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A PRECARIEDADE NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA DURANTE A REPÚBLICA:

MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

Guilherme Ramalho Arduini

Inicio o texto com meus sinceros agradecimentos ao Geher (Núcleo do

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Rio), especialmente na figura de Paula Leonardi e Marco Aurélio Martins

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Corrêa, pelo convite para participar desta prazerosa e frutífera jornada. Talvez
um bom ponto de partida seja lembrar o que significou a ampliação da exclu-
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são da cidadania política no fim do Império e na Reforma Eleitoral de 1881,
que estabeleceu a alfabetização como obstáculo para o exercício do voto. Com
a nova regra, estima-se, a proporção de eleitores no conjunto da população
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caiu de 10% para 1% (CARVALHO, 1987). A República agravou esta condição
ao sequer estabelecer a obrigatoriedade da educação pública como um de-
ver de Estado. Não obstante a tentativa de estabelecer reformas educacionais
nas primeiras décadas – geralmente frustradas – a Primeira República não
pode ser vista como um período de protagonismo do Estado no provimento
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da Educação.
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O Brasil é um interessante caso da “República que não foi”, uma República


conspirada por grupos nos quais se pressupunha que o acesso à cidadania
política pudesse ser resumido a um grupo restrito. Ou então grupos que nega-
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vam o acesso em vista de seu argumento de que era desejável conceder alguns
direitos sociais, mas não a participação política. Uma análise das declarações
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na imprensa dos “Republicanos de 14 de maio”, como ficaram conhecidos os


cafeicultores que passaram a apoiar o advento da República após a abolição da
escravatura, evidencia um exemplo de como manter as aparências de um repu-
blicanismo sem entrar no mérito da construção de uma base social ampliada
de atendimento dos serviços básicos para os cidadãos. Em paralelo, os positi-
vistas que também demonstraram apoio aos ideais republicanos se mostraram
dispostos a conceder poderes bastante estendidos ao Executivo Nacional, que
poderia administrar os serviços oferecidos pela estrutura burocrática de modo
a ampliar a oferta de saúde e educação – mas sem se preocupar em dar voz
a operários e outros trabalhadores braçais. Mais que isso, esses positivistas

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nutriam profunda desconfiança da democracia liberal disponível e suas vias
para a emancipação social.
Deste quadro resulta que pensar a educação no Brasil desse período impli-
ca em uma educação fragmentada socialmente, uma educação que não pensa
o país e não propõe, como seu objetivo, construir coletivamente este país. A
educação nesse período poderia ser um sinal de distinção social, como era o
caso dos meninos e meninas enviados a colégios no exterior ou suas cópias no
mercado escolar local, um serviço por vezes oferecido por gente vestindo batina
ou hábito (BRITO, 2017). A educação também poderia ser marcada por uma
visão ideológica vinda de Roma, portadora de um sonho (mais do que um pro-
jeto político com possibilidade de instalar-se) de volta a uma cristandade mais
imaginada que real. O que a educação não poderia ser era um projeto de país.

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Isso tem impacto sobre o que nós chamamos de “laicidade” (CUNHA,
2014), que no caso brasileiro é um processo muito relativizado pelas demandas

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políticas tanto de formação de quadro quanto de construção de uma rede, ainda
que bastante precarizada, de oferta de serviços sociais ao preço que esses gover-
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nos desejavam pagar. Ou seja, a um preço muito baixo, e ainda assim – ou me-
lhor, por isso mesmo – repassado a organizações privadas, geralmente religiosas
nesse período, que se dispusessem a suprir os serviços solicitados ao Estado,
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como a assistência à infância desvalida, a educação, o acolhimento dos idosos e
assim por diante (BITTENCOURT, 2017). Em especial no quesito da educação,
o que se vê é a união do trabalho como educador com outras fontes – profissões
liberais ou religiosas, a depender do caso. Alguns trabalhos apresentados nesta
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sessão nos ajudam a compor esse quadro com agudez.


Em vista do exposto acima, os trabalhos desta mesa dialogam com a histo-
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riografia sobre a educação brasileira e com algumas visões consagradas sobre


as relações entre a Igreja, o Império e a sociedade civil, nas quais se descre-
ve o papel das escolas confessionais na formação da elite (SAVIANI, 2013).
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Especialmente nas primeiras décadas da República e em vista dos níveis bai-


xíssimos de instrução pública, há uma sobrerrepresentação dos clérigos no po-
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der público, especialmente – mas não apenas – em temas ligados à educação.


Estudos sobre as Casas Legislativas demonstram que a quantidade de padres
com representação política era bastante alta, não apenas em número como
também em centralidade de seu protagonismo. Entre liberais como o padre
Diogo Feijó e conservadores como o arcebispo primaz do Brasil, Romualdo
Antônio de Seixas, a disputa política perpassava o clero e tinha neste alguns
de seus personagens principais.
Em parte, essa situação pode ser explicada pela forma improvisada com a
qual o país se formou com a Independência. A sequência de acontecimentos
em que D. Pedro I lidera o processo de Independência inclui a importação de

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uma elite portuguesa em 1808 e a divisão dessa mesma elite nos anos poste-
riores, com uma leva de burocratas a regressar a Portugal entre 1816 e 1822 e
outra leva a constituir a semente da elite do recém-formado Império brasilei-
ro. É sobejamente sabido que as condições que levam ao rompimento com a
Corte lusitana não são resultado de processos sociais e culturais de longa data,
como se houvesse uma tradição cultural e política muito distinta entre a elite
estabelecida no Rio de Janeiro e a de Lisboa. Se as diversas tribos indígenas e
diferentes etnias africanas que aqui vivam nesse período lograssem participar
do processo de independência, o resultado teria sido outro – mas estes grupos
foram diligentemente excluídos dessa articulação.
O processo conturbado de separação não planejada entre o Brasil e o
Império português molda a forma como ocorrem as políticas públicas em se-

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tores como a educação. Há muitas poucas escolas em proporção ao território
e à população e, ao mesmo tempo, elas são muito numerosas face à fragilida-

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de das estruturas burocráticas educacionais. O clero é oficialmente parte da
Coroa nacional e, como demonstrado logo acima, participa de forma bastante
ativa das disputas políticas nacionais.
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A virtude dos textos ora apresentados consiste em caracterizar um lado
dessa máquina pública, a saber, o das instituições escolares pertencentes à
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Coroa – que também eram expressivamente ocupadas por clérigos. A escala
de análise da província do Rio de Janeiro permite enxergar o modo como os
ocupantes de cargos transitavam – da instituição religiosa para a pública, de
uma cidade para outra, etc. Isso permite compreender as dinâmicas locais que
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tornam viável o preenchimento das funções sociais esperadas para a educação


pública naquele período. O texto do Marco Aurélio Martins, por exemplo, é
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denso de reflexão sobre os regimes de historicidade, pensando em seu papel


de historiador como alguém que ao mesmo tempo projeta o futuro no passado
e lida com a intervenção do poder público que também projeta sua interven-
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ção na organização da escola como um presente com futuro já delineado.


No texto em tela, aprende-se que a inspiração na reforma Guizot convive
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com o realismo de precariedade no estabelecimento das funções e gratifica-


ções dos profissionais da educação envolvidos – nem tão profissionais assim,
como se revela no caso dos inspetores paroquiais, uma vez que se dividem
entre muitas tarefas e por vezes não recebem gratificação específica para isso.
Seu trabalho de acompanhamento da biografia de Couto Ferraz nos leva à
curiosidade sobre os meandros da pesquisa que levaram a considerar este
nome como central para sua pesquisa. A forma como o trabalho de Marco
Aurélio demonstra a relevância dos clérigos envolvidos na educação nos faz
questionar o rendimento analítico que poderia resultar da realização de uma
prosopografia desses personagens.

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É possível pensar em uma prosopografia desses clérigos envolvidos na
educação? Considera-se a prosopografia como uma ferramenta seminal por
aquilo que ela permite enxergar no diálogo entre História e Sociologia, ou,
dito de forma mais livre, no diálogo entre a autonomia de ação dos sujeitos e
as constrições sociais a emoldurar estas ações (HEINZ, 2006; STONE, 2011).
Outra sugestão possível é a de investir em uma reflexão metodológica sobre o
que significou a mudança de gênero textual, das notícias da imprensa ao relato
dos presidentes de província. A pesquisa impõe alterações de percurso muitas
vezes inesperadas, mas que podem render muitos frutos quando o pesquisador
repensa sua trajetória. O texto de Marco Aurelio Martins nos provoca a refletir:
como muda a escala de pesquisa quando migramos de um grupo de número
desconhecido de jornalistas e seus artigos para um punhado de presidentes de

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província e seus respectivos relatórios? Outro diálogo possível se ancora nas
relações da História com a Geografia. É possível pensar uma espacialização do

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entrelaçamento das questões políticas e educacionais? Há diferenças regionais
dentro da província para saber onde a aliança saquarema é mais forte ou onde
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os discursos liberais podem se estabelecer com maior força?
O promissor trabalho de Tatiane Santos dos Reis dialoga com uma linhagem
de pesquisas que documenta o histórico de dupla repressão sofrida pelas ir-
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mandades: de um lado a hierarquia eclesial, de outro o poder público (ABREU,
1996). Compreender que mesmo uma tradição originalmente ocidental (no
caso, o catolicismo) pode ser estudado em uma afroperspectiva é uma leitura
primorosa de tradições do pensamento decolonial que nos convida a compreen-
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der os limites do universal, a enxergar os fios oriundos de muitas tradições que


se entrelaçam para formar as manifestações culturais que nos compõem.
PI

Uma sugestão possível é a de pensar se seria o caso de escolher entre es-


tudar o que foram essas irmandades no passado ou estudar os significados do
patrimônio histórico no presente, sob risco de ampliar em demasia o próprio
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objeto de estudo. O catolicismo na afroperspectiva talvez pudesse servir como


mote na medida em que ele repensa o cotidiano dessas organizações como um
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espaço privilegiado para perceber o racismo e o sexismo, enfim, pensar essas


práticas religiosas sob uma perspectiva decolonial. Uma forma de estimular
essa forma de pensamento poderia ser o questionamento sobre as fronteiras
entre o religioso e o não religioso.
Sobre a pesquisa de Pedro Henrique Nascimento de Oliveira, ela traz à luz
um importante aspecto da pesquisa contemporânea sobre religião: a composi-
ção de patrimônio, tema de poucos estudos até aqui (RIGOLO FILHO, 2019).
Há de se valorizar a coragem de enfrentar as dificuldades em penetrar nos in-
transponíveis arquivos das congregações e ordens, a metodologia de pesquisa
adotada e a temática pertinente, pois extremamente atual. O resultado desse

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trabalho permitirá refletir sobre a (falta de) laicidade no trato do Estado com
as igrejas, pois estas últimas são alvo de diversas formas de renúncia fiscal
dadas pelos órgãos públicos. Neste aspecto em especial, seu trabalho permite
dialogar com estudiosos da sociologia da religião no Brasil que se preocupa-
ram em compreender como se configura a laicidade no Brasil (MARIANO,
2011; MONTERO, 2009).
Existe uma fraqueza histórica da laicidade na história brasileira, demonstra-
da pela situação do presente e, como nos faz perceber esta pesquisa, também
ao início do século XX. A laicidade ocupa uma posição ambígua na República
brasileira: não é tão forte a ponto de se impor como força determinante no trato
com as igrejas, tampouco é tão débil que possa ser ignorada como um discurso
que pauta as decisões políticas. Se neste aspecto o Brasil poderia ser aproxima-

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do de Espanha, Portugal e Itália, há um distanciamento quando se analisa que,
no caso brasileiro, há uma singular concorrência entre católicos e pentecostais.

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Tal concorrência poderia ser lida como um fator que introduz a modernida-
de nas relações religiosas brasileiras, ou seja, um pluralismo religioso. Ainda
PE
que houvesse diversidade religiosa antes da emersão dos evangélicos, ela se
dava dentro de um regime de sincretismo hierárquico: outras religiões podem
existir, desde que se assuma o catolicismo como o “padrão-ouro” a partir da
FA
qual as outras religiões se relacionam e negociam seu espaço na arena pública.
A facilidade com que os colégios marista e jesuíta conseguem se impor na
sociedade carioca, cabendo a uma pequena parte da imprensa o discurso con-
trário, são uma demonstração dessa constatação.
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Com os evangélicos (principalmente os neopentecostais), há uma demanda


por representatividade por conta própria que altera as regras do jogo político.
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Essa vertente se estabeleceu no contraste com os grupos católicos, pois ocu-


pou os espaços urbanos com uma estrutura mais flexível e mais dócil ao re-
gime militar. As pequenas igrejas podiam se instalar em lugares a que os ca-
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tólicos não chegavam, e as pregações não enfrentaram a ditadura como, por


exemplo, a Teologia da Libertação. Houve uma primeira fase de recusa confor-
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mista da política que se alterou na década de 1980, quando os neopentecostais


passam a mergulhar na política, sob a justificativa de que seus adversários
ideológicos (a esquerda, os grupos pró-aborto ou pró-direitos reprodutivos)
participavam livremente. (De fato, a experiência da Constituinte represen-
tou um aparecimento destas questões de forma inédita na vida republicana).
Em contraponto a Mariano, pode-se argumentar que o fortalecimento dos
neopentecostais representou uma ameaça à pluralidade, pois em sua visão se-
riam essas parcelas dos evangélicos os inimigos do sincretismo (GIUMBELLI,
2008). Esta é uma das inúmeras questões que os textos ora apresentados per-
mitem explorar mais a fundo.

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REFERÊNCIAS

ABREU, Martha Campos. O império do divino: festas religiosas e cultura popular no


Rio de Janeiro 1830-1900. Campinas: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, 1996, p. 1-507.
BITTENCOURT, Agueda Bernardete. A era das congregações: pensamento social,
educação e catolicismo. Pró-posições, [s.l], v. 28, n. 3, p. 29-59, 2017.
BRITO, Angela Xavier de. Orar, ensinar ou agir. As diversas formas de cumprir o
Carisma de Sion. Pró-posições, [s.l], v. 28, n. 3, p. 112-143, 2017.
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CUNHA, Luiz Antônio. A laicidade em disputa: religião, moral e civismo na edu-
cação brasileira. Revista Teias, [s. l.], v. 15, n. 36, p. 5-25, 2014.

J
GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no

R
Brasil. Religião & Sociedade, [s. l.], v. 28, n. 2, p. 80-101, 2008.
HEINZ, Flávio M. (org.). Por outra história das elites. [S. l.: s. n.], 2006.
PE
MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira: católicos, pentecostais e laicos em dis-
puta na esfera pública. Civitas [s. l.], v. 11, n. 2, p. 238-258, 2011.
MONTERO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo
religioso no Brasil. Etnográfica [s. l.], v. 13, n. 1, p. 7-16, 2009.
FA

RIGOLO FILHO, Pedro. Pobreza e patrimônio – Problemas sociais reconvertidos em


apostolado por religiosas franciscanas. Campinas: Unicamp, 2019.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores
A

Associados, 2013.
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista Sociologia e Política, [s. l.], v. 19, n. 39,
PI

2011.  
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172 GUILHERME RAMALHO ARDUINI


DISTÂNCIA, AFETO E EXÍLIO:
TRÊS METÁFORAS A PARTIR DA OBRA DE GINZBURG
PARA ENTENDERMOS NOSSO TRABALHO
COMO PESQUISADORES DA EDUCAÇÃO

Thiago Borges de Aguiar

Luciana Haddad Ferreira

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Há tempos refletimos como fazemos nossas pesquisas e nos constituímos
pesquisadores a partir de uma leitura indiciária da realidade. Ao delimitar a
Educação como campo de estudo, compreendemos que a realidade é fonte
para a construção do conhecimento e da cultura, bem como para o nosso pró-
FA
prio desenvolvimento. Essa relação, no entanto, é de interação e formação:
somos afetados pela realidade ao mesmo tempo em que nossa intervenção a
altera e cria novas realidades.
A realidade não é conhecida em sua totalidade. Sabemos que toda relação
A

com o meio é mediada e atravessada pelos elementos culturais, que funcio-


nam como lentes e direcionam nossa forma de conhecer, compreender, reagir
PI

e sentir. Por isso, nossa experiência é de conhecimento parcial em relação a


algo: não partimos do total estranhamento, nem elaboramos compreensões
a partir do zero. Sabemos a partir de nossa cultura e língua, das condições
Ó

objetivamente oferecidas em nosso tempo e lugar, conhecemos por meio das


sensibilidades que em nós foram desenvolvidas e possibilitadas.
C

No entanto, o entendimento de que o real é intangível não significa, de


modo algum, render-se à afirmativa de que qualquer interpretação é válida,
ou mesmo que todo conhecimento se reduz a percepções individuais ou opi-
niões pessoais. Assumindo que há uma realidade a ser conhecida, constituída
de fatos e indivíduos concretos, o compromisso de quem realiza pesquisa é
aproximar-se o máximo possível de seu objeto de estudo, de modo a produzir
uma interpretação que possibilite cada vez maior visibilidade e compreensão
do tema investigado.
Por isso, compreendemos que fazer pesquisa educacional exige o desen-
volvimento de certa intencionalidade ao olhar para o real, que faça com que

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 295


o pesquisador ou a pesquisadora não aceite ingenuamente o que vê, ouve e
percebe, que permita buscar significados e conhecer contextos da realidade
investigada que extrapolem o que parece já ser conhecido. Por não conseguir-
mos fazer uma leitura “direta” do real, entendemos que a tarefa de pesquisa
é a de reconstruir a realidade, narrativamente, por meio de elementos que
reunimos em nossa investigação.
Num olhar histórico para o fenômeno educativo, estamos sempre tateando
no escuro numa gigantesca sala lotada de objetos com pouca chance de ilumi-
nação. Diante de nossos recortes, de nossas escolhas de observação, enxerga-
mos alguns detalhes e buscamos construir uma narrativa coerente sobre o que
a reunião daqueles detalhes nos permite compreender.
Nossa forma de compreender a realidade é fortemente marcada pela obra

J
do historiador italiano Carlo Ginzburg, autor que segue impactando nossa
compreensão do exercício da pesquisa em educação, como um todo, e da his-

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tória da educação, especificamente. Recentemente, publicamos dois artigos,
um no qual buscamos situar as contribuições do autor para a história da edu-
PE
cação (AGUIAR; LEONARDI; PERES, 2021) e outro no qual destacamos o
caráter narrativo das pesquisas que tomam o paradigma indiciário como opção
de trabalho (AGUIAR; FERREIRA, 2021). No primeiro, concluímos com uma
FA
síntese de como entendemos um trabalho de pesquisa teoricamente funda-
mentado num paradigma indiciário, síntese essa elaborada em diálogo com a
obra de Ginzburg:
Considerando o caráter fragmentário da realidade, remontamos uma
A

realidade complexa, não experimentável diretamente, com indícios dis-


postos por nós, pesquisadores, de forma narrativa, em diálogo erudito
PI

com o entorno daqueles indícios. Por meio de uma leitura indireta dos
indícios que recolhemos, construímos perguntas narrativas que possibi-
litem decifrá-los com um rigor flexível. Na alternância entre o micro e o
Ó

macro, buscamos um conhecimento que possui um caráter de totalidade,


partindo não apenas dos elementos recorrentes, mas das anomalias (vis-
C

to que elas contêm a norma e a exceção). Num exercício de distância e


estranhamento, nós, sujeitos implicados, aproximamo-nos do humano
que é outro de nossa pesquisa, preservando o caráter de indecifrabilidade
de tudo o que é humano, mas construindo uma narrativa que se propõe
verdadeira dada a relação do real e de sua representação, que mesmo
sendo altamente problemática, existe. (AGUIAR; LEONARDI; PERES,
2021, p. 16-17)

Neste trabalho, buscamos direcionar o olhar para três metáforas que po-
dem ser apreendidas na leitura da obra de Ginzburg e que, em nosso enten-
dimento, colaboram para o fazer investigativo: distância, afeto e exílio. Para

296 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


explorar estas metáforas, partiremos do cotejamento de três textos do autor,
o que faremos com certo vagar, com o intuito de apresentar nossas contribui-
ções também narrativamente.

DISTÂNCIA

Em um texto de 1997 intitulado “Distância e perspectiva: duas metáforas”,


Ginzburg (2001, p. 176 e seguintes) traz uma discussão sobre verdade e pers-
pectiva a partir de três referências: Agostinho, Maquiavel e Leibniz. A pers-
pectiva, aponta o autor, é uma criação cristã e está intimamente ligada à noção
de todos unidos em um só corpo. A eucaristia é celebrada em “corpo e memó-
ria” e Paulo de Tarso afirma em Gálatas 3:28 “Nisto [ou seja, no batismo] não
há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque

J
todos vós sois um em Cristo Jesus”. Há aqui uma significativa mudança em

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relação ao passado, pois o batismo faz com que as distinções étnicas, sociais
e de gênero sejam ressignificadas em função da imagem unitária de “todos”.
PE
Agostinho de Hipona faz a ponte entre a Antiguidade greco-romana e a
tradição cristã que crescia no entorno do Mediterrâneo. A relação com o pas-
sado era fundamental, especialmente se considerarmos o lugar da tradição
judaica em relação à tradição cristã. Não era possível separar uma da outra,
FA

ainda mais quando os textos sagrados judaicos são a base da bíblia cristã. O
velho e o novo fazem parte do mesmo “todo”, do mesmo “corpo”, parte da re-
velação do mesmo Deus único e imutável. Esse Deus, para Agostinho, sabe, a
cada momento, o que é o mais oportuno e belo a ser dito e é por isso que o tex-
A

to bíblico não pode ser lido projetando “os costumes do tempo e do lugar em
que nós, leitores, vivemos” (AGOSTINHO, apud GINZBURG, 2001, p. 183)
PI

Como um bom ex-retórico, ele leva as marcas de sua formação para cons-
truir algumas compreensões que partem desse lugar. Ginzburg explica:
Ó

Ao analisar a relação entre cristãos e judeus, Agostinho serviu-se de um


esquema conceitual criado a partir de suas reflexões juvenis acerca da
C

relação entre pulchrum e aptum, entre beleza universal e conveniência.


Cícero havia salientado que, no âmbito das artes visuais e verbais, exce-
lência e diversidade não eram incompatíveis. Mas suas argumentações,
não obstante uma alusão a “todos os oradores presentes e passados”,
eram substancialmente acrônicas. Agostinho utilizou o mesmo mo-
delo, no entanto o projetou numa dimensão temporal. (GINZBURG,
2001, p. 187, grifo nosso)

Desse modo, o velho testamento poderia ser, ao mesmo tempo, “verda-


deiro e superado”, ou seja, o que é conveniente para uma determinada época
não deixa de ser verdadeiro apenas porque não é mais conveniente para hoje:

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 297


Somente um cristão como Agostinho, refletindo sobre a relação fatal en-
tre cristãos e judeus, entre Velho e Novo Testamento, pôde formular a
idéia que, através do conceito hegeliano de Aufhebung, se tornou um ele-
mento crucial da consciência histórica, a saber: a idéia de que o passado
deve ser compreendido seja em seus próprios termos, seja como anel de
uma corrente que, em última análise, chega até nós. Proponho que se
veja nessa ambivalência uma projeção secularizada da ambivalência
cristã para com os judeus. (GINZBURG, 2001, p. 188, grifo nosso)

Desenvolvemos, ao longo dos séculos seguintes, uma noção de que o pas-


sado existe, tanto em seu tempo ido quanto de forma conectada com o tempo
de hoje. Essa noção nos traz a compreensão de que algo pode ser verdadeiro e
ter sido superado, ao mesmo tempo.

J
Importa notar que essa ideia está marcada pela noção de superação de uma
interpretação anterior. Ou seja, para construir a noção de perspectiva tempo-

R
ral, Agostinho parte de um ponto de vista de maior conhecimento em relação
ao passado. Argumentaria: é possível que a perspectiva adotada por aquelas
PE
pessoas no passado seja verdadeira porque lá, em seu tempo, ela era verdadei-
ra. Agora, nós pensamos diferente.
Ginzburg cita Panofsky para lembrar o surgimento da perspectiva linear
FA
e a crítica ao passado no Renascimento.1 Agostinho não usou uma metáfora
visual (a perspectiva) para tratar de sua relação com o passado, por estar em
uma época em que a fé se baseava no escutar. Hoje, nossas imagens são visuais
e a palavra “perspectiva” tornou-se central para se referir à postura agosti-
A

niana. Mas não foi apenas o bispo de Hipona que forjou nossa concepção de
perspectiva.
PI

Maquiavel, na dedicatória de seu livro “O príncipe”, constrói a perspectiva


numa dimensão secular, com base no conflito. Pode ele, um homem “humil-
de”, aconselhar o príncipe? Maquiavel afirma que “é necessário ser príncipe
Ó

para conhecer o povo e ser povo para conhecer o príncipe”.


C

Pontos de vista diferentes, sugeria Maquiavel, produzem representações


diferentes da realidade política; as representações que o príncipe e o povo
constroem para si das duas posições respectivas são igualmente limi-
tadas; a objetividade só pode ser alcançada observando-se a realida-
de do exterior, de longe: de uma posição periférica e marginal, podería-
mos acrescentar, como a de Maquiavel entre 1513 e 1514. (GINZBURG,
2001, p. 191, grifo nosso)

1 Aqui lembramos, por exemplo, o conceito de Idade Média surgindo como crítica ao passado,
como vemos em Barraclough (1964). Uma das introduções ao debate sobre Idade Média e ao
enfrentamento desse conceito pode ser Le Goff (1980).

298 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


A perspectiva de Maquiavel é secular, baseada no conflito, diferente da
perspectiva de Agostinho, baseada na adaptação divina. Para Maquiavel, “o
antagonismo entre as representações da realidade política nasce das coisas, da
sua natureza intrinsecamente conflituosa”. (GINZBURG, 2001, p. 191)
Em 1646, Descartes trocou correspondência sobre o livro de Maquiavel
com sua discípula Elisabeth, princesa do Palatinado, usando linguagem cifra-
da e enviando as cartas para Sofia, irmã mais jovem de Elisabeth. Descartes
comenta “os que desenham paisagens”, discordando e restabelecendo a hie-
rarquia: só os príncipes conseguem entender as motivações dos príncipes.
Leibniz, protegido de Sofia, provavelmente teve acesso às cartas de Descartes
a Elisabeth e, também provavelmente, teve sua atenção despertada pelo co-
mentário de Descartes. Leibniz, como aponta o historiador italiano, retoma a

J
metáfora da perspectiva visual:

R
Para Leibniz, como para Maquiavel, a perspectiva consistia em uma metáfora
que permitia construir um modelo cognitivo fundamentado numa pluralida-
PE
de de pontos de vista. Contudo, enquanto o modelo de Maquiavel se baseava
no conflito, o de Leibniz se baseava na coexistência harmoniosa de uma
infinita multiplicidade de substâncias. Tal coexistência, em última análise,
implicava a inexistência do mal. (GINZBURG, 2001, p. 193, grifo nosso)
FA
Assim, são três modelos, três signos que Ginzburg traz para a perspectiva:
de Agostinho, século V, o signo da adaptação (ajusta-se ao tempo histórico); de
Maquiavel, século XVI, o signo do conflito (a realidade é conflituosa); de Leibniz,
século XVII, o signo da multiplicidade (a realidade tem múltiplas leituras). Esses
A

três signos influenciarão fortemente pensadores dos séculos seguintes.


PI

A filosofia da história de Hegel combinou o modelo conflituoso de


Maquiavel com uma versão secularizada do modelo de Agostinho, ba-
seado na adaptação. A reelaboração do modelo conflituoso na obra
Ó

deste grande admirador de Maquiavel que foi Karl Marx é igualmente


evidente. E não será necessário recordar a função decisiva do perspecti-
C

vismo na batalha de Nietzsche contra a objetividade positivista. As me-


táforas ligadas à distância e à perspectiva desempenharam, e ainda
desempenham, uma função importante na nossa tradição intelectual.
(GINZBURG, 2001, p. 194-195, grifo nosso)

Caminhando para o fim de seu texto, Ginzburg aponta para a força da me-
táfora da perspectiva no trabalho dos historiadores de hoje:
O núcleo do paradigma historiográfico corrente é uma versão secula-
rizada do modelo da adaptação, combinado com doses variadas de confli-
to e multiplicidade. Metáforas como perspectiva, ponto de vista, e assim

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 299


por diante, exprimem vivamente essa atitude relativa ao passado. (...)
Nosso modo de conhecer o passado está impregnado da atitude cristã de
superioridade em relação aos judeus. (GINZBURG, 2001, p. 196)

Olhamos para o passado de forma relativa, com a metáfora da perspectiva


(a de lá e a de cá, por exemplo) por causa da construção agostiniana. Mas isso
não significa que tenhamos a mesma atitude. Afinal, “...toda herança cultural
é continuamente apropriada e reelaborada” (GINZBURG, 2001, p. 197)
O modelo da perspectiva como adaptação é atacado por fundamentalistas:
“só eu tenho razão”. O modelo da perspectiva como conflito foi tratado como
velharia pelos defensores do “fim da história”: “as metanarrativas morreram”.
O modelo da multiplicidade sempre esteve na moda, mas se torna prisioneiro
dos valores de cada grupo: “hiperperspectivismo”.2

J
O que tanto fundamentalistas quanto céticos repelem/ignoram é o que, no

R
passado, fez da perspectiva uma
metáfora cognitiva tão poderosa: a tensão entre ponto de vista subjetivo
PE
e verdades objetivas e verificáveis, garantidas pela realidade (como em
Maquiavel) ou por Deus (como em Leibniz). Se essa tensão for mantida
em aberto, a noção de perspectiva deixará de constituir um obstáculo entre
cientistas e cientistas sociais, para se tornar, em vez disso, um lugar de en-
FA
contro, uma praça onde se pode conversar, discutir, dissentir. (GINZBURG,
2001, p. 197-198)

Ao fim desta leitura, entendemos a perspectiva como uma metáfora cogni-


tiva, um modelo para compreender nossas relações entre o hoje e o passado,
A

entre o “eu-investigador” e o objeto de investigação. Ela nasce de uma visão


PI

de superioridade entre o eu e o outro, mas nasce, nessa superioridade, numa


busca por encontro entre subjetivo e objetivo. A perspectiva é uma metáfora
cognitiva que permite o exercício da distância na pesquisa. O paradigma
Ó

indiciário se apresenta, então, como um lugar de encontro, de conversa, de


discussão, de tensão entre o subjetivo e o objetivo.
C

Desse modo, a pesquisa não se constitui numa narrativa subjetiva, numa


associação livre, num conjunto de frases que começam com “eu acho que...”.
Mas ela também não é um exercício de total distanciamento, confiando num
método seguro que “resolve o problema da neutralidade”. A pesquisa, no pa-
radigma indiciário, é um exercício de distância e perspectiva (com o diálogo
entre a perspectiva do eu e a do outro).

2 O debate do historiador italiano sobre as implicações desses modelos está presente especial-
mente nos textos Unus testis (GINZBURG, 2001, p. 210 e seguintes), quando o autor aponta
para o problema da negação do Holocausto, e O inquisidor como antropólogo (ibidem, p. 280
e seguintes), quando o autor aponta para a não neutralidade das fontes documentais.

300 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


Sob um ponto de vista, Agostinho estava buscando uma conciliação (afi-
nal, ele era um ex-retórico romano que buscava dar sentido às produções dos
Antigos no contexto cristão) e, nesse sentido, a perspectiva se configura como
um lugar de encontro entre momentos, gerações, leituras de mundo. Por ou-
tro lado, essa conciliação parte de um lugar de superioridade em relação ao
outro (o Cristianismo era a autoridade primeira em relação aos Antigos, bem
como o Novo Testamento era superior ao Velho Testamento).
Entendemos que é esse lugar de “superioridade” que deve ser tensionado.
O trabalho de pesquisa é um constante movimento de buscar novas com-
preensões presentes em relação ao passado. Pensamos estar num lugar privile-
giado em relação ao outro porque temos os vestígios e as marcas de um tempo
passado, enquanto aquele tempo não nos tem. No entanto, se nos aproxima-

J
mos mais da realidade ao ter conhecimento da existência de coisas, pessoas,
fatos e ideias, só podemos fazê-lo pelos indícios deixados pelo outro e por um

R
olhar marcado pelo tempo e pela cultura que partilhamos uns com os outros.
Nosso maior risco, como pesquisadores, é a assunção de um lugar de po-
PE
der e autoridade que fica cego diante do olhar do outro. Esse lugar de poder
está marcado pela construção de nossas certezas. Precisamos, então, ques-
tionar nossas certezas. Porém, se eventualmente assumimos a inexistência
FA
de certezas e verdades, caímos num ceticismo extremo que assume todas as
perspectivas como igualmente válidas.3 Portanto, a imagem de distanciamento
científico é uma metáfora cognitiva, que nos sugere um exercício de encontro
e acolhimento ao outro, ao olhar do outro, por meio dos vestígios deixados
A

por esse olhar, dado que ele nos é inacessível.


Se a perspectiva como exercício de distanciamento do excesso de subjetivi-
PI

dade ou de objetividade é parte de nosso trabalho histórico, não podemos cair


nos extremos relativista e fundamentalista. Nossa relação com a verdade his-
tórica, conforme lemos em Ginzburg, está fundamentada nas tensas, porém
Ó

presentes, relações entre o real e sua representação. Tal discussão está bem
desenvolvida em outras publicações que fizemos sobre o tema, já anunciadas
C

no início deste texto.

3 Novamente remetemos aos textos Unus Testis e O Inquisidor como antropólogo. Lembramos
ainda a expressão “fatos alternativos”, usada pela então conselheira do recém-empossado pre-
sidente dos EUA Donald Trump, no dia 22/01/2017, quando ela defendeu a falsa alegação do
secretário de Imprensa da Presidência Sean Spicer de que a posse de Trump foi a que teve o
maior público de todas. Ou seja, defender que “todas as perspectivas são válidas” pode impli-
car na validação de mentiras tomadas como “fatos alternativos” ou na negação do Holocausto.
Especificamente para os que negam o Holocausto, lembramos das palavras de Primo Levi:
“Pensem que isto aconteceu: / eu lhes mando estas palavras. / Gravem-nas em seus corações,
/ estando em casa, andando na rua, / ao deitar, ao levantar, / repitam-na a seus filhos. / Ou,
senão, desmorone-se a sua casa, / a doença os torne inválidos, / os seus filhos virem o rosto
para não vê-los” (LEVI, 1988, p. 9).

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 301


Sentir-se estrangeiro, distanciar-se, são práticas aqui pensadas como
exercício de olhar profundamente para si mesmo, buscando compreen-
der de que maneira estamos implicados na pesquisa que realizamos e
como explicitamos, narrativamente, nossas escolhas, dúvidas, tensões e
decisões metodológicas. Assim, a narrativa se constitui como forma de
pensar, organizar e realizar a investigação. Experiências e acontecimentos
são organizados de modo a, ao longo da pesquisa, produzir uma outra
narrativa, a do pesquisador. (AGUIAR; FERREIRA, 2021, p. 7)

É nesse sentido que a metáfora da distância, sozinha, não é suficiente para


realizarmos nossas pesquisas. Acolher o outro com um distanciamento da
superioridade esconde nossa implicação com aquilo que escrevemos. É por
isso que, numa pesquisa implicada como aquela realizada num paradigma in-

J
diciário, a distância exige a proximidade do afeto.

R
AFETO
PE
O texto “Paris, 1647: um diálogo sobre ficção e história” foi publicado
originalmente em 1992 e foi revisado antes da republicação de 2006. O autor
(GINZBURG, 2007, p. 79 e seguintes) o inicia com uma referência a Marcel
FA
Detienne (1935-; historiador belga da Antiguidade), que ironizou a tentativa
de Moses Finely (1912-1986, historiador anglo-americano da Antiguidade) de
encontrar elementos históricos nos poemas de Homero: “fazer história elimi-
nando o elemento mítico, observou Detienne, é uma posição típica dos histo-
riadores...” (apud GINZBURG, 2007, p. 79). O italiano tratará de um detalhe
A

dentro da história dos historiadores lendo textos literários.


PI

O detalhe começa com Jean Chapelain, que, entre 1646 e 1647, escreveu
De la lectura des vieux romans [sobre a leitura de velhos romances]. Neste texto,
ele faz um diálogo com dois literatos mais jovens. Quando lê Lancelot, roman-
Ó

ce medieval, afirma aprender muito sobre o período, visto que essa leitura lhe
permitia conhecer “uma história segura e exata dos costumes que reinavam
C

nas cortes daquele tempo” (CHAPELAIN, apud GINZBURG, 2007, p. 82)


Ginzburg nos indica um paradoxo. Chapelain apontava que a ficção, jus-
tamente por ser ficção, permitia “colher a própria essência” das almas das
pessoas do passado (CHAPELAIN, apud GINZBURG, 2007, p. 84). Ou seja,
obras claramente inventadas eram tomadas como dignas de fé.
O historiador italiano, então, remete à circulação dos textos de Sexto
Empírico e das ideias pirronistas em meados do século XVI. Sexto Empírico
estabeleceu um debate sobre história verdadeira, história falsa e história co-
mo-se-fosse-verdadeira e defendeu que a história não possui método e que a
gramática não pode tratar da veracidade das coisas ficcionais. Ou seja, não há

302 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


método para discernir o que é verdade e o que é falso na ficção. Além desse
debate, Ginzburg aponta para um texto de La Mothe le Vayer, de 1668, intitu-
lado “Da pouca certeza que há na história”. Para ele, opondo-se às ideias de
Sexto Empírico, não se pode confundir história e poesia.
Chapelain vivia numa sociedade com mudanças de gosto que fizeram
os textos que posteriormente chamamos de medievais parecerem muito di-
ferentes, ultrapassados, coisas de antiquário e, assim, possíveis objetos de
compreensão. Deste modo, “a distância do gosto dominante facilitou a lei-
tura dos textos literários medievais numa ótica documental. Mas Chapelain
deu mais um passo, transformando a distância em proximidade emotiva”.
(GINZBURG, 2007, p. 92, grifo nosso)
Com esta leitura proposta por Ginzburg, percebemos que, na medida em

J
que os vestígios do passado são estranhos a nós, eles passam a ser objetos que
precisamos compreender. O que Chapelain fez, ao transformar distância em

R
proximidade emotiva, permite que entendamos que a perspectiva não é um
lugar frio e objetivo, mas um lugar de afeto. Quando todas as perspectivas são
PE
aceitas como válidas ou quando tomamos apenas uma interpretação como
correta, não nos deixamos ser tocados, como indivíduos ou mesmo como so-
ciedade. Assim, o caminho para adotarmos um olhar indiciário, de perspectiva
FA
em relação ao que nos propomos a conhecer, é o caminho do afeto. Distância
é proximidade, é reconhecer o humano do outro que, como nós, é cheio de
ambiguidades, dúvidas, incoerências.
Afeto não é um conceito de simples definição. Criamos afeto pelo outro
A

ao reconhecer que ele mobiliza em nós emoções, assim como nos sentimos
afetados quando algo mobiliza em nós certa energia criativa ou força de tra-
PI

balho. Uma relação de afeto também se constrói por meio do entendimento


da responsabilidade que temos com o outro, pois nossas ações incidem sobre
ele, ou seja, o afetam. É uma maneira de ser e estar em relação, uma abertura
Ó

franca para a proximidade de si com o outro, do outro consigo. Afetos estão


relacionados ao corpo, às emoções e às ideias.
C

Ao assumir que precisamos nutrir afeto para manter suficiente proximi-


dade com aquele (sujeito, tempo, movimento, objeto) que estudamos, ressal-
tamos que o trabalho do pesquisador ou da pesquisadora é sobretudo ofício
de reconstrução e narração de uma realidade humana, marcadas por escolhas,
movimentos, encontros e afastamentos. Por isso, uma leitura indiciária é so-
bretudo uma forma humanizada de buscar compreensão da realidade que se
investiga.
Incluímos, então, a dimensão afetiva à nossa perspectiva. De distantes
em relação ao objeto de investigação, agora tornamo-nos próximos, porque
reconhecemos o humano em nós. Porém, aqui também encontramos riscos,

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 303


porque, próximos, precisamos estar atentos para não aceitar com naturalidade
tudo o que o outro nos apresenta, sem qualquer critério ou análise. A atenção
se faz necessária, também, para que não nos percamos nessa proximidade,
deixando de lado as questões que nos levaram à investigação, achando que
pouco importa o que é trazido pelo outro, nem como escrevemos nossos tex-
tos de pesquisa, centrando foco apenas nas sensações mobilizadas pelo encon-
tro, pela descoberta e pelo processo.
Em suma, o que tentamos construir até aqui é a ideia de que fazer pesquisa
implica posicionarmo-nos num lugar de distância. A distância na pesquisa
implica que devemos olhar as coisas em perspectiva, sem cair no relativismo
ou no fundamentalismo total, pois a distância pode nos levar a pensar que as
impressões são mais relevantes que os fatos, ou mesmo que uma única com-

J
preensão corresponde aos fatos. Para que isto não ocorra, lançamos mão de
um outro critério: tão relevante quanto manter a distância, é nutrir o afeto.

R
É a compreensão de que afetamos e somos afetados com o movimento his-
tórico da humanidade que nos traz a compreensão da responsabilidade que te-
PE
mos como pesquisadores. Assim, entendemos que não vale qualquer recurso,
nem qualquer interpretação da realidade, porque nosso modo de estabelecer
relações com os outros nos afeta.
FA
No entanto, distância e afeto não bastam. Ao compreender a dimensão
de nosso ofício, poderíamos não mais fazer pesquisa, justamente porque ela
implica certa distância, que traga entendimento e objetividade, e certo afeto,
que possibilite o reconhecimento do outro em sua subjetividade. Assim, sem
A

uma terceira imagem, corremos o risco de compreender, erroneamente, que


pesquisar significa fazer uma escolha entre o rigor do método de pesquisa
PI

e a imprevisibilidade de ser humano. Este, porém, é um falso dilema. Falso


porque nãotraz um terceiro elemento que está presente no trabalho de pesqui-
sadores e pesquisadoras: nós escrevemos.
Ó

A manutenção da dúvida exige implicar-se na pesquisa, estar presente,


fazer perguntas narrativas tanto ao objeto da investigação quanto a nós
C

mesmos. Implicar-se demanda considerar a si mesmo e ao outro, pois é


justamente a existência do outro que permite a construção de significa-
ções coletivas para nossa implicação. Deste modo, nossa leitura indiciária
é a narrativa de nós mesmos, de nossa pesquisa, de nosso objeto. É por
isso que narrar não é apenas contar uma história ou a própria história.
Requer compromisso com as perguntas realizadas e objetos estudados,
bem como a disposição da partilha com o outro, a escolha das palavras e
dos fatos, certa ordenação lógica e criteriosa que mobiliza emoções tan-
to no narrador quanto em seus interlocutores. (AGUIAR; FERREIRA,
2021, p. 9)

304 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


A escrita, portanto, nos provoca para a necessidade de estranhamento (da
história, do método, do outro e de nós mesmos). Também é o movimento de
escrita que nos convoca para um posicionamento na investigação e reafirma
que, aliado ao olhar metódico e à análise dos indícios trazidos pelo outro, há
a leitura de um pesquisador ou pesquisadora, que faz escolhas e se coloca
humanamente em diálogo na pesquisa. A escrita pressupõe assumir-se autor
e porta-voz de uma história que será contada e, por isso, exige um tipo de
perspectiva que possibilita mais do que repetir o que já foi dito, uma perspec-
tiva de estranhamento. Estranhar é nos colocarmos em um terceiro lugar em
relação à distância e à proximidade: o exílio.

EXÍLIO

J
O texto “Detalhes, primeiros planos, microanálises – À margem de um

R
livro de Siegfried Kracauer” foi apresentado como palestra em um congresso
dedicado às ideias de Kracauer na França, em 2003, e foi publicado em livro no
PE
ano de 2007. Siegfried Kracauer (1889-1966), escritor alemão, com uma obra
marcante no campo dos estudos sobre cinema, esteve no círculo de Adorno e
Benjamin. O livro objeto de análise de Ginzburg é um estudo, inacabado e de
publicação póstuma, sobre a História. O mote central do texto é a crítica de
FA

Paul Oskar Kristeller à associação direta de Kracauer à Escola de Frankfurt e


sua leitura de que aquele livro sobre História era singular em relação ao resto
da sua obra. Ginzburg (2007, p. 231 e seguintes) tenta mostrar que o livro de
Kracauer sobre história é coerente com seus escritos anteriores. No entanto,
A

mais do que apenas mostrar a coerência de um livro em relação ao passado


(à formação) de um pensador, o texto de Ginzburg retoma um debate sobre
PI

micro-história e microanálise.
O livro de Siegfried Kracauer, intitulado History: the last things before the last,
Ó

foi publicado postumamente em 1969 e republicado em 1995 com novo prefá-


cio de Kristeller, em que este critica o reconhecimento tardio de Kracauer, em
C

que haveria uma tendência a reduzi-lo à Escola de Frankfurt. Ginzburg con-


sidera a crítica de Kristeller imprecisa e se propõe a mostrar, ao contrário do
prefaciador, que há relações entre History e os escritos anteriores de Kracauer.
Nessa obra, Kracauer estabelece uma relação entre história (como pro-
cesso e como narração) e fotografia (indo até o cinema). Ginzburg aponta
como o escritor alemão, em texto de 1927 sobre a fotografia, apontou para o
paralelismo entre historicismo e fotografia: ambos nascem proximamente e
são produtos da sociedade capitalista. Além disso, os representantes do histo-
ricismo, para o escritor alemão, parecem querer explicar tudo por sua gênese:
o historicismo apresenta um continuum temporal e a fotografia, um continuum

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 305


espacial. Ao unir historicismo e fotografia, Kracauer os opõe a memória e suas
imagens. Ele está opondo o continuum e o fragmentário e afirma que produzir
fotografias continuamente é uma forma de lidar com o medo da morte.
Entre o ensaio sobre a fotografia e History há tanto uma convergência
quanto uma descontinuidade. Kracauer comenta um trecho de O caminho de
Guermantes (volume 3 de Em busca do tempo perdido), de Marcel Proust, no qual
o narrador avista sua avó envelhecida, e discute como a fotografia permite
observar as coisas como elas são. Para Kracauer, a fotografia, que servia para
fugir da morte, agora serviria para olhar diretamente em seus olhos.
Se antes Kracauer associava historiografia e fotografia como continuum, de-
pois de Proust ele associa história e fotografia como identificação com o es-
tranho e o estrangeiro. O historiador, como o fotógrafo, é um exilado, alguém

J
que pode desenvolver um olhar de estranhamento: “O instante do não-reco-
nhecimento abre para o olhar de estranhamento do espectador o caminho da

R
iluminação cognoscitiva” (GINZBURG, 2007, p. 238, grifo nosso). Ou seja,
pelo não reconhecimento posso estranhar e posso compreender. Quem reco-
nhece não compreende.
PE
Como já escrevemos anteriormente a respeito dessa ideia:
Mas os textos, as palavras, as ideias, as imagens, os sons, o que quer que
FA
tenhamos capturado, só possuem sentido se colocados em uma narrativa.
Este é o ato de decifrar. É o momento do estado exilado do estranha-
mento em relação às nossas certezas, dúvidas ou intuições. (AGUIAR;
FERREIRA, 2021, p. 10)
A

O que exige, como Ginzburg aponta no texto, um estado de estrangeiro em


relação ao mundo evocado pelas fontes:
PI

É somente nesse estado de autoanulação, ou nesse ser sem pátria, que o


historiador pode entrar em comunhão com o material que concerne à sua
Ó

pesquisa. [...] Estrangeiro em relação ao mundo evocado pelas fon-


tes, ele deve enfrentar a missão – missão típica do exilado – de penetrar
C

as suas aparências exteriores, de modo a poder compreender esse mundo


de dentro. (GINZBURG, 2007, p. 238, grifo nosso)

Esta atitude de distanciamento que se dá pelo exílio é bem diferente de


uma leitura positivista de produção de conhecimento. Nesta, partimos de
um método seguro para tomar distância do objeto. O exilado, ao contrário,
fica inseguro justamente porque não conhece aquele mundo. Ele está na dú-
vida, no fragmento do mundo e, portanto, precisa lidar com o constante
desconhecido.
É nesse sentido que a frase de Ginzburg sintetiza o debate: “A identificação
do historiador com o exilado é o ponto de chegada de uma reflexão prolongada

306 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


sobre a fotografia” (GINZBURG, 2007, p. 238). E o fotógrafo, para Kracauer
é um “leitor cheio de imaginação, absorto em estudar e decifrar um texto cujo
significado não consegue captar” (GINZBURG, 2007, p. 239). Assim, a foto-
grafia, bem como a história, representa um modelo de pensamento exilado,
de estranhamento, de sentir-se estrangeiro em relação ao outro.4
Kracauer conversava com Adorno e lia Kant com ele. Afirmou que a discus-
são sobre cinema era apenas um pretexto para se trabalhar sobre um “modelo
cognoscitivo”. Assim, o argumento de Ginzburg a respeito de Kracauer é a
unidade de seu percurso intelectual diante de uma variedade de temas.5
Esta terceira metáfora, do exílio, se insere na reflexão aqui proposta, acer-
ca da necessária perspectiva para a construção de um olhar indiciário para
nossos objetos de pesquisa. Só conseguimos nos manter estrangeiros em re-

J
lação ao mundo evocado pelas fontes, pelos documentos, pela bibliografia que
compõem nossos exercícios investigativos, no lugar da dúvida, do não reco-

R
nhecimento, da compreensão de que nosso olhar é/foi construído em diálogo
com outro tempo e espaço, diferente daquele que nos propomos a conhecer
e narrar.
PE
Neste contexto, o estranhamento é um processo de busca pelo não eu,
pelo anômalo, pelo diferente que surge no “instante do não reconhecimento”.
FA
Consiste numa escrita pautada pelo exílio. Já apontamos para esta reflexão em
publicações anteriores, mas vale a pena retomar:
O nãoreconhecimento não implica numa atitude positivista, de neutrali-
dade, de isenção. Pelo contrário, como o próprio Ginzburg já apontou em
A

outros momentos, em confronto com a postura cética, esse não-reconhe-


cimento consiste em nossa implicação em todas as etapas da pesquisa.
PI

Nesse sentido, diante dessa nossa presença, podemos nos apresentar em


nossa inteireza, narrativa e dialogicamente conosco, com nossas fontes/
dados, com a bibliografia, considerando a escrita como um estado de exí-
Ó

lio. (AGUIAR; LEONARDI; PERES, 2021, p. 15)


C

Esse estado de exílio já havia sido mencionado pelo historiador italiano no


prefácio do livro Olhos de madeira, ao comentar sua vivência como professor na
UCLA e a distância cultural entre ele e seus alunos. Desta experiência, surge
a seguinte reflexão:

4 Em Aguiar (2018) discutimos a ideia de um pensamento exilado no século XV. As ideias que ali
apresentamos sobre as características de um pensamento exilado dialogam com as questões
aqui apresentadas.
5 Paramos aqui a leitura do texto de Ginzburg que segue mais algumas páginas discutindo as
escalas de observação (daí o título do texto “Detalhes, primeiros planos, microanálise”. Mas
como queremos destacar a dimensão da metáfora do exílio, remetemos a discussão das esca-
las de observação para Leonardi; Aguiar (2010).

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 307


Compreendi melhor algo que já pensava saber, isto é, que a familiarida-
de, ligada em última análise à pertença cultural, não pode ser um crité-
rio de relevância. “O mundo todo é nossa casa” não quer dizer que tudo
seja igual; quer dizer que todos nos sentimos estrangeiros em relação
a alguma coisa e a alguém. (GINZBURG, 2001, p. 11, grifo nosso)

O autor nos convoca com suas palavras a uma reflexão: ao contrário do que
se possa por vezes pensar, mesmo nos espaços onde sentimos grande familia-
ridade e reconhecimento, somos de algum modo estranhos. Por isso, devemos
desconfiar da familiaridade buscando o que há de estranho dentro do familiar.
Nestes termos, uma pesquisa feita nesta postura de exílio, consideran-
do o caráter fragmentário da leitura que fazemos das fontes, implica, ao
olhar para os indícios, buscar entender o que há de estranho dentro do

J
familiar. Além disso, o que nos une é justamente nossa leitura fragmen-

R
tada do mundo, nosso exílio em relação ao outro, ao diferente e, portan-
to, a possibilidade dialógica de lidar com o outro é o que nos une. No
PE
campo da pesquisa, nosso primeiro outro é nosso objeto de pesquisa. E
nosso segundo outro somos nós mesmos diante deste objeto. (AGUIAR;
LEONARDI; PERES, 2021, p. 15)
FA
Buscar a dúvida no familiar é mantermo-nos em constante movimento en-
tre distância e proximidade. Com afeto nos aproximamos; no estranho, olha-
mos com perspectiva. Na escrita, mostramo-nos. Mostramo-nos porque, se
estamos exilados, não somos os donos da certeza, não estamos à vontade o
suficiente para escrevermos como aquele narrador onisciente que tudo enten-
A

de e tudo explica. Escrevemos mostrando que nossa pesquisa, ao reconstruir


os indícios que encontramos, aproxima-se do real, preservando o indecifrável.
PI

“Talvez”, “muito provavelmente”, “parece-nos”, entre outros, são termos da


manutenção da dúvida.6 Escrever mantendo a dúvida do lugar de exilado é
Ó

arriscado. Mas é um risco necessário.


C

OS RISCOS, OS TRAÇOS

Toda escrita é autobiográfica, visto que quem escreve deixa marcas de si


na escrita. De certo modo, todo o tempo da pesquisa deve ser acompa-
nhado de escrita. Diários de pesquisa (não apenas para a coleta de dados
em campo, mas, especialmente, um diário que acompanhe todo o proces-
so da pesquisa), inventários de fontes, tabelas, esquemas, mapas, esbo-

6 Davis (1987), ao explorar a história de Martin Guerre, utiliza em sua escrita uma grande quan-
tidade de expressões da dúvida, configurando-se, para nós, um relevante exemplo de uma
escrita narrativa com as características que aqui apontamos.

308 THIAGO BORGES DE AGUIAR – LUCIANA HADDAD FERREIRA


ços, fichamentos são exemplos de textos que escrevemos durante a pes-
quisa. Mas há uma escrita final, aquela que conclui a pesquisa. (AGUIAR;
FERREIRA, 2021, p. 15-16)
Ginzburg escreveu muitos ensaios, tomando esse gênero como seu fa-
vorito, visto que ele permite preservar, na escrita final, o caráter indiciá-
rio de sua pesquisa (GINZBURG, 2000). A escrita em forma narrativa é
fundamental para o registro de uma pesquisa no Paradigma Indiciário.
Ela permite trazer o caminho da pesquisa, não apenas nas suas certe-
zas, como também nas suas dúvidas, bem como possibilita a gradação
das certezas nos termos que utilizamos para escrever e viabiliza o movi-
mento entre provisório e definitivo (que se tornará um novo provisório)
marcante no conhecimento produzido neste paradigma. Consiste numa
escrita que traz tanto as conclusões quanto as questões do caminho.

J
Nessa escrita, estamos presentes e, portanto, expostos. Nossos acer-

R
tos e, principalmente, nossos erros são visíveis aos outros. O próprio
Ginzburg trata, em mais de um texto, das críticas que recebeu e de di-
PE
versos erros que outros pesquisadores já lhe apontaram. Um deles, em
especial, possui impacto significativo no argumento que desenvolveu no
livro “Investigando Piero” (GINZBURG, 2010), quando alguém mos-
trou que uma de suas inferências sobre um determinado quadro estava
FA
errada. Mas é justamente porque sua escrita possui caráter narrativo que
aquela inferência foi apresentada, originalmente, com o devido grau de
dúvida. (AGUIAR; FERREIRA, 2021, p. 16)
A

Essas três metáforas nos apontam para diferentes dimensões da pesquisa


ancorada numa perspectiva indiciária e sinalizam o necessário movimento de
PI

distanciamento, aproximação e exílio que nos faz pesquisadores e pesquisado-


ras da Educação. Reafirma, também, que o acolhimento e a entrega requeridos
no exercício desse ofício convocam toda a nossa humanidade, compreendida
Ó

pela corporeidade, pelos saberes e sentires daquele que investiga e se propõe


a narrar uma história, de um modo ainda não contado.
C

No entanto, nossas análises dessas metáforas também sinalizam que há


riscos presentes em nosso trabalho: da distância pode nascer um lugar de au-
toridade assumido pelo pesquisador ou pesquisadora que julga ser dele/dela a
palavra que define a veracidade das diferentes perspectivas investigadas, seja
autoridade expressa ao considerar que todas as perspectivas são igualmente
válidas, ou ao considerar que apenas a sua interpretação é a mais correta.
Apontamos, então que é necessário aliar a distância que gera perspectiva
a certa proximidade afetiva. No entanto, como somos afetados pelo humano
do outro, podemos correr o risco de novo autoritarismo ao apelar para a cen-
tralidade do pensamento e julgamento de quem pesquisa. É um equívoco, ao

RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 309


lançar olhar indiciário para a pesquisa, entender que o afeto se expressa pela
pura aceitação e incorporação de tudo o que o outro traz como indício. Da
mesma forma, é inaceitável tentar retirar o caráter humano do trabalho de
investigação que requer humanidade, apelando para a frieza de quem buscar
certa objetividade sem dialogar com o outro.
Para manter, ao mesmo tempo, a distância da perspectiva e a proximidade
do afeto precisamos nos colocar num terceiro lugar: o lugar do exílio. Estar
exilado é estar numa constante busca pelos estranhos indícios que nos trazem
novas perguntas.
Não temos como eliminar esses riscos. Daí que a ambiguidade desta pala-
vra se faz presente. Se não podemos eliminar os riscos, podemos considerá-los
presentes e traçados em nossa escrita. Nós “arriscamos” e “riscamos” esses

J
elementos em nosso trabalho. Entendemos que, quando deixamos claro que
conhecemos esses riscos, posicionando-nos no texto, apresentando quem so-

R
mos, como desenvolvemos nossa pesquisa e como estamos fazendo para en-
frentar essa relação tensa entre pesquisadores e objeto, tomamos o risco como
PE
traçado, expondo quem somos e como chegamos àquelas conclusões para que
outros possam entrar no diálogo.
FA
REFERÊNCIAS

AGUIAR, Thiago Borges de. Cartas distantes de um ganso em lugar nenhum ou re-
flexões sobre o pensamento exilado no século XV. In: LIMA, Alessandra Carbonero;
PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei; ALMEIDA, Rogério de. (orgs.). Os outros, os
A

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RELIGIÃO, SUJEITOS E GÊNERO 311

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