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O experimento de Tales
Richard Kerner
Sorbonne-Université, Paris, França
Resumo
Há mais de 2500 anos, o filósofo grego Thales de Mileto descobriu um teorema geométrico que lhe permitiu
avaliar a altura da Grande Pirâmide no Egito comparando o comprimento de sua sombra com o comprimento
da sombra projetada pelo bastão vertical ao mesmo tempo. Ao fazer isso, Thales estava usando três definições
independentes de linha, e geometria em geral, provenientes de três reinos da física: gravidade, física quântica e
atômica, e ótica. No presente trabalho analisamos as implicações físicas e filosóficas da coincidência entre três
definições de espaço físico e sua geometria.
Abstract
More than 2500 years ago ancient Greek philosopher Thales of Miletus discovered a geometrical theorem that
enabled him to evaluate the height of Great Pyramid in Egypt comparing the length of its shadow with the
length of shadow cast by vertical stick at the same time. By doing so, Thales was using three independent
definitions of straight line, and of geometry in general, coming from three realms of physics: gravity, quantum
and atomic physics, and optics. In the present paper we analyze physical and philosophical implications of the
coincidence between three definitions of physical space and its geometry.
DOI: 10.47083/Cad.Astro.v1n1.31678
1 Introdução: Tales e a Grande Piramide tas e ângulos retos. Acontece que, os fenômenos
envolvidos neste experimento pertencem a dife-
Tales de Mileto (⇥↵ ⌘ , 625–547 A.C.) foi rentes domínios da física: gravitação, mecânica
considerado pelos gregos antigos como um de seus quântica e eletromagnetismo. O fato de que eles
Sete Sábios, o pai da abordagem científica para levam a três definições diferentes de geometria,
a descrição dos fenômenos naturais e, talvez, a mas compatíveis entre si, sugere que esses aspec-
primeira pessoa merecedora do título de matemá- tos distintos da realidade física aparentemente es-
tico. Ficou famoso pela sua predição do eclipse tão relacionados. Esse fato dá origem a uma das
solar de 585 A.C., e pela sua capacidade de avaliar questões mais importantes e fundamentais sobre
dimensões de objetos distantes, através da com- a física e a nossa percepção do mundo físico, ainda
paração de suas sombras com a sombra de um em aberto depois de mais de vinte e cinco séculos.
bastão de dimensão conhecida.
A relação de proporcionalidade usada por Ta-
les para determinar a altura da Grande Pirâmide,
2 As três definições de geometria
no Egito, também é uma introdução à dependên-
cia linear, que constitui a essência da álgebra li- Vamos analisar as premissas e hipóteses que
near. Essa experiência fundamental tornou-se tão permitiram a Tales chegar às suas conclusões e
comum que seus aspectos físicos raramente são formular o teorema das linhas paralelas que inter-
considerados de maneira mais detalhada. ceptam duas linhas que formam um ângulo entre
De fato, Tales realizou um importante experi- si.
mento físico relacionando diferentes definições de As duas primeiras suposições são que, na Fi-
geometria; para ser mais preciso, as noções de re- gura 1, o segmento de reta OQ0 no solo é real-
transmitiam forças de um corpo para outro estava e do espaço, mas as quantidades físicas conser-
totalmente ausente. vadas, como a energia E e o momento p, ou a
A controvérsia sobre a natureza da luz levou a frequência ! e o vetor de onda k de uma onda
profundas diferenças na interpretação do espaço. eletromagnética (ou mais precisamente, de um fó-
Para Huygens, que forneceu uma prova da pro- ton).
pagação da luz em forma de onda, o espaço deve O espaço-tempo minkowskiano herda a sime-
ser preenchido com algum meio que permita a tria de Lorentz-Poincaré porque é definido através
propagação. Duas visões diametralmente opostas de medições baseadas em fótons e suas interações
sobre o status do espaço e do movimento preva- com elétrons, cuja energia, momento e spin são
leceram desde então. A visão newtoniana foi re- quantidades covariantes de Lorentz e abrangem
forçada por Immanuel Kant, que elevou o status os espaços de representação do grupo de Lorentz-
do espaço para a categoria independente e abso- Poincaré.
luta, existindo independentemente dos observa- A categoria III representa o ponto de vista al-
dores, como o céu estrelado e o “imperativo mo- ternativo de supor que a existência de matéria
ral” [2]. é prioritária com relação à do espaço-tempo, que
As teorias pertencentes à categoria II assumem se torna um domínio “emergente” - um eufemismo
que o mundo físico pode ser descrito exclusiva- para “ilusão”. Essa abordagem foi defendida re-
mente como uma coleção de campos em evolu- centemente por N. Seiberg e E. Verlinde [11].
ção na variedade espaço-temporal. Essa aborda- É verdade que as coordenadas do espaço-tempo
gem foi defendida por Lord Kelvin, A. Einstein não podem ser tratadas da mesma maneira como
e, mais tarde, por J.A. Wheeler. O impulso ini- quantidades conservadas, como energia e mo-
cial foi dado por Faraday e J.C. Maxwell, que mento; muitas vezes esquecemos que elas existem
introduziram um ponto de vista revolucionário, enquanto marcadores, e tratá-las como objetos
antinewtoniano, segundo o qual nenhuma intera- reais é um “mau hábito”, como comentado por D.
ção a distância é possível. Todas as forças são Mermin [4].
transmitidas por um meio; o espaço é preenchido Vista sob esse ângulo, a ideia de derivar as pro-
por esse meio. Este pode ser chamado de “éter”, priedades geométricas do espaço-tempo, e talvez
e os campos de forças se tornam um novo reino a sua própria existência, a partir de simetrias fun-
físico, identificado como tensões dentro do éter, damentais e interações típicas dos constituintes
que em certo sentido é o espaço. Em certo sen- mais elementares da matéria parece bastante na-
tido, o “espaço” se torna sinônimo de “contínuo tural. Muitas dessas propriedades não requerem
material”, assim como, do ponto de vista de um menção de espaço e de tempo no nível da me-
peixe, sua separação espacial de outro peixe pode cânica quântica, como foi demonstrado por M.
ser definida como a quantidade de água contida Born e W. Heisenberg [5–7] em sua versão da
entre os dois. mecânica matricial, ou pela formulação da teo-
ria quântica de J. von Neumann em termos das
Como seguidor de Maxwell e Faraday, Eins-
álgebras C ⇤ [8]. A geometria não comutativa é
tein acreditava no papel primordial dos campos e
outro exemplo de formulação de relações espaço-
tentava derivar as equações de movimento como
temporais em termos puramente algébricos [9,10].
comportamento característico das singularidades
Considerando a física quântica como a princi-
dos campos ou da curvatura do espaço-tempo.
pal realidade subjacente da qual os objetos clássi-
Pode-se dizer que, na visão de Einstein, os cam-
cos são uma versão média, leva-se a concluir que
pos substituíram o éter [3].
as propriedades quânticas de objetos físicos de-
No espírito do programa de F. Klein, H. Min- vam estar intimamente relacionadas à definição
kowski definiu a geometria hiperbólica do espaço de geometria em primeiro lugar.
unida à tempo em uma única entidade chamada
variedade espaço-temporal. Sua geometria foi de-
finida pela ação do Grupo de Lorentz-Poincaré.
4 O experimento de Tales na perspectiva
No entanto, olhando mais de perto, entidades
de hoje
fisicamente mensuráveis que são submetidas às
transformações de Lorentz (os “quadrivetores”) Voltemos ao experimento realizado por Tales
não são de jeito nenhum as coordenadas do tempo mais de vinte e cinco séculos atrás. De acordo
com nossa análise, podemos reconhecer a qual da Terra, porque as direções verticais definidas
reino físico pertence cada uma das três definições pelo seu campo gravitacional não são paralelas
de linha reta. As duas linhas verticais paralelas, de verdade: uma distância de cerca de 31 metros
a altura da pirâmide e o bastão são feitos de ma- corresponde a um segundo de arco entre as dire-
deira e pedra, que mantêm sua forma devido ao ções verticais locais definidas pela gravitação da
seu estado sólido. Sendo feitos de átomos, a exis- Terra.
tência e as propriedades de tais sólidos podem ser A presente análise do experimento de Tales su-
derivadas das regras da mecânica quântica. Este gere que, entre os três reinos da física representa-
é o reino das partículas com massa: núcleons e dos na Figura 4, partículas e campos (física quân-
elétrons, que formam átomos, depois moléculas tica) definem a geometria quando constituem ob-
e, finalmente, sólidos cristalinos ou amorfos es- jetos clássicos como corpos sólidos e frentes de
táveis. As forças eletromagnéticas também de- onda, enquanto a presença ou ausência de gravi-
sempenham um papel importante, mantendo os tação é verificada com a ajuda de outros objetos
elétrons ao redor dos núcleos e criando os residu- clássicos. Em termos muito aproximados, corpos
ais potenciais de Lennard-Jones fora dos átomos, sólidos feitos de átomos e frentes de onda feitos
dando origem às forças de Van der Waals. de fótons existem, apesar da existência ou não
Os raios de luz que criaram a sombra da pi- da gravidade; pelo contrário, a gravidade, assim
râmide assim como a do bastão são, como sabe- como a geometria do próprio espaço-tempo, é de-
mos agora, o inumerável enxame de fótons cri- finida pelas propriedades de corpos sólidos e raios
ando uma frente de onda plana comum. Eles de luz. A própria detecção de efeitos gravitacio-
são identificados com um campo de calibre sem nais não pode ser realizada sem corpos massivos
massa, pertencendo assim ao reino das forças que extensos, que se comportem como objetos clássi-
tornam possível a interação entre partículas car- cos. Até o famoso experimento confirmando a va-
regadas massivas. A interação entre os fótons e riação do tempo próprio sob a influência da gravi-
elétrons das camadas atômicas externas é descrita dade, realizado por Pound e Rebka [12] em 1959,
de maneira mais adequada pelas regras da física usa o efeito Mössbauer com base no comporta-
quântica. mento coletivo da rede cristalina que cancela o
Somente o terceiro lado de cada um dos dois tri- efeito de recuo durante a absorção de fótons.
ângulos que aparecem no experimento de Tales, O teorema de Tales liderou o caminho para
as linhas verticais paralelas, parecem não ter nada todas as medições subsequentes de grandes dis-
a ver com a física quântica, suas direções sendo tâncias, primeiramente na terra e no mar, depois
definidas pelo campo gravitacional da Terra. Mas aplicadas à medição do raio da Terra, por Eratós-
após uma análise mais detalhada, podemos con- tenes, e em seguida para determinar distâncias as-
cluir que, mesmo neste caso, os dispositivos fei- tronômicas, por Aristarco de Samos. Mais tarde,
tos de sólidos são necessários para detectar a pre- a medição da distância até as estrelas mais próxi-
sença de gravitação, e as informações sobre seu mas, devido à paralaxe anual observada, foi ape-
comportamento são realizadas por fótons. nas outra aplicação do Teorema de Tales. A de-
Nesse ponto, podemos perguntar se o experi- terminação da forma das órbitas planetárias por
mento de Tales poderia ser realizado sem gravi- Kepler foi baseada em triangulação, que também
dade - e a resposta é “sim”. Para construir um é uma variante do mesmo teorema. A determi-
plano e duas linhas paralelas verticais, os padrões nação subsequente das verdadeiras dimensões do
sólidos de comprimento e ângulo reto seriam su- Sistema Solar foi feita apenas em 1769, graças
ficientes, isso pode ser feito com régua e com- à observação do trânsito de Vênus e ao conheci-
passo comuns. Portanto, a experiência seguindo mento exato da longitude pelo capitão Cook, que
o esquema de Tales pode ser vista como a ve- realizou as observações na ilha de Taiti. A me-
rificação se as leis da gravidade são compatíveis dida crucial foi relacionada ao tempo exato do
com a geometria definida por corpos sólidos e luz, fenômeno, como observado de lugares distantes
ou seja, pelo limite clássico da mecânica quântica na Terra. A longitude pôde ser determinada tam-
e da teoria quântica de campos. A propósito, bém devido à invenção do cronômetro por Huy-
com medições muito precisas de ângulos, pode- gens.
ríamos descobrir a curvatura real da superfície Como a velocidade da luz no vácuo é constante
para todos os observadores galileanos, hoje em Segundo, que a gravidade também é um fenô-
dia as medições de distâncias no espaço podem meno clássico, aparecendo apenas quando os efei-
ser substituídas por medições precisas de atrasos tos coletivos podem ser percebidos, assim como a
temporais, como no sistema de posicionamento termodinâmica clássica pode ser definida apenas
global (GPS). E não é acidental que distâncias como um limite da física estatística.
muito grandes são medidas em equivalentes tem-
porais, os anos-luz. As medidas exatas do tempo, Nesse caso, quantizar ondas gravitacionais é
que hoje em dia atingem a precisão de 10 15 se- uma tarefa tão arriscada quanto uma tentativa
gundos, nos permitem determinar distâncias com de quantizar as ondas na superfície da água.
um grau de precisão semelhante - menos de 1 cm
na superfície do nosso globo. Tais medições de
tempo são possíveis devido aos relógios atômicos Nota dos editores
que obedecem às regras da mecânica quântica.
Toda a informação que recebemos do mundo Artigo submetido aos CdA em inglês e tradu-
ao nosso redor é transportada por fótons, léptons zido ao português por Oliver F. Piattella.
e bárions, partículas elementares cujas proprie-
dades e comportamento são extremamente bem
descritos pela física quântica. No entanto, pode- Sobre o autor
mos percebê-los e analisá-los somente através de
dispositivos que representam o limite clássico da Richard Kerner (richard.kerner@sorbonne-
mecânica quântica. Não é surpreendente que a universite.fr) é professor emérito da Université
geometria construída na base dos dados obtidos Pierre et Marie Curie (Sorbonne-Université), em
reflete o grupo de simetria que atua no espaço Paris, França. É autor de mais de 200 artigos
dos estados das partículas elementares - o grupo científicos. O primeiro deles, publicado em 1968,
de Lorentz-Poincaré. As propriedades de trans- antes de iniciar seu doutoramento, foi um marco
formação de entidades físicas conservadas, como em física teórica ao incorporar conceitos das
os quadrivetores k µ = [ !c , k] ou P µ = [ Ec , p] são modernas teorias das interações fundamentais
estendidas ao espaço dual das formas diferenciais às chamadas teorias de Kaluza-Klein, que foram
dxµ = [cdt, dx]. Estas, por sua vez, são defini- formuladas originalmente nos anos 20 e que
das experimentalmente usando objetos clássicos, procuravam unificar as interações fundamen-
cuja própria existência (corpos rígidos formados tais estendendo o número de dimensões do
por átomos, frentes de onda de luz feitas de fó- espaço-tempo. Desenvolve pesquisas em física-
tons) é explicada pela teoria quântica. matemática, gravitação, física de altas energias e
Assim, a conclusão no caso do experimento de física da matéria condensada. Possui três livros
Tales é que, para construir a geometria euclidi- publicados, um sobre a teoria da relatividade
ana do espaço, apenas esses dois fenômenos físicos restrita, outro sobre métodos geométricos para
eram necessários, a luz desempenhando o papel materiais amorfos e, mais recentemente, sobre
de régua (definindo as linhas retas) e os corpos métodos clássicos em física teórica.
rígidos desempenhando o papel de compasso (de-
finindo distâncias). A gravidade foi usada para
definir linhas retas paralelas e ângulos retos, mas Referências
seu uso não era necessário. Pelo contrário, sua
influência pode ser medida usando objetos exclu- [1] I. Newton, Philosophia Naturalis Principia
sivamente clássicos. Mathematica (Pepys, London, 1687); new
Aparentemente, a gravitação pode ser perce- English edition (Snowball publishing, Chi-
bida apenas no limite clássico, e não no nível cago, 2010).
quântico. Apesar de numerosas tentativas, não
há limite quântico da física clássica. Isso sugere [2] I. Kant, Critique of Pure Reason (Cam-
duas conclusões: bridge University Press, Cambridge, 1998);
see also Michael Friedman, Kant and the
Primeiro, que o espaço e sua geometria são defi- Exact Sciences (Harvard University Press,
nidos apenas no limite clássico da teoria quântica; Cambridge, 1992).