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que
pronunciou”.

Contudo, e como bem aponta GMS, não se entende por que razão será vexatório para o tribunal ficar
vinculado a uma dada qualificação jurídica dos factos e não o ser quando fica vinculado à apreciação dos
factos constantes da acusação. Tanto a limitação resultante da vinculação aos factos da acusação quanto
a resultante da vinculação à qualificação jurídica dada a esses factos constituem limitações ao objeto
de cognição do tribunal. Acresce que, por força do art. 16º/3, o tribunal pode ainda ficar vinculado a um
limite máximo da pena a aplicar no caso.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Ora, num processo penal com estrutura acusatória, o que se solicita ao tribunal é a apreciação da
verdade judiciária de uma dada alegação de facto feita na acusação e a aplicação ao arguido, a quem
se imputa a prática do facto alegado, de uma dada sanção permitida por uma determinada norma
que incrimina o facto. Assim, o tribunal limitar-se-á a julgar a existência dos pressupostos do crime
acusado (de todos os pressupostos e não apenas de alguns) e da admissibilidade do pedido.

Se o acusador omitiu um elemento essencial do facto típico, o tribunal, ainda quando disso se
aperceba, nada pode fazer, i.e., não pode completar a acusação, integrando-a com o elemento em
falta. Apenas o poderá fazer com o acordo dos demais sujeitos processuais ou usando dos meios
processuais estabelecidos nos arts. 358º e 359º. Isso não significa, porém, que o erro se imponha ao
tribunal; o que sucede é que a lei apenas permite que o tribunal julgue o facto que lhe foi submetido e que
é objeto da ação.

Por que razão a solução há de ser diversa quando o elemento do objeto do processo, relativamente ao
qual existe o erro, for agora um outro elemento essencial do crime atinente à culpabilidade e à significação
jurídica do comportamento e que se traduz num outro facto também objeto da acusação – a consciência da
ilicitude do comportamento?

Acresce que a problemática da qualificação jurídica dos factos pode e deve ser encarada numa
perspetiva de facto. Com efeito, enquanto a consciência da ilicitude do facto é agora elemento
essencial da culpabilidade e a culpabilidade é pressuposto essencial da punibilidade, a consciência
da ilicitude é também um elemento do crime que há de ser objeto de prova, e é também um facto
processual incluído no thema probandi.

O agente, para poder ser punido a título de dolo, tem de ter tido consciência da ilicitude do seu
comportamento. Este conhecimento é por isso também pressuposto da punição a esse título e
necessariamente objeto de prova no processo. Em muitos casos, a ilicitude do comportamento só
pode aferir-se por referência às normas incriminadoras, e daí a necessidade, sob pena de nulidade,
de essas normas serem indicadas na acusação.

Por exemplo, no denominado concurso ideal, sem a indicação das normas incriminadoras
consideradas não é possível saber qual o sentido da acusação: o agente pode ser acusado por um dos
crimes em concurso e não o ser pelo outro ou outros. E poderá o tribunal condená-lo por todos? GMS
entende que não.

Os factos naturalísticos descritos na acusação só têm relevância enquanto têm uma significação de
desvalor jurídico, constituem um comportamento criminoso pressuposto da sanção, mas o
comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado
jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objetiva, importa também a culpabilidade e
para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objetivamente ilícitos.

O arguido tem assim não só de defender-se dos factos materiais que constituem os elementos do facto
típico, mas também da imputação subjetiva. E não se trata apenas de defesa: é necessário fazer prova
em audiência de julgamento de que o arguido teve consciência do sentido da ilicitude do seu
comportamento, para o que é necessário alegar os factos pertinentes na acusação.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 GMS discorda assim da tese de FREDERICO ISASCA, segundo a qual a requalificação


jurídica, expressão da independência dos tribunais, não ofende minimamente o estatuto
processual ou os direitos do arguido, e quando o tribunal de julgamento qualificar os factos,
objeto do processo, de forma diversa da que conste dos autos, o momento processual
adequado para comunicar ao arguido essa requalificação é a leitura da sentença. Ou seja,
daqui decorre que o arguido não tem uma palavra a dizer sobre a alteração da qualificação; pelo que
esta tese é, no mínimo, inaceitável.

A referência à norma revela o bem jurídico tutelado e os limites em que o bem jurídico é tutelado
pelo direito penal e o que a lei penal exige é o conhecimento da proteção penal desse interesse, e dos
termos em que é protegido, do desvalor jurídico do comportamento objeto da acusação. Ora, para
esse conhecimento, para que o agente tenha conhecimento da ilicitude do seu comportamento, não é
de exigir necessariamente o conhecimento da norma proibitiva, mas exige-se a consciência da existência da
proteção penal do interesse violado.

A norma indicada na acusação dá o critério de valoração, revelando ao acusado que é em função do


desvalor penal que aquela norma traduz que é requerido o seu julgamento. Enquanto a variação do
tipo incriminador não implicar a alteração do critério essencial de valoração do interesse, o arguido
não fica defraudado no seu direito de defesa. Ainda assim, qualquer alteração, ainda que não essencial,
por poder ter implicações no direito de defesa, deve ser também comunicada ao arguido e ser-lhe
concedido tempo para a preparação da sua defesa (art. 358º).

É que, como ensina CASTANHEIRA NEVES, as incriminações penais são descontínuas e, por isso, a
alteração da qualificação jurídica do comportamento implica sempre, necessariamente, uma alteração
do contorno objetivo dos factos.

Assim, não estaremos perante uma diversidade essencial de qualificação quando da diversidade do
tipo incriminador não resulte uma alteração essencial do sentido da ilicitude do comportamento do
arguido. E é o que resulta geralmente das normas que mantêm entre si uma relação de especialidade.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE discorda da tese avançada por GMS, sustentando que, se é
verdade que a consciência da ilicitude pode ser objeto da prova nos casos especiais dos arts. 16º/1 1ª
parte e 17º CP, também é verdade que a consciência da ilicitude não se identifica com uma consciência da
qualificação jurídica, que é, no entanto, o verdadeiro pressuposto da tese de GMS. Por outro lado, a
liberdade de qualificação jurídica é uma conquista da civilização moderna; a liberdade de dizer o
direito com independência é, de resto, uma das essentialia da função jurisdicional (Ac. TC n.º 22/96).

Além do mais, entende PPA que a vinculação do tribunal nos termos do art. 16º/3 não tem qualquer
repercussão na sua liberdade de qualificação jurídica na audiência de julgamento. No caso de mera
alteração da qualificação jurídica na audiência de julgamento que implique a imputação de crime
punível com pena superior a 5 anos de prisão, o tribunal deve conhecer do objeto do processo mas não
pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos (salvo tratando-se exclusivamente de crimes previstos
no art. 16º/2 a), caso em que o pode fazer). Diferentemente, o MP pode usar da faculdade prevista no
art. 16º/3, em requerimento posterior à acusação, quando se verifique uma alteração substancial de
factos (não autonomizáveis) na audiência de julgamento que implique a imputação de crime punível
com pena superior a 5 anos de prisão.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Não usando o MP desta faculdade, o tribunal singular deve declarar-se incompetente e remeter os
autos ao tribunal coletivo. Usando o MP desta faculdade, o tribunal singular mantém a sua
competência, mas não pode aplicar pena superior a 5 anos de prisão (salvo tratando-se dos crimes
previstos no art. 16º/2 a)).

Já a confissão do arguido reporta-se a factos e não à qualificação jurídica dos mesmos, pelo que não
há um direito do arguido à imodificabilidade da qualificação jurídica dos factos após a confissão. A
posição processual do arguido é protegida pelo dever do tribunal de comunicação prévia da alteração
da qualificação jurídica dos factos confessados.

⭐ Alteração do Objeto do Processo

⇒ Conceito:

A alteração é, em regra, irrelevante na fase de inquérito, pelo menos no que respeita aos crimes
públicos, mas já releva na fase da instrução (art. 303º) e na fase de julgamento (arts. 358º e 359º).

Na fase de inquérito, em princípio, é irrelevante porque nesta fase se cuida tão só de indagar a notícia
do crime, de lhe definir os contornos, recolhendo elementos de prova que permitam reconstruir
historicamente o crime em ordem à formulação da acusação. Só finda a fase de inquérito é que é
formulada a acusação, sendo caso disso, pelo que só a partir de então é que a identidade do processo
releva também para efeitos de defesa.

Na fase de instrução já é relevante porque a alteração significa a alteração do objeto do processo em


caso de pronúncia.

Na fase de julgamento importam todas e quaisquer alterações, pois qualquer que seja a natureza da
alteração pode ter relevância na punição e na medida. Os efeitos é que são diferentes, pois que
relativamente às alterações não substanciais apenas têm de ser comunicadas ao arguido para que
possa defender-se (art. 358º), já quando se tratar de alterações substanciais o tribunal não pode tomá-
las em conta para efeito de condenação (art. 359º).

⇒ Alteração substancial e alteração não substancial:

Alteração dos factos descritos na acusação:

O art. 1º, al. f) define o que se deve entender por alteração substancial dos factos: “aquela que tiver por
efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Se da alteração dos factos da acusação resultar a imputação de crime diverso, o tribunal não pode
atender aos novos factos, salvo acordo do MP, do assistente e do arguido para que o processo continue
pelos novos factos, desde que estes não determinem a incompetência do tribunal.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Tratando-se de alteração não substancial, vale o art. 358º: neste caso, o presidente do tribunal,
oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o
tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

Note-se, contudo, que crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso: o mesmo juízo
de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos que, mantendo em comum o juízo
de ilicitude, divergem apenas na sua quantidade, não na essência, mas na gravidade. É a este segundo
aspeto que atende a parte final do art. 1º/1 f), quando considera que há alteração substancial ainda
quando se mantenha o mesmo crime, desde que resultem agravados os limites máximos das sanções
aplicáveis. Será, por exemplo, o caso de o arguido ter sido acusado por um crime simples e da prova
produzida em julgamento resultar que se trata de um crime qualificado.

O crime será o mesmo, ou seja, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado
seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos
essenciais não divergirem. Se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico
descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades de ação, pode o evento material não ser
inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e o elemento
subjetivo que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a
mesma.

O crime também não será materialmente diverso quando apenas variarem as formas de execução do
crime ou as modalidades de autoria ou comparticipação, desde que os atos acusados e apurados
possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico, ou seja, na expressão de CASTANHEIRA
NEVES, desde que esteja “em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo
do caso concreto”.

PPA entende que o juiz pode estar em erro sobre a comunicação. Se o juiz comunicar uma alteração
não substancial dos factos, concedendo a palavra ao arguido, que nada requereu, quando se tratava
verdadeiramente de uma alteração substancial, verifica-se mera irregularidade, logo sanada, porque o
arguido, como os demais sujeitos processuais, assentiram no prosseguimento dos autos pelos novos
factos e crimes.

Alteração da qualificação jurídica:

Pode colocar-se a questão de saber se com a alteração do CPP, operada pela Lei n.º 59/98, que
acrescentou o n.º 3 ao art. 358º, toda e qualquer alteração da qualificação jurídica passou a significar
apenas uma alteração não substancial ou a ela equiparada. GMS entende que não.

A alteração da qualificação jurídica só deve ser considerada ou equiparada à alteração não substancial
dos factos da acusação quando não implique a imputação ao arguido de um crime substancialmente
diverso, ou seja, quando o sentido da acusação se mantiver o mesmo, ainda quando diversa na sua
gravidade.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Com efeito, a mutação essencial do sentido equivaleria a uma mutação fundamental de situação e,
portanto, de caso concreto, com o que seriam anuladas todas as garantias que o objeto processual se
propõe oferecer.

o Por exemplo, suponha-se que o arguido é acusado por um crime punível com pena cujo limite
máximo são 8 anos de prisão. Em julgamento, o tribunal considera poderem os factos descritos
na acusação ser constitutivos de crime punível com pena de prisão até 10 anos. Nesta hipótese,
o arguido tinha o direito de requerer o julgamento pelo júri. Pode o erro de qualificação da
acusação retirar ao arguido aquele direito? Se assim pudesse ser, estaria aberta a porta a todos os
abusos.
o Outro exemplo: o arguido é acusado de crime punível com pena de prisão até 5 anos. Na sua
estratégia de defesa considera conveniente confessar integralmente e sem reservas, contando
que em razão da punibilidade do crime objeto de acusação é admissível e provável a
suspensão da pena que vier a ser aplicada. Depois da confissão, o tribunal considera que o
crime é punível com prisão até 8 anos, por exemplo, por ser um crime qualificado. Terá algum
significado prático, em termos de defesa, o arguido vir retratar-se?

GMS apresenta, assim, uma proposta de interpretação da lei, que, segundo entende, obsta às
dificuldades referidas. Esta proposta passa por considerar que a qualificação jurídica dada aos factos
na acusação fixa o limite quantitativo da pena a aplicar no processo, ou seja, o tribunal não pode
aplicar pena mais grave do que a que resultaria se a qualificação fosse correta. O tribunal pode
qualificar diversamente os factos, desde que não altere o sentido da acusação, mas do mesmo modo que a
alteração não substancial dos factos – a que é por lei equiparada a alteração da qualificação jurídica –
não envolve alteração da medida aplicável, também assim deve ser com a mera alteração da
qualificação jurídica.

Também a disciplina do art. 16º/3 e 4 aponta neste sentido, porque neste caso, se tiver havido errada
qualificação jurídica, a pena não pode ser nunca superior à da competência do tribunal singular.

Nesta interpretação, as dificuldades apontadas relacionadas com a incompetência material do


tribunal e com o recurso ao tribunal do júri ficam superadas, porque não havendo alteração dos
limites da pena aplicável, não se coloca a questão da incompetência material do tribunal nem a
possibilidade de requerer a intervenção do tribunal do júri.

Já PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE sufraga outra posição, sustentando que nem as garantias de
defesa, nem o princípio do contraditório exigem que o tribunal permaneça vinculado à qualificação
dada ao facto pelo MP, antes a independência dos tribunais postulando precisamente a liberdade
da qualificação jurídica.

Refere ainda que a questão da qualificação jurídica também se pode colocar no tribunal de recurso.
O Ac. do STJ n.º 4/95 fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que o tribunal superior pode em
recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada no tribunal recorrido, mesmo
que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus. Esta jurisprudência
deve, contudo, ser submetida ao mesmo condicionamento que vale na primeira instância: o arguido

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

tem de ser prevenido da possibilidade de o tribunal superior vir a qualificar os factos de forma
diferente do que fizera o tribunal de primeira instância. Esta jurisprudência está agora consagrada no
art. 424º/3.

⇒ Artigo 359º/3:

Este alargamento do objeto do processo só pode dizer respeito aos arguidos que tenham sido
acusados ou pronunciados, não prejudicando os arguidos em relação aos quais foi proferido
despacho de arquivamento ou de não pronúncia, e muito menos pessoas que não foram constituídas
como arguidos no processo.

Quando os factos novos são autónomos dos da acusação e da pronúncia, o MP iniciará uma
investigação em separado relativamente a eles caso o arguido não tenha dado o seu acordo ao
alargamento do objeto do processo, mas se os factos novos forem indissociáveis dos da acusação e
da pronúncia, o arguido não terá interesse em dar o seu consentimento e o tribunal não poderá
conhecer deles.

Na audiência de julgamento perante o tribunal singular, a alteração substancial dos factos pode
determinar a incompetência do tribunal singular quando se indiciar a prática de crime punível com
pena superior a 5 anos de prisão.

Existem dois critérios para determinar a alteração substancial dos factos:

1. Qualitativo (crime diverso) – existe uma história nova, logo o arguido tem que se preparar
novamente;
2. Quantitativo (agravamento dos limites máximo da moldura abstratamente aplicável).

Pode fazer-se uma de duas coisas:

- Acordo entre o MP, arguido e o assistente, com a continuação do julgamento com os factos
novos, caso não determinem a incompetência do juiz (art. 359º/3 no julgamento e por analogia
na instrução). O acordo do arguido deve ser dado pessoalmente ou pelo seu defensor, munido de
poderes especiais para o efeito. Segundo PPA, o silêncio do arguido não vale como acordo
para continuação do julgamento quando o tribunal comunica ao arguido estar-se perante uma
alteração não substancial dos factos descritos na acusação, mas se trata de uma alteração
substancial dos factos. A concordância do arguido deve ser expressa, incondicional e clara.
Havendo acordo, quer os factos novos autonomizáveis quer os não autonomizáveis serão
investigados no processo em curso.

- Não há acordo; temos que definir se são autonomizáveis ou não:


a. Se forem autonomizáveis:

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 De acordo com PPA, os factos autonomizáveis devem ainda ser uma variação dos que
constituem o objeto daquele processo concreto; ou seja, devem ainda incluir-se no âmbito
do mesmo facto histórico unitário;
 Originam a abertura de um novo inquérito;
 Possibilidade de os desligar dos factos que já constituem o objeto do processo;
 Não prejudicam o processo em curso, iniciando-se um outro;
 Não pode violar o princípio ne bis in idem (que ninguém seja julgado, em todo ou em
parte mais do que uma vez pelos mesmos factos – PSM);
 Instrução: devem ser destacados do processo em curso e dar lugar à abertura de
inquérito noutro processo penal, ressalvadas as exceções dos crimes semipúblicos e
particulares (art. 303º/4). Se houver pronúncia, esta será nula (art. 309º/1 e 2).
 Julgamento: comunicados ao MP, vale como denúncia (art. 355º/2). A sentença será
nula (art. 379º/1 b)).

b. Se forem não autonomizáveis:


 São factos insuscetíveis de valoração jurídico-penal separados do processo penal em
que foram descobertos (GMS).
 Não havendo acordo, os factos novos autonomizáveis em relação ao objeto do processo
serão investigados em inquérito autónomo.
 Instrução: os factos novos não podem ser tomados em conta pelo tribunal para o
efeito da pronúncia em curso, nem implica a extinção da instância (art. 303º/3). Se
houver pronúncia, esta será nula (art. 309º/1 e 2).
 Julgamento: os factos novos não podem ser tomados em conta para o efeito da
condenação, nem implica a extinção da instância (art. 359º/1). A sentença será nula
(art. 379º/1 b)).
 Existem quatro teses sobre o que acontece ao processo:
1. Tese da continuação do processo, com preterição absoluta de conhecimento
(PSM, TQB e FP) – prossegue-se os trâmites do processo ignorando-se os factos
novos, sacrificando assim, e de forma parcial, o conhecimento da verdade
material.
2. Tese da organização de um novo processo com todos os factos – absolvição da
instância (SILVA DIAS e SOUTO MOURA) – recorre-se às normas do CPC e
aplica-se o regime da absolvição da instância (art. 288º CPC ex vi art. 4º CPP) para
se considerar a existência de uma exceção dilatória inominada (arts. 289º, 493º/2 e
494º CPC), devido à falta de um pressuposto processual (art. 303º/3). O MP deve
abrir um novo inquérito com todos os factos.
3. Tese da repetição do inquérito (FREDERICO ISASCA) – aplica-se o regime da
suspensão da instância (arts. 276º/1 c) e 279º/1 CPC ex vi art. 4º CCPP). Ordenada
a suspensão haveria lugar à repetição do inquérito, findo o qual o MP concluía
pela suficiência de indícios e deduzia acusação com todos os factos ou não
concluía nesse sentido e mantinha a acusação anterior aos factos.
4. Tese da anulação do processo (JORGE NORONHA SILVEIRA): na falta de caso
análogo dever-se-ia recorrer à norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

de legislar dentro do espirito do sistema (art. 10º/3 CC) – trata-se de uma nulidade
insanável (art. 119º/d)) ou dependente de arguição (art. 120º/2 d)).

Seguindo o entendimento de PPA, podem verificar-se três situações:

1) Se o MP não fizer uso da faculdade do art. 16º/3, na audiência de julgamento, o tribunal deve
proferir decisão, julgando-se incompetente (também neste sentido, TQB).
2) Se o MP fizer uso da faculdade do art. 16º/3, na audiência de julgamento (e os sujeitos
concordarem com o alargamento do objeto do processo), o tribunal pode proferir sentença
sobre todos os factos, incluindo os factos novos, mas só pode aplicar pena de prisão até 5
anos.
3) Se o MP já fez uso da faculdade do art. 16º/3, na acusação, o MP deve confirmar ou infirmar
na audiência de julgamento o seu anterior juízo em face dos factos novos. Em função deste
juízo, duas subhipóteses de abrem:
a. Caso o MP mantenha o juízo feito na acusação (e os sujeitos concordarem com o
alargamento do objeto do processo), o tribunal singular pode conhecer todos os factos,
incluindo os factos novos, mas não pode aplicar pena superior a 5 anos de prisão.
b. Caso o MP não mantenha o juízo feito na acusação, o tribunal singular deve proferir decisão
de incompetência e remeter o processo para o tribunal coletivo. Em face dos factos novos,
o MP pode, portanto, entender que já não se verificam os pressupostos materiais que
justificaram a sujeição dos factos a julgamento por tribunal singular e a aplicação de pena
até 5 anos de prisão.

O Tribunal da Relação tem o poder de conhecer de factos novos, constituam eles alteração substancial
ou não substancial da acusação. A alteração substancial ou não substancial dos factos pode ter lugar
na Relação em qualquer dos casos do art. 431º, desde que tenha havido impugnação da matéria de facto.

A decisão do juiz que considera os factos novos autonomizáveis e os comunica ao MP é recorrível,


subindo o recurso em separado, de imediato e com efeito suspensivo do processo (arts. 406º/2, 407º/1
e 408º/3).

A decisão do juiz que considera os factos novos não autonomizáveis e determina que eles não podem
ser tomados em conta pelo tribunal é recorrível, subindo o recurso nos próprios autos e com o recurso
interposto da decisão que tiver posto termo à causa (arts. 406º/1 e 407º/3).

Se o juiz omitir o cumprimento do art. 359º verifica-se uma nulidade do art. 120º/2, al. d). Este vício
pode ter duas consequências em relação à sentença: (i) se o juiz conhecer dos factos novos sem
respeito pelo art. 359º, há nulidade da sentença (art. 379º/1 b)); (ii) se o juiz não conhecer dos factos
novos, há nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art. 379º/1 c)).

⇒ Crimes alternativos:

Trata-se dos casos em que a matéria da ASF implica a subsunção dos factos num tipo legal de crime
alternativo – os factos, em alternativa, preenchem dois tipos de crime; mas só se pode acusar por um

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

ou outro. Por exemplo, furto e abuso de confiança: num caso, subtraiu e, no outro, apropriou-se. Não se
consegue decidir se houve uma subtração ou uma apropriação de um bem móvel de outrem. Não se
discute que a coisa não lhe pertence, apenas se discute como é que ele ficou com a coisa.

Existe uma lacuna na lei quanto à forma de resolução nos casos em que há crimes alternativos: dois
tipos de crime cujos elementos são incompatíveis entre si; contudo, correspondem ao mesmo
momento histórico. A jurisprudência, inclusive a do TC, não tem tido na devida conta estes crimes
alternativos.

Na Alemanha tem-se admitido uma verificação alternativa; admite-se que alguém seja condenado em
alternativa, numa única pena, num dos crimes. Não conseguindo esclarecer os factos, admite-se esta
situação.

A doutrina procura, assim, encontrar uma solução adequada para as situações de crimes alternativos:

o AUGUSTO SILVA DIAS e PSM sustentam que deve haver absolvição da instância. Este
último autor afirma que, nestes casos, a continuação do processo com preterição absoluta de
conhecimento da alteração substancial de factos redundaria numa decisão de mérito de
conteúdo absolutório, pois resultava da prova produzida em audiência que o arguido não
realizara a atividade descrita no libelo, mas outra, igualmente punível, só que não constante
da acusação e pela qual não poderia ser condenado no processo em curso. O arguido também
não poderá ser julgado em processo autónomo, sob pena de violação do caso julgado material
e do princípio do ne bis in idem. Assim, a solução é absolver sem comprometer o ne bis in idem;
o processo não pode seguir, pelo que haverá lugar a uma não pronúncia e absolvição.
TQP e JGC não concordam, pois tal implica a extinção da instância – o juiz não conhece do
mérito da causa mas põe fim à instância em curso, iniciando-se um novo processo para
conhecer de todos os factos, aproveitando-se todas as provas e elementos que sejam possíveis
aproveitar. O Prof. ASD, para sustentar a sua posição aplica os artigos correspondentes do
CPC (por via do art. 4º CPP): arts. 278º, 279º e 576º. Contudo, estes artigos vão conflituar com
os arts. 359º e 303º CPP.

o TQB entende assim que a solução mais equilibrada e compatível com o sistema é a de JGC,
que propõe uma mera suspensão da instância: permanece-se no mesmo inquérito,
aproveitando-se tudo o que se puder aproveitar, anulando-se apenas o que for absolutamente
indispensável. Trata-se de uma nulidade atípica do objeto, pelo que se aplica analogicamente
o art. 120º/2, al. d), devendo o JIC fazer despacho de não pronúncia. Regressa-se assim à fase
de inquérito, no âmbito do processo penal pendente, para conhecer todos os factos em
conjunto, aplicando a anulação do processado por analogia. Isto porque, em rigor, o que
temos é uma insuficiência do inquérito, que não abrangeu todos os factos em conjunto (e estes
têm de ser apreciados em conjunto, dado que não são autonomizáveis).
PSM discorda, mas admite a aplicação analógica do art. 120º/2, al. d).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Correlação entre a acusação e a sentença:

A definição do objeto do processo tem a ver com esta correlação que é necessária para garantir uma
defesa eficaz.

O acusado defende-se na acusação e por isso não pode ser surpreendido com alterações de factos ou
qualificações jurídicas relevantes para a sua defesa. A plenitude da defesa implica que a sentença só
possa incidir sobre factos constantes da acusação notificada ao acusado e, por consequência, o
julgamento, a sentença, não pode incidir sobre factos não contidos no processo, constituindo
precisamente o seu objeto.

A regulamentação rigorosa do objeto do processo, mormente a partir da acusação, é imprescindível


ao exercício pleno do direito de defesa que é uma das exigências do processo de estrutura acusatória,
do processo democrático, e que a nossa Constituição garante com a máxima amplitude (art. 32º/1
CRP).

PROVA

A prova é um conceito polissémico. Enquanto atividade probatória, a prova é o esforço metódico


através do qual são demonstrados os factos relevantes para a existência do crime, a punibilidade do
arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis (art. 124º/1).

Enquanto meio de prova, a prova é o elemento com base no qual os factos relevantes podem ser
demonstrados.

⭐ Princípios

⇒ Princípio da investigação/verdade material:

Sem prejuízo de este princípio valer igualmente na fase de instrução (arts. 289º/1 e 290º/1), o
princípio da investigação tem consagração expressa num dos artigos da audiência de julgamento (art.
340º/1), segundo o qual o tribunal ordena oficiosamente a produção de todos os meios de prova cujo
conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

Este princípio vem opor-se ao princípio do dispositivo ou da verdade formal, de acordo com o qual
a acusação e a defesa, enquanto partes processuais, disporão do processo, cabendo-lhe a elas carrear
para o processo os factos e provas correspondentes (autorresponsabilidade probatória). Portanto, um
processo em que vigore o princípio da investigação irá desenrolar-se de forma diferente, uma vez que
a passividade do juiz dá lugar a um juiz com o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto
submetido ou a submeter a julgamento, independentemente das contribuições da defesa, dos sujeitos
processuais ou das partes.

Tem expressão em vários artigos: 154º/1, 164º/2, 174º/3, 288º/4, 289º/1, 290º/1, 348º/5 e 354º CPP.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Princípio da livre apreciação da prova – art. 127º CPP:

Ver supra (parte dos princípios relativos à prova).

⇒ Princípio da legalidade da prova – art. 125º CPP:

Nos termos do art. 125º, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Todavia, a
liberdade de escolha dos meios de prova a utilizar no processo é ilusória. Isto porque a lei estabelece
um catálogo de meios de prova típicos (Título II do Livro III). No fundo, este artigo, apesar da sua
redação simples, é bastante complexo. No fundo, são admitidas todas as provas que não sejam
proibidas por lei. No entanto, a interpretação que é feita a este artigo não é líquida e há várias teses
que se contrapõem quando se fala da legalidade da prova.

Assim, segundo PAULO SOUSA MENDES, a não taxatividade dos meios de prova que o art. 125º
estabelece respeita apenas a meios de prova não previstos, não podendo significar liberdade
relativamente a meios já disciplinados.

TQB afirma que temos de saber interpretar o art. 125º CPP. Mais afirma que este preceito tem sido
muito mal utilizado por parte da doutrina e jurisprudência. Com efeito, há doutrina e jurisprudência
que defende, com base neste artigo, que tudo o que não é proibido é permitido, pelo que todos os
meios de obtenção de prova atípicos seriam permitidos.

PSM, por seu turno, aponta que não é por acaso que o preceito refere legalidade da prova e não
tipicidade da prova; com efeito, este artigo pode induzir em erro porque dispõe que “podem ser
admissíveis as provas que não forem proibidas por lei“. No entanto, não se pode ignorar que a sua epígrafe
refere legalidade da prova, que é diferente de tipicidade da prova.

Assim, a única liberdade que o art. 125º deixa é a de escolha dos meios de prova e de obtenção de
prova típicos que sejam mais adequados ao caso concreto, sendo certo que existem vários limites
negativos. Ou seja, podemos admitir um meio de prova que não caiba num dos meios de prova típicos
(testemunhal, documental, por acareação, etc.), mas numa condição: esse meio atípico de prova
(elemento que serve para demonstrar factos relevantes para a decisão) nunca pode ser obtido através
de métodos proibidos de obtenção de prova, que são os que resultam dos arts. 32º/8 CRP, 34º/1 e 4
CRP.

Quando falamos em métodos proibidos de prova já não falamos de legalidade de prova, mas sim de
licitude ou ilicitude de prova: uma prova que seja obtida de forma ilícita será ela mesma ilícita e
produzirá um efeito à distância (contamina todas as provas que se obtenham por meio daquela).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Distinção basilar entre meios ou métodos de obtenção de prova (revistas, buscas, escutas
telefónicas) e meios de prova propriamente ditos (prova testemunhal, prova pericial, etc):

♢ Temas de prova proibidos – temas de prova que não devem ser investigados devido a
certo interesse público que prevalece sobre o outro interesse público de descoberta da
verdade material. Ex: factos abrangidos por segredo de Estado (art. 137º e 182º)
♢ Meios de prova proibidos – o próprio meio de prova está inquinado, mesmo que o
conteúdo não tenha nenhum tema de prova proibido. Ex: produção de prova por gravações
de conversações em que intervenha o PM ou o PR (art. 11º/2 b)).
♢ Métodos de prova proibidos – art. 126º Em grande medida reproduz o art. 32º/8 CRP.
PSM: este artigo, juntamente com a CRP diz basicamente que se as provas forem obtidas
mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral, intromissão na vida
privada são nulas e não podem ser utilizadas.

Distinção no art. 126º CPP:

i) Métodos de Prova Absolutamente Proibidos (art. 126º/1 e 2) – a produção de prova é


sempre proibida por certo método. Art. 32º/8 CRP – tortura, coação e ofensa à integridade
física são sempre métodos absolutamente proibidos.

ii) Métodos de Prova Relativamente Proibidos (art. 126º/3) – a produção de prova é


proibida, salvo se for ordenada ou autorizada por uma autoridade judiciária ou haja
consentimento do visado. Art. 34º/2, 3 e 4 CRP – intromissão na vida privada, domicílio
ou correspondência são proibida mas há casos em que pode ser autorizada.

É ainda de referir que os sujeitos ativos dos métodos proibidos de prova não são apenas os agentes
do Estado e os particulares que agem sob sua orientação, mas também quaisquer particulares (neste
sentido, PPA e COSTA ANDRADE). Do lado passivo, os métodos proibidos de prova incluem outras
pessoas que não o arguido, a testemunha e o perito, tais como o assistente, as partes civis e o
intérprete.

Por outro lado, é verdade que as proibições de prova se fundam, em princípio, na ilicitude criminal
do meio de prova (art. 167º); contudo, nem todas as violações de proibições de prova constituem ilícito
criminal. Há proibições de prova fundadas em condutas substantivamente neutrais, como a do art.
355º. E nem todas as provas criminalmente ilícitas são provas processualmente proibidas; há provas
ilícitas cuja valoração é admissível se o titular do direito violado o autorizar (art. 126º/3).

As proibições de prova dão lugar a provas nulas (art. 32º/8 CRP), nulidade essa que obedece a um
regime distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável (PPA). Trata-se de um regime complexo,
que distingue dois tipos de proibições de provas consoante as provas atinjam a integridade física e
moral da pessoa humana (nulidade insanável – 126º/1 e 2) ou a privacidade da pessoa humana
(nulidade sanável pelo consentimento do titular do direito – 126º/3).

 Por seu lado, PSM sustenta uma nulidade absoluta da proibição de prova, quer no caso do
art. 126º/1, quer no do n.º 3, ou seja, como proibição absoluta da sua utilização no processo.
PPA afirma que este entendimento não é suportado pelo próprio art. 34º/2 e 3 CRP, que

102
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

estabelece o princípio da relevância da vontade do visado pela busca e do qual decorre o


princípio da relevância da vontade do visado pelas intromissões nos direitos à privacidade.
Este entendimento contraria ainda a jurisprudência do TEDH.

⇒ Proibições de prova/Proibições de produção de prova vs Regras de Proibição de


Prova/Proibições de valoração da prova:

Existe um princípio em processo penal que é o da verdade material: definido o objeto do processo
pela acusação e delimitado consequentemente o objeto do julgamento, o tribunal deve procurar a
reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis
alcançar a verdade histórica, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da
defesa.

Contrariamente ao que sucede no processo civil, não existe ónus da prova no processo penal. O
tribunal pode e deve ordenar oficiosamente toda a produção de prova que entenda por necessária ou
conveniente para a descoberta da verdade. Este poder-dever do tribunal é geralmente justificado pela
necessidade de procurar a verdade, pois que ao processo penal não bastaria uma verdade formal, ou
seja, a reconstrução hipotética dos factos feita apenas com base na contribuição probatória das partes,
mas a verdade histórica, também designada por verdade material. E tudo isto porque não se pode
esquecer a gravidade das sanções penais.

Mas a verdade no processo não pode procurar-se por quaisquer meios, mas tão-só pelos meios
processualmente admissíveis, ainda que dessa limitação possa resultar algumas vezes o sacrifício da
verdade.

A proibição de prova, como sanção para a violação das prescrições essenciais na aquisição da prova,
não substitui as sanções para os vícios formais dos atos, previstas nas normas gerais sobre
invalidades, mas reforça-o, como remédio processual específico para a ilegitimidade das interceções.
Os resultados ilegitimamente obtidos são assim não só privados de valor em si, mas nem sequer podem
ser a base para futuras investigações e ter, por assim dizer, efeito probatório indireto: devem ter-se como
inexistentes (posição de GMS).

Segundo COSTA ANDRADE, enquanto a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta


da verdade – na forma de proibição de temas de prova (art. 137º), de proibição de métodos de prova
(art. 126º), de proibição de meio de prova (art. 134º/2) e de proibições de leitura de protocolos (art.
356º) – as regras de produção da prova visam apenas disciplinar o procedimento exterior de realização
da prova na diversidade dos seus meios e métodos. É o que sucede, por exemplo, com as regras
prescritas no art. 341º CPP sobre a ordem de produção da prova na audiência de julgamento.

Para COSTA ANDRADE, integra o âmbito das proibições de prova o dever de informação e
advertência sobre o direito ao silêncio que assiste ao arguido quanto aos factos que lhe são imputados
(arts. 58º/2 e 4, 61º/1, als. d) e h), 141º/4, 143º e 343º/1 CPP). Isto porque ao estatuto do arguido
enquanto sujeito processual é inerente a sua participação ativa na descoberta da verdade e tal deve
passar pela sua liberdade.

103
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Segundo o Acórdão do STJ de janeiro de 2018, enquanto as nulidades atingem os atos processuais, as
proibições de prova dirigem-se diretamente à utilidade que o ato se propôs obter. Não só o ato será
inválido, como o contributo que fornece para a reconstituição dos factos tem que ser ignorado:
estamos no domínio da proibição da valorização da prova e a prova que o deixa de ser enquanto tal.

Assim, saber se, para além de um ato nulo na obtenção de certa prova, estamos também perante uma
prova ela mesma não valorizável, depende de uma interpretação da lei face ao caso concreto.

Já segundo o Tribunal Constitucional alemão, haverá uma proibição de valoração da prova quando
“a utilização da informação recolhida puder conduzir a uma intervenção desproporcionada no direito geral de
personalidade”, na ponderação dos interesses conflituantes da descoberta da verdade material e da
proteção dos direitos individuais.

ROXIN, citado pelo Tribunal Constitucional alemão, entende que estamos perante proibições de
prova e, portanto, de valoração das mesmas, ou não, se a lesão “afeta de modo essencial o âmbito de
direitos do visado ou se tem só uma importância secundária ou não tem qual quer importância para ele. Nesta
análise importa considerar, antes do mais, o motivo apresentado como justificação da disposição e no interesse
de quem foi criada”.

Para FIGUEIREDO DIAS, haverá proibição de prova quando, no modo como a prova foi obtida, tenha
havido “violações do direito sérias, conscientes e objetivamente arbitrárias, através das quais tenham sido
sistematicamente ignoradas garantias jurídicas fundamentais”.

⇒ Invalidade do ato processual como consequência da violação de proibições de prova:

Os atos processuais penais inválidos dão origem a uma pluralidade de tratamentos, que variam em
função da gravidade e da natureza da violação. Se se tratasse de um princípio geral unitário, o processo
perderia flexibilidade: a menor irregularidade e maior anomalia teriam a mesma resposta, sem que
isto significasse um aumento significativo das garantias individuais.

(i) Nulidades e irregularidades (arts. 118º e ss. CPP):

As infrações mais graves dão lugar às nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas
em qualquer estado do procedimento, mas que não obstam à formação de caso julgado (art. 119º); as
infrações de gravidade média originam as nulidades dependentes de arguição, que devem ser arguidas
pelos interessados dentro de determinados prazos, ficando ainda sanadas pela intercessão de certos
eventos previstos na lei (arts. 120º e 121º); as infrações mais leves, quase sempre de caráter formal, são
relegadas para a figura das irregularidades, que está sujeita a causas de sanação fulminantes (art.
123º).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

(ii) Nulidades extra-sistemáticas e seu regime suis generis (art. 118º/3, que admite esta situação):

Segundo PSM, existem regimes suis generis para as nulidades resultantes da violação das normas que
estabelecem proibições de prova.

Nulidades do art. 126º:

Não se trata de nulidade em sentido técnico-processual, mas antes de uma nulidade dotada de
autonomia técnica completa em face do regime das nulidades processuais. É ainda de referir que o
art. 126º prevê a mesma espécie de nulidade para o seu n.º 1 e 2 e para o seu n.º 3: são ambas atentados
contra direitos de liberdade cuja importância é a mesma, ambas incluídas no art. 32º/8 CRP como
garantias do processo penal. Assim, as provas obtidas dessa maneira não podem ser utilizadas.

MAIA GONÇALVES entende que o art. 126º/1 e 2 tem nulidades absolutas e insanáveis e o art.
126º/3 tem nulidades dependentes de arguição e sanáveis. PPA adere a esta tese, afirmando que a
nulidade do art. 126º/3 pode ser sanada pelo consentimento (ex ante ou ex post) do titular do direito –
trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas, consoante as
provas atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a privacidade da pessoa humana.

 PSM discorda:
a. O art. 118º/3 explica que o sistema das nulidades processuais não se aplica às proibições de
prova.
b. As diferenças do art. 126º/1 e 2 do art. 126º/3 não justificam que as provas, se forem nulas,
sejam sujeitas a distintos regimes de nulidade.
c. A aceitação de uma possibilidade de sanação da nulidade da prova proibida, no caso do
art. 126º/3, enfraqueceria a função de prevenção da própria proibição de prova contra
possíveis abusos, na medida em que as provas obtidas em tais circunstâncias poderiam,
em certas circunstâncias, ainda assim ser utilizadas.

PSM afirma ainda que a grande discussão na doutrina portuguesa se foi esclarecendo quanto ao
significado de “são nulas, não podendo ser utilizadas”. Sustenta então que, tirando a posição isolada de
PPA, a maioria da doutrina concorda que se está a utilizar a expressão “nula” num sentido
completamente diferente das nulidades processuais (art. 118º e ss.), devido ao art. 118º/3:
interpretam o art. 118º/3 no sentido em que o que está disposto no título das nulidades processuais
não se aplica ao regime das proibições de prova, que têm regime próprio.

Reitera, assim, que esta nulidade, em caso algum, pode ser interpretado como uma remissão para o
título das nulidades processuais.

As nulidades do art. 126º/1 (com complemento do art. 126º/2) são as mesmas do art. 126º/3 – aqui
deixa de haver tanta polémica doutrinária: são nulas e não há diferenças (apenas PPA discorda). A
diferença que existe é na intensidade da proibição: no art. 126º/1 a prova é absolutamente proibida, ao
passo que no art. 126º/3 é relativamente proibida. Note-se que é a proibição que é absoluta ou relativa
e não a nulidade.

105
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

O regime suis generis consiste então no facto de serem nulidades de conhecimento oficioso a todo o
tempo e poderem ser atacadas excecionalmente depois do trânsito em julgado da decisão final.

A nulidade da prova proibida pode ser conhecida em qualquer fase do processo. A sentença fundada
em provas nulas é também, ela própria, nula, pelo art. 122º/1.

Em que consiste esse regime próprio?

 As provas não podem ser obtidas violando Direitos Fundamentais de liberdade;


 Sendo-o, não podem ser utilizadas – proibição de valoração de prova;
 Não podem ser repetidas;
 Deve ser desentranhada dos autos, para não produzir qualquer efeito – impede-se que o juiz
leia, ao retirá-la dos autos;
 Produzem um efeito-à-distância – significa que contamina a prova adjacente a ela;
 Pode ser conhecida até após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória (previsão no
CPP em 2007), o que afasta qualquer semelhança com as nulidades processuais – significa que
mesmo após o trânsito em julgado pode haver recurso extraordinário de revisão.

(iii) Violações reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais:

Atos cuja invalidade resulta da violação das meras formalidades da prova, contanto que a nulidade
seja cominada nas disposições legais em causa; por exemplo, arts. 134º/2, 188º/4 e 190º. Se não for
cominada a nulidade, tratar-se-á de mera irregularidade – arts. 118º/2 e 123º.

Garantias de defesa tendentes a tornar ineficaz o ato processual inválido:

É recorrível o despacho que indefere a arguição de nulidades – art. 399º. O recurso dos despachos que
decidam a admissibilidade das provas ou o recurso das decisões de mérito fundadas numa valoração
das provas nulas terá como fundamento o erro de direito (art. 410º/3). É sempre recorrível o despacho
de pronúncia na parte em que decidir a admissibilidade de provas proibidas.

Responsabilidade disciplinar e criminal dos funcionários que violarem as proibições de prova:

Importa nesta sede o art. 126º/4. Segundo PSM, este é um preceito desligado da intencionalidade
específica do processo penal. Contudo, o preceito cumpre a função de avisar os órgãos de perseguição
criminal de que ninguém está acima da lei e vem sintetizar as finalidades preventivas do instituto das
proibições de prova e o ideário do Estado de Direito.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Efeito à distância das proibições de prova:

As provas que atentam contra os direitos de liberdade acarretam um efeito-à-distância que torna
inaproveitáveis as provas secundárias a elas causalmente vinculadas.

O efeito-à-distância é a única forma de impedir que os investigadores policiais, os procuradores e os


juízes menos escrupulosos se aventurem à violação das proibições de produção de prova na mira de
prosseguirem sequências investigatórias às quais não chegariam através dos meios postos à sua
disposição pelo Estado de Direito.

Segundo PPA, o efeito-à-distância da proibição da prova é tanto maior quanto mais grave for a
proibição de prova violada.

Pode, contudo, haver exceções: pode ser atenuado por uma série de exceções, que se reconduzem à
ideia de saber se as provas secundárias poderiam ter sido obtidas na falta da prova primária
maculada.

a. Exceção da fonte independente: as provas secundárias podem ser admitidas se tiverem sido
obtidas posteriormente também por via autónoma e legal.

b. Exceção da conexão atenuada: as provas secundárias podem ser admitidas se a conexão se


tiver tornado tão atenuada a ponto de dissipar a mácula. PSM afirma, contudo, que não é
assim tão evidente.

c. Exceção “a não ser”: se ele nunca tivesse sido detido, nunca teria confessado – porque só o
fez após ser libertado e voltou à esquadra para confessar.

Não basta defender que todas as provas são frutos da árvore proibida, simplesmente porque não
teriam sido descobertas sem as ações ilegais da polícia.

d. Exceção da descoberta inevitável: admite-se como prova o cadáver da vítima que tenha sido
descoberto pela polícia na sequência de uma confissão do suspeito obtida de forma ilegal.
Como a descoberta teria sido inevitável, mesmo sem a confissão, então ainda poderia ser
aproveitado como prova.

É uma variante da fonte independente mas difere – não se exige que a polícia tenha obtido as provas
por fonte autónoma e legal, mas apenas que hipoteticamente o pudesse ter feito. Há críticas a esta
exceção: pode destruir o efeito de disciplina.

A jurisprudência americana tem estabelecido um limite: só se aplica se a acusação demonstrar com


grau de probabilidade superior a 50% que a informação teria sido inevitavelmente descoberta por
meios legais – probabilidade preponderante de acontecer.

e. Exceção da boa fé: PSM sustenta que ainda não está consagrada pela Supreme Court. Se as
autoridades atuaram de boa fé, pode admitir-se (mas tal esvazia o conteúdo da função de
disciplina da exclusão probatória).

107
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Na doutrina portuguesa já se admitia esta doutrina muito antes da jurisprudência:

- FD e COSTA ANDRADE acolhiam esta doutrina, mas este último confundia Exceção da fonte
independente e da descoberta inevitável;

- HELENA MORÃO trata do efeito remoto das proibições de prova e da sua limitação, mas não
tem aceitado a exceção da descoberta inevitável;

- PPA aceita limitações ao efeito-à-distância, mas recusa a invocação de percursos hipotéticos


de investigação;

- PSM afirma que a invocação de percursos hipotéticos de investigação não pode ser aceite sem
reflexão, sob pena de tornar ineficaz o sentido preventivo das proibições de prova, mas com
as limitações que a jurisprudência americana tem vindo a importar à doutrina da descoberta
inevitável, esta acaba por ser a mais adequada aos juízos de ponderação envolvidos no caso
concreto.

A base legal para o efeito à distância das proibições de prova encontra-se no art. 122º CPP; contudo,
esta referência é duvidosa, atendendo à autonomia técnica das proibições de prova. Assim, a base
legal pode ser o art. 32º CRP:

- HELENA MORÃO: basta o fundamento constitucional do art. 32º/8 – o recurso à norma do


art. 122º é desnecessário para a fundamentação de uma sede normativa reguladora de um
princípio de efeito-à-distância das proibições de prova, pois basta o art. 32º/8 CRP.

- PSM: aceita crítica de HM mas admite recorrer-se ao art. 122º - referência ao art. 122º só pode
servir de argumento a fortiori, considerando que se a lei reconhece o efeito-à-distância das
nulidades processuais quando poderá estar em causa a violação de meras formalidades de
prova, então por maioria de razão ter-se-á de reconhecer o efeito-à-distância das proibições
de prova quando está em causa a violação de direitos de liberdade.

Concluindo, a prova proibida contamina a restante prova se houver um nexo de dependência


cronológica, lógica e valorativa entre a prova proibida e a restante prova (art. 122º/1, lido à luz da
jurisprudência do Ac. do TC n.º 198/2004). O apuramento do efeito à distância da proibição de prova
há de resultar assim de uma necessária ponderação do nexo que liga a prova proibida e a prova
mediata dela resultante, de acordo com o princípio de que o efeito à distância é tanto maior quanto
mais grave for a proibição de prova violada, sendo de excluir esse efeito à distância quando o fim de
proteção da norma processual penal que prescreve a proibição de prova se possa conciliar com a
utilização processual das provas mediatamente conseguidas por intermédio da prova proibida.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

⇒ Casos especiais; meios ocultos de obtenção de prova:

1. GPS:

A utilização de um localizador GPS não se encontra prevista na lei. O TRP, em 21/03/2013 discutiu
a questão, em sede de recurso, da admissibilidade de utilização de localizadores “GPS” nos
automóveis utilizados pelos suspeitos de virem a praticar eventuais crimes de furto.

O MP recorreu: o método de colocação em veículo utilizado por suspeito da prática de furtos


qualificados, de localizador GPS, não sendo meio proibido de prova nos termos dos arts. 126º e 32º/8
CRP, é admissível nos termos do art. 125º, desde que devidamente autorizado e controlado
judicialmente, por aplicação analógica do preceituado nas disposições conjugadas dos arts. 4º e
189º/2.

O TRP entendeu que, apesar do art. 125º, não existe um regime de tipicidade de meios de prova nem
de obtenção de prova, podendo por isso as mesmas estar ou não indicadas no CPP, havendo até
regimes específicos de obtenção de prova, como sucede com a videovigilância, por exemplo, realizada
pelas autoridades policiais (Lei n.º 1/2005).

No entanto, a clássica vigilância convencional de seguimento não parece ser equivalente à localização
através do localizador GPS e à sua monitorização, através do registo dos respetivos dados, porquanto
esta última permite traçar o perfil detalhado da vida pública e privada de uma pessoa, como ainda
recentemente foi sublinhado (Ac. do Supremo Tribunal dos E.U.A., caso USA v. Jones, de
2012/Jan./23). Por outro, lado não faria sentido que apenas fosse sujeita a autorização judicial a
localização celular através dos dados telefónicos e já não o fosse o acesso a dados de localização
através do mecanismo GPS, uma vez que se tratam de dados sensíveis, que dizem respeito à vida
íntima e encontram-se no âmbito do direito fundamental à autodeterminação informativa.

Nesta conformidade e sempre que esteja em causa a localização através da tecnologia GPS, a mesma
deve ser sujeita a autorização judicial, aplicando-se, por interpretação analógica, o disposto no art.
187º.

TRL 13/04/2016, sobre o GPS tracker:

Os dados obtidos por cada um destes aparelhos constitui prova documental, tal como ela é definida
pelo art. 164º/1.

Questão: É permitido um meio de obtenção de prova com estas características (que não se confunde
nem se equipara à interceção das comunicações), dada a ausência de lei que legitime a sua utilização,
delimite os crimes que a admitem, estabeleça o procedimento a adotar e fixe a competência para
autorizar o seu uso e controlar todo o procedimento que tiver lugar?

A resposta a esta questão deve ser negativa: com efeito, o art. 35º/3 CRP impede que os dados obtidos
através desses aparelhos sejam objeto de tratamento informático, a não ser nos casos ressalvados na
parte final desse preceito, o que constitui uma forma indireta de proteger a própria privacidade.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Por tudo isto, e não obstante o facto de a prova assim obtida não ter resultado da atividade dos órgãos
de polícia criminal, deve entender-se que é proibida a valoração dos registos obtidos através dos
dois geolocalizadores instalados pela assistente nos seus veículos sem consentimento os utilizadores
dos mesmos, nem autorização da CNPD. É o que resulta do art. 32º/8 CRP e do art. 126º/3 CPP.

A utilização dos dois geolocalizadores nas indicadas condições determina, como se disse, a proibição
de valoração dos registos através deles obtidos, podendo também “contaminar a restante prova se
houver um nexo de dependência cronológica, lógica e valorativa entre a prova proibida e a restante
prova”.

Para que possam ser valoradas, “é necessário que exista um clean path, um caminho lícito, que conduza às
provas secundárias”, parecendo que “nada obsta, obviamente, a que as provas mediatas possam ser valoradas
quando provenham de um processo de conhecimento independente e efetivo, uma vez que não há nestas
situações qualquer relação de causalidade entre o comportamento ilícito inicial e a prova mediatamente obtida”.

2. Escutas Telefónicas:

De acordo com os critérios referidos supra quanto à proibição de prova, serão de excluir do círculo
das proibições de prova as inobservâncias sem mais das formalidades prescritas para o
processamento das escutas, no art. 188º, subsistindo como também enquadráveis no âmbito das
proibições de prova os resultados de atos nulos de produção de prova por força do art. 190º, por
desrespeito do art. 187º.

O legislador entendeu que certos temas probatórios (i.e., certo tipo de ilícitos), impedem o uso de escutas,
porque o atentado que elas implicam é desproporcionado perante o interesse da descoberta de
verdade de um crime, cuja danosidade social não é muito elevada, ou cuja investigação se satisfaz,
por regra, com meios menos intrusivos. E mesmo perante ilícitos graves essa desproporção poderá
ocorrer, se os factos se puderem provar, sem dificuldade, através de outras provas.

Como desproporcional seria a escuta se atingisse pessoas não implicadas de perto na prática do
crime (n.º 4 do art. 187º). Colidiria ainda com os direitos de defesa, se a escuta fosse da comunicação
estabelecida entre certas pessoas, concretamente entre o arguido e defensor (arts. 32º/1 CRP e 187º/5
CPP).

É por estas razões que se exige a intervenção de um juiz das liberdades que tenha o controlo da
autorização e o acompanhamento da escuta.

Mas quando estão em causa meras formalidades (ex: art. 188º) já não será assim, porquanto aí não se
pretende uma proteção direta de direitos fundamentos, nem se tem como objetivo primeiro a tutela
da dignidade da pessoa humana.

A regulação introduzida visa obter eficácia, celeridade e acompanhamento de um juiz numa escuta
que já foi autorizada por quem de direito e está permitida por lei. Estão em causa interesses
procedimentais, que só em situações excecionais poderiam atingir direitos fundamentais, como seria

110
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

o caso em que, depois de autorizada a escuta, deixasse de haver entrega do material e de


acompanhamento ulterior do juiz.

Idem: acórdão TC 476/2015 de 30 /9/2015:

“Se a justificação para as proibições de prova do art. 126º se distingue claramente da razão de ser da disciplina
do art. 188º, nada impede que a violação das normas em causa – arts. 188º/4 e 126º/3 CPP– se situe num plano
diverso, e assim tenha consequência diferentes” – Ac. STJ 1/2018.

Decisão do STJ: A simples falta de observância do prazo de 48 horas, imposto no art. 188º/4, para o
MP levar ao juiz os suportes técnicos, autos e relatórios referentes a escutas telefónicas, constitui
nulidade dependente de arguição, nos termos dos arts. 190º e 120º.

Voto de vencido Vinício Augusto Pereira Ribeiro:

A nulidade do art. 126º é uma figura atípica, suis generis, que a doutrina e a jurisprudência apelida de
nulidade de prova. O seu regime aproxima-se do das nulidades insanáveis (FRANCISCO AGUILAR),
embora não se confundam. A nulidade do n.º 1 do art. 126º tem os mesmos efeitos da nulidade do n.º
3, do mesmo normativo. Em ambos os casos estamos perante proibições de prova.

A questão é, porém, muito discutida na doutrina, mas no STJ a questão tem vindo a consolidar-se.
Na verdade, escreve-se no Ac. STJ de 21/2/2007 – “os procedimentos para a realização das interceções
telefónicas e respetivas gravações, estabelecidos no art. 188º, após ordem ou autorização judicial para o efeito,
constituem formalidades processuais cuja não observância não contende com a validade e a fidedignidade daquele
meio de prova, razão pela qual à violação dos procedimentos previstos naquele normativo é aplicável o regime
das nulidade sanáveis previsto no art. 120º”.

Teorias dualistas vs monistas:

a) Dualista:

O Ac. do STJ de 2/2/2005 faz a distinção entre os pressupostos substanciais de admissão das escutas
telefónicas (art. 187º), por um lado, e as condições formais ou processuais (art. 188º) da sua aquisição,
por outro. Só a violação que afete os pressupostos é sancionada com a nulidade absoluta, enquanto a
que afete as condições é sancionada com a nulidade relativa, sanável.

FIGUEIREDO DIAS defende, mais em sintonia com a jurisprudência do STJ, e contrariamente à


perspetiva abraçada por COSTA ANDRADE, que “deve abrir-se mão de uma aproximação monista da
teoria processual penal das proibições de prova, em favor de uma sua consideração diferenciada, que tome em
conta no caso concreto os valores conflituantes e, sempre que possível, a sua otimização”.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

b) Monista:

Em face da nova redação do art. 126º/3, parece que a posição correta passará a ser a que era defendida
por GMS.

É nesse sentido que aponta, claramente, a Exposição de Motivos que está na base da Lei n.º 48/2007,
onde se escreve: “Esclarece-se que as provas obtidas, fora dos casos admitidos pela lei e sem o consentimento
do respetivo titular, mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações não podem ser utilizadas. Supera-se, pois, uma dúvida interpretativa que a atual redação do
art. 126º/3 suscita, por se referir apenas à nulidade”.

O juiz considera que deveria ter sido esta a posição assumida pelo STJ, embora não a considere a
melhor de iure condendo, concordando mais com a tese dualista.

Pressupostos de admissibilidade das escutas telefónicas (art. 187º CPP):

i. Só podem ser autorizadas durante o inquérito – com a reforma de 2007, antes permitia-se na
instrução.
ii. Se forem indispensáveis para a descoberta da verdade ou se a prova for impossível ou muito
difícil de obter de outra forma – diligência de ultima ratio.
iii. Necessitam de autorização do JIC, por despacho fundamentado, em resposta à promoção do
MP.
iv. Quanto a crimes de catálogo – expressão da doutrina e jurisprudência quanto aos crimes
mencionados no art. 187º e relativamente aos quias é autorizada a escuta.
PPA: CPP estabelece um catálogo fechado de crimes em relação aos quais é admissível o meio
de obtenção de prova da escuta telefónica.
TC 7/87 não julgou inconstitucional a definição dos crimes do catálogo, pois tal não violava
os princípios da necessidade e da proporcionalidade (face ao art. 34º/4 CRP).
v. E relativamente a uma lista de pessoas – o art. 187º/4 é uma garantia muito relativa, pois a
pessoa escutada fala sempre com outra, que é escutada e não é alvo da escuta.
vi. Excetuando o arguido e o seu defensor, salvo certas situações.
vii. Pelo prazo máximo de 3 meses (com possibilidade de prorrogação por iguais períodos).
viii. Tem de respeitar o princípio da proporcionalidade (Acórdãos do TC n.º 187/2001; 632/2008,
etc.).

Conhecimentos fortuitos:

Trata-se dos casos de escutas que foram autorizadas, mas fora do objeto do processo. O objeto do
processo ainda não está bem definido, pois estamos no inquérito e ainda não houve acusação.

Conhecimentos fortuitos vs conhecimentos da investigação (art. 187º/7):

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

o Conhecimentos da investigação: todos os que são adquiridos no processo e relativos aos


crimes objeto da investigação.
o Conhecimentos fortuitos stricto sensu: a valorar noutro processo e crimes de catálogo. Estes
podem ser aproveitados se respeitarem:
a. Âmbito objetivo: crimes de catálogo (art. 187º/1).
b. Âmbito subjetivo: alvos (art. 187º/4).
c. Indispensabilidade (art. 187º/7).
d. Validação pela autoridade judiciária

Não servem como prova, mas servem como notícia da infração – é muito discutido pois não
se sabe se o processo é desanexado sem esses elementos ou como se processa.

Para as escutas telefónicas há uma norma específica para autorizar e para relevar os conhecimentos
fortuitos.

Já para as buscas de correio eletrónico não há norma específica sobre os conhecimentos fortuitos –
replica-se a discussão doutrinária antes de 2007 (em que não havia norma para as buscas telefónicas).

Como se relaciona com as proibições de prova?

Há relação entre o regime das escutas telefónicas e o regime das proibições de prova – art. 126º/3.

1. Sempre que se violar o disposto no art. 187º ou 188º a consequência jurídica é a do art. 126º CPP? O
que acontece se houver uma escuta não autorizada pelo juiz? A prova foi obtida de forma ilícita,
sendo, por isso, nula.
2. E se foi autorizada uma prorrogação de 3 meses mas ainda se prolongou mais? A prova é nula: não
pode ser utilizada (art. 126º/3).
3. E se o MP receber suportes técnicos das escutas e não os entregar ao juiz em 48h? A prova é
igualmente nula e não pode ser utilizada.

PSM afirma que é estranho tratar-se da mesma maneira estas três situações; mas é esta a solução que
resultaria de aplicação cega do art. 126º/3. Assim, temos de recorrer ao art. 190º, que fixa uma
nulidade processual (arts. 240º e ss.) dependente de arguição.

A solução acaba por ser a mesma, mas a forma de lá chegar é distinta.

PSM adianta ainda que é preciso fazer distinções; o legislador não estabeleceu articulações claras, mas
temos de graduar os vícios e perceber qual é o mais grave e dar espaço a nulidades processuais.

AUJ 1/2018: a situação 3 é nulidade dependente de arguição pelo art. 190º - não é proibição de prova
mas sim nulidade.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

3. Correio Eletrónico e SMS:

⇒ Apreensão de dados informáticos armazenados de mensagens de correio eletrónico ou


semelhantes na Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009):

Dispõe o art. 17º LCC, sob a epígrafe “Apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza
semelhante” que “quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema
informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso
legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza
semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão
de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”.

O legislador resolveu algumas das questões que se suscitavam na doutrina, nomeadamente quanto
às mensagens de correio eletrónico armazenadas (webmail) ainda nos servidores dos fornecedores de
serviço de correio eletrónico (ESP – e-mail service providers), estabelecendo claramente que, sendo
possível aceder-lhes legitimamente através de sistema inicial a que se acede (legitimamente), também
aí se procede a pesquisa informática (arts. 15º/5 e 17º LCC), mas a forma de remissão para o regime
de apreensão de correspondência previsto no CPP é merecedora de crítica e tem gerado muitas
dúvidas na doutrina e na jurisprudência.

A matéria em análise – que respeita às mensagens de correio eletrónico, mas também aos registos
de comunicações de natureza semelhante – contende com direitos fundamentais, como é frequente
em processo penal: diretamente, com o direito à inviolabilidade da correspondência e das telecomunicações.

A CRP, no seu art. 26º/1, a todos reconhece os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da
personalidade, à reserva da intimidade da vida privada e familiar. Depois, no seu art. 34º, consagra
que “[…] o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (n.º 1) e que
“[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais
meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.” (n.º 4).

Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o conteúdo do direito ao sigilo da correspondência


e de outros meios de comunicação privada (n.ºs 1 e 4) abrange toda a espécie de correspondência de
pessoa a pessoa (cartas postais, impressos), cobrindo mesmo as hipóteses de encomendas que não
contêm qualquer comunicação escrita, e todas as telecomunicações (telefone, telegrama, tele-fax, etc.).
A garantia do sigilo abrange não apenas o conteúdo da correspondência, mas o “tráfego” como tal
(espécie, hora, duração, intensidade de utilização). No âmbito normativo do art. 34° cabe o chamado
correio eletrónico, porque o segredo da correspondência abrange seguramente as correspondências
mantidas por via das telecomunicações. O envio de mensagens eletrónicas de pessoa a pessoa
(«email») preenche os pressupostos da correspondência privada.

O TEDH tem considerado que o direito ao respeito pela correspondência, consagrado no art. 8º/1 da
CEDH, visa proteger a confidencialidade das comunicações numa ampla gama de situações
diferentes, incluindo mensagens eletrónicas (Copland v. Reino Unido), o uso da internet (Copland v.
Reino Unido), e dados armazenados em servidores informáticos (Wieser e Bicos Beteiligungen GmbH v.
Áustria) e em diferentes suportes (Petri Sallinen e outros v. Finlândia; Iliya Stefanov v. Bulgária).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

A correspondência merece tutela desde o momento do envio, fechada, até ao momento da abertura
pelo destinatário. Como afirma COSTA ANDRADE, é precisamente este facto – estar fechada – que
define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral. Daí que, após
aberta, a correspondência fique sujeita ao regime geral de apreensão, previsto no art. 178º CPP.

Por outro lado, e seguindo o mesmo Autor, a tutela do sigilo das telecomunicações, tanto
constitucional como processual penal, está vinculada ao processamento da comunicação sob o
domínio da empresa fornecedora do serviço de telecomunicações. Esta tutela só existe enquanto dura
o processo dinâmico de transmissão, i.e., até ao momento em que a comunicação entra na esfera de
domínio do destinatário. Por outras palavras, até ao momento em que ela é recebida e lida pelo
destinatário e, neste sentido, termina o processo de telecomunicação à distância. Assim, depois de
recebido, lido e guardado no computador do destinatário, um email deixa de pertencer à área de tutela
das telecomunicações, passando a valer como um normal escrito. Isto porque essa tutela radica na
específica situação de perigo decorrente do domínio que o terceiro detém – e enquanto o detém –
sobre a comunicação (conteúdo e dados). Domínio que lhe assegura a possibilidade fática de
intromissão arbitrária, subtraída ao controlo do(s) comunicador(es).

Não significa isto que não existam direitos fundamentais a tutelar. Recentemente, no Acórdão n.º
403/2015, o TC fez importantíssimas considerações sobre o acesso aos dados das comunicações,
mesmo depois de estas terminadas, considerando que tal colide com o direito à autodeterminação
comunicativa, protegido no art. 34º CRP, que “serve para defender vários bens jurídico-constitucionais,
entre eles: o direito ao desenvolvimento da personalidade e o direito à reserva da intimidade da vida privada”, e,
dentro deste último, para defender “a esfera pessoal perante as ingerências públicas ou privadas, ou seja, o
interesse das pessoas que comunicam em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação e
circulação do conteúdo e circunstâncias da comunicação”. O direito ao desenvolvimento da personalidade
comporta a liberdade de comunicar e, nesta dimensão relacional, do “eu” com o “outro”, o objeto de
proteção é a comunicação individual, isto é, a comunicação que se destina a um recetor individual
ou a um círculo de destinatários previamente determinado, liberdade de comunicar que “abrange a
faculdade de comunicar com segurança e confiança e o domínio e autocontrole sobre a comunicação, enquanto
expressão e exteriorização da própria pessoa”.

 Âmbito de aplicação do art. 17º LCC:

O normativo do art. 17º aplica-se a mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza
semelhante que, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema
informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja
permitido o acesso legítimo a partir do primeiro. Mais propriamente, dados informáticos que
constituam correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante.

O que são registos de comunicações de natureza semelhante?

Estas comunicações de natureza semelhantes podem ser feitas através de um mero serviço telefónico,
em que o utilizador está identificado através do seu número de telefone, ou através da internet,

115
Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

utilizando por isso o conjunto de protocolos TCP/IP24, que exigem a atribuição ao utilizador de um
IP Adress.

- No primeiro grupo, incluem-se as SMS, as SEM e as MMS, para cuja interceção, em tempo
real, seria aplicável o disposto nos arts. 187º e 188º CPP.
- No segundo, as possibilidades são superiores. Sem preocupações de exaustão, afigura-se
indubitável que nele devam ser incluídas as comunicações por IM – Instant messenger e os chats
ou chatrooms, para cuja interceção, em tempo real, seria aplicável o disposto no art. 18º LCC.

 Mensagens de correio eletrónico ou semelhantes abertas e não abertas:

O art. 17º LCC não faz qualquer distinção entre mensagens de correio eletrónico ou semelhantes
abertas e não abertas.

O legislador nacional tomou posição sobre esta questão, considerando os dados armazenados
incluídos na previsão do art. 17º LCC e não na do art. 18º (interceção em tempo real). É indiscutível a
correção da opção da nossa lei: no nosso sistema (arts. 187º e 188º CPP e art. 18º LCC) só os dados em
trânsito podem ser intercetados – por estas vias, nunca se poderia apreender os dados armazenados
nos servidores de correio eletrónico dos ESP.

O aberto ou não aberto ou, mais corretamente, lido ou não lido, não é uma qualquer forma de proteção
do conteúdo da mensagem, contrariamente ao que sucede com os envelopes no correio corpóreo. Não
são envelopes ou invólucros das mensagens, mas simples filtros que o utilizador pode definir (de
acordo com as suas preferências ou critérios) para mais facilmente gerir o volume de mensagens de
correio eletrónico recebidas. A mensagem de correio eletrónico, por natureza, não é fechada, não é
envelopável, não é unívoca quanto ao número de destinatários e não circula em ambiente seguro. E,
sobretudo, é, no seu estado natural, imaterial.

Não há, então, reais bases para fundamentar nessa ilusão do lido/não lido diferentes níveis de tutela
jurídica das mensagens de correio eletrónico ou semelhantes. RUI CARDOSO diverge, assim, de
JOÃO CONDE CORREIA e ainda de PAULO DÁ MESQUITA, quando defendem precisamente que,
ao determinar a aplicação do regime de apreensão de correspondência do CPP, se exclui da tutela
especial as mensagens de correio eletrónico já acedidas pelo destinatário.

⇒ A correspondente aplicação do regime de apreensão de correspondência previsto no CPP:

Antes de determinarmos qual a dimensão da remissão para o regime de apreensão de


correspondência previsto no CPP, há que dizer algumas palavras sobre este.

 A apreensão de correspondência no CPP:

Importam, nesta sede, os arts. 179º e 252º CPP.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Este regime tem várias dimensões normativas (para o que ora releva):

1. Competência – apenas o juiz é competente para autorizar ou ordenar, por despacho, a


apreensão;
2. Âmbito objetivo – apreensão de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra
correspondência, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações;
3. Redução do âmbito objetivo – a apreensão de correspondência só é meio de obtenção de
prova admissível para crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
4. Âmbito subjetivo – a correspondência tem de ser expedida pelo suspeito/arguido ou ser-lhe
dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;
5. Redução do âmbito subjetivo – a apreensão e qualquer outra forma de controlo da
correspondência entre o arguido e o seu defensor só é admissível se o juiz tiver fundadas
razões para crer que aquela constitui objeto ou elemento de um crime.
6. Necessidade probatória – tem de haver razões para crer que a diligência se revelará de grande
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova;
7. Procedimentos após a apreensão – os OPC transmitem a correspondência intacta ao juiz que
tiver autorizado ou ordenado a diligência e este é a primeira pessoa a tomar conhecimento do
conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar
ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como
meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado
conhecimento e não tiver interesse para a prova;
8. Invalidade – proibição de prova ou irregularidade. RUI CARDOSO acompanha PPA quando
considera que existem proibições de prova, por violação do disposto no n.º 3 do art. 126º,
quando há apreensão sem autorização judicial, quanto à apreensão de correspondência entre
o arguido e o seu defensor, exceto se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui
objeto ou elemento de um crime, e ainda quanto à valoração de correspondência restituída.
Porém, já não acompanha quanto à existência de nulidade prevista no art. 120º/2 al. d)
(dependente de arguição) quando existe omissão do exame. Este vício apenas ocorre quando
o inquérito ou instrução são insuficientes por não terem sido praticados atos legalmente
obrigatórios, não apenas por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios. Estes
atos deverão ser apenas os que respeitem à finalidade de inquérito (diligências que visam
investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e
descobrir e recolher as provas – art. 262º/1) ou da instrução (comprovação judicial da decisão
de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a
julgamento – art. 286º/1). Se assim não fosse, todas as inobservâncias das prescrições legais
no inquérito e na instrução integrariam esta nulidade – e o princípio da tipicidade do art. 118º
seria subvertido e deixaria de fazer sentido. A omissão do exame pelo juiz, bem como se este
ordenar a apreensão, mas depois ordenar ao OPC que primeiro tome conhecimento do
conteúdo da correspondência e só depois fundamentar a sua relevância e junção ao processo,
constituem apenas irregularidades. Note-se ainda que não há qualquer cominação de
nulidade na letra da primeira parte do n.º 3 do art. 179º e que a prova é obtida com a apreensão
ordenada pelo juiz – e é com esta que se verifica a intromissão na correspondência –, não com
o conhecimento do seu teor por parte do Ministério Público ou dos OPC, sendo por isso de
afastar a proibição de prova prevista no art. 126º/3.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 Conjugação do art. 17º LCC com o art. 179º CPP:

O art. 17º determina a correspondente aplicação do regime de apreensão de correspondência do CPP,


não a aplicação integral. Esta aplicação só deve ser feita naquilo que não contrariar o já previsto na
própria LCC; a remissão para o CPP não pode sobrepor-se ao regime especial de prova eletrónica
previsto na LCC. Como vimos já, foi intenção do legislador adaptar às novas realidades a busca e a
apreensão previstas no CPP, não aplicá-los integral e acriticamente.

Deste modo, e esquematicamente:

o No CPP, o âmbito objetivo é o de correspondência em trânsito ou ainda não aberta; na LCC,


todas as mensagens de correio eletrónico ou semelhantes, nos termos supra expostos, não
havendo verdadeiramente regime aberto-lido e fechado-não lido;
o No CPP, a apreensão de correspondência só é meio de obtenção de prova admissível para
crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; na LCC, não há catálogo
– por força do expressamente previsto no art. 11º, aplica-se a processos relativos a crimes (a)
previstos nessa lei, (b) cometidos por meio de um sistema informático ou (c) em relação aos
quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, ou seja, em abstrato, a
todos os tipos de crime;
o No CPP, a correspondência tem de ser expedida pelo suspeito/arguido ou ser-lhe dirigida,
mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; na LCC, pode respeitar a qualquer
pessoa (mais uma vez, o art. 11º não faz qualquer restrição de âmbito subjetivo);
o No CPP e na LCC, o critério da necessidade para a prova é o mesmo: grande interesse para a
descoberta da verdade ou para a prova;
o O art. 17º LCC não tem previsão sobre invalidades, pelo que deve operar a remissão para o CPP,
aplicando-se o regime do art. 179º supra referido;
o O art. 17º LCC não tem previsão sobre a apreensão de correspondência eletrónica ou semelhante
entre o arguido e o seu defensor, pelo que deve operar a remissão para o CPP (só será admissível
se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objeto ou elemento de um crime);
o No que respeita aos procedimentos, no CPP os OPC transmitem a correspondência intacta ao
juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência e é este que procede à aberta e primeiro toma
conhecimento do seu conteúdo; na LCC, durante o inquérito, o MP, depois de tomar
conhecimento do seu conteúdo, deve apresentar ao juiz suporte com as mensagens de correio
eletrónico ou semelhantes cautelarmente apreendidas (ou melhor, os dados informáticos que
as constituem), juntamente com requerimento fundamentado para apreensão daquelas que
considere de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, após o que o juiz
apreciará, tomando conhecimento do seu conteúdo, e decidirá autorizar ou não autorizar a
apreensão formal.

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

 Procedimentos de seleção e apreensão:

Este último aspeto, procedimental, é, na fase de inquérito, o mais polémico e é aquele que motiva o
maior dissenso nas escassas doutrina e jurisprudência existentes sobre estas matérias.

Na jurisprudência, estão publicados três acórdãos sobre a matéria:

i. O recente acórdão do TRL de 06.02.2018, P. 1950/17.0 T9LSB-A.L1-5 (JOÃO CARROLA)


considerou que a LCC remete expressamente para o regime geral previsto no CPP, sem
redução do seu âmbito, antes se impondo a sua aplicação na sua totalidade, pelo que, sob
pena de nulidade, se exige que seja o juiz de instrução o primeiro a tomar conhecimento
do conteúdo das comunicações.
ii. No mesmo sentido, foi o acórdão do TRL de 11-01-2011, P. 5412/08.9TDLSBA.L1
(RICARDO CARDOSO). Em ambos os casos, foi dado provimento a recursos do
Ministério Público.
iii. Em sentido contrário, existe o acórdão do TRG de 29.03.2011, P. 735/10.0GAPTL- A.G1
(MARIA JOSÉ NOGUEIRA), em que se considerou ser de aplicar à apreensão de uma SMS
o disposto no art. 17º LCC, mas podendo o MP aceder ao seu conteúdo antes da decisão
de apreensão [formal] do juiz de instrução.

Na doutrina:

i. RITA CASTANHEIRA NEVES defende que a remissão para o regime de apreensão da


correspondência do CPP respeita também ao facto de ter de ser o juiz que tiver autorizado
ou ordenado a diligência a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo do correio
eletrónico e demais registos de comunicações apreendidos, mandando-os juntar ao
processo se os considerar relevantes. SANTOS CABRAL igualmente considera ser de
aplicar integralmente o regime de apreensão de correspondência do CPP.

ii. PAULO DÁ MESQUITA manifesta concordância com a remissão para o regime da


apreensão de correspondência do CPP (embora, como vimos, restringindo muito o campo
de aplicação do art. 17º LCC, considerando que respeita apenas a mensagens não lidas),
afirmando que parece estar pressuposto a apresentação das comunicações ao juiz sem
prévio acesso policial. Porém, não aprofunda a problemática do âmbito dessa remissão.

iii. É PEDRO VERDELHO quem maior tratamento dá à questão. Defende esse Autor que o
regime da apreensão de correspondência do CPP deve ser feito com as necessárias
adaptações: a primeira, respeitando à possibilidade de apreensão cautelar das mensagens
de correio eletrónico ou semelhantes sem autorização prévia do juiz de instrução (sendo a
existência de forma legal de acesso ao meio informático onde estavam armazenadas a
única exigência legal para essa apreensão cautelar); depois, que não se exige que seja o juiz
o primeiro a ter conhecimento de todas as mensagens (a letra da lei aponta antes para a
possibilidade de quem procede à pesquisa encaminhar para o juiz mensagens concretas,
com relevância para o caso concreto, que aquele depois apreenderá ou não).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

iv. RUI CARDOSO acompanha a posição de PEDRO VERDELHO, fundando a sua posição
em argumentos de: (i) literalidade, (ii) coerência do sistema de tutela de direitos, (iii)
diferenças de natureza entre o correio corpóreo e correio eletrónico ou semelhante, e,
finalmente, (iv) na imposição constitucional de respeito pela estrutura acusatória do nosso
processo penal.

⇒ Prazos para apresentação ao juiz:

Prescreve o art. 16º/4 LCC que “as apreensões efetuadas por órgão de polícia criminal são sempre sujeitas a
validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de 72 horas.”. Esse prazo inicia-se com a conclusão
da pesquisa e elaboração do respetivo auto (se em cumprimento de ordem de autoridade judiciária)
ou relatório (na sua ausência).

No inquérito, o OPC apresentará ao MP, em 72 horas, os dados apreendidos (distinguindo aqueles


suscetíveis de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do
respetivo titular ou de terceiro) e, em suporte autónomo, as mensagens de correio eletrónico ou
semelhantes cuja apreensão considera de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a
prova. O MP deverá, nesse prazo, proceder à validação do já apreendido (se validamente
apreendido, naturalmente) – art. 16º/4. Para além disso, deverá apresentar ao juiz de instrução quer
os dados já apreendidos suscetíveis de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa
a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, requerendo fundamentadamente a sua admissão
probatória pela sua relevância (art. 16º/3), quer, noutro suporte, as mensagens de correio eletrónico
ou semelhantes, requerendo fundamentadamente a apreensão daqueles que considera de grande
interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (art. 17º).

Não havendo prazo expressamente previsto na lei para esta apresentação ao juiz, RUI CARDOSO
entende que haverá que aplicar o prazo supletivo de 10 dias previsto no art. 105º/1 CPP.

⇒ Conhecimentos fortuitos:

Questão que tem vindo a ganhar grande relevo prático é a da utilizabilidade das mensagens de
correio eletrónico e semelhantes para a prova de crimes que não aqueles que originalmente
fundamentaram a pesquisa/perícia e apreensão, ou seja, quer esses outros crimes tenham relação de
conexão com originais (uma relação de “mesmidade”, em que ambos fazem parte do “mesmo pedaço
de vida” já em investigação, assim chamados de conhecimentos de investigação), em que o
aproveitamento será feito no mesmo processo, ou não tenham tal relação (conhecimentos fortuitos
em sentido estrito), sendo o aproveitamento feito noutro processo.

Será essa utilização, esse aproveitamento, admissível ou, pelo contrário, haverá aí uma proibição de prova?

A LCC não tem previsão expressa sobre esta matéria. Mas a ausência de expressa previsão legal não
significa que essa transmissão apenas seja admissível no caso das escutas telefónicas (e, por força do

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

disposto no n.º 4 do art. 18º LCC, também para a interceção de comunicações). Sendo a prova
originalmente válida, a admissibilidade da transmissão verificar-se-á, sem qualquer limitação,
sempre que não exista qualquer restrição de âmbito objetivo (catálogo de crimes) ou subjetivo
quanto ao concreto meio de obtenção de prova, por razões de economia processual e em obediência
a um primado de justiça e procura da verdade material.

Ainda que não se trate de uma aplicação analógica do regime previsto para as escutas telefónicas
(desnecessária e inadequada, pois, contrariamente a este, não há catálogo de crimes – como vimos
supra, por força do expressamente previsto no art. 11.º, aplica-se, em abstrato, a todos os tipos de
crime), as competências de MP e JIC são diferentes, tal como são diferentes os formalismos de
produção deste meio de obtenção de prova, afigura-se correto o princípio a que a doutrina e a
jurisprudência chegaram a propósito das escutas: as provas serão admissíveis para a prova dos
novos crimes se estes, ab initio, justificassem, por si, a sua obtenção.

Concretizando, e em coerência com todo o supra exposto sobre a apreensão de correio eletrónico ou
semelhante, para os conhecimentos fortuitos em sentido estrito o regime será o seguinte:

- No processo original, terá de ter havido uma válida pesquisa informática ou outro acesso
legítimo a um sistema informático onde foram encontrados armazenados, nesse sistema
informático ou noutro a que fosse permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, dados
informáticos que constituem mensagens de correio eletrónico ou semelhantes. Como não há
catálogo de crimes, as mensagens poderão, em abstrato, servir para a prova de qualquer crime
e, como não há limitação de âmbito subjetivo, as mensagens poderão ter tido como
remetente/destinatário qualquer pessoa.
- No processo original, as mensagens poderão estar já formalmente apreendidas (nos termos
do disposto no art. 17º, por serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para
a prova dos crimes já objeto desse processo) ou apenas armazenadas, caso em que haverá
primeiro que nelas realizar pesquisa de dados específicos e determinados que possam ser de
grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova dos crimes objeto desse outro
processo (necessariamente, a solicitação do titular do outro processo, que poderá estar em
inquérito, instrução ou mesmo julgamento), o que poderá consistir numa pesquisa totalmente
diferente da original. A entidade competente para autorizar essa pesquisa será o magistrado
do MP titular do inquérito original (como vimos, a intervenção do JIC ocorre apenas no
momento da apreensão formal das mensagens, ou seja, para decidir sobre a possibilidade de
utilização processual para efeitos de prova).

Quer estejam formalmente apreendidas, quer não, o que haverá a transmitir ao processo de destino
serão sempre os dados informáticos das mensagens de correio eletrónico ou semelhantes (não
haverá transmissão de mensagens apreendidas, pois esta apreensão é apenas a autorização de
utilização processual, a qual só pode acontecer no processo de destino).

A autorização para a transmissão será sempre apenas do magistrado do MP titular do inquérito


original (necessariamente, a solicitação do titular do outro processo, que poderá estar em inquérito,
instrução ou mesmo julgamento).

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Direito Processual Penal Leonor Branco Jaleco

Identificadas as mensagens de correio eletrónico ou semelhantes de grande interesse para a


descoberta da verdade ou para a prova no processo de destino (pelo seu magistrado titular ou por
quem por ele para isso tenha recebido delegação), há que enviar cópia exata dos respetivos dados
informáticos e dos documentos processuais relevantes para comprovar a licitude da
pesquisa/perícia/apreensão.

No processo de destino, caberá ao juiz aferir do “grande interesse para a descoberta da verdade ou para a
prova” (nunca poderá ser o juiz do processo original a fazer tal juízo, o que significaria atribuir-lhe
uma competência extra-processual, para a qual, aliás, não dispõe dos elementos necessários à decisão,
que apenas existem no ‘outro’ processo, que desconhece) – art. 17º LCC. Se esse outro processo estiver
em inquérito, a intervenção será do JIC e a requerimento fundamentado do MP; se estiver em
instrução ou julgamento, mesmo que a pesquisa no processo original tenha sido por solicitação do
juiz, deverá sempre o mesmo, quando recebidos os dados, e apenas nesse momento, proferir
despacho ao abrigo do disposto no art. 17º LCC.

Ou seja, nenhuma intervenção haverá do juiz de instrução do processo original.

Se apreensão for recusada pelo juiz, as cópias dos dados informáticos e dos documentos processuais
relevantes deverão (após trânsito da decisão) ser devolvidas ao processo original. Quanto aos
conhecimentos de investigação (para a prova de outros crimes que tenham relação de conexão com
os originais, em que o aproveitamento será feito no mesmo processo), nenhuma especificidade haverá
face ao regime geral antes exposto.

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