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Comida, Identidade e Comunicação: a comida como

eixo estruturador de identidades e meio de


comunicação
Carla Pires Vieira da Rocha∗

Índice vivenciamos redimensionamentos que reper-


cutem tanto no universo alimentar como no
Introdução 1 que tange às identidades. Considerando este
1 A comida como elemento-chave para contexto é que abordamos a relação entre co-
a constituição de identidades 1 mida e identidade e acenamos para a noção
2 A comida como meio de comunicação de comida como um meio de comunicação.
4
Conclusão 6
Bibliografia 6
1 A comida como
elemento-chave para a
Introdução constituição de identidades

A comida exerce um papel fundamental A comida é um elemento-chave para se pen-


para se pensar a trajetória das mais dis- sar a questão das identidades. O ato de
tintas sociedades. Ao longo da história, comer envolve uma vasta gama de fatores,
ela esteve relacionada a diferentes transfor- atravessados por critérios econômicos, nutri-
mações de ordem social, cultural, política cionais, políticos, éticos, religiosos, ambien-
e econômica, revelando-se como um dos tais e estéticos. No panorama atual, viven-
instrumentos para se compreender algumas ciamos aceleradas mudanças em nível pla-
questões que permeiam a própria condição netário nos mais diversos campos, incluindo
humana. Em tal perspectiva, é que se ins- a esfera alimentar. Evidencia-se um re-
creve a questão das identidades. dimensionamento na oferta e variedade de
No mundo contemporâneo, cada vez mais alimentos, repercutindo em alterações nos
marcado por um processo globalizador, padrões alimentares. Neste contexto de mu-
danças, a questão das identidades também

Mestre em Comunicação e Informação pela Uni- ganha novos contornos, definido a partir de
versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: carlapvrocha@gmail.com. um processo de reconfiguração.
2 Carla Pires Vieira da Rocha

O alimento pode ser considerado um eixo [...] as tradições alimentares e gas-


central na estruturação identitária dos di- tronômicas são extremamente sen-
versos povos. Desde o seu princípio, as síveis às mudanças, à imitação e às
práticas culinárias como cortar, cozer, as- influências externas. Cada tradição
sar, temperar, macerar, defumar, entre ou- é o fruto – sempre provisório –
tras, variaram em grau de complexidade de de uma série de inovações e das
povo para povo. Como chama a atenção adaptações que estas provocaram
Flandrin (1998), mesmo nas práticas mais na cultura que as acolheu. (2009:
simples já está envolvida a noção de coz- 12).
inha. Tal observação indica-nos que, aí, já
se identificam modos de preparo, hábitos ali- Nesse sentido, é pertinente uma outra re-
mentares e comportamentos de consumo. missão à época moderna, quando houve um
Assim, além das questões propriamente grande reordenamento da alimentação em
culinárias, as crenças relacionadas ao ali- nível global, por meio da expansão colo-
mento, a comensalidade e as funções so- nial européia. Como bem explica Carneiro
ciais relacionadas à refeição também po- (2003), foi nesse período:
dem ser apontadas como constituintes iden-
titários. Dentre alguns exemplos históricos A maior revolução na alimen-
nesta direção, destacamos os relatos sobre o tação humana [...] com a rup-
Brasil feitos por viajantes que aqui estiveram tura no isolamento continental,
durante o período inical de colonização eu- quando o intercâmbio de produtos
ropeia1 , nos quais a comida já aparecia como de diferentes continentes, ocorrido
lastro de nosso processo identitário, eviden- no bojo da expansão colonial eu-
ciado sobretudo nos modos de preparo do a- ropéia, alterou radicalmente a die-
limento e no seu consumo. ta de praticamente todos os povos
É fato que a comida serviu de impulso às do mundo. As especiarias asiáti-
grandes transformações sociais ao longo da cas – pimenta, canela, cravo, noz-
história. A disponibilidade e variedade de moscada –, difundiram-se para a
produtos, a sua qualidade ou mesmo a sua Europa e chegaram aos outros con-
carência determinaram significativos movi- tinentes. As plantas alimentícias
mentos envolvendo diferentes trocas cultu- das Américas: o milho, a batata,
rais, o que repercutiu na formação das mais o tomate, o amendoim, os pimen-
distintas identidades alimentares. Montanari tões propagaram-se pelo planeta.
(2009) examina o tema sublinhando que: Gêneros tropicais, como a cana-
de-açúcar, o chá, o café e o choco-
1
Destacamos aqui, entre outros, os relatos de late, combinaram-se para fornecer
Hans Staden em Duas viagens ao Brasil (1557), São
Paulo/ Belo Horizonte: Edusp/ Itatiaia, 1974, Gabriel
um novo padrão de consumo de
Soares de Sousa em Tratado descritivo do Brasil em calorias e de bebidas excitantes,
1587, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971 que, ao lado do tabaco, tornaram-
e Jean de Léry em Viagem à terra do Brasil, Martins se hábitos internacionais. Pro-
Ed., São Paulo, 1941. dutos típicos da Europa mediter-

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rânica como o trigo e a uva acom- fragmentado, divergindo da noção de uma


panharam a colonização de diver- identidade unificada, centrada ou segura,
sos países e o álcool destilado como a que vigorava na Modernidade. As-
penetrou em todos os continentes. sim, em nosso mundo globalizado e, em
(2003: 75). virtude de seu caráter transitório, as identi-
dades culturais vão emergindo por toda parte
Do mesmo modo que o intercâmbio de e fluindo entre as diferentes tradições cul-
produtos constitui os sistemas alimentares, turais. Ao estendermos esse mesmo viés
as identidades também não nascem como para o universo da comida, isso significa
algo genuíno, e sim como algo construído. que em uma de nossas refeições, possamos
Na visão de Montanari (2008: 189), “As nos identificar com um determinado grupo e
histórias que contamos nos lembram que sua tradição alimentar, e na refeição seguinte
toda cultura, toda a tradição, toda identi- podemos estabelecer outros laços de identi-
dade é um produto da história, dinâmico e ficação, sendo que nenhuma dessas opções é
instável, gerado por complexos fenômenos excludente, pois é a partir do seu conjunto
de troca, de cruzamento, de contaminação.” que se define nossa própria identidade.
No pensamento de Hall (2001), de um ponto A mesma lógica pode ser usada para pen-
de vista semelhante e ancorado no tema da sarmos o quanto se tornou difícil conceber
globalização: a ideia de uma cozinha étnica como algo
Quanto mais a vida social se torna exclusivo de um determinado lugar. Es-
mediada pelo mercado global de pecialmente no panorama dos grandes cen-
estilos, lugares e imagens, pelas tros, onde se multiplicam restaurantes re-
viagens internacionais, pelas ima- presentativos das mais diversas culinárias,
gens da mídia e pelos sistemas de somos levados a supor que é cada vez
comunicação globalmente interli- menos necessária uma viagem ao continente
gados, mais as identidades se tor- asiático para saborearmos a comida tailan-
nam desvinculadas – desalojadas desa ou a indiana.
– de tempos, lugares, histórias É importante frisar que esta dinâmica
e tradições específicos, e pare- globalizante também é vista como um pro-
cem “flutuar livremente”. Somos cesso homogeneizador, fomentado pela in-
confrontados por uma gama de dústria alimentar e expresso pela padroniza-
diferentes identidades (cada qual ção de gostos e do consumo. Entretanto, se
nos fazendo apelos, ou melhor, por um lado a indústria promove o referido
fazendo apelos a diferentes partes nivelamento, quando, por exemplo, divulga
de nós), dentre as quais parece pos- e multiplica culinárias regionais pelo mundo,
sível fazer uma escolha. (2001: caracterizando o que Carneiro (2003: 108)
75). denomina como um “sincretismo culinário”,
por outro lado, podemos dispor mais facil-
Ainda na concepção de Hall (2001), a mente de alguns alimentos, como frutas e
identidade do sujeito pós-moderno é carac- certos ingredientes, anteriormente restritos a
terizada por um caráter múltiplo, móvel e

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algumas regiões do país ou mesmo a outros bém se inscreve como um importante instru-
continentes. mento de comunicação.
Como se observa, o contexto contemporâ-
neo envolvendo a alimentação, também con-
templa alguns paradoxos. Diante de tal cons-
2 A comida como meio de
tatação, Montanari (2001) explora a relação
entre a cozinha internacional e a cozinha comunicação
de território. Valendo-se de uma análise
das épocas antiga e medieval, o autor ob- A comida pode ser vista como um impor-
serva que havia a ideia de se construir um tante meio para se comunicar valores, sen-
modelo universal de consumo, em que to- tidos e identidades. Comer é um ato sim-
dos pudessem se reconhecer. Em tal mo- bólico que não está restrito à necessidade de
delo, estariam plantadas as raízes do que se suprir nutrientes. As profundas transfor-
conhecemos por cozinha internacional. Já mações em nível global vêm alterando pro-
na época atual, regida pela globalização dos fundamente os padrões alimentares; a in-
mercados e dos modelos alimentares, vigo- tensificação das trocas culturais, reconfigura
raria um novo cuidado em relação às cul- os repertórios alimentares e também o seu
turas locais, representado pela invenção de consumo. Neste contexto, assim como um
“sistemas” (grifo do autor), como seria a co- elemento-chave para a constituição de iden-
zinha de território. No entanto, Montanari tidades, a comida pode ser pensada como um
faz questão de deixar claro que não se pode meio de comunicação.
dizer que tais sistemas tenham nascido do A importância dos meios comunicacionais
zero, uma vez que as diferenças locais sem- para a humanidade não reside apenas nas
pre existiram. suas funções de armazenar e transmitir in-
Considerando o que foi abordado até aqui, formações; a própria adjetivação do termo
é possível dizer que a relação entre comida já demonstra o seu papel fundamental como
e identidade está inserida em um amplo uni- instrumento de comunicação entre as pes-
verso permeado por questões sociais, políti- soas. Concebida nesta mesma condição, a
cas, econômicas e culturais. Num mundo comida atua em sentido idêntico: além de
cada vez mais regido por um processo glo- um meio de transmissão de valores simbóli-
balizador, essa relação vai ganhando novos cos e significados diversos, ela é um instru-
contornos; evidencia-se uma redefinição na mento comunicativo. É sabido, por exemplo,
oferta e consumo de alimentos, alinhada com que é muito mais fácil entrar em contato com
um amplo desenvolvimento da indústria ali- a cultura do outro compartilhando o seu ali-
mentar. Deste modo, há uma reconfiguração mento, do que falando a sua língua.
da noção de identidade, por meio de um pro- Em face da sua especificidade, os meios
cesso dinâmico, caracterizado pela fluidez e permitem diferentes formas de comuni-
mobilidade. Nesta perspectiva, como vere- cação. Ao telefone, falamos geralmente
mos a seguir, além de consistir em um eixo com um único interlocutor; já pela In-
de afirmação de identidades, a comida tam- ternet, esse número tende a ser multi-

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plicado, em função do maior número de práticas que vinculam a imagem de deter-


conexões passível de ser estabelecido. Ob- minado alimento tanto a questões de socia-
viamente, outros fatores de distinção entre os bilidade, como a noções de praticidade an-
meios poderiam ser elencados, sobretudo se coradas no propósito de se ter um melhor
considerarmos o acelerado desenvolvimento aproveitamento do tempo na vida contem-
tecnológico característico de nossa aldeia porânea, ou ainda a relações mais qualitati-
global (McLuhan, 2001). vas com o próprio corpo.
De maneira semelhante, a comunicação Os meios de comunicação processam e
por meio da comida também é marcada por transmitem formas simbólicas a partir de sua
uma multiplicidade de aspectos. Destaca- linguagem específica. Compreendida como
se aí a relevância dos hábitos alimentares, um meio de comunicação, a comida também
uma vez que eles podem revelar nossa iden- está circunscrita a uma linguagem. A in-
tidade, religião, posição social, posiciona- vestigação da comida como algo de princí-
mento político, entre outros. A produção de pio semelhante à linguagem, é reconhecida
sentidos relacionada à comida também é es- na obra do antropólogo Lévi-Strauss (1979).
tendida à maneira como ela é consumida: se Em sua concepção, a cozinha, enquanto
é ingerida com as mãos ou se são utilizados prática comum a todas as sociedades, é a de-
talheres, se é solitária ou em grupo, em silên- tentora do processo de articulação entre na-
cio ou assistindo televisão, num restaurante tureza e cultura, a partir da transformação do
ou em casa. Cabe aqui evocar a reflexão cru no cozido. Na a sua análise, Lévi-Strauss
de Norbert Elias (1994) explorando o con- propõe o triângulo culinário como demar-
ceito de civilização, ao detectar o surgimento cação de um campo semântico, no qual se
da vinculação das normas de comportamento reproduzem as diferentes relações que com-
às práticas alimentares como formas de dis- põem a estrutura de uma sociedade.
tinção social, durante o período de desen- Explorando o mesmo princípio, Monta-
volvimento dos Estados-Nações europeus. nari (2008) sustenta que em todas as so-
Outro aspecto do tema é aquele relativo ciedades o modo de comer é regrado por con-
aos papeis da mídia e da indústria alimen- venções semelhantes àquelas que dão sen-
tar. É possível afirmar que as duas jun- tido e estabilidade às linguagens verbais. O
tas atuam como fermento para os processos conjunto dessas convenções determinariam
comunicativos baseados na comida. Além uma gramática, o que, portanto, configu-
de promover os lançamentos da referida in- raria o sistema alimentar “[...] não como
dústria, a mídia é responsável pela divul- uma simples soma de produtos e comidas,
gação de alimentos relacionados a benefí- reunidos de modo mais ou menos causal,
cios nutricionais cada vez mais inéditos e mas como uma estrutura na qual cada ele-
de dietas pretensamente revolucionárias, as- mento define o seu significado.” (2008: 165).
sim como pela apresentação de programas Essa teoria, além de viabilizar uma apreen-
gastronômicos pautados pela excentricidade são da produção de sentidos relacionada ao
culinária ou mesmo por sua completa aces- alimento, possibilita entender a maneira pela
sibilidade. A comida é muitas vezes asso- qual os diferentes sistemas alimentares se
ciada a estilos de vida, representados por

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tornam depositários de determinadas identi- Nessa medida, a comida também se inscreve


dades. como um importante instrumento para se co-
Conforme as questões abordadas, é certo municar tais sentidos, assim como valores e
que o ato de comer extrapola as necessidades identidades. Dada esta condição, ela é con-
biológicas. É um ato que se estende a um cebida como um meio de comunicação cir-
universo bem mais amplo, o da produção cunscrito a uma linguagem específica.
de sentidos e da possibilidade de comunicar O tema da comida nos oferece um vasto
identidades e valores: a comida pode ser leque de perspectivas. Podemos enxergá-
apreendida como um meio de comunicação. la como uma chave-mestra que nos permita
Baseados nesta prerrogativa, além de recu- abrir muitas portas e escolher distintas di-
perar o antigo adágio de Hipócrates a fim reções. Analisá-la como um eixo estrutu-
de reiterar que nossas identidades, mesmo rador de identidades e como um meio de co-
que transitórias, vão se definindo a partir do municação, além de ser um dos caminhos a
que comemos, podemos alargar o seu sen- percorrer para compreendermos a complexi-
tido para: “você se comunica por meio do dade do que permeia uma de nossas mais e-
que come”. lementares necessidades, talvez nos dê pistas
para compreender o próprio sentido de hu-
manidade.
Conclusão

Bibliografia
A comida faz parte de um universo com-
plexo que excede as suas funções biológicas,
para alçar-se como um elo significativo na CARNEIRO, H. (2003), Comida e so-
constituição identitária dos diferentes povos. ciedade: uma história da alimentação,
O alimento serviu de impulso às grandes 7 ed. Rio de Janeiro: Elsevier.
transformações sociais ao longo da história.
Na contemporaneidade, com o acirramento ELIAS, N. (1994), O processo civilizador,
dessas transformações, a relação entre co- V.1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
mida e identidade ganha outra dimensão. FLANDRIN, J-L (1998), “A humanização
Neste mundo cada vez mais globalizado, das condutas alimentares”, in FLAN-
há uma intensificação das trocas culturais e DRIN, J-L. MONTANARI, M. História
econômicas, o que determina uma reconfi- da Alimentação.6 ed. São Paulo: Es-
guração dos padrões alimentares e do seu tação Liberdade, p. 26-35.
consumo. A par disto, considera-se uma mu-
dança no que concerne à questão das identi- HALL, S. (2002), A identidade cultural na
dades, que passam por um processo de des- pós-modernidade. 7 ed. Rio de Janeiro:
centramento. DP&A.
O alimento está relacionado à produção
de sentidos diversos, envolvendo questões LÉRY, J. (1941), Viagem à terra do Brasil.
sociais, políticas, econômicas e culturais. São Paulo: Martins Ed.

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