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REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO BÁSICA – RBEB

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(NESTE) ESPELHO ONDE O REFLETIDO ME INTERROGA:


MÚLTIPLOS LETRAMENTOS, LITERATURA E AUDIOVISUAL NO TRABALHO
COM PROJETO EM UMA TURMA DE EJA

Álida Angélica Alves Leal


Faculdade de Educação – UFMG
E-mail: alidaufmg@gmail.com

Ana Rita Santos


Prefeitura de Belo Horizonte e Faculdade de Educação – UFMG
E-mail: anaritasan21@gmail.com

Resumo: A Educação, no espaço da escola, pode contribuir para a inclusão social


dos educandos, especialmente quando se busca estratégias capazes de atender às
demandas de seus múltiplos letramentos. Enquanto professora na Rede Pública
Municipal de Belo Horizonte e em diálogo com as orientadoras deste estudo,
desenvolvido no Programa de Mestrado Profissional da Faculdade de Educação da
UFMG (PROMESTRE), pesquisei a minha própria prática docente, investigando o
papel das linguagens audiovisuais e da literatura nos múltiplos letramentos, nos
processos emancipatórios e na formação crítica de educandos de uma turma de EJA
em processo de alfabetização. Descrevo e analiso uma experiência de trabalho com
projeto desenvolvido em 2017, a partir de registros em diários de campo, vídeos,
fotografias e produções textuais. Nas análises, são discutidas: a relação dos
estudantes com a memória e os saberes tradicionais, o trabalho com metáforas, a
descontração na escrita e a construção do processo emancipatório pelos
educandos.

Palavras-chave: Múltiplos Letramentos. Educação de Jovens e Adultos. Trabalho


com projetos. Cinema e Literatura.

INTRODUÇÃO
“ [...] vejo a palavra enquanto ela se nega a me ver. A mesma palavra
que me desvela, me esconde. Toda palavra é espelho onde o
refletido me interroga”.

Bartolomeu Campos de Queirós, em Vermelho Amargo (2011).

Neste texto, cujo título remete à passagem apresentada em epígrafe,


considero que a Educação, no espaço da escola, pode contribuir para a inclusão
social dos educandos, especialmente quando se buscam estratégias capazes de
atender às demandas de seus múltiplos letramentos. Enquanto professora da
Educação Básica e em diálogo com as orientadoras deste estudo, desenvolvido no
Programa de Mestrado Profissional da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (PROMESTRE FaE/UFMG), pesquisei minha própria
prática, na perspectiva da pesquisa-ensino (Penteado e Garrido, 2010), investigando
o papel das linguagens audiovisuais e da literatura nos múltiplos letramentos, nos

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processos emancipatórios e na formação crítica de educandos de uma turma de EJA


em processo de alfabetização. Descrevo e analiso a experiência de trabalho com um
projeto denominado “Minas, Nordeste & África”, desenvolvido em 2017, que
envolveu o trabalho com o livro “Indez”, de Bartolomeu Campos de Queirós,
literatura de cordel e audiovisual. Os caminhos metodológicos consistiram na análise
de registros em diários de campo, vídeos, fotografias, produções textuais etc.
Em minha experiência docente, a parceria entre a literatura e o audiovisual
está presente desde 2014, quando cursei uma Especialização na área de Educação
e Cinema, uma parceria da Prefeitura de Belo Horizonte com a FaE/UFMG, e
comecei a desenvolver um projeto a respeito na referida turma de EJA em processo
de alfabetização. O trabalho representou uma tentativa de potencializar as
aprendizagens dos envolvidos e favorecer sua participação social.
Sabemos que a sociedade contemporânea vivencia intenso processo de
desenvolvimento das tecnologias, que vem trazendo mudanças significativas na
inclusão social dos sujeitos. O educando da EJA (Educação de Jovens e Adultos)
volta à escola buscando aperfeiçoar sua participação na sociedade, que, nesses
tempos atuais, demanda aprendizagens mais amplas do que ler e escrever. Vivemos
na Era digital, numa sociedade impregnada de estímulos visuais em cartazes
luminosos e em outros vários meios de comunicação, em que, ao olhar, somam-se
complexidades e ambiguidades interpretativas. A inquietação primeira, que me levou
a identificar o audiovisual como possibilidade de potencializar aprendizagens, veio
da percepção de que vários estudantes da turma de EJA participante desta pesquisa
e que estavam em processo de alfabetização, ao serem submetidos a processos
avaliativos externos, promovidos pela Secretaria Municipal de Educação da
Prefeitura de Belo Horizonte (SMED-PBH), apresentavam enorme dificuldade em
identificar/interpretar imagens básicas contidas nas avaliações. Considerei, então,
que uma das estratégias possíveis para a superação da referida dificuldade consistia
em fazer uso de imagens e adotar sondagem de forma coletiva do que os
estudantes estavam visualizando, buscando socializar a compreensão para que
conseguissem resolver as questões propostas. A partir dessa abordagem, passei a
compreender a importância de proporcionar experiências audiovisuais no currículo
da EJA, posteriormente associadas à literatura, visando à ampliação da leitura de
mundo dos educandos.

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Para consolidar e ampliar a extensão formativa do trabalho com audiovisual e


literatura, têm sido intensificados os diálogos culturais como o reconhecimento dos
signos e sentidos presentes em vídeos, que demandam novas aprendizagens por
parte dos sujeitos. Em paralelo, a busca daquela parceria para o desenvolvimento
dos processos pedagógicos tem contribuído para o envolvimento dos educandos,
especialmente quando as escolhas são pautadas em obras literárias e fílmicas que
apresentam afinidades com o leitor/espectador/educando de turmas de EJA,
situadas em regiões de periferia e constituídas, majoritariamente, por sujeitos de
baixa renda e de origem afrodescendente.
Esse cenário em que vivemos, marcado por mudanças sociais e sob efeito da
globalização e avanço das tecnologias, gera demandas por novos letramentos ou
multiletramentos que, conforme definição de BARBOSA (et. al., 2016, p.632):

Vão além das habilidades de ler e escrever, e, ainda, não ficam


restritos ao campo das linguagens, mas envolvem o domínio e a
capacidade de desempenhar diferentes habilidades e competências,
adentrando, cada vez mais, os contextos sociais, políticos e culturais,
portanto, não mais restritos ao âmbito educacional.

Esse desafio está posto de forma incisiva na escola, quando nós mesmos,
como docentes, ainda não nos apropriamos dessas tecnologias, apenas tateando
essas competências demandadas atualmente, o que dificulta a mediação com
nossos educandos. Neste sentido, voltar os olhos para a própria prática nos
possibilita colocar em questão a nossa trajetória docente, os acertos e os equívocos
cometidos, tecendo uma reflexão mais consistente não só à luz das teorias, mas
também de novas formas de pensar e fazer, para, assim, ir trilhando continuamente
na docência. A abordagem da pesquisa-ensino, segundo PENTEADO (2010, p.11),
“produz mudanças nos alunos, qualificando seus processos de aprendizagem, e
também no docente pesquisador, em sua prática de ensino, tornando-o mais
confiante, autônomo e compromissado com o que faz. Produz, ainda,
conhecimentos sobre a docência”. A este respeito, BRAGA (2013, p.52) nos diz que

a narrativa é uma forma de comunicar ou contar as experiências vividas


por uma pessoa ou por um grupo, portanto, entendo que, ao narrar
minha história de formação em consonância com o que eu faço, estarei
colocando minha prática à mostra com o objetivo de compreender e
saber por que eu faço o que faço.

Para contextualizar a pesquisa, sou professora unidocente vinculada à Escola


Municipal Professor Paulo Freire (EMPPF) da Rede Municipal de Educação de Belo

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Horizonte, localizada no Bairro Ribeiro de Abreu, Região Nordeste, território


marcado por grande vulnerabilidade social e segregação socioespacial. A turma
pesquisada é composta por 24 educandos – 15 mulheres e 09 homens na faixa
etária de 36 a 86 anos. Quanto ao quesito raça/cor, se autodenominam pretos (10);
pardos (7); brancos (6); indígenas (1); sendo predominantes negros e negras (71%).
No mundo do trabalho, os homens estão inseridos como pedreiro (1), serviços gerais
(1), gari (3), aposentado (2), servente de pedreiro (2); as mulheres como empregada
doméstica/diarista (4), serviços gerais (1), doula (1), do lar (4) e aposentada (5).
Cabe destacar que tais profissões trazem a marca da marginalização social,
especialmente entre a população negra de nosso país. São ocupações menos
valorizadas, que representam traços diretos da ausência de escolarização, refletidos
em baixas remunerações. Estes sujeitos também trazem, em suas histórias de vida,
resquícios de outras privações às quais foram submetidos, como o acesso a
moradias em locais de precarização dos serviços públicos, negação do direito à
saúde, a transporte de qualidade, a saneamento básico, à cultura e ao lazer
(OLIVEIRA, 2017, p. 2). Assim, estes sujeitos chegam à EJA buscando ler a bíblia,
ler receitas, placas de rua e de ônibus, ansiosos por ampliar a leitura deste mundo
em que vivem.

AUDIOVISUAL E LITERATURA NA EJA: EM CENA, O PROJETO “MINAS,


NORDESTE & ÁFRICA”
Se pensarmos na gama de recursos de comunicação envolvidos na escrita,
principalmente a literária, com seu enredo personalizado, percebemos o quanto
precisamos contextualizar o ambiente e dispor de pistas importantes que possam
favorecer o entendimento das entrelinhas do texto. A linguagem audiovisual
apresenta outro universo de comunicação, no qual vários elementos de percepção
sensorial estão envolvidos, além da necessária contextualização. Sobre esse
emaranhado de linguagens, BARBOSA (2016, p. 625) nos apresenta o conceito de
multimodalidade ao explicar que,
em nossas práticas sociais, nos comunicamos não apenas por meio
de palavras, mas também de sinais, gestos e imagens, entre outros
recursos semióticos, configurando a comunicação como um evento
multimodal, que agrega diversos modos e recursos semióticos,
independente do meio pelo qual ela se realize – oral ou escrito,
impresso ou digital.

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É importante ter em mente que esses diferentes recursos, como texto verbal,
imagens em movimento ou não, sons e música, se articulam visando à
comunicação, ainda que as interpretações não sejam únicas, pois os indivíduos têm
experiências diferenciadas, que levam a interpretações diferenciadas.
A escolha do projeto “Minas, Nordeste & África” para aprofundamento das
análises deve-se ao fato de ele ter representado um marco para os educandos em
termos de novas possibilidades de envolvimento nas aprendizagens desses
múltiplos letramentos. Depois de vivenciar, em 2016, um projeto focado
intensamente nas questões étnico-raciais, que dialogava com o livro “Quarto de
despejo-diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus (Projeto “Carolina: a
catadora de palavras”), penso que elementos distintos convergiram para um novo
patamar identitário no grupo dos estudantes, que passou a ser trabalhado desde
então. Neste novo projeto, foi possível contemplar a cultura nordestina (visando
atender a seis estudantes oriundos desta região do país) e, também, a cultura
indígena, tão invisibilizada no cotidiano escolar. Também foi possível abordar os
cuidados maternos presentes na obra “Indez”, de Bartolomeu Campos de Queirós,
para um grupo formado, em sua maioria, por mães. Esta temática foi aliada a
referências da cultura interiorana mineira, dada ser esta a origem de muitos
educandos, cujas vidas são marcadas pelo êxodo rural.
O audiovisual também esteve presente neste projeto, potencializando saberes
e propiciando reflexões coletivas sobre a nossa condição humana. No decorrer da
proposta, pequenos vídeos foram trabalhados envolvendo conhecimentos de
História com as questões étnico-raciais (“Consciência Negra: um caminho longo para
a liberdade”: encurtador.com.br/dVYZ2; “Povos Originários”:
encurtador.com.br/gIJLN), conhecimentos de Geografia envolvendo países de África
(“África de A a Z”: encurtador.com.br/zMU39), conhecimentos de Ciências
contemplando a cultura nordestina e o bioma Caatinga (“Caatinga TV Educativa de
Alagoas”: encurtador.com.br/tuEP1; stop-motion “O Cangaceiro”:
encurtador.com.br/ehmzX), além de vídeos de músicas associadas às temáticas
(“Cidadão”, de José Geraldo: encurtador.com.br/cfjvK; “Mestre-sala dos Mares”, de
João Bosco: encurtador.com.br/mtxKT; “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga:
encurtador.com.br/fiIQV). Com estes materiais, a estratégia junto à turma consistiu
em estimular a educação do olhar, ao fazer inferências de forma coletiva,
representando, também, um incentivo à desinibição para adultos mais tímidos.

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Destaco, ainda, o trabalho com a “competência para ver” (DUARTE e


ALEGRIA, 2008), desenvolvida em exibições de três filmes de longa-metragem:
“Central do Brasil”: encurtador.com.br/djlFV; “O Auto da Compadecida”:
encurtador.com.br/mnyBZ e “Narradores de Javé”: encurtador.com.br/BDJO0. Os
enredos propiciaram vivências de análise estética das obras, por meio de reflexões
quanto aos movimentos de câmeras e as interpretações das imagens ou mesmo
comparações entre as obras fílmicas e os recursos imagéticos utilizados pelos
diretores para representação da memória.
No projeto, cinema e literatura se entrecruzaram enquanto catalizadores dos
processos de autoconhecimento dos sujeitos, possibilitando reflexões sobre nossa
condição humana, nossos papéis sociais e o quanto estamos (ou não) conscientes
sobre eles. Além disso, o ato dos estudantes produzirem vídeos e textos configurou
uma apropriação do fazer para além de um processo passivo de apenas ler e
assistir, remetendo a outro patamar cognitivo dos sujeitos. Sobre a produção textual,
ao longo do ano, cada educando se dedicou à elaboração de um livro individual, no
qual cada um/a anotou seus aprendizados, especialmente em versos rimados, a
partir da leitura semanal de trechos das obras literárias trabalhadas dentro do
projeto. Quanto aos vídeos, ganhou destaque a produção de vídeos com celulares,
pelos educandos, sobre procedimentos medicinais caseiros difundidos pela
sabedoria popular, após a leitura do livro Indez, que culminou na elaboração de um
documentário.
Tudo isto foi realizado sem deixar de revisitar conhecimentos vivenciados no
projeto anterior, por meio de visitas ao Museu de Artes e Ofícios (MAO) e à cidade
de Ouro Preto. Estas atividades catalisaram conhecimentos posteriormente
trabalhados em sala de aula, por exemplo, sobre a naturalização do racismo em
nossa sociedade, que exige intervenções constantes junto aos educandos da EJA
no cotidiano da escola. Além disso, o desenvolvimento do projeto contou com
parcerias de estudantes de Pedagogia, o que representou uma ampliação no
atendimento das demandas dos educandos, por exemplo, através da realização de
oficinas de Cinema, favorecendo o desenvolvimento de múltiplas aprendizagens.

MÚLTIPLOS LETRAMENTOS E EMANCIPAÇÃO DE EDUCANDOS DA EJA

Durante o desenvolvimento do projeto, foram evidentes as possibilidades de


aprendizagens significativas propiciadas pela reinvenção das memórias.

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Lembranças puderam ser reconstruídas pelos estudantes ao serem trazidas para um


presente, em que somos outros sujeitos, vivenciando novas experiências. Além
disso, a partilha das vivências aglutinou identidades, ajudando a construir empatias
e reflexões sobre a condição humana.
Quanto ao trabalho desencadeado pelos saberes tradicionais, particularmente
sobre as plantas medicinais, saliento que a familiaridade das vivências da
personagem apresentada no livro literário e dos educandos favoreceu não apenas a
imersão no universo da narrativa, mas também um desprendimento maior dos
estudantes para outras perspectivas de aprendizagens para além desses saberes
abordados. Ademais, este foi um caminho profícuo de construção do protagonismo
dos educandos e de reforço de sua autoestima. Esse conhecimento, que era de
domínio desse grupo, se apresentava como um elemento de escambo na relação
com a professora, que desconhecia esses saberes. O contexto escolarizado, quase
sempre é desfavorável para o sujeito em processo de alfabetização, quando ignora
seus conhecimentos .
Além da afinidade identitária proporcionada pelo livro Indez aos adultos de
EJA, ressalto a oportunidade de explorar a escrita poética de Bartolomeu junto aos
educandos. Essa referência diz respeito ao uso de metáforas, traço marcante em
seu estilo. Tal figura de linguagem e elemento de democratização do texto, conforme
QUEIRÓS (2012), mostrou-se bastante compreensível aos educandos. Durante as
aulas, procurava ressaltar todas as metáforas nas reflexões das leituras semanais.
Conversava com eles sobre o sentido corriqueiro que empregávamos para
determinada palavra e, a partir daí, estimulava-os a explicitar o sentido que poderia
ser aplicado no contexto da escrita do autor. Este exercício foi sendo ampliado para
outras leituras feitas junto à turma e, com o passar do tempo, alguns estudantes
passaram a incorporar as metáforas em suas produções textuais, ampliando a
fluidez na escrita.
Outro aspecto marcante no desenvolvimento do projeto foi a descontração no
processo de escrita dos educandos. Na escola, a descontração se apresenta
geralmente associada às artes. No projeto, o fator preponderante para essa
desinibição da escrita foi a parceria com a literatura de cordel, que surgiu a partir da
oficina “Criações Poéticas Populares” que vivenciei no 11º Festival de Verão 2017-
UFMG. Com isto, a ludicidade passou a estar mais presente no processo coletivo e
nas produções textuais registradas no livro individual construído por cada estudante,

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que trazia releituras de trechos do livro Indez. O teor engraçado de várias produções
dos estudantes, partilhadas coletivamente nas aulas, tinha grande receptividade do
grupo. Foram momentos em que escrever estava em um contexto de descontração,
desprendimento, favorecendo o avanço no processo da escrita dos educandos,
conforme o caminhar de cada um. Quanto ao processo emancipatório dos
sujeitos pesquisados, analisando o cotidiano da sala de aula, na qual “quem ensina
aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (FREIRE, 1999), considero
que a estruturação de uma prática pedagógica focada em processos dialógicos, por
meio de uma relação educador/educando mais democrática e respeitosa, foi um
importante pilar na construção dos processos educativos junto à turma. É nessa
alteridade que construímos nossas teias de conhecimento, apropriando-nos de nossos
atributos humanos, nossa dignidade. A tradução dessa teia da cena da aula expressa-
se nos dizeres de TEIXEIRA (2007, p.432), para quem “o que mais importa é que ali
existam, que ali estejam, na relação, os sujeitos socioculturais que nela se constituem
como docentes e discentes, numa interação intencionalmente mediada pelos processos
de transmissão e de reinvenção da cultura e do conhecimento”.
A docência na EJA traz um fio diferencial nessa teia, a vivência do adulto, que
representa uma demanda específica em termos de postura, concepção e
compromisso do educador com os sujeitos da aprendizagem. Os reflexos se fizeram
notar na autonomia dos educandos em direcionar os temas a serem estudados,
proporcionando que os conhecimentos estivessem conectados aos interesses,
valores e possibilidades do grupo, encaminhados para o objetivo de atender aos
processos de desenvolvimento dos multiletramentos, em que cinema e literatura
dialogaram enquanto linguagens artísticas propulsoras de aprendizagens diversas
na teia das possibilidades que a sensibilidade e a liberdade enredaram.
Ainda que as possibilidades antes citadas sejam cruciais, reconheço que a
ação educativa que desenvolvemos na escola, que propicia a emancipação dos
educandos, não se apresenta concluída entre as quatro paredes da sala de aula.
Conhecimentos são construídos e difundidos pelos sujeitos nas diferentes esferas
sociais das quais participam. Além disso, a efetivação das aprendizagens ou, mais
especificamente, a construção de experiências, também pode ser ressignificada a
partir de novas oportunidades. Só o tempo dirá sobre outros desdobramentos e
repercussões do trabalho, aqui e acolá, nas vidas dos educandos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletindo sobre a parceria entre literatura e os recursos audiovisuais como


potencializadores do ensino e da aprendizagem de educandos da EJA, alguns
aspectos referentes a este encontro no projeto “Minas, Nordeste & África” (2017)
ganham destaque. O exercício intensivo de diálogos vivenciados nos processos
cotidianos aconteceu por meio da leitura coletiva de uma imagem, da realização de
uma roda de conversa sobre o fragmento do livro lido ou das impressões partilhadas
a partir de um pequeno vídeo, que suscitavam reflexões e subsidiavam a
sistematização posterior de cada temática. Tais exercícios se entrelaçaram durante
as aulas, representando considerável contribuição na construção de conhecimentos
por parte dos educandos. Destaca-se, ainda, o prazer que a literatura nos oferece,
aliada ao encantamento que as imagens em movimento produzem em nós. Estes
são elementos que, ao estimular nossa sensibilidade, favorecem aprendizagens
significativas.
De modo geral, o processo de emancipação dos educandos começou a se
constituir a partir do exercício da liberdade e da imaginação proporcionado pelo
encontro entre audiovisual e literatura. Este foi um ponto de inflexão importante no
percurso educativo da turma ao longo de todos estes anos em que trabalhamos
juntos, pois foi naquela ocasião que começaram a se apropriar com mais leveza da
literatura e a escrever com mais fluidez. Os estudantes protagonizaram um jogo de
cena, mostrando-se mais à vontade nesse fazer, sem impedimentos e inibições,
atitudes muitas vezes inesperadas do sujeito analfabeto, que apresenta “uma
corrosão da auto-estima”, que cala sua própria voz diante do outro (OLIVEIRA,
2019).
Por fim, indico que uma das intenções deste texto é a de socializar a
experiência da pesquisa com outros colegas de docência, visando encorajá-los a se
engajarem nesse processo de investigar a própria prática, buscando, também,
consolidar novos conhecimentos, visando a uma ação pedagógica menos
excludente e mais democrática para os educandos da EJA, mesmo diante dos
desafios que a modalidade enfrenta no cenário de desmonte da educação no país.

REFERÊNCIAS

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BARBOSA, Vânia S.; Araújo, Antonia D.; Cleudene de O. Multimodalidade e


multiletramentos: análise de atividades de leitura em meio digital. Revista Brasileira
de Língua Aplicada, Belo Horizonte, v. 16, n.4, p.623-650, 2016.

BRAGA, Nádia Helena. Pesquisando a própria prática: narrativa de uma


professora de Matemática. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Ouro
Preto, 2013.

DUARTE, Rosália, ALEGRIA, João. Formação estética audiovisual: um outro olhar


para o cinema a partir da educação. Revista Educação & Realidade jan/jun p.59-80.
Porto Alegre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

OLIVEIRA, Heli Sabino de. Do conceito de “periferia”: primeiras aproximações


teóricas. Circulação Interna. Belo Horizonte: 2017.

OLIVEIRA, Míria Gomes de. De leitor para leitor: relações raciais no ensino da
literatura infantil e juvenil no Brasil. Belo Horizonte: 2019.

PENTEADO, Heloísa D.; GARRIDO, Elsa (orgs.). Pesquisa-ensino: a Comunicação


Escolar na Formação do Professor. São Paulo: Paulinas, 2010. – (Coleção
educação em foco).

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Indez. São Paulo: Global, 2005.

__________________________.Sobre ler, escrever e outros diálogos. Júlio


Abreu (organizador). Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

__________________________. Vermelho amargo. 2ª ed. São Paulo: Global,


2017.

TEIXEIRA, Inês de Castro. Da condição docente: primeiras aproximações teóricas.


Educ. Soc., Campinas, vol.28, n.99, p.426-443, maio/ago. 2007.

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