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MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
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Rio), especialmente na figura de Paula Leonardi e Marco Aurélio Martins
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Corrêa, pelo convite para participar desta prazerosa e frutífera jornada. Talvez
um bom ponto de partida seja lembrar o que significou a ampliação da exclu-
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são da cidadania política no fim do Império e na Reforma Eleitoral de 1881,
que estabeleceu a alfabetização como obstáculo para o exercício do voto. Com
a nova regra, estima-se, a proporção de eleitores no conjunto da população
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caiu de 10% para 1% (CARVALHO, 1987). A República agravou esta condição
ao sequer estabelecer a obrigatoriedade da educação pública como um de-
ver de Estado. Não obstante a tentativa de estabelecer reformas educacionais
nas primeiras décadas – geralmente frustradas – a Primeira República não
pode ser vista como um período de protagonismo do Estado no provimento
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da Educação.
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vam o acesso em vista de seu argumento de que era desejável conceder alguns
direitos sociais, mas não a participação política. Uma análise das declarações
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Isso tem impacto sobre o que nós chamamos de “laicidade” (CUNHA,
2014), que no caso brasileiro é um processo muito relativizado pelas demandas
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políticas tanto de formação de quadro quanto de construção de uma rede, ainda
que bastante precarizada, de oferta de serviços sociais ao preço que esses gover-
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nos desejavam pagar. Ou seja, a um preço muito baixo, e ainda assim – ou me-
lhor, por isso mesmo – repassado a organizações privadas, geralmente religiosas
nesse período, que se dispusessem a suprir os serviços solicitados ao Estado,
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como a assistência à infância desvalida, a educação, o acolhimento dos idosos e
assim por diante (BITTENCOURT, 2017). Em especial no quesito da educação,
o que se vê é a união do trabalho como educador com outras fontes – profissões
liberais ou religiosas, a depender do caso. Alguns trabalhos apresentados nesta
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tores como a educação. Há muitas poucas escolas em proporção ao território
e à população e, ao mesmo tempo, elas são muito numerosas face à fragilida-
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de das estruturas burocráticas educacionais. O clero é oficialmente parte da
Coroa nacional e, como demonstrado logo acima, participa de forma bastante
ativa das disputas políticas nacionais.
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A virtude dos textos ora apresentados consiste em caracterizar um lado
dessa máquina pública, a saber, o das instituições escolares pertencentes à
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Coroa – que também eram expressivamente ocupadas por clérigos. A escala
de análise da província do Rio de Janeiro permite enxergar o modo como os
ocupantes de cargos transitavam – da instituição religiosa para a pública, de
uma cidade para outra, etc. Isso permite compreender as dinâmicas locais que
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província e seus respectivos relatórios? Outro diálogo possível se ancora nas
relações da História com a Geografia. É possível pensar uma espacialização do
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entrelaçamento das questões políticas e educacionais? Há diferenças regionais
dentro da província para saber onde a aliança saquarema é mais forte ou onde
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os discursos liberais podem se estabelecer com maior força?
O promissor trabalho de Tatiane Santos dos Reis dialoga com uma linhagem
de pesquisas que documenta o histórico de dupla repressão sofrida pelas ir-
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mandades: de um lado a hierarquia eclesial, de outro o poder público (ABREU,
1996). Compreender que mesmo uma tradição originalmente ocidental (no
caso, o catolicismo) pode ser estudado em uma afroperspectiva é uma leitura
primorosa de tradições do pensamento decolonial que nos convida a compreen-
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do de Espanha, Portugal e Itália, há um distanciamento quando se analisa que,
no caso brasileiro, há uma singular concorrência entre católicos e pentecostais.
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Tal concorrência poderia ser lida como um fator que introduz a modernida-
de nas relações religiosas brasileiras, ou seja, um pluralismo religioso. Ainda
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que houvesse diversidade religiosa antes da emersão dos evangélicos, ela se
dava dentro de um regime de sincretismo hierárquico: outras religiões podem
existir, desde que se assuma o catolicismo como o “padrão-ouro” a partir da
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qual as outras religiões se relacionam e negociam seu espaço na arena pública.
A facilidade com que os colégios marista e jesuíta conseguem se impor na
sociedade carioca, cabendo a uma pequena parte da imprensa o discurso con-
trário, são uma demonstração dessa constatação.
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GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no
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Brasil. Religião & Sociedade, [s. l.], v. 28, n. 2, p. 80-101, 2008.
HEINZ, Flávio M. (org.). Por outra história das elites. [S. l.: s. n.], 2006.
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MARIANO, Ricardo. Laicidade à brasileira: católicos, pentecostais e laicos em dis-
puta na esfera pública. Civitas [s. l.], v. 11, n. 2, p. 238-258, 2011.
MONTERO, Paula. Secularização e espaço público: a reinvenção do pluralismo
religioso no Brasil. Etnográfica [s. l.], v. 13, n. 1, p. 7-16, 2009.
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Associados, 2013.
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista Sociologia e Política, [s. l.], v. 19, n. 39,
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2011.
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Há tempos refletimos como fazemos nossas pesquisas e nos constituímos
pesquisadores a partir de uma leitura indiciária da realidade. Ao delimitar a
Educação como campo de estudo, compreendemos que a realidade é fonte
para a construção do conhecimento e da cultura, bem como para o nosso pró-
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prio desenvolvimento. Essa relação, no entanto, é de interação e formação:
somos afetados pela realidade ao mesmo tempo em que nossa intervenção a
altera e cria novas realidades.
A realidade não é conhecida em sua totalidade. Sabemos que toda relação
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do historiador italiano Carlo Ginzburg, autor que segue impactando nossa
compreensão do exercício da pesquisa em educação, como um todo, e da his-
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tória da educação, especificamente. Recentemente, publicamos dois artigos,
um no qual buscamos situar as contribuições do autor para a história da edu-
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cação (AGUIAR; LEONARDI; PERES, 2021) e outro no qual destacamos o
caráter narrativo das pesquisas que tomam o paradigma indiciário como opção
de trabalho (AGUIAR; FERREIRA, 2021). No primeiro, concluímos com uma
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síntese de como entendemos um trabalho de pesquisa teoricamente funda-
mentado num paradigma indiciário, síntese essa elaborada em diálogo com a
obra de Ginzburg:
Considerando o caráter fragmentário da realidade, remontamos uma
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com o entorno daqueles indícios. Por meio de uma leitura indireta dos
indícios que recolhemos, construímos perguntas narrativas que possibi-
litem decifrá-los com um rigor flexível. Na alternância entre o micro e o
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Neste trabalho, buscamos direcionar o olhar para três metáforas que po-
dem ser apreendidas na leitura da obra de Ginzburg e que, em nosso enten-
dimento, colaboram para o fazer investigativo: distância, afeto e exílio. Para
DISTÂNCIA
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todos vós sois um em Cristo Jesus”. Há aqui uma significativa mudança em
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relação ao passado, pois o batismo faz com que as distinções étnicas, sociais
e de gênero sejam ressignificadas em função da imagem unitária de “todos”.
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Agostinho de Hipona faz a ponte entre a Antiguidade greco-romana e a
tradição cristã que crescia no entorno do Mediterrâneo. A relação com o pas-
sado era fundamental, especialmente se considerarmos o lugar da tradição
judaica em relação à tradição cristã. Não era possível separar uma da outra,
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ainda mais quando os textos sagrados judaicos são a base da bíblia cristã. O
velho e o novo fazem parte do mesmo “todo”, do mesmo “corpo”, parte da re-
velação do mesmo Deus único e imutável. Esse Deus, para Agostinho, sabe, a
cada momento, o que é o mais oportuno e belo a ser dito e é por isso que o tex-
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to bíblico não pode ser lido projetando “os costumes do tempo e do lugar em
que nós, leitores, vivemos” (AGOSTINHO, apud GINZBURG, 2001, p. 183)
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Como um bom ex-retórico, ele leva as marcas de sua formação para cons-
truir algumas compreensões que partem desse lugar. Ginzburg explica:
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Importa notar que essa ideia está marcada pela noção de superação de uma
interpretação anterior. Ou seja, para construir a noção de perspectiva tempo-
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ral, Agostinho parte de um ponto de vista de maior conhecimento em relação
ao passado. Argumentaria: é possível que a perspectiva adotada por aquelas
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pessoas no passado seja verdadeira porque lá, em seu tempo, ela era verdadei-
ra. Agora, nós pensamos diferente.
Ginzburg cita Panofsky para lembrar o surgimento da perspectiva linear
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e a crítica ao passado no Renascimento.1 Agostinho não usou uma metáfora
visual (a perspectiva) para tratar de sua relação com o passado, por estar em
uma época em que a fé se baseava no escutar. Hoje, nossas imagens são visuais
e a palavra “perspectiva” tornou-se central para se referir à postura agosti-
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niana. Mas não foi apenas o bispo de Hipona que forjou nossa concepção de
perspectiva.
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1 Aqui lembramos, por exemplo, o conceito de Idade Média surgindo como crítica ao passado,
como vemos em Barraclough (1964). Uma das introduções ao debate sobre Idade Média e ao
enfrentamento desse conceito pode ser Le Goff (1980).
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metáfora da perspectiva visual:
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Para Leibniz, como para Maquiavel, a perspectiva consistia em uma metáfora
que permitia construir um modelo cognitivo fundamentado numa pluralida-
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de de pontos de vista. Contudo, enquanto o modelo de Maquiavel se baseava
no conflito, o de Leibniz se baseava na coexistência harmoniosa de uma
infinita multiplicidade de substâncias. Tal coexistência, em última análise,
implicava a inexistência do mal. (GINZBURG, 2001, p. 193, grifo nosso)
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Assim, são três modelos, três signos que Ginzburg traz para a perspectiva:
de Agostinho, século V, o signo da adaptação (ajusta-se ao tempo histórico); de
Maquiavel, século XVI, o signo do conflito (a realidade é conflituosa); de Leibniz,
século XVII, o signo da multiplicidade (a realidade tem múltiplas leituras). Esses
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Caminhando para o fim de seu texto, Ginzburg aponta para a força da me-
táfora da perspectiva no trabalho dos historiadores de hoje:
O núcleo do paradigma historiográfico corrente é uma versão secula-
rizada do modelo da adaptação, combinado com doses variadas de confli-
to e multiplicidade. Metáforas como perspectiva, ponto de vista, e assim
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O que tanto fundamentalistas quanto céticos repelem/ignoram é o que, no
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passado, fez da perspectiva uma
metáfora cognitiva tão poderosa: a tensão entre ponto de vista subjetivo
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e verdades objetivas e verificáveis, garantidas pela realidade (como em
Maquiavel) ou por Deus (como em Leibniz). Se essa tensão for mantida
em aberto, a noção de perspectiva deixará de constituir um obstáculo entre
cientistas e cientistas sociais, para se tornar, em vez disso, um lugar de en-
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contro, uma praça onde se pode conversar, discutir, dissentir. (GINZBURG,
2001, p. 197-198)
2 O debate do historiador italiano sobre as implicações desses modelos está presente especial-
mente nos textos Unus testis (GINZBURG, 2001, p. 210 e seguintes), quando o autor aponta
para o problema da negação do Holocausto, e O inquisidor como antropólogo (ibidem, p. 280
e seguintes), quando o autor aponta para a não neutralidade das fontes documentais.
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mos mais da realidade ao ter conhecimento da existência de coisas, pessoas,
fatos e ideias, só podemos fazê-lo pelos indícios deixados pelo outro e por um
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olhar marcado pelo tempo e pela cultura que partilhamos uns com os outros.
Nosso maior risco, como pesquisadores, é a assunção de um lugar de po-
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der e autoridade que fica cego diante do olhar do outro. Esse lugar de poder
está marcado pela construção de nossas certezas. Precisamos, então, ques-
tionar nossas certezas. Porém, se eventualmente assumimos a inexistência
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de certezas e verdades, caímos num ceticismo extremo que assume todas as
perspectivas como igualmente válidas.3 Portanto, a imagem de distanciamento
científico é uma metáfora cognitiva, que nos sugere um exercício de encontro
e acolhimento ao outro, ao olhar do outro, por meio dos vestígios deixados
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presentes, relações entre o real e sua representação. Tal discussão está bem
desenvolvida em outras publicações que fizemos sobre o tema, já anunciadas
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3 Novamente remetemos aos textos Unus Testis e O Inquisidor como antropólogo. Lembramos
ainda a expressão “fatos alternativos”, usada pela então conselheira do recém-empossado pre-
sidente dos EUA Donald Trump, no dia 22/01/2017, quando ela defendeu a falsa alegação do
secretário de Imprensa da Presidência Sean Spicer de que a posse de Trump foi a que teve o
maior público de todas. Ou seja, defender que “todas as perspectivas são válidas” pode impli-
car na validação de mentiras tomadas como “fatos alternativos” ou na negação do Holocausto.
Especificamente para os que negam o Holocausto, lembramos das palavras de Primo Levi:
“Pensem que isto aconteceu: / eu lhes mando estas palavras. / Gravem-nas em seus corações,
/ estando em casa, andando na rua, / ao deitar, ao levantar, / repitam-na a seus filhos. / Ou,
senão, desmorone-se a sua casa, / a doença os torne inválidos, / os seus filhos virem o rosto
para não vê-los” (LEVI, 1988, p. 9).
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diciário, a distância exige a proximidade do afeto.
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AFETO
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O texto “Paris, 1647: um diálogo sobre ficção e história” foi publicado
originalmente em 1992 e foi revisado antes da republicação de 2006. O autor
(GINZBURG, 2007, p. 79 e seguintes) o inicia com uma referência a Marcel
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Detienne (1935-; historiador belga da Antiguidade), que ironizou a tentativa
de Moses Finely (1912-1986, historiador anglo-americano da Antiguidade) de
encontrar elementos históricos nos poemas de Homero: “fazer história elimi-
nando o elemento mítico, observou Detienne, é uma posição típica dos histo-
riadores...” (apud GINZBURG, 2007, p. 79). O italiano tratará de um detalhe
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O detalhe começa com Jean Chapelain, que, entre 1646 e 1647, escreveu
De la lectura des vieux romans [sobre a leitura de velhos romances]. Neste texto,
ele faz um diálogo com dois literatos mais jovens. Quando lê Lancelot, roman-
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ce medieval, afirma aprender muito sobre o período, visto que essa leitura lhe
permitia conhecer “uma história segura e exata dos costumes que reinavam
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que os vestígios do passado são estranhos a nós, eles passam a ser objetos que
precisamos compreender. O que Chapelain fez, ao transformar distância em
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proximidade emotiva, permite que entendamos que a perspectiva não é um
lugar frio e objetivo, mas um lugar de afeto. Quando todas as perspectivas são
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aceitas como válidas ou quando tomamos apenas uma interpretação como
correta, não nos deixamos ser tocados, como indivíduos ou mesmo como so-
ciedade. Assim, o caminho para adotarmos um olhar indiciário, de perspectiva
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em relação ao que nos propomos a conhecer, é o caminho do afeto. Distância
é proximidade, é reconhecer o humano do outro que, como nós, é cheio de
ambiguidades, dúvidas, incoerências.
Afeto não é um conceito de simples definição. Criamos afeto pelo outro
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ao reconhecer que ele mobiliza em nós emoções, assim como nos sentimos
afetados quando algo mobiliza em nós certa energia criativa ou força de tra-
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preensão corresponde aos fatos. Para que isto não ocorra, lançamos mão de
um outro critério: tão relevante quanto manter a distância, é nutrir o afeto.
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É a compreensão de que afetamos e somos afetados com o movimento his-
tórico da humanidade que nos traz a compreensão da responsabilidade que te-
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mos como pesquisadores. Assim, entendemos que não vale qualquer recurso,
nem qualquer interpretação da realidade, porque nosso modo de estabelecer
relações com os outros nos afeta.
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No entanto, distância e afeto não bastam. Ao compreender a dimensão
de nosso ofício, poderíamos não mais fazer pesquisa, justamente porque ela
implica certa distância, que traga entendimento e objetividade, e certo afeto,
que possibilite o reconhecimento do outro em sua subjetividade. Assim, sem
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EXÍLIO
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O texto “Detalhes, primeiros planos, microanálises – À margem de um
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livro de Siegfried Kracauer” foi apresentado como palestra em um congresso
dedicado às ideias de Kracauer na França, em 2003, e foi publicado em livro no
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ano de 2007. Siegfried Kracauer (1889-1966), escritor alemão, com uma obra
marcante no campo dos estudos sobre cinema, esteve no círculo de Adorno e
Benjamin. O livro objeto de análise de Ginzburg é um estudo, inacabado e de
publicação póstuma, sobre a História. O mote central do texto é a crítica de
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micro-história e microanálise.
O livro de Siegfried Kracauer, intitulado History: the last things before the last,
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que pode desenvolver um olhar de estranhamento: “O instante do não-reco-
nhecimento abre para o olhar de estranhamento do espectador o caminho da
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iluminação cognoscitiva” (GINZBURG, 2007, p. 238, grifo nosso). Ou seja,
pelo não reconhecimento posso estranhar e posso compreender. Quem reco-
nhece não compreende.
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Como já escrevemos anteriormente a respeito dessa ideia:
Mas os textos, as palavras, as ideias, as imagens, os sons, o que quer que
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tenhamos capturado, só possuem sentido se colocados em uma narrativa.
Este é o ato de decifrar. É o momento do estado exilado do estranha-
mento em relação às nossas certezas, dúvidas ou intuições. (AGUIAR;
FERREIRA, 2021, p. 10)
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lação ao mundo evocado pelas fontes, pelos documentos, pela bibliografia que
compõem nossos exercícios investigativos, no lugar da dúvida, do não reco-
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nhecimento, da compreensão de que nosso olhar é/foi construído em diálogo
com outro tempo e espaço, diferente daquele que nos propomos a conhecer
e narrar.
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Neste contexto, o estranhamento é um processo de busca pelo não eu,
pelo anômalo, pelo diferente que surge no “instante do não reconhecimento”.
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Consiste numa escrita pautada pelo exílio. Já apontamos para esta reflexão em
publicações anteriores, mas vale a pena retomar:
O nãoreconhecimento não implica numa atitude positivista, de neutrali-
dade, de isenção. Pelo contrário, como o próprio Ginzburg já apontou em
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4 Em Aguiar (2018) discutimos a ideia de um pensamento exilado no século XV. As ideias que ali
apresentamos sobre as características de um pensamento exilado dialogam com as questões
aqui apresentadas.
5 Paramos aqui a leitura do texto de Ginzburg que segue mais algumas páginas discutindo as
escalas de observação (daí o título do texto “Detalhes, primeiros planos, microanálise”. Mas
como queremos destacar a dimensão da metáfora do exílio, remetemos a discussão das esca-
las de observação para Leonardi; Aguiar (2010).
O autor nos convoca com suas palavras a uma reflexão: ao contrário do que
se possa por vezes pensar, mesmo nos espaços onde sentimos grande familia-
ridade e reconhecimento, somos de algum modo estranhos. Por isso, devemos
desconfiar da familiaridade buscando o que há de estranho dentro do familiar.
Nestes termos, uma pesquisa feita nesta postura de exílio, consideran-
do o caráter fragmentário da leitura que fazemos das fontes, implica, ao
olhar para os indícios, buscar entender o que há de estranho dentro do
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familiar. Além disso, o que nos une é justamente nossa leitura fragmen-
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tada do mundo, nosso exílio em relação ao outro, ao diferente e, portan-
to, a possibilidade dialógica de lidar com o outro é o que nos une. No
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campo da pesquisa, nosso primeiro outro é nosso objeto de pesquisa. E
nosso segundo outro somos nós mesmos diante deste objeto. (AGUIAR;
LEONARDI; PERES, 2021, p. 15)
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Buscar a dúvida no familiar é mantermo-nos em constante movimento en-
tre distância e proximidade. Com afeto nos aproximamos; no estranho, olha-
mos com perspectiva. Na escrita, mostramo-nos. Mostramo-nos porque, se
estamos exilados, não somos os donos da certeza, não estamos à vontade o
suficiente para escrevermos como aquele narrador onisciente que tudo enten-
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OS RISCOS, OS TRAÇOS
6 Davis (1987), ao explorar a história de Martin Guerre, utiliza em sua escrita uma grande quan-
tidade de expressões da dúvida, configurando-se, para nós, um relevante exemplo de uma
escrita narrativa com as características que aqui apontamos.
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Nessa escrita, estamos presentes e, portanto, expostos. Nossos acer-
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tos e, principalmente, nossos erros são visíveis aos outros. O próprio
Ginzburg trata, em mais de um texto, das críticas que recebeu e de di-
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versos erros que outros pesquisadores já lhe apontaram. Um deles, em
especial, possui impacto significativo no argumento que desenvolveu no
livro “Investigando Piero” (GINZBURG, 2010), quando alguém mos-
trou que uma de suas inferências sobre um determinado quadro estava
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errada. Mas é justamente porque sua escrita possui caráter narrativo que
aquela inferência foi apresentada, originalmente, com o devido grau de
dúvida. (AGUIAR; FERREIRA, 2021, p. 16)
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elementos em nosso trabalho. Entendemos que, quando deixamos claro que
conhecemos esses riscos, posicionando-nos no texto, apresentando quem so-
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mos, como desenvolvemos nossa pesquisa e como estamos fazendo para en-
frentar essa relação tensa entre pesquisadores e objeto, tomamos o risco como
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traçado, expondo quem somos e como chegamos àquelas conclusões para que
outros possam entrar no diálogo.
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REFERÊNCIAS
AGUIAR, Thiago Borges de. Cartas distantes de um ganso em lugar nenhum ou re-
flexões sobre o pensamento exilado no século XV. In: LIMA, Alessandra Carbonero;
PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei; ALMEIDA, Rogério de. (orgs.). Os outros, os
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